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Padrão de reprodução do capital: uma contribuição da teoria marxista da dependência à ecologia

Capital reproduction pattern: a contribution from marxist dependency theory to ecology

Resumo:

Neste artigo, por meio de revisão bibliográfica, discutimos a ecologia a partir da categoria-padrão de reprodução do capital, destacando a dialética entre valor e valor de uso. Concluímos, com base na TMD, que a categoria-padrão de reprodução do capital permite compreender a ecologia no âmbito da particularidade, evidenciando que a valorização é sempre acompanhada da produção material e que distintos padrões de reprodução do capital impactam desigualmente o meio ambiente e a sociedade.

Palavras-chave:
Padrão de reprodução do capital; Ecologia; Teoria Marxista da Dependência

Abstract:

In this article, through a literature review, we discuss ecology based on the standard category of capital reproduction, highlighting the dialectic between value and use-value. We conclude, based on TMD, that the standard category of capital reproduction enables the understanding of ecology within the realm of particularity, demonstrating that valorization is always accompanied by material production and that different patterns of capital reproduction unevenly impact the environment and society.

Keywords:
Capital Reproduction Pattern; Ecology; Marxist Dependency Theory

Introdução

A palavra ecologia vem da junção das palavras gregas oikos = “casa” e logia = “estudar”, “saber”, de modo que, ao pé da letra, poderíamos traduzir ecologia como o estudo da casa. Essa tradução literal pode gerar a interpretação direta de que ecologia seria o estudo da natureza, se assumimos a natureza como a “casa” da humanidade. Há muito de verdade nesse entendimento, mas ele também pode gerar equívocos. Se de fato a natureza pode ser entendida como a casa dos seres humanos, nessa casa nem todos vivem nos melhores cômodos.

Ano após ano a crise ecológica tem agudizado ainda mais as desigualdades estruturais do sistema capitalista. A confirmação das previsões de eventos climáticos extremos desencadeados pelo crescente aumento da temperatura média global tem reconfigurado a questão social, que passa também a ser cada vez mais afetada pelo impacto de elementos naturais. Do ponto de vista social, isso tem refletido no crescimento de movimentos ambientais e de pessoas afetadas por desastres ecológicos.

Não por acaso, a ascensão dos movimentos indígenas na América Latina trouxe ao debate público o tema da preservação ambiental, uma vez que sua cosmovivência é diretamente afetada pelo avanço do capital contra a natureza e pela degradação do meio ambiente. Também as experiências políticas como o novo constitucionalismo latino-americano e a chegada ao poder de governos progressistas no início do século XXI foram acompanhadas de uma crescente discussão sobre a necessidade de preservação ambiental.

Diante desse cenário, podemos identificar, no campo da ecologia, análises e soluções que, na sua maioria, ou se dão em torno do indivíduo, defendendo a necessidade de adotar uma ética biocêntrica abstrata1 1 Para uma crítica marxista dos limites de ética biocêntrica abstrata, recomendamos a leitura de Luz e Silva, 2023. , ou, quando adotando perspectivas mais sociais, tentam solucionar a questão ambiental pela via da legalidade, com sanções, incentivos fiscais ou até mesmo defendendo hipotéticos “direitos da natureza” (Gudynas, 2019GUDYNAS, E. Direitos da natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais. São Paulo: Elefante, 2019.).

No campo do marxismo, da ecologia marxista, há um grande avanço na medida em que se identifica a expansão da produção como necessidade imanente da acumulação capitalista (Barreto, 2018BARRETO, E. S. O capital na estufa: para a crítica econômica das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.). Geralmente, esses autores têm grande contribuição na discussão sobre os efeitos ambientais da acumulação capitalista em escala global. Deslocando, portanto, o debate sobre a questão ambiental para uma discussão sobre a natureza do modo de produção e a necessidade da emancipação humana.

No presente artigo, temos como objetivo destacar as possibilidades teóricas do marxismo, em sua análise da totalidade, e da Teoria da Dependência Marxista, a partir da categoria-padrão de reprodução do capital, na discussão da questão ecológica em sua particularidade. Por meio de uma revisão bibliográfica, partimos para níveis mais concretos de determinação, dando destaque à dialética entre valor e valor de uso, e de como o processo de valorização é sempre acompanhado de um processo de produção material, que impacta desigualmente tanto o meio ambiente quanto a sociedade.

Contribuindo no cinquentenário de Dialética da dependência, de Ruy Mauro Marini, demonstraremos como a Teoria Marxista da Dependência (TMD), por meio da categoria-padrão de reprodução do capital, auxilia na compreensão da questão ecológica; entendendo-a para além dos aspectos mais universais da relação entre a ecologia e a reprodução do capital, mas também em sua particularidade desigual e combinada.

Na primeira seção do texto, trataremos de apresentar a categoria-padrão de reprodução do capital. Em seguida, na segunda seção, realizaremos a conexão entre a categoria-padrão de reprodução do capital e o meio ambiente, a fim de evidenciar como a reprodução do capital impacta desigualmente tanto o ser humano quanto o meio natural. Por fim, apresentaremos nossas considerações finais, sintetizando nossos argumentos e reforçando a necessidade de analisar a objetividade da desigualdade da reprodução capitalista, sobretudo diante da ascensão do padrão de reprodução do capital exportador de especialização produtiva na América Latina.

