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Leituras dirigidas de Marilda Iamamoto: a atualidade e a relevância na formação em Serviço Social

Marilda Iamamoto’s readings: its timeliness and relevance for Social Work education

Resumo:

Na passagem do quadragésimo aniversário do livro Relações sociais e Serviço Social no Brasil, este artigo tem por objetivo socializar uma estratégia de articulação acadêmica. Por meio do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional e do curso de graduação da UFF, houve uma mobilização de assistentes sociais e da comunidade universitária com o objetivo de celebrar o livro, homenagear Marilda Iamamoto e demonstrar a atualidade de sua obra na formação em Serviço Social.

Palavras-chaves:
Serviço Social; Formação; Marilda Iamamoto

Abstract:

On the occasion of the fortieth anniversary of the book Social relations and Social Work in Brazil, this article aims to socialize a strategy of academic articulation. Through the Postgraduate Program in Social Work and Regional Development and the UFF Undergraduate Course, social workers and the university community mobilized to celebrate the book, honor Marilda Iamamoto and demonstrate the relevance of her work in training in Social Work.

Keywords:
Social Work; Professional qualification; Marilda Iamamoto

Introdução

Sol de primavera
Abre as janelas do meu peito
A lição sabemos de cor
Só nos resta aprender
(Beto Guedes)

Quantas vezes sonhamos juntos semeando canções ao vento? As epígrafes inspiradoras são lições que nos ajudam a ultrapassar os obstáculos da vida com leveza e, ao mesmo tempo, nos mantêm atentos à realidade. Recorrer ilustrativamente à linguagem poética é parte da homenagem e de um longo aprendizado, pois “estamos presos à vida e nossos companheiros estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças”.

Foi no ápice das lutas pela redemocratização do país que a Cortez Editora publicou um livro que é fruto do movimento de reconceituação do Serviço Social na América latina. Exprime os embates contra o tradicionalismo e um processo que, juntamente à ação coletiva de entidades e sujeitos profissionais, mudou definitivamente a orientação teórica e política da profissão no Brasil. A edição de Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica, parceria de Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho, foi resultado de um projeto de investigação sobre a “História do Serviço Social na América Latina”, promovido pelo Centro Latino-Americano de Trabalho Social (CELATS).

As reflexões aqui reunidas sinalizam a relevância dessa produção quadragenária e do processo que culminou na criação da disciplina optativa “Leituras dirigidas de Marilda Villela Iamamoto”. Objetiva-se socializar as experiências de assistentes sociais, com inserção na docência do ensino superior, bem como evidenciar uma atividade acadêmica que é fruto do projeto de formação que vem sendo construído por sujeitos profissionais e entidades do Serviço Social vinculadas às lutas das classes trabalhadoras.

A produção acadêmica de Iamamoto, ao longo dessas últimas quatro décadas, foi dedicada a pensar o Serviço Social como profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho e as suas dimensões constitutivas - teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-política -, numa perspectiva de totalidade. A autora em questão é a expressão acadêmica de uma geração insurgente que, a partir do Congresso da Virada em 1979, sustentou bravamente a ousadia rejuvenescedora da crítica social para propor novos rumos para a profissão, num contexto de governos autoritários e diante das desigualdades enraizadas na formação social brasileira.

O texto está encadeado com três itens. O primeiro explica o contexto em que surgiu a proposta do ciclo de debates da obra de Marilda Villela Iamamoto. O segundo reitera o papel da universidade e o esboço do processo metodológico para tratar de temas relacionados aos fundamentos do trabalho de assistentes sociais. E o último destaca a homenagem à autora, com intuito de demonstrar a atualidade do seu pensamento e a relevância de sua obra. O compromisso docente com a produção do conhecimento em Serviço Social exige, dentre outras coisas, a busca permanente por qualificação, a retomada de autores consagrados e a atualização de seus estudos.

1. O contexto do ciclo de debates das obras de Marilda Villela Iamamoto

No contexto dos grandes eventos internacionais e às vésperas das Olimpíadas, em 2016, o Rio de Janeiro atravessou um processo de recrudescimento da coerção estatal e que exigiu a mobilização da sociedade civil para garantir, sobretudo, o direito à cidade, assim como os direitos de crianças e adolescentes. A “Operação Verão” envolveu a ação dos governos estadual e municipal em ações de segurança pública e procedimentos de ordenamento urbano, que mobilizaram diversas entidades políticas engajadas em lutas sociais radicalmente democráticas e na defesa intransigente dos direitos humanos (Lima, 2020LIMA, R. S. Infância, mito da feliz(cidade) e a dimensão coercitiva da assistência social. Vértices, v. 22, n. especial, p. 748-771, 31 dez. 2020.).

A “nova” situação política instaurada se recriava a partir das marcas arcaicas da formação social, ou seja, da herança escravocrata, patrimonialista e mandonista de larga tradição no país. E as forças que foram reconduzidas às estruturas do poder, por meio do golpe parlamentar-jurídico-midiático que levou a destituição do cargo da presidenta Dilma Rousseff, reeditaram, sob inéditas condições históricas, a tradição golpista dos grupos dominantes que sempre relutaram em sair de poder (Cardoso; Brito, 2019CARDOSO, R.; BRITO, F. O. Nas trilhas do golpe: sobre a devastação como tecnologia de governo. Blog da Boitempo, 2019. Disponível em: Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2019/11/01/nas-trilhas-do-golpenotas-sobre-a-devastacao-como-tecnologia-de-governo/ . Acesso em: 16 maio 2022.
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; Adriano, 2018ADRIANO, A. L. Serviço Social e luta de classe: reflexões sobre a hegemonia do Projeto Ético-Político. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL (ENPESS), 16., 2018, Vitória. Anais [....]. Vitória: UFES, 2018.; Iamamoto, 2017IAMAMOTO, M. V. 80 anos de Serviço Social no Brasil: a certeza na frente, a história na mão. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 128, 2017.).

