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A “revolução burguesa” no Brasil na perspectiva da teoria marxista da dependência

The “bourgeois revolution” in Brazil from the perspective of Marxist dependency theory

Resumo:

Este artigo aborda o debate sobre a “revolução burguesa” no Brasil nos fundadores da Teoria Marxista da Dependência. Para tanto, analisamos as reflexões sobre o tema desenvolvidas por Marini, Bambirra e Dos Santos em seus estudos originais das décadas de 1960 e 1970, e buscamos apresentar uma avaliação sobre os pontos de convergência e as controvérsias entre suas respectivas produções.

Palavras-chave:
Revolução burguesa; Capitalismo dependente; Brasil; Teoria marxista da dependência

Abstract:

This text addresses the debate about the “bourgeois revolution” in Brazil in the founders of the Marxist Theory of Dependence. To this end, we analysed the reflections on this theme developed by Marini, Bambirra and Dos Santos in their original texts from the 1960s and 1970s and sought to present an assessment of the points of convergence and controversy between their respective productions.

Keywords:
Bourgeois revolution; Dependent capitalism; Brazil; Marxist dependency theory

1. Introdução

As polêmicas em torno da transição histórica para o capitalismo dependente e da revolução burguesa no Brasil recebem pouca atenção no debate recente. Mesmo entre os analistas contemporâneos da teoria marxista da dependência (TMD), essas questões não aparecem com frequência, ficando as discussões, em larga medida, concentradas nos temas das trocas desiguais, da superexploração, do subimperialismo, do padrão de reprodução do capital etc. Todos esses tópicos elencados são essenciais nas obras de Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotonio dos Santos e, certamente, merecem o destaque nas produções acadêmicas.

As releituras atuais, entretanto, não deveriam deixar em segundo plano a dimensão político-revolucionária, algo marcante e central para os fundadores da TMD.1 1 É digno de nota o quarto capítulo do livro Teoria marxista da dependência: problemas e categorias, de Mathias Luce (2018). O presente texto busca trazer, de forma embrionária, reflexões que enfatizem a importância da temática sobre a revolução nas obras clássicas da TMD, com destaque para o recorte da revolução burguesa no Brasil.

Diante dos desafios da revolução socialista no Brasil e na América Latina nos anos 1960-70, Marini, Bambirra e Dos Santos mergulharam fundo nas lutas internas das esquerdas, reivindicando posições contrárias ao reformismo desenvolvimentista e ao estalinismo comunista (sem aderir ao trotskismo). No plano teórico, para embasar suas acaloradas querelas políticas, os autores captaram as particularidades históricas do capitalismo dependente. Ao traçarem leis próprias do capitalismo na zona periférica do mercado mundial, relacionaram imperialismo e dependência, e criaram categorias específicas para a nossa realidade, sem perder de vista as conexões com a universalização contraditória e hierarquizada do capitalismo.

Em termos gerais, as correntes marxistas que se debruçaram sobre os processos de consolidação do capitalismo no Brasil tiveram como referência a transição do feudalismo para o capitalismo na Europa e as distintas formas de revolução burguesa, sejam elas clássicas ou não, jacobinas ou passivas (nos termos de Gramsci, por exemplo). Já os intelectuais da TMD moldaram perspectivas distintas para analisar a transição para o capitalismo e a revolução burguesa na América Latina. Romperam, assim, com cânones sacralizados por leituras esquemáticas que traçavam paralelos, sem as devidas mediações teórico-metodológicas, entre as realidades europeias e latino-americanas.

No interior da TMD, há uma unidade de ação política e eixos centrais de análise teórica, ao mesmo tempo que estão presentes dissensos, polêmicas e até mesmo antagonismos. Sendo assim, as análises sobre a revolução burguesa no Brasil, desenvolvidas por Marini, Bambirra e Dos Santos, apresentam confluências e divergências. Sobre os tópicos que abordam os marcos históricos da revolução burguesa no Brasil e o grau de consciência de classe da burguesia industrial nesse processo, podemos encontrar controvérsias. Todavia, um ponto de convergência, apresentado como hipótese de trabalho a ser aprofundada futuramente, é o seguinte: a noção de “revolução burguesa” é empregada para tratar de um processo de mudança de hegemonia no interior do Estado já nos marcos do capitalismo dependente, e não da transição entre modos de produção.

O artigo está estruturado em três partes, além desta introdução. Na primeira delas, discutimos a transição para o capitalismo dependente no Brasil de meados do século XIX ao início do XX, com o objetivo de traçar as linhas panorâmicas da base material, sobre a qual se desenrolaram os “processos revolucionários” a partir de 1930. Na segunda, abordamos as reflexões desenvolvidas por Marini, Bambirra e Dos Santos a respeito da revolução burguesa no Brasil e da alternância de poder no bloco dominante, destacando somente textos originais escritos entre 1960 e 1970. Essa seção comporta o núcleo duro do texto. Por fim, na última parte, procuramos sintetizar as principais ideias elencadas ao longo do artigo.