Padrão de reprodução do capital

Desde o surgimento do pensamento marxista, reivindicador da totalidade, a ciência vulgar tem adotado, frequentemente, em resposta, a especialização como sinônimo de garantia de sucesso científico. A noção epistemológica que justifica esse processo é a ideia segundo a qual na medida em que se alcançam as partes da realidade, se chegaria ao “átomo”, a parte sem partes, e por consequência seria possível explicar toda a vida social (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.).

Essa visão equivocada entende a realidade social como fruto da existência de “coisas”, sem evidenciar as relações sociais que articulam e atravessam a própria realidade. Acentua, assim, as partes em detrimento do todo, o singular em vez do universal.

No entanto, singular, particular e universal não são pontos de vista, mas sim distintos níveis de abstração de uma existência real e, como tal, estão presentes na realidade antes mesmo de serem concebidos teoricamente (Lukács, 1967LUKÁCS, G. Estética: categorías psicológicas y filosóficas básicas de lo estético. Barcelona; Cidade do México: Grijalbo, 1967. v. 3.). Sendo produto da realidade, é ela mesma quem define a posição relativa de determinados fenômenos e categorias enquanto seus determinantes.

A negação desse fato pelo pensamento dominante leva os cientistas vulgares a analisarem as partes separadas do todo, o singular sem a atividade unificadora universal. Isso não significa que a parte não possa ser analisada. Ao contrário, o estudo da parte é essencial para o desenvolvimento da ciência, mas este não pode ser descolado dos determinantes mais gerais da totalidade. E em “nosso tempo, tal atividade unificadora não é outra senão a lógica do capital, a qual, como um tornado, derruba, absorve, faz girar e eleva pelos ares todas as relações que encontra em seu caminho, reorganizando-as e deixando nelas sua marca” (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 37).

Apenas no seio dessa atividade unificadora, universal, totalizante, as partes do todo podem ser compreendidas, através da relação dialética entre o universal e o singular marcada por diferentes níveis de abstração. Para o marxismo, a parte não é, portanto, isolada do todo. No entanto, chegar a esse desenvolvimento teórico não é fácil, ainda mais diante da influência exercida pelo pensamento dominante no cotidiano.

De fato, não por acaso Ruy Mauro Marini destaca em Dialética da dependência como frequentemente as análises sobre a América Latina incorrem em dois tipos de erro: “a substituição do fato concreto pelo conceito abstrato, ou a adulteração do conceito em nome de uma realidade rebelde para aceitá-lo em sua formulação pura” (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180., p. 137). Na prática, esses equívocos representam, por um lado, a adoção do universal em detrimento de determinações mais concretas e, por outro, a hipertrofia da singularidade - do caso isolado - em prejuízo de determinantes universais. Nos dois casos, o movimento particular como expressão da relação dialética entre a universalidade e a singularidade é negligenciado.

Podemos dizer, tendo isso em mente, que uma das principais contribuições de Marini (2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180.) está justamente em demonstrar o movimento particular do capitalismo na América Latina, em sua relação dialética com a acumulação capitalista em escala mundial, como “uma forma particular de reprodução capitalista e [...] uma forma particular de capitalismo: o dependente” (Osorio, 2009OSORIO, J. Dependência e superexploração. In: MARTINS, C. E.; VALENCIA, A. S. (org.). A América Latina e os desafios da globalização . Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Boitempo, 2009., p. 175). O capitalismo dependente, a superexploração da força de trabalho, o ciclo do capital na economia dependente são contribuições de Marini (2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180.) que só podem ser efetivamente compreendidas, portanto, se entendidas como expressão particular da acumulação de capital.

Outra contribuição teórica de Marini no âmbito da particularidade é a categoria-padrão de reprodução do capital, que tem importância fundamental para o tema por nós abordado neste artigo. As primeiras aparições dessa categoria são encontradas em trabalhos do autor na passagem dos anos 1970 para os 19802 2 Em textos como Marini (1979), Marini (1980) e Marini (1981), Ruy Mauro utiliza a expressão “padrão de reprodução do capital” quando discute temas como a mais-valia extraordinária, o Estado e a crise mundial sem, no entanto, aprofundar-se sobre o conteúdo teórico da categoria. , mas é apenas no artigo “Sobre el patrón de reproducción de capital en Chile”, publicado no México em 1982, onde uma pequena definição do que ele entende por padrão de reprodução aparece. Nesse texto, Marini analisa as mudanças na economia chilena logo depois do golpe de 1973, e em uma passagem ele define a noção de padrão de reprodução do capital como “la relación entre las estructuras de acumulación, producción, circulación y distribución de bienes” (Marini, 1982MARINI, R. M. Sobre el patrón de reproducción de capital en Chile. Cuadernos CIDAMO, n. 7, México, 1982., s/p).