Nesse período, o edital de credenciamento docente ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense (PPGSSDR/UFF) foi publicado. Os critérios para o credenciamento envolviam quatro pré-requisitos, e um deles era a “elaboração de plano de trabalho quadrienal contendo propostas de docência e de pesquisa a ser vinculada a uma linha de pesquisa do Programa - Serviço Social, Políticas Públicas e Formação Profissional”.1 1 Os outros requisitos para solicitação do credenciamento eram: a comprovação do título de doutor, com apresentação e entrega de cópia do diploma e da tese defendida com, no mínimo, dois anos de titulação; o desenvolvimento de projeto de pesquisa no momento do credenciamento que estivesse relacionado à área de concentração ou às linhas de pesquisa do programa; a entrega de curriculum lattes atualizado, devidamente comprovado, referente aos últimos três anos.

Na elaboração do plano quadrienal, duas ações foram levadas em consideração.

A primeira, mais relacionada ao conhecimento da obra de Iamamoto, previa uma reaproximação com textos e livros. A partir de pesquisa de Netto (2005NETTO, J. P. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2005.), assentada no levantamento e na análise crítica da literatura profissional, sob as determinações da autocracia burguesa, são identificadas pelo menos três tendências do processo de renovação do Serviço Social no Brasil. E da produção intelectual vinculada à perspectiva de intenção de ruptura, a de Marilda Iamamoto ocupa um espaço central e resulta numa das mais exitosas reflexões críticas da tradição marxiana, portanto, nesse sentido: “é impossível abstrair a reflexão de Iamamoto da consolidação teórico-crítica do projeto de ruptura no Brasil” (Netto, 2005NETTO, J. P. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2005., p. 276).

A segunda ação, advinda do processo de formação profissional,2 2 A experiência discente em quatro disciplinas: “Teoria social e Serviço Social” (1995), na graduação do curso noturno de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); “Relações sociais, processo de trabalho e Serviço Social” (2001) e “Tópicos especiais em processos de trabalho e Serviço Social” (2001), no mestrado; e “Trabalho e Serviço Social na América Latina”, lecionada de forma conjunta com a professora Dra. Maria Ciavatta (2009), no doutorado, ambas no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). também foi essencial. A elaboração de uma ação coletiva para revisitá-la, não apenas por envolver o corpo discente e docente, mas também por canalizar os esforços na graduação e na pós-graduação, contou com o planejamento, a produção de cronograma, a sistematização de uma ementa e a aproximação com docentes sintonizados com essa literatura. Iamamoto faz parte da resistência acadêmica ao tenebroso contexto político da ditadura militar, numa época em que o movimento pela democratização da sociedade estabeleceu um novo patamar da luta de classes no país (Abramides; Cabral, 2009ABRAMIDES, M. B.; CABRAL, M. S. A organização política do Serviço Social e o papel da CENEAS/ANAS na Virada do Serviço Social Brasileiro. In: 30 ANOS DO CONGRESSO DA VIRADA, 2009, Brasília. Anais [...]. Brasília: CFESS, CRESS 9a Região/ABEPSS, 2009.).

Todavia, a justificativa para escolher a sua obra, em especial, o conteúdo do livro Relações sociais e Serviço Social no Brasil, se deve não apenas ao peso de tais constatações, mas também por outros relevantes motivos. Um vinculado à docência, em experiências nas disciplinas de “Fundamentos do Serviço Social” e em “Supervisão acadêmica de estágio”. E outro com a inserção na direção do Conselho Regional de Serviço Social da 7a Região (CRESS-RJ). As duas gestões, 2002-2005 e 2014-2107, possibilitaram o aprendizado acerca das funções normativas de um conselho de classe e uma grande aproximação com a massa da categoria, em debates urgentes no cotidiano do exercício profissional e na prevenção de possíveis violações éticas.

Marilda Iamamoto sempre esteve por perto das entidades da categoria e, diante do profundo conhecimento dos desafios do Serviço Social e das requisições para qualificar o processo de orientação e fiscalização do exercício profissional, o “registro ativo”3 3 A posição política de Iamamoto, em manter o registro ativo no CRESS-RJ, contrasta com a de segmentos profissionais inseridos em fatídicos cargos genéricos ou na carreira docente e que, mesmo trabalhando em atividades que exigem a graduação em Serviço Social, não se reconhecem como assistentes sociais. dessa assistente social mantém o ativo registro de suas preocupações intelectuais que, em diferentes oportunidades, contribuíram para repensar a realidade social do país , bem como as lacunas e as potencialidades, tanto na sistematização e elaboração de instrumentais, como na construção de propostas e nos debates sobre competências e atribuições privativas da categoria (Iamamoto, 2012IAMAMOTO, M. V. Projeto profissional, espaços ocupacionais e trabalho do assistente social na atualidade. In: CFESS. Atribuições privativas do/a assistente social em questão. Brasília: CFESS, 2012.).

Cabe ressaltar que, tanto na ocasião em que Marilda Iamamoto colheu subsídios junto à Comissão de Orientação e Fiscalização (COFI-CRESS-RJ) para elaboração do texto da conferência do XV Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em 2016, como na experiência docente, em aulas, leituras de diários de campo e reuniões em fóruns de supervisores, constatou-se que a categoria profissional conhece a autora, estuda as suas obras e certifica a sua relevância intelectual. Porém, a presença de suas reflexões nos registros profissionais ainda é insuficiente, e esse estímulo às mediações teórico-práticas pode incorporar, acima de tudo, outras referências marxistas do Serviço Social.4 4 Referências que são fundamentais para qualificar e instrumentalizar, do ponto de vista ético-político, as posições profissionais: Netto e Carvalho (1987); Kameyama (1995); Guerra (2000); Bonettiet al. (2001); Almeida (2006); Yazbek (2009); Mota e Amaral (2014); Matos (2015); Forti (2016); Paula (2016); Ramos e Santos (2018); Alves, Vale e Camelo (2020), dentre outros.

Do ponto de vista político, além de a correlação de forças não ser favorável às amplas manifestações populares que até existiram, mas foram insuficientes para barrar os retrocessos da Emenda Constitucional n. 95 (EC 95), a classe trabalhadora, nela incluída a categoria profissional, se mobilizou num percuciente movimento para entender a ofensiva em curso e tentar desvendar as “trilhas do golpe” parlamentar-jurídico-midiático (Cardoso; Brito, 2019CARDOSO, R.; BRITO, F. O. Nas trilhas do golpe: sobre a devastação como tecnologia de governo. Blog da Boitempo, 2019. Disponível em: Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2019/11/01/nas-trilhas-do-golpenotas-sobre-a-devastacao-como-tecnologia-de-governo/ . Acesso em: 16 maio 2022.
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).