2. A transição para o capitalismo dependente no Brasil

Foi a expansão comercial burguesa no século XVI que promoveu, por meio da colonização, a integração da América Latina ao mercado mundial. As mercadorias produzidas nas colônias foram essenciais para o desenvolvimento do capital mercantil e do capital usurário, e a consolidação da produção manufatureira na Europa. Desse processo, desdobraram-se a Revolução Industrial no século XVIII e as disputas em torno da descolonização ao longo do XIX, que desaguaram nas independências dos países latino-americanos.

Essas mudanças contribuíram para a formação da economia capitalista mundial, que teve por base a emergência da grande indústria e a consolidação da divisão internacional do trabalho (DIT), possibilitando a constituição de uma integração dinâmica dos novos países no mercado mundial na década de 1840. É esse o contexto, de acordo com Marini (2022[1973]MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Dialética da dependência e outros escritos. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2022[1973]. p. 167-216., p. 172), no qual está situada a dependência: ele foi explícito ao afirmar que, mesmo havendo uma continuidade, “a situação colonial não é a mesma que a situação de dependência”. Nesse caso, a dependência na América Latina não diz respeito apenas à relação pautada na subordinação: mais que isso, está integrada à formação da economia capitalista mundial em meados do século XIX e apresenta, como um de seus alicerces, o processo de descolonização da região. Ou seja, a dependência é, contraditoriamente, fruto da subordinação constituída no marco das independências formais das nações latino-americanas.

Marini, no entanto, parece distinguir essa “situação de dependência” e a constituição do capitalismo dependente. A emergência da “situação de dependência” no seio de economias agroexportadoras não teria se desdobrado em uma demarcação precisa sobre o momento e a forma como se deu a transição para o capitalismo dependente. Para ele, “a utilização de categorias que se referem à apropriação do trabalho excedente no marco das relações capitalistas de produção não implica o suposto de que a economia exportadora latino-americana se baseia já na produção capitalista” (Marini (2022[1973]MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Dialética da dependência e outros escritos. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2022[1973]. p. 167-216., p. 187).

Embora tenha feito essa ressalva, ao tratar das particularidades na constituição do capitalismo dependente, o autor recorrentemente destaca as relações que emergem no bojo da DIT. Segundo Marini (2022[1973]MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Dialética da dependência e outros escritos. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2022[1973]. p. 167-216., p. 197),

“a economia exportadora é, portanto, algo mais que o produto de uma economia internacional fundada na especialização produtiva: é uma formação social baseada no modo capitalista de produção, que acentua até o limite as contradições que lhe são próprias”.

Ao que parece, há certa nebulosidade quanto à caracterização do modo de produção em que figura a economia agroexportadora,2 2 Marini (2022[1973], p. 193) não se aprofundou no tratamento teórico a esse tema e ressalvou: “Não é, entretanto, nosso objetivo estudar aqui as formas econômicas particulares que existiam na América Latina antes que esta integrasse efetivamente a etapa capitalista de produção, nem as vias por meio das quais teve lugar essa transição”. Ao não enfatizar esse aspecto, deixa em aberto o desafio de pensar as particularidades na transição para o capitalismo dependente, especialmente no caso do Brasil, em que a transição do trabalho escravizado para o trabalho livre assume nuances próprias, com implicações para a forma como se constituíram as relações capitalistas. ainda que esteja nítida a sua vinculação ao capitalismo nascente.

Na análise do processo de formação histórica latino-americana, Marini resgata que o início da integração violenta das colônias estava baseado na produção de mercadorias advindas do trabalho escravizado. Embora essa alternativa tenha sido, a princípio, mais atraente do ponto de vista econômico para as classes dominantes, paulatinamente produziu contradições que se tornaram incontornáveis. Ao permitir um prolongamento da jornada de trabalho que ultrapassava os limites fisiológicos, o trabalho escravizado potencializou a produção de riquezas. Entretanto, por tender a esgotar trabalhadoras e trabalhadores de maneira prematura, requeria facilidade e agilidade em sua reposição. E assim, no auge da produção do café no Brasil, o fim do tráfico de pessoas escravizadas em 1850 contribuiu para intensificar as condições para a expansão do trabalho livre. A esse respeito, Marini (2022[1973]MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Dialética da dependência e outros escritos. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2022[1973]. p. 167-216., p. 192-193) adverte que a economia agroexportadora forjou no Brasil um sistema misto de servidão e trabalho assalariado, que funcionou como um dos caminhos pelos quais se deu a transição para o capitalismo na América Latina.

Em relação à constituição do capitalismo dependente em nuestra América, Vânia Bambirra (2019[1972]BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972].) apresenta uma reflexão mais robusta no nosso entendimento. Para ela, a transição para o capitalismo na América Latina não se deu através de uma revolução radical que implicasse a destruição completa dos modos de produção anteriores aqui existentes. Ao contrário, foi fruto de uma “[...] superação descontínua e lenta” desses modos de produção - cujas caracterizações, vale criticar, são pouco trabalhadas pela autora -, concluindo-se quando da passagem da América Latina de “[...] uma formação socioeconômica dependente colonial-exportadora para uma formação socioeconômica dependente capitalista-exportadora” (Bambirra, 2019[1972]BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972]., p. 78, grifos do original). Em relação aos marcos históricos da transição, Bambirra é mais precisa do que Marini e os delimita em meados do século XIX.

