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Mundialização e dependência: contradições contemporâneas do capitalismo dependente no Brasil

Globalization and dependency: Contemporary contradictions of dependent capitalism in Brazil

Resumo:

Este artigo objetiva retomar as contribuições de Rui Mauro Marini para o pensamento crítico latino-americano. Apresentamos três temas candentes contemporâneos da realidade brasileira como expressões do capitalismo dependente: 1. O padrão de especialização produtiva e a reprimarização da economia brasileira; 2. A transferência de valor por meio das dívidas públicas;3. O aprofundamento da superexploração.

Palavras-chaves:
Capitalismo dependente; Superexploração; Dívida pública

Abstract:

This article aims to review Rui Mauro Marini’s contributions to Latin American critical thought. We present three burning contemporary themes in the Brazilian reality as expressions of dependent capitalism: 1. The pattern of productive specialization and the reprimarization of the Brazilian economy; 2. The transfer of value through public debts;3. The deepening of superexploitation

Keywords:
Dependent capitalismo; Overexploitation; Public debt

Introdução

Este artigo objetiva retomar as categorias desenvolvidas por Rui Mauro Marini, de fundamental contribuição para a compreensão e intervenção na realidade brasileira e latino-americana. Marini fez parte de uma geração pioneira na leitura crítica sobre o desenvolvimento capitalista latino-americano.

A Teoria Marxista da Dependência (TMD) constitui-se em um desdobramento da Teoria do Valor em Marx e da Teoria do Imperialismo em Lênin, as quais levam à compreensão particular da formação econômico-social das economias dependentes na dinâmica internacional do capital.

A TMD toma forma durante o pós-Segunda Guerra Mundial, com o início do processo de industrialização subordinada na América Latina, o qual se deu de forma desigual e combinada entre os países, mediado pelos interesses das potências imperialistas centrais.

Autores brasileiros e latino-americanos, ao longo das décadas de 1960 e 1970, dedicam-se a estudar essas contradições, entre os quais se destacaram os brasileiros Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos. Essa formulação teórica não só rompeu com os pressupostos desenvolvimentistas defendidos pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), como também procurou superar uma visão marxista dogmática, portanto não dialética e etapista, que classificava países, como o Brasil, que vivia um processo de industrialização, em um patamar semifeudal. Esses autores advogam em prol da construção de uma “nova esquerda”, inspirada nas lutas de seu tempo.

Após o Golpe Civil-Militar de 1964, esses intelectuais passaram a viver no exílio, no Chile, durante o período da Unidade Popular. Marini alinhou-se ao Movimento de Izquierda Revolucionária (MIR), inclusive se tornando membro de sua direção, que apostava na insurreição popular e no combate sem trégua contra a burguesia. Em 1973, com o advento do golpe militar de Augusto Pinochet no Chile, Marini segue seu exílio no México. Nesse período conturbado são escritas obras clássicas dessa escola, inclusive a Dialética da dependência, de 2005.

Posteriormente, já com a promulgação da Lei da Anistia, em 1979, no Brasil, Marini retorna ao país. Naquele momento, a TMD teve de enfrentar um “segundo exílio” acadêmico-intelectual em seu próprio país. As suas obras, amplamente conhecidas no exterior, enfrentaram um ambiente hostil em solo brasileiro, com a distorção patrocinada especialmente por Fernando Henrique Cardoso.

A primeira edição em português de Dialética da dependência foi publicada apenas em 2005, anos após a morte do autor. É no início do século XXI que a TMD retoma o seu lugar no debate acadêmico, com importantes contribuições ao estudo do Brasil e da América Latina.

Na referida obra, Marini (2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro, (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.) retoma os fundamentos da crítica da economia política e, com base neles, elabora leis tendenciais próprias das economias dependentes, desafiando pretensos dogmas do marxismo da época ao identificar, no fenômeno da transferência de valor desigual entre as economias dependentes às economias centrais, em favor das últimas, o que induz as elites locais a explorar ainda mais os trabalhadores da periferia, impondo-lhes a superexploração, o que expõe a contradição do papel exportador de matérias-primas, pois amplia a produtividade do trabalho nos países centrais, justamente com a mais intensa exploração dos trabalhadores dos países periféricos.