A Emenda instituiu um regime fiscal que congelou por um período de vinte anos os recursos públicos destinados a: educação, saúde, saneamento básico, habitação, previdência, assistência, segurança alimentar, segurança pública, ciência e tecnologia, cultura, infraestrutura, transporte, dentre outros. E se a categoria esteve imersa em adversidades, nelas também residiam um leque de possibilidades, seja por meio de iniciativas acadêmicas, seja pelas manifestações e atividades das entidades da categoria, somadas às forças progressistas que se rebelam em defesa de um novo projeto de sociedade: “a rebeldia do trabalho manifesta-se desde conflitos parciais e momentâneos, até serem explicitamente assumidos através das coligações dos trabalhadores” (Iamamoto, 2001IAMAMOTO, M. V. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária na agroindústria canavieira paulista. São Paulo: Cortez, 2001., p. 79).

De acordo com Adriano (2018ADRIANO, A. L. Serviço Social e luta de classe: reflexões sobre a hegemonia do Projeto Ético-Político. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL (ENPESS), 16., 2018, Vitória. Anais [....]. Vitória: UFES, 2018.), em suas “despretensiosas problematizações” acerca do golpe, assistentes sociais, que não expressam um perfil homogêneo de categoria profissional, participaram de manifestações e articulações políticas contrárias ao autoritarismo, à exploração e à opressão e, mesmo com suas frações conservadoras, a categoria não ficou alheia a estes movimentos. A categoria reiterou, em condições historicamente determinadas, o enfrentamento à sociabilidade do capital, à exploração da força de trabalho, ao racismo, ao machismo e à homofobia, e manteve a defesa intransigente dos princípios éticos, das bandeiras de luta, dos direitos humanos e políticas públicas.

Obviamente, os posicionamentos de combate a todas as formas de opressão, ao machismo, à misoginia, ao extermínio de jovens, da população que vive nas favelas e aos militantes; o enfrentamento a todas as formas de preconceito, segregação e ao autoritarismo não expressam uma homogeneidade na categoria profissional, uma vez que os ecos conservadores e reacionários desta profissão não foram suprimidos inteiramente, mas se apresentam como o acúmulo teórico, ético e político consolidado, fruto de estudos, pesquisas e densas reflexões sobre a vida social, estado e sociedade, classes e lutas sociais, formação social brasileira e sobre os processos que conformam o trabalho e a formação profissional (Adriano, 2018ADRIANO, A. L. Serviço Social e luta de classe: reflexões sobre a hegemonia do Projeto Ético-Político. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL (ENPESS), 16., 2018, Vitória. Anais [....]. Vitória: UFES, 2018., p.13).

Nesse contexto − atravessado pelo ímpeto golpista e pelo descontentamento de segmentos do Serviço Social, somado às experiências profissionais e aos esforços de mobilização das entidades representativas da categoria, em virtude das comemorações dos 80 anos do Serviço Social no Brasil −, a proposta de criação de um Grupo de Estudos sobre a obra de Marilda Villela Iamamoto se inseriu no plano quadrienal do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense (PPGSSDR/UFF).

2. O papel da universidade e as atividades de ensino, pesquisa e extensão

O Ciclo de Leituras Dirigidas da Obra de Marilda Villela Iamamoto surgiu para intensificar o debate sobre formação profissional e os esforços coletivos de docentes, por meio da Atividade Complementar de Ensino e Pesquisa (ACEP) do PPGSSDR/UFF. Essa atividade consiste num componente curricular voltado ao enriquecimento da formação discente durante sua trajetória no mestrado acadêmico. Nesse sentido, a formação profissional deve, dentre tantos aspectos, “preparar cientificamente quadros profissionais capazes de responder às exigências de um projeto profissional coletivamente construído e historicamente situado” (Iamamoto, 2002IAMAMOTO, M. V. Renovação e conservadorismo no Serviço Social: ensaios críticos. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2002., p. 163).

O processo metodológico5 5 Ressalta-se aqui a fecunda contribuição de Rosangela Batistoni, professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo, que nos orientou nesse processo. e a proposta em questão, assentada no debate do Serviço Social e da tradição marxista, foram elaborados junto a pesquisadores(as), levando em consideração levantamentos com assistentes sociais, de modo que tivessem tempo para realizar a leitura mínima, caracterizada por grande densidade teórica, e as mediações necessárias com a conjuntura, os desafios presentes no exercício profissional e as propostas criativas sintonizadas com o protagonismo dos sujeitos sociais (Iamamoto, 2000IAMAMOTO, M. V. Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000.).

A utilização das obras marxianas tem sido objeto da formação graduada e pós-graduada em Serviço Social no Brasil, mas foi com a publicação de Relações sociais e Serviço Social no Brasil que Marilda Iamamoto fez a “primeira incorporação bem-sucedida, no debate brasileiro, da fonte ‘clássica’ da tradição marxiana para compreensão profissional do Serviço Social” (Netto, 2005NETTO, J. P. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2005., p. 276).