Para apreender a diversidade de situações na configuração das estruturas produtivas dos países dependentes da América Latina, a autora formulou uma tipologia. Aqueles que realizaram sua industrialização antes do pós-Segunda Guerra Mundial foram caracterizados como de “tipo A”. Nesse grupo, composto por Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Uruguai,3 3 Os países caracterizados como de “tipo B”, por sua vez, iniciaram sua industrialização apenas no período do pós-Segunda Guerra, a partir da integração com os capitais imperialistas estadunidenses (Bambirra, 2019[1972], p. 60). A autora esboça, ainda, a proposta de caracterizar alguns países como de “tipo C” (Haiti e Paraguai), por não terem realizado um processo de diversificação industrial à época da edição do livro. o capitalismo desenvolveu-se a partir da modernização na estrutura agroexportadora oriunda da época colonial. Para Bambirra, assim como para Marini, trata-se de analisar como a paulatina construção de um centro industrial, à medida que criou a necessidade de um intercâmbio permanente de matérias-primas e alimentos nas periferias, produziu mudanças substantivas, conformando um mercado mundial assentado na DIT.

As condições estabelecidas para a troca de mercadorias viabilizaram progressivamente a introdução, nos setores agroexportadores, de relações de produção tipicamente capitalistas, baseadas no trabalho assalariado. Isso não significou, todavia, a eliminação completa de relações caracterizadas como “pré-capitalistas” ou “semisservis”, havendo situações de coexistência entre ambas (Bambirra, 2019[1972]BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972]., p. 68). Na particularidade brasileira, Bambirra indicou como a produção de café em São Paulo já estava fundamentada na força de trabalho assalariada pelo menos desde a Abolição da escravidão, em 1888, embora coexistisse com o chamado sistema de parceria.4 4 É preciso observar que a autora pouco se preocupa em abordar o processo de transição entre o trabalho escravizado e o trabalho assalariado no Brasil, o que resulta em um tratamento insuficiente da história. Parece-nos que as especificidades históricas da formação de relações sociais de produção baseadas no trabalho “livre” no Brasil são abstraídas em um esforço de identificar tendências comuns a todos os países de “tipo A”. Isso pode gerar problemas se utilizarmos, sem as devidas mediações, a teorização da autora para explicar a transição ao capitalismo no Brasil, dado o peso da escravidão na formação do capitalismo brasileiro no século XIX.

A reorganização do setor agroexportador em bases capitalistas impulsionou o desenvolvimento das forças produtivas, com a introdução de tecnologias na produção e nos meios de transporte e de comunicação. Daí se desdobrou um outro processo particular aos países de “tipo A”: o desenvolvimento de um significativo mercado interno como produto da expansão daquele setor. O fortalecimento de uma camada assalariada empregada, com capacidade de consumo relativamente ampliada, assim como a criação e a expansão de setores complementares à economia agroexportadora gestaram uma crescente demanda por bens de consumo. Soma-se a isso as demandas por vestuário, medicamentos e armamentos decorrentes das guerras protagonizadas pelos países de “tipo A”, como a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) (Bambirra, 2019[1972]BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972]., p. 73-75).

Para Bambirra, enquanto o consumo das oligarquias se realizava pela importação de produtos manufaturados, aquelas novas demandas seriam supridas por meio de uma nascente indústria interna. O novo setor industrial ganhava relativo dinamismo próprio, dando origem a uma classe social nas sociedades de “tipo A”: a burguesia industrial, produto contraditório da própria especialização agroexportadora das economias de capitalismo dependente no âmbito do mercado mundial.

A independência da indústria era, contudo, relativa. Gestada no seio da economia agroexportadora, a burguesia industrial era dependente dessa estrutura. Embora não negasse a existência de conflitos entre oligarcas e industriais, Bambirra (2019[1972] BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972]., p. 79-80) enfatiza que as contradições operavam em uma situação de compromisso entre ambas as classes, calcadas em interesses objetivamente convergentes. A base desse compromisso era de natureza econômica e social: de um lado, a expansão do setor industrial dependia do excedente produzido na economia agroexportadora e lhe era transferido, por exemplo, pelo sistema bancário; de outro, muitos dos empresários que investiam nas indústrias eram provenientes das próprias oligarquias.

Assim como Bambirra, Marini também abordou as complexas relações estabelecidas no interior do bloco dominante. Trata-se de relações nas quais as contradições se acirraram à medida do fortalecimento dos industriais, de modo que a crise na economia agroexportadora expressa e é expressão dessas tensões. Afinal, a burguesia industrial dependente em ascensão construiu o seu protagonismo aprofundando sua subordinação ao centro imperialista e intensificando as contradições internas com as oligarquias.