Será Jaime Osorio, contudo, quem avançará mais nos estudos da categoria-padrão de reprodução do capital. Além de sistematizar teoricamente a categoria em trabalhos como Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica (2012), Osorio realiza um esforço prático, na medida em que tem analisado as grandes transformações pelas quais o capitalismo dependente latino-americano vem passando nas últimas décadas a partir dessa categoria.

Segundo a definição de Jaime Osorio (2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.), o padrão de reprodução do capital é uma categoria que estabelece as mediações necessárias entre os níveis mais universais de análise (modo de produção capitalista e sistema mundial) e os níveis mais histórico-concretos e menos abstratos (formação econômico-social e conjuntura).

A noção de padrão de reprodução do capital surge para dar conta das formas como o capital se reproduz em períodos históricos específicos e em espaços geoterritoriais determinados [...] considerando as características de sua metamorfose na passagem pelas esferas da produção e da circulação (como dinheiro, meios de produção, força de trabalho, novas mercadorias, dinheiro incrementado), integrando o processo de valorização (incremento do valor do dinheiro investido) e sua encarnação em valores de uso específicos (calças, rádios, celulares, tanques de guerra), assim como as contradições que esses processos geram (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 40-41).

Isto permite historicizar a reprodução do capital, respondendo às razões que tornam necessário que o capital se valorize assumindo a forma deste ou daquele valor de uso e possibilitando a análise dos processos que exigem a emergência, auge ou declínio de determinado padrão de reprodução do capital.

A respeito do primeiro ponto, como destaca Jaime Osorio (2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.), valorizar o capital produzindo salsichas não é o mesmo que produzindo canhões.

Os processos produtivos de um ou outro valor de uso são diferentes, e diferentes são os consumidores e os mercados de tais produções, assim como as políticas estatais que daí se originam. Uma economia que sustenta sua valorização em produtos bélicos estimulará a geração de conflitos e de guerras para criar mercados para seus produtos (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 46).

Já quanto à segunda dimensão, em todos os processos de transição entre um padrão e outro há razões econômicas que também são políticas. “São projetos de classe de determinados setores do capital aqueles que se convertem em eixos de acumulação em cada caso, e são projetos de classe de outros setores do capital aqueles que ocupam lugares subordinados ou perdem” (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 46). E tudo isso, por sua vez, tem consequências nas classes dominadas e na questão ambiental, na medida em que existem projetos de reprodução do capital que são mais ou menos agressivos à classe trabalhadora e à natureza.

Nesse sentido, Jaime Osório (2012) apresenta, por meio da exposição do ciclo do capital-dinheiro, que vemos abaixo, os principais problemas que têm de ser respondidos por cada padrão de reprodução do capital.

Vejamos a seguir cada uma dessas fases:

Primeira fase de circulação (D - M)

Na primeira fase de circulação (D - M), três são as perguntas essenciais que devem ser respondidas para entender o percurso do capital em cada padrão de reprodução: Quem investe? Quanto investe? Em que investe?

A primeira pergunta diz respeito à origem do capital dinheiro, o que tem correspondência direta com a estrutura de classes do país. Esse capital pode ser estatal, o que tende a reforçar o aparato burocrático do Estado e sua tecnocracia; privado nacional, garantindo mais poder a uma burguesia interna; ou, ainda, estrangeiro, reforçando a presença imperialista dentro do país e gerando, assim, uma variável a mais na equação de poder.

Quanto ao montante investido e em que se investe, por meio dessas perguntas podemos encontrar algumas chaves para determinar quais são os setores e ramos que têm centralidade na acumulação e reprodução de capital em determinado país. Isso tem implicação direta na economia dos países, uma vez que “nem todos [ramos e segmentos da produção] possuem a mesma capacidade de arrastar outros ramos e setores - ou de converter-se em pequenas locomotivas que puxem a expansão destes” (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 48).

Tanto no caso das indústrias do setor I (meios de produção) quanto nas do setor II (meios de consumo), parte do dinheiro que circula como capital deve servir para a compra de meios de produção: galpões, edifícios, máquinas e equipamentos, matérias-primas etc. E é preciso saber onde esses meios de produção são adquiridos, se no mercado interno ou externo. Outra parte do capital se destina à compra de força de trabalho, e aí entra em cena a dimensão de análise do valor da força de trabalho, o espaço e tempo, bem como a exploração.

O espaço geográfico em que se dá a produção também é importante na determinação de que necessidades específicas precisam ser sanadas. Um exemplo são as diferenças entre uma região de clima frio e outra de clima tropical em relação ao tipo de alimentação, habitação e vestuário necessário para a sobrevivência dos trabalhadores; e vale ressaltar que, em um mundo em aquecimento, com mudanças nos padrões de chuva que impõem novas demandas à agricultura e à pecuária, juntamente a alterações oceânicas que afetam as correntes marítimas e a regularidade das marés, as necessidades específicas já não poderão ser satisfeitas da mesma maneira.

Também na determinação do valor da força de trabalho influem elementos histórico-morais. “Por exemplo, uma cultura baseada no milho soluciona suas necessidades básicas em matéria alimentar de maneira distinta de outras baseadas no trigo ou no arroz” (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 52). Do mesmo modo, ao longo da história e com o desenvolvimento das forças produtivas, as necessidades básicas da classe trabalhadora se transformam, incorporando novos elementos de consumo.