O primeiro ano do Ciclo se concentrou em releituras sobre o método em Marx6 6 Em Cardoso e César (2015), é possível visualizar a aproximação de Iamamoto com o marxismo por meio de Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães. E embora a autora tenha uma análise inovadora amparada no método e nas fontes originais da teoria marxiana, o debate teórico-metodológico no Serviço Social não esteve circunscrito apenas à dimensão classista, pois existe também a questão nacional, da cultura, das diferenças de raça/cor; e “também concordo que só classe não dá conta [...] ao se discutir a questão do método em Marx, não significa trabalhar exclusivamente com o ângulo da produção feita por Marx” (Iamamoto, 1995, p. 108). Sendo assim, não é supérfluo mencionar que, embora a sociedade brasileira esteja alicerçada em bases escravocratas, a questão racial não foi explicitada com maior ênfase em seus textos iniciais, mas essa discussão tem sido incorporada às diretrizes curriculares e aos fundamentos do Serviço Social. Iamamoto e Carvalho (1996) evidenciam algumas preocupações, relacionadas ao processo de formação social e ao aprofundamento do capitalismo no país, principalmente com o aporte à produção de José de Souza Martins, Octavio Ianni e Florestan Fernandes, que precisam ser revisitadas pela intelectualidade. e no mergulho em O capital (Marx, 1984MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1984. t. 2, v. I, livro primeiro: O processo de produção do capital., 2000MARX, K. Para a crítica da economia política do capital (o rendimento e suas fontes). São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. (Coleção Os pensadores).; Netto, 2011NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.). Iniciaram-se os estudos pela “Mercadoria (Capítulo I); O processo de troca; A transformação do dinheiro em capital; Processo de trabalho e valorização; Capital constante e capital variável; Jornada de Trabalho; Taxa de mais-valia; Conceito de mais-valia relativa; A Cooperação; Divisão do trabalho e manufatura; Maquinaria e grande indústria; Mais-valia absoluta e relativa; A Lei geral da acumulação capitalista (Capítulo XXIII)” (Marx, 1984MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1984. t. 2, v. I, livro primeiro: O processo de produção do capital.); e pelos trechos do capítulo inédito: Resultados do processo de produção imediata (Marx, 1985MARX, K. O capital. São Paulo: Editora Moraes, 1985. Capítulo VI inédito: Resultados do processo de produção imediata.).

No segundo ano, com a realização do Ciclo de Leituras Dirigidas, a exposição de cada obra contou com professoras e professores convidados. Com dinâmicas próprias, apresentaram, no primeiro momento, os seus grupos e projetos de pesquisa e, no segundo momento, as reflexões de livros e textos que tinham por objetivo contemplar uma discussão inicial sobre três eixos: os principais interlocutores de Iamamoto; os pontos relevantes assinalados pela autora em articulação com as dimensões teórico-metodológicas, técnico-operativas e ético-políticas; e as problematizações e possíveis polêmicas, como momento fundamental para fazer avançar a produção do conhecimento crítico ou no dimensionamento e na contextualização de concepções históricas.

A iniciativa em questão, que reforça outras experiências acadêmicas de produção do conhecimento alicerçadas nos estudos da obra de Iamamoto, como aquela empreendida por Mercuri (2017MERCURI, C. Serviço Social, conhecimento e trabalho: uma reflexão sobre a obra de Iamamoto. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL, 1.; COLÓQUIO NACIONAL SOBRE TRABALHO DA/DO ASSISTENTE SOCIAL, 4., 2017, Maceió. Anais [...] Maceió: UFAL, 2017. Disponível em: Disponível em: http://seer.ufal.br/index.php/coloquiocintas/article/view/3736 . Acesso em: 12 mar. 2018.
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), teve como pressuposto a competência teórico-metodológica para o trabalho de assistentes sociais, em consonância com as dimensões heurísticas e as determinações sócio-históricas no Brasil.

A perspectiva teórico-metodológica da autora se ancora na noção de relativa autonomia, no significado social da profissão e nos processos de trabalho, “com base em três eixos aqui considerados fundamentais - o significado social do Serviço Social, a questão social e o trabalho do assistente social inserido em processos de trabalho” (Mercuri, 2017MERCURI, C. Serviço Social, conhecimento e trabalho: uma reflexão sobre a obra de Iamamoto. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL, 1.; COLÓQUIO NACIONAL SOBRE TRABALHO DA/DO ASSISTENTE SOCIAL, 4., 2017, Maceió. Anais [...] Maceió: UFAL, 2017. Disponível em: Disponível em: http://seer.ufal.br/index.php/coloquiocintas/article/view/3736 . Acesso em: 12 mar. 2018.
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, p. 4).

Em dez encontros realizados,7 7 Atividade presencial dividida em dois semestres letivos, entre 03 de maio e 13 de dezembro de 2018, com três horas de duração, das 14h30 às 17h30. o cronograma do Ciclo de Leituras Dirigidas da Obra de Marilda Villela Iamamoto previa uma breve apresentação de docentes e seus grupos ou núcleos de pesquisa. Nessa proposta, destacam-se : 1) Serviço Social, conhecimento e trabalho, referências em Mercuri (2017MERCURI, C. Serviço Social, conhecimento e trabalho: uma reflexão sobre a obra de Iamamoto. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL, 1.; COLÓQUIO NACIONAL SOBRE TRABALHO DA/DO ASSISTENTE SOCIAL, 4., 2017, Maceió. Anais [...] Maceió: UFAL, 2017. Disponível em: Disponível em: http://seer.ufal.br/index.php/coloquiocintas/article/view/3736 . Acesso em: 12 mar. 2018.
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), Netto (2011NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.) e Iamamoto (2012IAMAMOTO, M. V. Projeto profissional, espaços ocupacionais e trabalho do assistente social na atualidade. In: CFESS. Atribuições privativas do/a assistente social em questão. Brasília: CFESS, 2012.); 2) A concepção teórica da reprodução das relações sociais; 3) Serviço Social no processo de reprodução das relações sociais; 4) Aspectos do Serviço Social no Brasil, referência na leitura completa de Iamamoto e Carvalho (1996IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações sociais e Serviço Social no Brasil. 11. ed. São Paulo: Cortez; Peru: Celats, 1996.); 5) Renovação e conservadorismo no Serviço Social, em Iamamoto (2002IAMAMOTO, M. V. Renovação e conservadorismo no Serviço Social: ensaios críticos. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2002.). Os estudos também abarcaram as obras mais recentes e as problematizações que aquecem o debate profissional: 6) Serviço Social na contemporaneidade, em Iamamoto (2000IAMAMOTO, M. V. Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000.); 7) Trabalho e individuo social no processo capitalista de produção, em Iamamoto (2001IAMAMOTO, M. V. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária na agroindústria canavieira paulista. São Paulo: Cortez, 2001.); 8) A sociabilidade no capital, capital fetiche e questão social; 9) Os fundamentos do trabalho e o Serviço Social em tempo de capital fetiche; nesses dois encontros, foram abordadas as densas discussões presentes em Iamamoto (2008IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro e questão social. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008.); 10) A atualidade e a relevância do seu pensamento para formação em Serviço Social, como uma síntese de sua obra e das análises realizadas ao longo do ano.