Com a generalização das relações capitalistas, o interesse do capital estrangeiro na América Latina envolveu, cada vez mais, as possibilidades de apropriação de partes expressivas do mais-valor gerado na região. Daí se desdobrou um novo momento da integração dinâmica, a dos sistemas de produção, assentada na exportação de capitais e não mais de mercadorias (Marini, 2013[1969]MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2013[1969]. p. 47-71., p. 49). O crescimento e a consolidação das bases industriais nos marcos da integração imperialista dos sistemas de produção implicavam concessões ao setor agrário. A atividade exportadora produzia os excedentes necessários para viabilizar as importações de capital, que subsidiavam os investimentos para a construção do parque industrial no país. Essa foi a base econômica sobre a qual se forjou o pacto político entre a burguesia agrário-mercantil e a industrial. Para qualificar esse pacto, Marini (2013[1966]MARINI, R M. A dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução., 2013[1966]. p. 73-161.) buscou na obra de August ­Thalheimer a categoria de cooperação antagônica e destacou as contradições subjacentes a essa aliança: cooperação no sentido de manter a ordem estabelecida e eliminar qualquer tipo de sublevação popular-revolucionária; aspecto antagônico por conta das lutas internas pela hegemonia no bloco dominante composto por distintas classes proprietárias.

A cooperação antagônica no bloco dominante vem desde a Primeira República, mas ganhou densidade na conjuntura após a “Revolução de 1930”. Com o aprofundamento da industrialização no pós-Segunda Guerra, passando da produção de bens não duráveis para a indústria pesada, cresceu a necessidade de ampliação do mercado interno para a indústria leve e do volume de capital obrigatório para o investimento e a importação de máquinas e equipamentos dos novos setores industriais. Assim, as receitas das exportações eram cada vez mais indispensáveis para os projetos de poder das classes dominantes e passaram a ser crescentemente cobiçadas. Em outras palavras, o avanço da industrialização, ao depender das divisas geradas pelas exportações, acirrou as disputas no interior do bloco dominante pela apropriação do excedente produzido internamente e realizado no exterior.

Nesse contexto, também se intensificaram as contradições entre os países centrais e dependentes, de maneira que a categoria de cooperação antagônica alcança determinações internas e externas. A exportação de capitais, indispensável à expansão protagonizada pelo centro, viabilizou o desenvolvimento da industrialização em parte da periferia. Isso estabeleceu um patamar de conflitos e contradições, uma vez que a industrialização pode entrar em choque com os interesses internacionais, dando “fôlego para a sua própria superação” (Marini, 2013[1966]MARINI, R M. A dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução., 2013[1966]. p. 73-161., p. 112). Esse movimento, complexo e contraditório, constituiu as bases para a forma particular assumida pela revolução burguesa no Brasil.

3. A revolução burguesa no Brasil e a disputa pela hegemonia no bloco dominante

No prefácio da 5a edição de Subdesenvolvimento e revolução (2013[1974])MARINI, R. M. Prefácio à 5. edição mexicana. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2013[1974]. p. 27-44., Marini critica Fernando Henrique Cardoso por caracterizar o regime implementado pelo golpe empresarial-militar de 1964 no Brasil como revolução burguesa. Para ele, um processo de revolução burguesa corresponderia à luta da burguesia contra forças que travam o desenvolvimento do capitalismo. A ditadura militar no Brasil não poderia ser enquadrada nesses moldes:

[...] a revolução burguesa corresponde a uma etapa definida do capitalismo, marcada pela ascensão de uma burguesia que se incluía ainda em grande medida no movimento popular; na era do imperialismo, na qual vivemos hoje, todo movimento autenticamente burguês é antipopular e, como tal, contrarrevolucionário (Marini, 2013[1974]MARINI, R. M. Prefácio à 5. edição mexicana. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2013[1974]. p. 27-44., p. 28-29).

Embora apresente o debate dessa forma, Marini, em seu artigo “A dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil” (2013[1966]MARINI, R M. A dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução., 2013[1966]. p. 73-161.), utiliza o termo “revolução burguesa” para tratar de um processo específico da nossa história: a ascensão ao poder da burguesia industrial, em luta com as oligarquias agrárias e as classes subalternas na Primeira República. A assim chamada “Revolução de 30” representou, ao mesmo tempo, uma contestação ao monopólio político da oligarquia latifundiária e a disputa do poder pela burguesia industrial em ascensão.

Marini identificou no período subsequente a existência de um equilíbrio instável. A busca da burguesia industrial pela hegemonia no interior do bloco dominante - que desencadeou o golpe e rompeu com a política da Primeira República - gerou como reação, sob o comando dos latifundiários, a Revolução Constitucionalista em 1932. Após a derrota dessa iniciativa, foi a vez de uma “insurreição de esquerda”, comandada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) em 1935, apresentar as pautas da pequena burguesia radicalizada, articulada com a classe trabalhadora. Tendo sido também derrotada, estava pavimentado o caminho de consolidação da “revolução burguesa” no Brasil.

O fracasso dessas duas iniciativas produziu as condições para uma aliança no bloco dominante, que possibilitou a hegemonia da burguesia industrial sob a forma de regime ditatorial, o Estado Novo (1937-1945). Combinando uma legislação social até então sem precedentes e um forte controle sobre a organização sindical, o uso da violência estatal foi capaz de acomodar as tensões intraclasses dominantes, arrefecer as pressões das massas trabalhadoras e viabilizar a estabilidade econômica tão desejada pela burguesia industrial. “O Estado que assim se estabelece é um Estado de compromisso, que reflete a complementariedade objetiva que cimentava suas relações” (Marini, 2013[1969]MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2013[1969]. p. 47-71., p. 56).