A reprodução dos trabalhadores - que inclui as novas gerações, razão pela qual deve contemplar em seu valor a família operária - não pode ser calculada como a soma de um montante determinado de calorias, proteínas e vitaminas que se encontram em bens quaisquer, o que implicaria considerar a reprodução fisiológica como quem dá de comer a um animal de carga. Existem elementos históricos e morais que não podem ser negligenciados [...]. Por isso, não há nada de estranho no fato de em favelas urbanas pobres se multiplicarem antenas de televisão, apesar de seus habitantes não contarem com os alimentos básicos. O que deve surpreender não são as antenas, mas o fato de que a esta altura do desenvolvimento societal existam pessoas que não possam contar com os bens materiais básicos, próprios da época em que vivem, e satisfazer ao mesmo tempo o resto de suas necessidades básicas de maneira suficiente (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 52-53).

As especificidades de qual ramo ou setor da economia é dominante em determinado padrão de reprodução do capital também afetam a localização territorial e as condições de vida da força de trabalho. Nas regiões mineiras da América Latina durante os séculos XIX e XX, por exemplo, uma vez que muitas delas se localizavam em zonas inóspitas ou distantes dos grandes centros, se “propiciou processos de proletarização acelerados ao concentrar milhares de trabalhadores em acampamentos e depender do salário como forma fundamental de subsistência, diante da impossibilidade de desenvolver uma produção agrícola” (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 52).

Também do ponto de vista da força de trabalho, faz diferença se no padrão de reprodução do capital dominante o salário recebido pelo trabalhador repõe o valor da força de trabalho ou se é insuficiente para isto. Neste último caso, o capital se apodera de parte do fundo de consumo do trabalhador, desgastando anormalmente a força de trabalho e encurtando a vida do trabalhador (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.).

Fase de produção (... P...)

Na fase de produção, para captar os determinantes centrais do padrão de reprodução do capital, é preciso analisar primeiro a forma como o capital consome a força de trabalho. Dessa perspectiva, alguns elementos importantes são: a jornada de trabalho, a produtividade e a intensidade do trabalho e a organização do trabalho.

A jornada de trabalho é o terreno clássico sobre o qual se dá a disputa pelo excedente entre capitalistas e trabalhadores, como já apontou Marx (2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.). Cada padrão de reprodução do capital exige uma forma específica de organizar essa jornada. Assim, por exemplo, um padrão de reprodução industrial tende a exigir certa regularidade da jornada, uma vez que é preciso que o trabalhador volte à fábrica no dia seguinte para dar continuidade à produção de mercadorias. Já em um padrão de reprodução fundado na agricultura, essa exigência pode não existir, sendo comum a necessidade de mais força de trabalho apenas em momentos específicos da produção, como o plantio ou a colheita.

As elevações na produtividade e na intensidade do trabalho também incidem diretamente na fase de produção. São fenômenos próximos, na medida em que em ambos os casos altera-se a relação entre trabalho excedente e trabalho necessário, incrementando a produção. No entanto, há uma diferença substancial. Enquanto a elevação da produtividade obtida por meio de avanços tecnológicos e organizacionais do trabalho incrementa o trabalho excedente por meio da redução do valor do trabalho necessário, no caso da elevação da intensidade do trabalho esses mesmos avanços são utilizados “para aumentar o desgaste dos trabalhadores, o que não ocorre com a primeira” (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 57).

Já as formas de organização do trabalho - que têm variado ao longo da história, desde a produção domiciliar e das primeiras manufaturas até a grande indústria, linha de montagem e produção flexível, e sobre as quais interferem a composição técnica e o grau de centralização e concentração do capital - variam também segundo as alterações nos padrões de reprodução do capital e, decididamente, com base em quais valores de uso são preponderantemente produzidos nesses padrões. “Uma fábrica de computadores ou de automóveis tem uma organização diferente de uma que produz vinho, madeira ou frutas frescas” (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 59), por exemplo.

Ainda no âmbito da fase da produção, um aspecto que incide diretamente sobre o padrão de reprodução do capital é se a forma dominante de exploração do trabalhador repõe o valor da força de trabalho ou se, ao contrário, a desgasta para além do valor reposto. Essa segunda forma de exploração pode ser mais ou menos intensificada e mais ou menos estendida nas economias segundo as alterações no padrão de reprodução do capital. Por exemplo, em padrões que se sustentam, sobretudo, no atendimento à demanda do mercado externo, como no caso das economias dependentes, esse fenômeno tende a ser acentuado, uma vez que se dá a cisão entre as esferas de produção e circulação do capital e o trabalhador tende a entrar no ciclo do capital apenas como meio de trabalho e não como consumidor.

Mais adiante veremos também como a fase de produção é, por razões óbvias, a fase do ciclo do capital que mais impacta a natureza.