O público-alvo foi composto por docentes e discentes, tanto do PPGSSDR/UFF, como dos Programas de Pós em Serviço Social de outras universidades do estado do Rio de Janeiro. Também esteve direcionado às (aos) assistentes sociais supervisoras/es de campo de estágio da UFF, diretoras/es, agentes fiscais e profissionais com inserção nas comissões regimentais, temáticas e nas experiências de nucleação do CRESS-RJ. Em levantamento realizado,75% dos participantes eram da UFF e 25% formados em outras unidades, públicas e privadas; sobre a titulação, o grupo de estudos contou com a seguinte participação:12,5% de estudantes de graduação; 6,25% de especialistas; 43,75% de estudantes de mestrados; 31,15% de mestres; 6,25% de doutores. Os supervisores de campo contabilizaram 25% das pessoas que participaram. A inserção profissional em diferentes espaços sócio-ocupacionais foi a seguinte: 31,25% em Unidades de Formação Acadêmica; 25% em Secretarias de Assistência Social; 25% de estudantes; 6,25% do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro; e 6,25% de desempregados.8 8 A adesão ao grupo de estudos permitiu que uma geração de profissionais e estudantes que, ao longo da cidadania universitária, não tiveram a oportunidade de conhecer Iamamoto, pudessem fazer isso pessoalmente. Com 50 vagas destinadas, se inscreveram 30 pessoas. Durante a realização do grupo de estudos, aproximadamente 20 pessoas participaram e, destas, 16 responderam aos questionários que traçavam um breve perfil.

O objetivo geral era o de revisitar a obra de Marilda Villela Iamamoto por meio de leituras dirigidas, para subsidiar pesquisas, projetos de trabalho e discussões acadêmicas sobre os desafios contemporâneos do exercício profissional de assistentes sociais. Esse objetivo foi alcançado e todos os encontros foram realizados com aguçadas reflexões e problematizações extremamente qualificadas.9 9 É importante salientar a presença da professora Sulamita Bezerra na ACEP e agradecer a disponibilidade e a confiança do corpo docente: Adriana Ramos, Adrianyce Sousa, Ana Cristina Oliveira, Ana Lívia Adriano, Ana Paula Mauriel, Douglas Barbosa, Fábio Simas, Francine Helfreich dos Santos, Jacqueline Botelho, Larissa Dahmer, Miriam Reis, Priscila Keiko, Robson Roberto da Silva e Cristiana Mercuri (UFBA), que encerrou as atividades.

Sobre os três objetivos específicos, eles consistiam em: a) aglutinar os docentes e os discentes da Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional e da graduação em Serviço Social em torno dos debates acerca dos fundamentos do Serviço Social; b) ampliar o raio de ação das atividades docentes na universidade junto aos assistentes sociais de campos de estágio e aos pós-graduandos de Serviço Social de outras Unidades de Formação Acadêmica; e c) fortalecer, por meio de reflexões sobre atribuições e competências profissionais (Iamamoto, 2012IAMAMOTO, M. V. Projeto profissional, espaços ocupacionais e trabalho do assistente social na atualidade. In: CFESS. Atribuições privativas do/a assistente social em questão. Brasília: CFESS, 2012.), a relação da universidade com o Conselho Regional de Serviço Social, estabelecendo um canal de formação e troca com assistentes sociais da diretoria, das comissões e dos núcleos.

O êxito da proposta se deve, não apenas, às relevantes discussões proporcionadas pelo corpo docente, como também às preocupações teórico-práticas de um pequeno, mas engajado grupo de assistentes sociais. E a procura para uma atividade presencial, mesmo num dia da semana, revelou o seu potencial na formação continuada de assistentes sociais, o compromisso da categoria com o aprimoramento profissional e a busca pela qualidade dos serviços prestados.

3. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: uma homenagem fundamental

Em tempos de crise do capital e com as forças ultraneoliberais que chegaram ao poder nas eleições de 2018, as relações nas universidades foram radicalmente alteradas (Mauriel et al., 2020MAURIEL, A. P. O. et al. (org.). Crise, ultraneoliberalismo e desestruturação de direitos. Uberlândia: Navegando Publicações, 2020.). Além da desestruturação de direitos, cortes orçamentários, ataques à autonomia e tentativas de silenciamento do pensamento crítico, os posicionamentos dos representantes do governo pautaram-se no irracionalismo que elegeu a esquerda e os marxistas como inimigos.

A atividade de homenagem à Marilda Iamamoto e aos 35 anos do livro cumpriu um papel simbólico como parte constitutiva da dinâmica social que envolve as disputas por projetos contra-hegemônicos no país. Nódulo de resistência ao autoritarismo e ao tom ameaçador das constrangedoras manifestações públicas dos segmentos reacionários nas esferas do poder, a atividade conjugou os esforços da Direção da Escola de Serviço Social (ESS/UFF), do Departamento do Serviço Social de Niterói (SSN), da graduação em Serviço Social, pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional, do CRESS 7a Região, da Coordenação Nacional da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), da Coordenação da Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (ENESSO), do Diretório Acadêmico Maria Kehl (DAMK) e do Poder Legislativo em Niterói.

Na disputa teórico-política de projetos contra-hegemônicos para o país − construídos de baixo para cima − estão envolvidos partidos e forças de esquerda e movimentos sociais. A eles unimos nossas forças: a de nossa orga nização profissional, a de nossa produção acadêmica e a do trabalho profissio nal em suas dimensões materiais e educativas (Iamamoto, 2017IAMAMOTO, M. V. 80 anos de Serviço Social no Brasil: a certeza na frente, a história na mão. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 128, 2017., p. 19).

Na sequência da mesa de saudação e de abertura, a Conferência - Atualidade do Pensamento de Marilda Villela Iamamoto − contou com a presença de Cristiana Mercuri, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e a representação docente da ACEP. Na ocasião, se discutiu o Serviço Social no processo de reprodução das relações sociais e o seu redimensionamento diante das transformações societárias recentes. Houve, além da entrega do Título de Cidadã Niteroiense a Iamamoto, o reconhecimento parlamentar aos relevantes serviços prestados à formação profissional no Brasil, à Universidade Federal Fluminense e às assistentes sociais da cidade.