Esse imbricamento contraditório entre as duas principais frações do bloco dominante não pode dar margem, como destaca Marini, a interpretações que veem na burguesia uma espécie de falta de consciência de classe. Ao contrário, é justamente a compreensão da dimensão de complementariedade com as oligarquias latifundiárias que embasa a política da burguesia. Fora desses marcos, sua existência como classe está ameaçada.

No que diz respeito aos marcos da “revolução burguesa”, Marini foi assertivo. Ao descartar as teses de uma revolução burguesa permanente, afirma que o compromisso político do Estado Novo sela o processo. A revolução da burguesia “deve ser enquadrada no período entre 1930 e 1937” (Marini 2022[1973]MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Dialética da dependência e outros escritos. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2022[1973]. p. 167-216., p. 139), quando o seu poder se consolidou através da aliança com as velhas classes dominantes e houve a renúncia burguesa de qualquer iniciativa verdadeiramente revolucionária.

Já Vânia Bambirra, em seu livro O capitalismo dependente latino-americano (2019[1972]), trabalha com outras datações. O período da “revolução burguesa”, segundo ela, vai do final do século XIX ao término da Segunda Guerra, com destaque para os fenômenos históricos do início do século XX, os quais produziram mudanças qualitativas na configuração do capitalismo dependente nos países de “tipo A”. Chama a atenção o uso de aspas na maior parte das vezes em que o termo é utilizado e a própria autora é explícita ao dizer que é pouco precisa do ponto de vista categorial ao empregá-lo:

Embora não se possa dizer que todo esse processo tenha sido uma revolução burguesa no sentido tradicional do termo, certamente expressou um momento histórico latino-americano no qual a burguesia industrial [...] reivindicou o controle hegemônico do poder, oferecendo um projeto próprio de desenvolvimento econômico-social. Neste sentido, e somente neste sentido, é possível caracterizar todo este processo como uma “revolução burguesa”, nas condições típicas do desenvolvimento do capitalismo dependente.

E assim o caracterizamos, não tanto em busca de um excessivo rigor conceitual [...], mas visando alcançar um discernimento mais amplo de toda essa etapa crucial na história desses países latino-americanos (Bambirra, 2019[1972]BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972]., p. 81).

Para Bambirra (2019BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972].[1972]), a “revolução burguesa” aparentemente teve o protagonismo da pequena-burguesia, em especial de setores militares, que funcionaram como “grupo de choque” para a tomada do poder de Estado. O tenentismo, por exemplo, embora pareça um fenômeno das “classes médias” insatisfeitas com a ordem oligárquica, demonstrou uma essência calcada nos interesses da burguesia industrial. Diante da conjuntura favorável aberta pela Primeira Guerra Mundial e aprofundada pela crise capitalista de 1929, a burguesia industrial foi capaz de dirigir a insatisfação generalizada dos setores médios e aproveitar as contradições que se gestavam no seio das próprias oligarquias para alcançar a hegemonia, denotando, neste processo, um elevado grau de consciência de classe.

Como a fração industrial da burguesia era estruturalmente dependente do latifúndio agroexportador, sua hegemonia foi construída sem a liquidação das oligarquias, cujos interesses permaneceram parcialmente contemplados no novo sistema de poder. Tratava-se, assim, de uma hegemonia comprometida com as oligarquias, dando origem ao sistema de dominação caracterizado pela autora como “burguês-oligárquico” (Bambirra, 2019[1972]BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972]., p. 92). O fenômeno do populismo foi a expressão político-ideológica da hegemonia comprometida da burguesia industrial, apresentando os seus interesses, como os de toda a nação, por meio de lideranças populares. Em diálogo com Francisco Weffort - que aborda os regimes populistas por meio da noção duvidosa de um “Estado de massas”, apartado de qualquer hegemonia de uma classe social -, Bambirra (2019[1972]BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972]., p. 100-101) discorda da tese de ausência de uma direção classista no Estado durante esse período da história, embora reconheça a sua relativa autonomia.

Em artigo escrito em parceria com Theotonio dos Santos em 1977, a autora retoma o debate sobre a “revolução burguesa” no Brasil. Nele, Bambirra e Dos Santos (1988[1977]BAMBIRRA, V.; DOS SANTOS, T. Brasil: nacionalismo, populismo e ditadura. Cinquenta anos de crise social. In: CASANOVA, P. (org.). América Latina: história de meio século Brasília: Editora da UnB, 1988[1977]. v. 1, p. 100-153.) apresentaram posições divergentes das análises até aqui abordadas, embora explicitem também continuidades. Para ela e ele, o marco inicial do processo tratado como “revolução democrático-burguesa” no Brasil é o golpe de 1930 capitaneado por Getúlio Vargas, um estancieiro gaúcho ligado aos produtores agrícolas voltados ao mercado interno, e o ápice está no período do Estado Novo, tratado como “ditadura bonapartista”. Nesse sentido, aproximam-se da análise de Marini e se afastam de Bambirra, que assinala seu início no século anterior.