Segunda fase de circulação (M’ - D’)

Na segunda fase da circulação do capital, quando as mercadorias voltam a circular com objetivo de se realizarem em dinheiro, “a primeira pergunta a ser feita é a que mercados se dirigem, porque estes são sempre uma categoria social” (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 59). Assim, é necessário diferenciar os mercados de meios de produção dos de bens salários, as demandas geradas por diferentes setores do capital (grande, médio, pequeno), se o mercado atendido é gerado pela mais-valia não consumida produtivamente, em especial por meio do consumo de bens suntuários e de “luxo”, ou se é fruto do consumo produtivo e, por fim, se a produção é destinada ao mercado interno ou ao exterior, e, nesse caso, a qual país se destina.

Outro aspecto importante diz respeito ao tipo e à quantidade dos valores de uso lançados ao mercado, isso porque nem todos eles têm o mesmo tipo de demanda, e uma crise generalizada pode derrubar a procura por mercadorias não indispensáveis, mas tende a golpear menos a busca por bens de consumo salarial ou industrial indispensáveis (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 60).

Padrão de reprodução do capital e meio ambiente

A categoria-padrão de reprodução do capital, por estar em um nível de abstração menor do que o da acumulação capitalista em geral, leva mais em consideração, portanto, aspectos relativos à dimensão valor de uso das mercadorias. Isso é importante porque, como disse Marx: “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer” (Marx, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 113).

Sendo a mercadoria uma unidade contraditória entre valor de uso e valor, para incorporar seu trabalho em mercadorias, o trabalhador “tem de incorporá-lo, antes de mais nada, em valores de uso, isto é, em coisas que sirvam à satisfação de necessidades de algum tipo” (Marx, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 255). Daí que o trabalho seja “antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (Marx, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 255).

Ainda que por meio da generalização da troca distintos valores de uso, bem como diferentes trabalhos concretos, sejam igualados como valor e trabalho abstrato, no nível de análise da materialidade, os valores de uso e os processos de trabalho continuam sendo distintos e contendo, portanto, diferentes características materiais. De fato: “Os valores de uso formam o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social desta” (Marx, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 114) e o “processo de trabalho [...] é atividade orientada a um fim - a produção de valores de uso” (Marx, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 261).

Quando comparado aos outros modos de produção, o novo do capitalismo está em que essa dimensão material, do valor de uso e do processo de trabalho é condicionada pela dimensão abstrata do valor e do processo de valorização. Daí que, sendo o fim último do capital a valorização do valor, o movimento do capital seja desmedido (Marx, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.) e o impulso à expansão material da reprodução do valor seja cada vez maior (Barreto, 2018BARRETO, E. S. O capital na estufa: para a crítica econômica das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.).

Pois bem, mas ainda que, do ponto de vista da totalidade, da natureza como um todo, esse impulso à expansão incontornável do capitalismo afete toda a humanidade - sobretudo, por meio do aumento na emissão de gases do efeito estufa e das consequentes mudanças climáticas causadas por isso - no âmbito da dimensão valor de uso, existem efeitos distintos em cada uma das regiões em que a produção de determinada mercadoria predomina; e é desse ponto de vista que a teoria marxista da dependência, pela categoria-padrão de reprodução do capital, pode auxiliar o debate da ecologia marxista.

Cada padrão de reprodução do capital dominante em determinada região e época tem dentro de si setores/tipos de produção dominantes. E essas produções são, portanto, caracterizadas por determinados valores de uso específicos, com propriedades materiais específicas. A depender de quais atividades produtivas são dominantes em determinado padrão de reprodução do capital, problemas ecológicos como poluição, contaminação da água e do solo, desmatamento, envenenamento por agrotóxicos, infertilidade da terra, assoreamento de rios, erosão, destruição da fauna e flora originárias etc., podem ser mais ou menos frequentes. Esses problemas, contudo, atingem de forma desigual a sociedade, afetando mais diretamente sobretudo as populações que vivem próximas a essas áreas produtivas, enquanto pouco afetam aqueles que estão distantes dessas mesmas zonas. Um padrão de reprodução do capital caracterizado pela centralidade da mineração na valorização do capital tenderá, por exemplo, a degradar a terra, aumentar o desmatamento, poluir rios e o solo etc.

Mas, talvez mais importante que as características do próprio processo de trabalho, é a forma como esse influencia o processo de valorização e as consequências sociais e ecológicas disso. O valor de uso e a natureza do processo de trabalho impactam nas possibilidades de rotação do capital. Uma vez que as diferenças contidas nas propriedades físicas, químicas e biológicas tanto do processo de trabalho quanto dos valores de uso produzidos afetam diretamente a própria reprodução do capital. Marx (2014MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro II: O processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 237) recorda que:

O ciclo do capital, não como fenômeno isolado, mas como processo periódico, chama-se rotação. A duração dessa rotação é dada pela soma de seu tempo de produção e seu tempo de curso. Tal soma constitui o tempo de rotação do capital. Esta mede, assim, o intervalo entre um período cíclico do valor de capital inteiro e o período seguinte; a periodicidade no processo de vida do capital, ou, em outras palavras, o tempo de renovação, a repetição do processo de valorização e de produção do mesmo valor de capital.