A abertura para manifestações públicas e a leitura das mensagens de Unidades de Formação Acadêmica e entidades da categoria encerraram o evento. O auditório (professora Violeta Campofiorito - ESS/UFF) foi inundado pela emoção diante da profusão de mensagens de afeto, do título recebido, dos presentes e de todo reconhecimento acerca do papel político e profissional desempenhado ao longo dos anos por Iamamoto.10 10 Um agradecimento especial à professora Eliane Guimarães por presenteá-la com um retrato pintado em aquarela, de autoria do professor e artista Fábio Guimarães, e ao Parlamento de Niterói, por meio dos mandatos de Paulo Eduardo Gomes e Talíria Petrone Soares (ex-aluna e mestra em Serviço Social pelo PPGSSDR/UFF), pelo Projeto de Decreto Legislativo Nº 00048/2018 que coroou as homenagens com o reconhecimento de uma das principais e mais atuantes intelectuais do Serviço Social no Brasil e na América Latina. Cabe o destaque à fala da homenageada, que mencionou a necessidade de revitalizar estudos amparados na teoria crítica e sua gratidão às pessoas com as quais trabalhou ao longo desses anos, profissionais, pesquisadores e estudantes. A mensagem enviada pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), pela representatividade da entidade, sintetiza as dezenas de notas enviadas das cinco regiões do país:

Refletir sobre a história do Serviço Social brasileiro só é possível na medida em que se debruça sobre a obra e a contribuição à categoria realizada pela professora Dra. Marilda Vilela Iamamoto, que inaugura de forma madura e fundamentada, teórico-metodologicamente, o diálogo com a obra marxiana, e sua interlocução com a formação e o trabalho profissional de assistentes sociais no contexto das relações sociais capitalistas.

Esta justa homenagem é para nós, do Conselho Federal de Serviço Social, um reconhecimento importante frente aos tempos sombrios que vivenciamos atualmente. Esta manifestação pública, materializada nesta linda e afetuosa deferência, é também a condecoração de sua trajetória profissional e militante, que possibilitou e continua a possibilitar para centenas de assistentes sociais a aproximação teórica com sua obra que produz a ruptura com o Serviço Social tradicional, a possibilidade de emergência do pluralismo teórico-metodológico, a apreensão do significado social da profissão e da dimensão ético-política do trabalho profissional. Marilda Iamamoto faz parte de nossa história [...].

Diante das questões já tematizadas por Netto (2002NETTO, J. P. Apresentação. In: IAMAMOTO, M.V. Renovação e conservadorismo no Serviço Social: ensaios críticos. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2002.; 2005NETTO, J. P. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2005.), Mercuri (2017MERCURI, C. Serviço Social, conhecimento e trabalho: uma reflexão sobre a obra de Iamamoto. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL, 1.; COLÓQUIO NACIONAL SOBRE TRABALHO DA/DO ASSISTENTE SOCIAL, 4., 2017, Maceió. Anais [...] Maceió: UFAL, 2017. Disponível em: Disponível em: http://seer.ufal.br/index.php/coloquiocintas/article/view/3736 . Acesso em: 12 mar. 2018.
http://seer.ufal.br/index.php/coloquioci...
), Cardoso e César (2015CARDOSO, I. C. C.; CÉSAR, M. J. Revisitando um clássico da interlocução do Serviço Social com a tradição marxista. Entrevista com Marilda Villela Iamamoto sobre os 33 anos do livro Relações sociais e Serviço Social no Brasil - esboço de uma interpretação histórico-metodológica. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 13, n. 35, p. 225-247, 2015.), destacam-se alguns aspectos da contribuição de Marilda Iamamoto para o Serviço Social, como o patrimônio intelectual e político na compreensão da história a partir das classes sociais e de suas lutas, da centralidade do trabalho e dos trabalhadores. Trata-se de uma profissão que se sustenta com base na tradição marxista, no diálogo com outras matrizes analíticas e, politicamente, com as forças progressistas que movem a história e buscam superar as desigualdades sociais e raciais. Diante das particularidades do capitalismo dependente e periférico nos países latino-americanos, a autora contribuiu para impulsionar a literatura crítica para pensar o desenvolvimento regional nos meios acadêmicos.

Cabe destacar que além Iamamoto influenciar, direta e indiretamente, a formação profissional da maioria dos docentes da UFF, ela contribuiu para intensificar a relação entre graduação e pós-graduação.11 11 Sob sua condução, a comissão docente da ESS/UFF realizou uma proposta de anteprojeto de curso de Mestrado em Desenvolvimento Regional e Questão Social (Mauriel et al., 2010, grifos nossos). Tal documento serviu como ponto de partida para a composição da atual proposta do PPGSSDR/UFF, que completou uma década em 2022. O reconhecimento se deve ao trabalho tanto no processo de revisão curricular, em 1999, quando foi assessora, como nas reflexões que levaram ao processo de revisão curricular mais recente, encerrado em 2019.

O resultado mais consistente de tais atividades foi o convite, por parte da comissão de planejamento da ESS/UFF, para elaboração de uma disciplina intitulada “Leituras dirigidas de Marilda Villela Iamamoto”. A disciplina vem sendo oferecida desde 2019 e com grande procura. Tem recebido estudantes de mestrado, em estágio docente, profissionais em busca da revisão da literatura e professores convidados, mantendo a conexão entre graduação e pós, assim como entre a academia e os profissionais de Serviço Social que atuam na “linha de frente”, com inserção em diferentes espaços sócio-ocupacionais.

Como parte do projeto profissional, que incorpora as análises de sujeitos coletivos, essa homenagem extrapola a função mais imediata e resgata a memória de uma profissão, de um conjunto de profissionais12 12 Além de Raul de Carvalho, é importante salientar o papel de Leila Lima Santos, Manuel Manrique Castro e Alejandrino Maguiña no importante trabalho de pesquisa que rendeu frutos e alimenta diferentes gerações, no Brasil e na América Latina. e entidades organizativas, e é uma tarefa política a ser salientada em tempos nebulosos e de ofensiva à intelectualidade, ao projeto ético-político e à universidade pública.