As principais medidas tomadas pelo governo de Vargas - centralismo político, intervencionismo e protecionismo econômicos, burocratização da máquina estatal, legislação trabalhista corporativista e qualificação industrial da força de trabalho -, assim como seus resultados mais expressivos, impulsionaram o processo de industrialização no país, subordinando as demais classes e frações de classe dominantes aos interesses da burguesia industrial.

Bambirra e Dos Santos advertem, contudo, que a hegemonia construída pelos industriais comportaria inúmeras concessões às antigas classes dominantes, que permaneceram acomodadas - em posições vantajosas, mas ainda assim coadjuvantes - no bloco dominante. Não houve uma efetiva ruptura com a antiga dominação oligárquica, mas sim uma alternância de hegemonia no Estado, que continuou a comportar os interesses dos latifundiários. Assim, o capitalismo dependente se modernizava do ponto de vista industrial de forma conservadora por meio da hegemonia comprometida (Bambirra; Dos Santos, 1988[1977]BAMBIRRA, V.; DOS SANTOS, T. Brasil: nacionalismo, populismo e ditadura. Cinquenta anos de crise social. In: CASANOVA, P. (org.). América Latina: história de meio século Brasília: Editora da UnB, 1988[1977]. v. 1, p. 100-153.), sem provocar uma cisão radical com seu caráter intrinsecamente dependente e seu passado agroexportador. Esse passado, por sua vez, não se colocava como obstáculo ou herança maldita, mas sim de forma contraditória, como impulsionador das relações capitalistas. Até aqui, nenhuma grande novidade em relação ao que analisamos.

Bambirra e Dos Santos, entretanto, divergem das posições anteriormente apresentadas de Marini e da própria Bambirra sobre dois pontos. O primeiro diz respeito ao marco final da “revolução burguesa”. Enquanto Marini situa em 1937 e Bambirra demarca de maneira genérica como sendo o pós-Segunda Guerra Mundial, para Bambirra e Dos Santos o marco está em meados da década de 1950. O início, como já mencionado, estaria na “Revolução de 1930” e o fim deveria ser encontrado nas condicionalidades impostas pela nova dependência, teorização realizada por Theotonio dos Santos na obra Socialismo ou fascismo (2018[1969]DOS SANTOS, T. Socialismo ou fascismo: o novo caráter da dependência e o dilema latino-americano. Tradução: Diógenes Breda. Florianópolis: Insular, 2018 [1969].).

Segundo Dos Santos (2018[1969]DOS SANTOS, T. Socialismo ou fascismo: o novo caráter da dependência e o dilema latino-americano. Tradução: Diógenes Breda. Florianópolis: Insular, 2018 [1969].), a nova dependência surgiu a partir da segunda metade da década de 1950, delimitando uma inflexão no capitalismo dependente. A emergência de uma nova DIT - fundada na hegemonia dos Estados Unidos e na contínua expansão dos investimentos externos diretos dos países centrais nos setores industriais dependentes - levou a uma crescente e seletiva industrialização de determinadas nações periféricas. O caso brasileiro enquadrava-se nesse perfil. Na nova dependência, o fluxo de capital ainda era parcialmente direcionado para setores primários, mas o grosso dos investimentos ia para os novos setores industriais, com destaque para a indústria de bens duráveis.

A tese central da nova dependência, com fortes implicações políticas na época, é a seguinte: a nova forma de subordinação dos países dependentes de “tipo A” ao imperialismo se dava centralmente pela integração de suas bases produtivas com a dos países centrais pela expansão das multinacionais, e não mais pelo modelo cepalino de exportação de matérias-primas e importação de manufaturados. Agora, as nações dependentes de tipo A também eram receptoras de montantes vultosos de investimentos do grande capital monopolista em setores industriais. Se, no interregno das duas grandes guerras até os anos 1950, os países latino-americanos de “tipo A” foram capazes de usufruir de certo grau de autonomia relativa no seu desenvolvimento capitalista, com a expansão das multinacionais, em especial as estadunidenses, houve, de 1950 em diante, um aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento via industrialização. Esse foi um golpe fatal nas ilusões desenvolvimentistas de que a industrialização via políticas estatais e reformas estruturais seria suficiente para superar o subdesenvolvimento periférico.

Essas determinações materiais, criadas pela nova dependência, impactaram diretamente a atuação política da burguesia brasileira. O controle, por parte dos capitais estrangeiros, dos setores mais dinâmicos da acumulação capitalista fez com que os setores nacionais tivessem uma perda relativa do seu poderio econômico. As empresas de capital nacional ocuparam os estratos médios e baixos da indústria, enquanto os capitais estrangeiros se apoderaram dos estratos altos e mais lucrativos. A resposta da burguesia local foi o aumento da superexploração da força de trabalho. A classe trabalhadora, cada vez mais organizada e consciente, não foi mera espectadora da história: enfrentou a ofensiva burguesa com uma radicalização paulatina, rompendo com os acordos tácitos do populismo, e parte de suas vanguardas aderiu ao nacionalismo radical e, posteriormente, nos anos 1960, ao socialismo revolucionário.