Quanto mais rápida for a rotação do capital, mais rapidamente o processo de valorização ocorre e mais rapidamente o capital pode se expandir. Esse processo, contudo, é condicionado pelos determinantes do processo de trabalho e pela natureza dos valores de uso. Nilson Araújo de Souza (2013SOUZA, N. A. Teoria Marxista das crises, padrão de reprodução e “ciclo longo”. In: ALMEIDA FILHO, N. (org.). Desenvolvimento e dependência: cátedra Ruy Mauro Marini. Brasília: Ipea, 2013., p. 208) assinala, por exemplo, que:

[...] alguns tipos de matérias-primas, como a lã, a seda, o couro, são produzidos por processos orgânicos animais enquanto o algodão, o linho, e etc. se produzem por processos orgânicos vegetais, e a produção capitalista não logrou, e nunca logrará, dominar estes processos da mesma maneira que dominou os puramente mecânicos ou químicos inorgânicos.

Assim, uma produção industrial baseada em processos de trabalho inorgânicos mecânicos e/ou químicos, de chips e processadores, por exemplo, tem a possibilidade de ampliar a massa de valor produzido anualmente ao encurtar o tempo de rotação e ampliar, portanto, a quantidade de vezes em que um mesmo capital percorre os processos de produção e circulação em um ano (Marx, 2014MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro II: O processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.).

Já produções baseadas em processos de trabalho orgânicos vegetais e animais, como a de soja, por exemplo, têm limitada a redução da sua rotação pelos próprios limites naturais do tempo de produção. E, nesse caso, o número de safras anuais, mesmo que ampliadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico, é sempre condicionado pela natureza, o que acaba por dificultar as possibilidades de expansão da massa de valor anual por meio da redução do tempo de rotação. Esse é o mesmo caso da produção de carne e do couro que, de forma acelerada, exigem um número maior de abates, utilizando mais água, terra, rações etc., porém, encontrando como barreira natural o tempo de reprodução do animal.

Não por acaso, o sistema capitalista tende a substituir valores de uso de origem orgânica por outros de origem inorgânica, como ocorreu, por exemplo, no caso da borracha, que deixou de ser produzida com base nas seringueiras da Amazônia e passou a ser produzida com derivados do petróleo ou com o guano peruano, potente fertilizante orgânico que foi substituído por fertilizantes químicos ou, ainda, no caso do óleo de baleia do litoral brasileiro usado na iluminação que foi substituído primeiro pelo querosene e depois pela energia elétrica.

Esses processos de substituição de mercadorias de origem orgânica por similares sintéticos são comuns na história latino-americana. O continente é marcado não só pelos efeitos sociais dramáticos desencadeados pelo fim de ciclos econômicos, que deixam milhares de trabalhadores sem alternativas para a sua subsistência, mas também pelas guerras motivadas pela extração de recursos naturais e também pelas consequências ambientais decorrentes dessa expansão.

E, apesar da tensão permanente entre a produção e os limites da natureza, nem o ser humano, no sentido ontológico, nem o capital conseguem romper de todo com ela. A alternativa encontrada nas produções baseadas em processos orgânicos de trabalho para atender à demanda crescente da acumulação capitalista geralmente é a expansão extensiva. De forma que, no lugar de ampliar a massa anual de valor produzido por meio da diminuição da rotação do capital, nessas atividades produtivas a alternativa é ampliar o tamanho total do capital mobilizado, e isso é feito, essencialmente, por meio da produção em áreas cada vez maiores.

Do mesmo modo, como a tendência do capital é expandir cada vez mais o processo produtivo, aqueles setores do capital com rotações mais aceleradas tendem a demandar cada vez mais mercadorias produzidas pelos setores com rotações mais lentas. Daí que, para atender à necessidade da acumulação de capital em escala mundial, tende-se a expandir a produção extensivamente nesses últimos setores, que muitas vezes esbarram nos limites da natureza. Ciclos econômicos surgem, expandem-se e fenecem.

A expansão da fronteira agrícola por meio da monocultura, o esgotamento da terra, o avanço e o declínio das áreas de mineração são exemplos disso. Durante a colônia, do alto dos Andes bolivianos se escoava a prata, na república oligárquica, o salitre e o nitrato foram a razão da Guerra do Pacífico, já no começo do século XX os barões de estanho dominavam a cena política, e agora o lítio parece apontar para um novo tensionamento com os magnatas do capitalismo mundial.

Na América Latina, é comum a existência de padrões de reprodução do capital que tendem a acentuar esse aspecto da produção capitalista. A riqueza vai e a miséria fica. A acumulação ocorre, mas os efeitos sociais e ecológicos desencadeados por ela afetam gerações.

E a categoria-padrão de reprodução do capital é uma importante ferramenta para entender as mudanças e as continuidades no processo de acumulação capitalista. Osório (2012) afirma, por exemplo, que nas últimas décadas a América Latina tem vivido sob a vigência de um novo padrão de reprodução do capital, classificado por ele como exportador de especialização produtiva. Esse padrão, privilegiando a exportação de mercadorias em relação às quais a América Latina tem vantagens naturais, tende a acentuar o caráter primário-exportador das economias da região.