Considerações finais

Para além das merecidas homenagens e de todo reconhecimento, a nossa tarefa docente consiste em dar continuidade aos seus estudos, aproximar trabalhadores e trabalhadoras e caminhar “de mãos dadas”. Nesse sentido, pelo menos três avaliações intimamente relacionadas mostram o acerto do ciclo de leituras, bem como a necessidade de rever algumas demandas profissionais.

Nas avaliações realizadas com os participantes, verificou-se que é fundamental garantir a abertura e a ampliação de grupos de estudos nas universidades, e de pesquisas que avancem a partir da literatura marxista. Trata-se da apropriação teórica de uma produção que é “aparentemente familiar”, mas que, pelo vigor analítico e teórico, precisa ser debatida com mais intensidade em sala de aula, nos fóruns de supervisores de estágio, nas atividades dos conselhos profissionais. Tal apreensão exige mediações bastante complexas nos ambientes de trabalho.

Embora os dez encontros propostos tenham sido pensados em datas espaçadas, ou seja, entre os meses de maio e dezembro, e em horários que, a princípio, os profissionais poderiam estar presentes, a ideia já tematizada por Iamamoto, quando menciona “o caráter não rotineiro da intervenção”, não se traduz numa ampliação da margem de manobra ou na relativa autonomia para se fazer presente nos eventos de aprimoramento profissional. Assim, será necessário repensar a possibilidade de oferecer os próximos grupos de estudo em dias e horários alternativos.

Como uma parcela de participantes trabalhava na política de assistência social ou tinha algum objeto de estudo relacionado às políticas sociais (e na área da infância e da adolescência), para além de pensar as novas determinações da dinâmica do capital e do fetichismo dos mercados financeiros (Iamamoto, 2008IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro e questão social. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008.), será importante refletir sobre o “fetiche do Poder Judiciário” e as novas requisições impostas pela legislação social. Isso esbarra, acima de tudo, em conhecer novas demandas e no respeito às atribuições e às competências de cada profissão. Portanto, será necessário discutir as resoluções e orientações do conjunto CFESS-CRESS, fazendo as mediações teórico-metodológicas diante do dinamismo do mercado de trabalho e dos desafios éticos e técnicos no exercício profissional.

A conhecida sentença: “educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo” é atribuída a Paulo Freire, e ela pode ser adaptada, sem o messianismo que superestima o papel profissional ou subestima o protagonismo coletivo dos movimentos sociais, à obra de Marilda Villela Iamamoto. O seu legado também está no rigor acadêmico, na busca incessante pelo conhecimento, na alegria por estar em sala de aula, no incentivo cotidiano aos estudantes, na grandeza e na simplicidade nas relações pessoais e profissionais. São essas algumas das características que servem de inspiração cotidiana.

A admiração compartilhada por tantos colegas e ex-alunos se deve, sobretudo, porque Marilda Iamamoto não brilha sozinha, mas em constelação. Elevou o trabalho docente aos mais altos patamares e, desde as lutas contra a ditadura empresarial militar, jamais negou suas origens como assistente social, resistiu à tortura e, corajosamente, se manteve fiel aos princípios democráticos e libertários da profissão. Certamente, sempre será lembrada pela generosidade humana e por protagonizar a aproximação intelectual do Serviço Social com as fontes clássicas do pensamento socialista revolucionário (Netto, 2002NETTO, J. P. Apresentação. In: IAMAMOTO, M.V. Renovação e conservadorismo no Serviço Social: ensaios críticos. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2002.).

O trabalho docente exige permanente sintonia com as demandas sociais, e a criação de uma disciplina optativa com estudos de sua obra é uma proposta muito promissora, pois conjuga os princípios de ensino, pesquisa e extensão; como eternizou Drummond, “lá estão os poemas que esperam ser escritos”.