Nesse quadro turbulento e polarizado, a margem de ação da burguesia brasileira ficou estreita. Diante das condicionalidades impostas pela nova dependência e da agitação popular, a burguesia local decidiu abandonar o chamado pacto populista e a tímida defesa que fez de medidas reformistas no auge da “revolução burguesa”. Aderiu, então, à integração subordinada às burguesias centrais. Dessa forma, Bambirra e Dos Santos afirmam que a nova dependência inaugurou o fim do ciclo da “revolução democrático-burguesa” e a definitiva associação subordinada da burguesia local ao imperialismo, selada pelo golpe de 1964: “É a trágica culminação da revolução burguesa num país periférico. É o final grotesco do nacionalismo populista frente à rearticulação de um novo pacto de poder da burguesia local com o imperialismo” (Bambirra; Dos Santos, 1988[1977]BAMBIRRA, V.; DOS SANTOS, T. Brasil: nacionalismo, populismo e ditadura. Cinquenta anos de crise social. In: CASANOVA, P. (org.). América Latina: história de meio século Brasília: Editora da UnB, 1988[1977]. v. 1, p. 100-153., p. 100).

O segundo ponto de divergência refere-se ao nível de consciência de classe da burguesia industrial na condução do processo. Para Bambirra e Dos Santos, ao contrário das posições já apresentadas tanto de Marini, como de Bambirra, essa fração da burguesia apresentaria uma consciência de classe moderada, materializada no programa revolucionário democrático-burguês rebaixado e na práxis conciliatória com seus parceiros no bloco dominante (mas brutal contra as classes trabalhadora e camponesa e os setores médios opositores). Daí Bambirra e Dos Santos (1988[1977]BAMBIRRA, V.; DOS SANTOS, T. Brasil: nacionalismo, populismo e ditadura. Cinquenta anos de crise social. In: CASANOVA, P. (org.). América Latina: história de meio século Brasília: Editora da UnB, 1988[1977]. v. 1, p. 100-153., p. 106-107) qualificarem a “revolução burguesa” no Brasil de “limitada”.

Em suma, a entrada maciça do grande capital monopolista em setores-chave da economia brasileira, que passaram a ser o centro da acumulação capitalista, desdobrou-se na crescente desnacionalização da economia e, no plano político, na adesão da burguesia local aos projetos imperialistas das empresas multinacionais. Foi o ponto de inflexão que marcou o fim de qualquer possibilidade de um projeto nacional de desenvolvimento capitalista autônomo e independente, capitaneado pela burguesia brasileira, que, de fato, nunca cultivou a consciência de classe e as práxis nacionalistas e anti-imperialistas. Conforme escreveu Theotonio dos Santos (2011[1978]DOS SANTOS, T. Imperialismo y dependencia. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2011[1978]., p. 497-498, tradução nossa) em sua obra Imperialismo y dependência:

Qualquer modelo de mudança social que assuma corretamente uma perspectiva crítica, com relação à experiência dos últimos quarenta anos de desenvolvimento industrial dependente na América Latina, deve eliminar a figura das burguesias nacionais independentes (ou burguesias progressistas, ou empresários nacionais etc.) como uma força determinante dessa realidade. O fracasso do modelo de desenvolvimento nacional independente representa essencialmente o fracasso desse grupo social e da sua força e interesses econômicos para oferecer uma opção de desenvolvimento para a América Latina.

O protagonismo na condução do processo revolucionário coube, e ainda cabe, somente à classe trabalhadora e aos aliados progressistas, como sempre afirmaram os teóricos marxistas da dependência em polêmica com desenvolvimentistas e reformistas que apostaram (e apostam) num caráter progressista da burguesia brasileira, ou que se lamuriam de um suposto atraso de nossas elites. Conscientes, nossas classes dominantes produzem e reproduzem em escala ampliada o desenvolvimento capitalista dependente. Sendo assim, a saída não está em apelos utópicos aos de cima, mas sim na solidificação de um projeto classista, autônomo e revolucionário dos de baixo.

4. Considerações finais

A despeito da controvérsia entre Marini, Bambirra e Dos Santos, cujos pontos de divergência procuramos sinalizar, eles e ela parecem concordar com o fato de que a “revolução burguesa” no Brasil não foi o processo histórico que guiou a transição de modos de produção pré-capitalistas para o capitalismo dependente. De acordo com o estágio de nossas pesquisas, constatamos que, nas obras de Marini, Bambirra e Dos Santos, a “revolução burguesa” no Brasil consistiu, na verdade, em uma alternância de hegemonia das antigas oligarquias latifundiárias para a burguesia industrial, instituindo mudanças econômicas, sociais e políticas no já consolidado capitalismo dependente e afirmando a transição do padrão de reprodução do capital agroexportador para o industrial a partir de 1930 com a “revolução” liderada por Vargas. Também contrariando as análises marxistas consagradas, eles e ela defenderam que a afirmação hegemônica da burguesia industrial se deu sob práticas políticas conscientes de seu projeto histórico, e não sob ausência de uma consciência de classe.