Segundo o autor:

[…] bajo el nuevo patrón de reproducción de capital en América latina, cada centímetro cuadrado de territorio es considerado un objeto de apropiación por el capital. No solo porque esos territorios han sido y siguen siendo escudriñados desde los aires por poderosos equipos que develan sus riquezas en la superficie y en las entrañas de la tierra y de los mares. Apropiación, porque enormes extensiones continentales ya están destinadas a generar soja, frutas, maderas, minerales, petróleo, gas, o constituyen inmensas reservas de aguas. En esas nuevas condiciones, el capital lleva a sus extremos la apropiación de tierras y fuentes de agua, expropiando y expulsando a pueblos y comunidades. Con ello agudiza la separación entre los productores y los medios de vida y los medios de producción (Osorio, 2016OSORIO, J. Teoría Marxista de la dependencia: história, fundamentos, debates y contribuciones. Buenos Aires: Ediciones UNGS, 2016., p. 294).

Nesse processo, o Estado ganha especial importância, uma vez que por meio de sua atuação (financiando, alterando legislações, disponibilizando subsídios etc.) “é possível ajudar o capital para que seu trânsito pelo ciclo seja mais fluido e favorável a suas necessidades” (Osorio, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 72). Daí que o Estado3 3 Para mais informações sobre o Estado dependente latino-americano, recomendamos a leitura de Silva (2019) e Bichir (2017). esteja no olho do furacão na conjuntura atual, uma vez que as disputas internas e externas pelo controle político significam facilitar ou dificultar o movimento de determinadas frações do capital.

Não por acaso, a América Latina vivenciou nos últimos anos uma conjuntura repleta de conflitos e rupturas políticas. O caso da Bolívia é emblemático nesse sentido. O país tem enormes reservas de lítio, mineral de interesse da indústria eletrônica, mas ao mesmo tempo vivenciou no começo do século XXI um avanço do movimento indígena e a chegada ao poder de um governo progressista que, entre outras medidas, nacionalizou recursos naturais, como os hidrocarbonetos. Além disso, a elaboração de uma nova constituição resultou na incorporação, dentro da legislação, de vários princípios indígenas nas políticas governamentais e nos benefícios socioassistenciais, refletindo a cosmovisão andina4 4 Há que se reforçar aqui que o próprio Estado Plurinacional Boliviano, mesmo com a volta do Movimento ao Socialismo (MAS) ao poder, depois da eleição do atual presidente Luís Arce, tem apostado na exploração do lítio. .

É nesse contexto de conflito entre interesses econômicos expansionistas e o avanço do movimento indígena e do Estado sobre a propriedade da terra que podemos entender o golpe de Estado de 2019, em que pari passu à volta da Bíblia ao Palácio Quemado, o governo de Janine Añez se aliou aos latifundiários das terras baixas do país, esforçando-se para neutralizar violentamente os movimentos indígenas, bem como somou elogios do capital estrangeiro - tal como o do bilionário Elon Musk.

Considerações finais

Cultivo para comer é o sagrado sustento do homem que foi feito do milho. Cultivo para negócio é a fome do homem que foi feito do milho (Asturias, 2022ASTURIAS, M. Á. Homens de milho. São Paulo: Pinard, 2022., p. 19)

A Teoria Marxista da Dependência foi especialmente potente ao evidenciar o caráter desigual da reprodução do capital em escala mundial. A partir dos seus fundamentos, no entanto, podemos identificar como essa desigualdade também se expressa, para além da questão social, no meio ambiente. Há impactos ecológicos que são universais, como o aquecimento global, mas há também uma série de outros impactos, mais imediatos, que são desigualmente distribuídos no espaço.

Diante disso, a categoria-padrão de reprodução do capital é uma alternativa teórica da TMD para qualificar as formas predominantes de reprodução do capital em determinado espaço e tempo, de modo a levar em conta tanto as determinações no nível da valorização do valor quanto da materialidade do valor de uso e do processo de trabalho.

A produção de valores de uso é sempre produção material, com base em condições materiais de produção. Condições essas que são em grande medida definidas pela natureza. A disponibilidade de recursos minerais é um exemplo especial dessa determinação. Nesse sentido, a ecologia não deve ser entendida, portanto, apenas num âmbito da totalidade do globo terrestre; é necessário pensar as particularidades existentes dentro dessa mesma totalidade. A categoria-padrão de reprodução do capital permite, portanto, evidenciar essas desigualdades e suas contradições.

De igual modo, o cotidiano é recheado de expressões singulares dramáticas da destruição da natureza e de desastres ambientais. Esses casos, contudo, não podem ser entendidos e enfrentados como simples casos isolados, como frequentemente o pensamento liberal o faz, tentando resolver a questão ambiental apenas pela via judicial, moral ou ética. Diante disso, a categoria-padrão de reprodução do capital permite compreender a questão ecológica em sua particularidade. Entende, desse modo, a expressão singular do caso específico, articulada com determinantes da totalidade da reprodução capitalista, e evidencia a disputa entre frações de capital e as demandas que cada uma delas tem sobre a atuação do Estado.