Referências

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  • YAZBEK, M. C. O significado sócio-histórico da profissão. In: CFESS (org.). Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CEFSS/ABEPESS, 2009.
  • 1
    Os outros requisitos para solicitação do credenciamento eram: a comprovação do título de doutor, com apresentação e entrega de cópia do diploma e da tese defendida com, no mínimo, dois anos de titulação; o desenvolvimento de projeto de pesquisa no momento do credenciamento que estivesse relacionado à área de concentração ou às linhas de pesquisa do programa; a entrega de curriculum lattes atualizado, devidamente comprovado, referente aos últimos três anos.
  • 2
    A experiência discente em quatro disciplinas: “Teoria social e Serviço Social” (1995), na graduação do curso noturno de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); “Relações sociais, processo de trabalho e Serviço Social” (2001) e “Tópicos especiais em processos de trabalho e Serviço Social” (2001), no mestrado; e “Trabalho e Serviço Social na América Latina”, lecionada de forma conjunta com a professora Dra. Maria Ciavatta (2009), no doutorado, ambas no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
  • 3
    A posição política de Iamamoto, em manter o registro ativo no CRESS-RJ, contrasta com a de segmentos profissionais inseridos em fatídicos cargos genéricos ou na carreira docente e que, mesmo trabalhando em atividades que exigem a graduação em Serviço Social, não se reconhecem como assistentes sociais.
  • 4
    Referências que são fundamentais para qualificar e instrumentalizar, do ponto de vista ético-político, as posições profissionais: Netto e Carvalho (1987NETTO, J. P.; CARVALHO, M. do C. B. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 1987.); Kameyama (1995KAMEYAMA, N. A concepção de teoria e metodologia. Cadernos ABESS, São Paulo: Cortez, n. 3, jul. 1995.); Guerra (2000GUERRA, Y. Instrumentalidade do processo de trabalho e o Serviço Social. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 62, 2000.); Bonettiet al. (2001BONETTI, D. A. et al. (org.). Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis. São Paulo: Cortez, 2001.); Almeida (2006ALMEIDA, N. L. Retomando a temática da “sistematização da prática” em Serviço Social. In: MOTA, Ana Elizabete et al. (org.). Serviço Social e saúde: formação e trabalho profissional. [S. l.]: ABEPSS, 2006.); Yazbek (2009YAZBEK, M. C. O significado sócio-histórico da profissão. In: CFESS (org.). Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CEFSS/ABEPESS, 2009.); Mota e Amaral (2014MOTA, A. E.; AMARAL, A. Serviço Social brasileiro: cenários e perspectivas nos anos 2000. In: MOTA, A.E.; AMARAL, A. (org.). Serviço Social brasileiro nos anos 2000: cenários, pelejas e desafios. Recife: Editora UFPE, 2014.); Matos (2015MATOS, M. C. de. Considerações sobre atribuições e competências profissionais de assistentes sociais na atualidade. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 124, 2015.); Forti (2016FORTI, V. Serviço Social, pluralismo e estágio supervisionado: notas para um debate necessário. In: SANTOS, C.M.; LEWGOY, A.B.; ABREU, M.H.E. (org.). A supervisão de estágio em Serviço Social: aprendizados, processos e desafios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.); Paula (2016PAULA, L. G. P. Construção do Projeto Ético-político do Serviço Social, estratégias e táticas na contemporaneidade. In: PAULA, L. G. P. Estratégias e táticas: reflexões no campo do Serviço Social. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2016.cap. 5.); Ramos e Santos (2018RAMOS, A.; SANTOS, F. H. A dimensão técnico-operativa no trabalho do assistente social: ensaios críticos. Campinas: Papel Social, 2018.); Alves, Vale e Camelo (2020ALVES, D. C.;VALE, E. S.; CAMELO, R. A. (org.). Instrumentos e técnicas do Serviço Social: desafios cotidianos para uma instrumentalidade mediada. Fortaleza: EdUECE, 2020.), dentre outros.
  • 5
    Ressalta-se aqui a fecunda contribuição de Rosangela Batistoni, professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo, que nos orientou nesse processo.
  • 6
    Em Cardoso e César (2015CARDOSO, I. C. C.; CÉSAR, M. J. Revisitando um clássico da interlocução do Serviço Social com a tradição marxista. Entrevista com Marilda Villela Iamamoto sobre os 33 anos do livro Relações sociais e Serviço Social no Brasil - esboço de uma interpretação histórico-metodológica. Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 13, n. 35, p. 225-247, 2015.), é possível visualizar a aproximação de Iamamoto com o marxismo por meio de Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães. E embora a autora tenha uma análise inovadora amparada no método e nas fontes originais da teoria marxiana, o debate teórico-metodológico no Serviço Social não esteve circunscrito apenas à dimensão classista, pois existe também a questão nacional, da cultura, das diferenças de raça/cor; e “também concordo que só classe não dá conta [...] ao se discutir a questão do método em Marx, não significa trabalhar exclusivamente com o ângulo da produção feita por Marx” (Iamamoto, 1995IAMAMOTO, M. V. Comentários. Cadernos ABESS, São Paulo: Cortez, n. 3, jul. 1995., p. 108). Sendo assim, não é supérfluo mencionar que, embora a sociedade brasileira esteja alicerçada em bases escravocratas, a questão racial não foi explicitada com maior ênfase em seus textos iniciais, mas essa discussão tem sido incorporada às diretrizes curriculares e aos fundamentos do Serviço Social. Iamamoto e Carvalho (1996IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações sociais e Serviço Social no Brasil. 11. ed. São Paulo: Cortez; Peru: Celats, 1996.) evidenciam algumas preocupações, relacionadas ao processo de formação social e ao aprofundamento do capitalismo no país, principalmente com o aporte à produção de José de Souza Martins, Octavio Ianni e Florestan Fernandes, que precisam ser revisitadas pela intelectualidade.
  • 7
    Atividade presencial dividida em dois semestres letivos, entre 03 de maio e 13 de dezembro de 2018, com três horas de duração, das 14h30 às 17h30.
  • 8
    A adesão ao grupo de estudos permitiu que uma geração de profissionais e estudantes que, ao longo da cidadania universitária, não tiveram a oportunidade de conhecer Iamamoto, pudessem fazer isso pessoalmente. Com 50 vagas destinadas, se inscreveram 30 pessoas. Durante a realização do grupo de estudos, aproximadamente 20 pessoas participaram e, destas, 16 responderam aos questionários que traçavam um breve perfil.
  • 9
    É importante salientar a presença da professora Sulamita Bezerra na ACEP e agradecer a disponibilidade e a confiança do corpo docente: Adriana Ramos, Adrianyce Sousa, Ana Cristina Oliveira, Ana Lívia Adriano, Ana Paula Mauriel, Douglas Barbosa, Fábio Simas, Francine Helfreich dos Santos, Jacqueline Botelho, Larissa Dahmer, Miriam Reis, Priscila Keiko, Robson Roberto da Silva e Cristiana Mercuri (UFBA), que encerrou as atividades.
  • 10
    Um agradecimento especial à professora Eliane Guimarães por presenteá-la com um retrato pintado em aquarela, de autoria do professor e artista Fábio Guimarães, e ao Parlamento de Niterói, por meio dos mandatos de Paulo Eduardo Gomes e Talíria Petrone Soares (ex-aluna e mestra em Serviço Social pelo PPGSSDR/UFF), pelo Projeto de Decreto Legislativo Nº 00048/2018 que coroou as homenagens com o reconhecimento de uma das principais e mais atuantes intelectuais do Serviço Social no Brasil e na América Latina.
  • 11
    Sob sua condução, a comissão docente da ESS/UFF realizou uma proposta de anteprojeto de curso de Mestrado em Desenvolvimento Regional e Questão Social (Mauriel et al., 2010MAURIEL, A. P. O et al. Mestrado em Serviço Social e Desenvolvimento Regional. Projeto apresentado como requisito para solicitação de abertura de novo curso stricto senso na UFF e na Capes. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010., grifos nossos). Tal documento serviu como ponto de partida para a composição da atual proposta do PPGSSDR/UFF, que completou uma década em 2022.
  • 12
    Além de Raul de Carvalho, é importante salientar o papel de Leila Lima Santos, Manuel Manrique Castro e Alejandrino Maguiña no importante trabalho de pesquisa que rendeu frutos e alimenta diferentes gerações, no Brasil e na América Latina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2022
  • Aceito
    13 Fev 2023
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