A forma particular de transição para o modo de produção capitalista no Brasil ocorreu através da modernização da economia agroexportadora oriunda do período colonial, sem rupturas radicais com a estrutura de propriedade. Após a integração do país à divisão internacional do trabalho, o desenvolvimento capitalista germinou no seio dessa estrutura por meio de transformações graduais, soldando um capitalismo sui generis. Na nova situação histórica, conservaram-se elementos estruturais do passado, o que não significa que não tenha havido mudanças qualitativas que apontem para uma superação.

No último quartel do século XIX, o capitalismo dependente brasileiro gestou, pela sua própria dinâmica de desenvolvimento, uma nova classe social: a burguesia industrial, formada no bojo das oligarquias. A partir da conjuntura aberta pela Primeira Guerra Mundial e pela crise de 1929, essa classe soube aproveitar as novas determinações externas e internas para dirigir a tomada da hegemonia no bloco dominante e alterar o padrão de reprodução do capital vigente, do agromineiro exportador para o industrial.

Tais mudanças resguardaram parte do poder econômico e político das oligarquias agrárias e, especialmente após o fim da Segunda Guerra Mundial, das burguesias imperialistas, com as quais a burguesia industrial brasileira aprofundou sua integração subordinada e contraditória. Esse processo histórico, para os fundadores da TMD, consiste na nossa “revolução burguesa”, e seus desdobramentos históricos tornaram fadado ao fracasso qualquer projeto estratégico que enxergasse na burguesia brasileira potencialidades para agir como uma “burguesia nacional”, disposta a realizar tarefas democráticas, de reforma agrária e de defesa da soberania nacional.

Compreender as especificidades do desenvolvimento capitalista dependente é condição basilar para a construção da Revolução Brasileira. De um jeito ou de outro, a “revolução burguesa” foi concluída no país. Não se trata mais de tarefa em atraso. Segundo as teses advogadas pela TMD, a revolução brasileira está envolta no projeto proletário de transição socialista. Essa tarefa coletiva segue em aberto e exige um esforço interpretativo criativo, que, fugindo de transposições mecânicas, mergulhe em uma análise concreta de situação real de nossa formação econômico-social, com a qual os clássicos do pensamento marxista dependentista têm muito a contribuir.

Referências

  • BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972].
  • BAMBIRRA, V.; DOS SANTOS, T. Brasil: nacionalismo, populismo e ditadura. Cinquenta anos de crise social. In: CASANOVA, P. (org.). América Latina: história de meio século Brasília: Editora da UnB, 1988[1977]. v. 1, p. 100-153.
  • DOS SANTOS, T. Imperialismo y dependencia Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2011[1978].
  • DOS SANTOS, T. Socialismo ou fascismo: o novo caráter da dependência e o dilema latino-americano. Tradução: Diógenes Breda. Florianópolis: Insular, 2018 [1969].
  • LUCE, M. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias. Uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
  • MARINI, R M. A dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução, 2013[1966]. p. 73-161.
  • MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução Florianópolis: Insular, 2013[1969]. p. 47-71.
  • MARINI, R. M. Prefácio à 5. edição mexicana. In: MARINI, R M. Subdesenvolvimento e revolução Florianópolis: Insular, 2013[1974]. p. 27-44.
  • MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Dialética da dependência e outros escritos 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2022[1973]. p. 167-216.
  • 1
    É digno de nota o quarto capítulo do livro Teoria marxista da dependência: problemas e categorias, de Mathias Luce (2018LUCE, M. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias. Uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.).
  • 2
    Marini (2022[1973]MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Dialética da dependência e outros escritos. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2022[1973]. p. 167-216., p. 193) não se aprofundou no tratamento teórico a esse tema e ressalvou: “Não é, entretanto, nosso objetivo estudar aqui as formas econômicas particulares que existiam na América Latina antes que esta integrasse efetivamente a etapa capitalista de produção, nem as vias por meio das quais teve lugar essa transição”. Ao não enfatizar esse aspecto, deixa em aberto o desafio de pensar as particularidades na transição para o capitalismo dependente, especialmente no caso do Brasil, em que a transição do trabalho escravizado para o trabalho livre assume nuances próprias, com implicações para a forma como se constituíram as relações capitalistas.
  • 3
    Os países caracterizados como de “tipo B”, por sua vez, iniciaram sua industrialização apenas no período do pós-Segunda Guerra, a partir da integração com os capitais imperialistas estadunidenses (Bambirra, 2019[1972]BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 4. ed. Florianópolis: Insular, 2019[1972]., p. 60). A autora esboça, ainda, a proposta de caracterizar alguns países como de “tipo C” (Haiti e Paraguai), por não terem realizado um processo de diversificação industrial à época da edição do livro.
  • 4
    É preciso observar que a autora pouco se preocupa em abordar o processo de transição entre o trabalho escravizado e o trabalho assalariado no Brasil, o que resulta em um tratamento insuficiente da história. Parece-nos que as especificidades históricas da formação de relações sociais de produção baseadas no trabalho “livre” no Brasil são abstraídas em um esforço de identificar tendências comuns a todos os países de “tipo A”. Isso pode gerar problemas se utilizarmos, sem as devidas mediações, a teorização da autora para explicar a transição ao capitalismo no Brasil, dado o peso da escravidão na formação do capitalismo brasileiro no século XIX.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2023
  • Aceito
    27 Out 2023
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