Quando afirmamos que o novo padrão de reprodução do capital exportador de especialização produtiva tem levado a América Latina - a partir de uma reconfiguração na divisão internacional do trabalho - a voltar a se especializar na produção de mercadorias de origem agropecuária e mineral, podemos perceber que, justamente no momento em que, contraditoriamente, se reivindicaram os “direitos da natureza”, a dependência latino-americana ingressou em uma nova fase de ataques mais dramáticos ao meio ambiente.

Desse modo, a Teoria Marxista da Dependência tem a contribuir com a ecologia marxista, na medida em que fornece um arsenal teórico-político potente, evidenciando, por meio da categoria-padrão de reprodução do capital, a objetividade da desigualdade da reprodução capitalista, permitindo assim que a luta ecológico-social seja compreendida também em sua particularidade.

Referências

  • ASTURIAS, M. Á. Homens de milho São Paulo: Pinard, 2022.
  • BARRETO, E. S. O capital na estufa: para a crítica econômica das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
  • GUDYNAS, E. Direitos da natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais. São Paulo: Elefante, 2019.
  • LUKÁCS, G. Estética: categorías psicológicas y filosóficas básicas de lo estético. Barcelona; Cidade do México: Grijalbo, 1967. v. 3.
  • LUZ, D. A. da; SILVA, M. C. da. Dos limites de uma ética biocêntrica abstrata: uma crítica marxista à obra “Direitos da Natureza” de Eduardo Gudynas. In: Anais do Colóquio Internacional Marx e o Marxismo 2023: democracia contra capitalismo? Renovando o materialismo histórico. Niterói, 2023.
  • MARINI, R. M. Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital. Cuadernos Políticos, n. 20, Ediciones Era, México, p. 18-39, abr./jun. 1979.
  • MARINI, R. M. La cuestión del Estado en las luchas de clases en América Latina. Cuaderno 44, Serie Avances de Investigación, Centro de Estudios Latinoamericanos, Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, México, 1980.
  • MARINI, R. M. América Latina ante la crisis mundial. II Congreso de los Economistas del Tercer Mundo La Habana, Cuba, 26-30 abr. 1981.
  • MARINI, R. M. Sobre el patrón de reproducción de capital en Chile. Cuadernos CIDAMO, n. 7, México, 1982.
  • MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180.
  • MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro II: O processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.
  • OSORIO, J. Dependência e superexploração. In: MARTINS, C. E.; VALENCIA, A. S. (org.). A América Latina e os desafios da globalização . Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Boitempo, 2009.
  • OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.
  • OSORIO, J. Teoría Marxista de la dependencia: história, fundamentos, debates y contribuciones. Buenos Aires: Ediciones UNGS, 2016.
  • SILVA, M. C. da. O Estado em seu labirinto: a particularidade do Estado na América Latina. 2019. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Centro Socioeconômico, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
  • SOUZA, N. A. Teoria Marxista das crises, padrão de reprodução e “ciclo longo”. In: ALMEIDA FILHO, N. (org.). Desenvolvimento e dependência: cátedra Ruy Mauro Marini. Brasília: Ipea, 2013.
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    Para uma crítica marxista dos limites de ética biocêntrica abstrata, recomendamos a leitura de Luz e Silva, 2023LUZ, D. A. da; SILVA, M. C. da. Dos limites de uma ética biocêntrica abstrata: uma crítica marxista à obra “Direitos da Natureza” de Eduardo Gudynas. In: Anais do Colóquio Internacional Marx e o Marxismo 2023: democracia contra capitalismo? Renovando o materialismo histórico. Niterói, 2023..
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    Em textos como Marini (1979MARINI, R. M. Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital. Cuadernos Políticos, n. 20, Ediciones Era, México, p. 18-39, abr./jun. 1979.), Marini (1980MARINI, R. M. La cuestión del Estado en las luchas de clases en América Latina. Cuaderno 44, Serie Avances de Investigación, Centro de Estudios Latinoamericanos, Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, México, 1980.) e Marini (1981MARINI, R. M. América Latina ante la crisis mundial. II Congreso de los Economistas del Tercer Mundo. La Habana, Cuba, 26-30 abr. 1981.), Ruy Mauro utiliza a expressão “padrão de reprodução do capital” quando discute temas como a mais-valia extraordinária, o Estado e a crise mundial sem, no entanto, aprofundar-se sobre o conteúdo teórico da categoria.
  • 3
    Para mais informações sobre o Estado dependente latino-americano, recomendamos a leitura de Silva (2019SILVA, M. C. da. O Estado em seu labirinto: a particularidade do Estado na América Latina. 2019. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Centro Socioeconômico, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.) e Bichir (2017).
  • 4
    Há que se reforçar aqui que o próprio Estado Plurinacional Boliviano, mesmo com a volta do Movimento ao Socialismo (MAS) ao poder, depois da eleição do atual presidente Luís Arce, tem apostado na exploração do lítio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2023
  • Aceito
    20 Out 2023
  • Corrigido
    19 Mar 2024
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