Diante desse diagnóstico, Marini desenvolveu uma série de categorias e, à medida que se aprofundou nas espirais de contradições do capitalismo dependente, inspirou novos pesquisadores no Brasil e no mundo para seguir no âmbito dessa investigação. Destacamos que a formulação dessa teoria emanava da prática política e dos processos reais de luta naquele período, portanto, a retomada crítica da “escola dependentista”, que atualmente vivemos e faz parte de um esforço intelectual coletivo de aprimoramento da análise e da intervenção política revolucionária no contexto do capitalismo dependente. Com base nisso, elencamos, a seguir, três contradições contemporâneas, a respeito da atualidade da dependência no Brasil.

1. O padrão de reprodução de especialização produtiva e o aprofundamento da dependência

Com o processo de mundialização do capital, aprofunda-se a contradição do imperialismo e da periferia, pois impõe-se uma nova divisão internacional do trabalho, sob os marcos neoliberais, denominada por Mandel (1985MANDEL, E. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1985.) de Capitalismo Tardio.

Segundo Carcanholo (2018CARCANHOLO, M. D. A crise do capitalismo dependente brasileiro. In: MACÁRIO, E. et al. (org.). Dimensões da crise brasileira: dependência, trabalho e fundo público. Fortaleza/Bauru: EDUECE - Canal 6 Projeto Editorial Práxis, 2018.), após a crise estrutural das décadas de 1960 e 1970, o capitalismo na sua centralidade busca reverter a queda da taxa de lucro, por meio de uma série de medidas. Os processos de mundialização criaram fontes de mais-valia extraordinárias, com o avanço científico e a fragmentação da produção em diferentes partes e componentes pelo mundo, com a finalidade de rebaixar os salários tanto no centro quanto na periferia. Com o avanço da liberalização financeira e das contrarreformas neoliberais, ocorreu o crescimento do trabalho precário, principalmente na periferia, e, mesmo em condições formais, incidiu a pressão do exército de reserva e da superexploração.

O capitalismo central consegue extrair valor produzido nas periferias por meio da transferência de valor, fenômeno descrito por Marini, em que ocorre a transição desigual entre as economias dependentes e as economias centrais, em favor das últimas, o que induz as elites locais a explorar ainda mais os trabalhadores da periferia. Deve-se ressaltar que, mesmo com a industrialização de boa parte dos países dependentes, persiste o subdesenvolvimento, pois prevalecem a dependência e o atraso tecnológico sem as condições de concorrência no mercado mundial com a mesma produtividade, como descreve o autor:

Transações entre nações que trocam distintas classes de mercadorias, como manufaturas e matérias-primas - o mero fato de que umas produzem bens que as outras não produzem, ou não o fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor, isto é, vender seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro, (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005., p. 11).

Luce (2018LUCE, M. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias - uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.) identifica como formas contemporâneas de transferência de valor, além da deterioração dos termos de troca no mercado mundial, as remessas de lucros e royalties de empresas estrangeiras, a renda diferencial da terra e os serviços da dívida pública. Destaca o autor que, desde as “independências formais” das metrópoles ibéricas, os países latino-americanos contraíram dívidas com o imperialismo britânico e, no século seguinte, foram explorados pelo imperialismo estadunidense. Esse sistema de dívida secular passou a ser importante instrumento de subordinação dos Estados e de transferência de valor às economias imperialistas exportadoras não apenas de produtos manufaturados, como também de capitais.

Por esse motivo, impõe-se, por meio da liberalização dos mercados, maior extração de riqueza das economias dependentes, não apenas pela transferência de valor por diferencial de produtividade, como também pelas dívidas públicas e remessas de lucros, juros e dividendos, mediante o investimento estrangeiro direto.

Segundo Nogueira (2021NOGUEIRA, C. dos S. Economia brasileira contemporânea: dependência e superexploração. Marília: Lutas Anticapital, 2021.), tais remessas de rendas ao exterior, portanto, intensificam a dependência econômica do Brasil, pois promovem a desacumulação da economia e, consequentemente, o país torna-se vulnerável ao dinamismo econômico do mercado mundial.

Dessa forma, com o desenvolvimento da mundialização, o excesso de capitais em busca de rentabilidade pelo mundo foi direcionado para empréstimos às economias dependentes. Tal fenômeno agrega um “novo anel” na espiral da condição de dependência das economias periféricas, que atualiza e valida os postulados de Marini (2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro, (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.) sob novas condições históricas, nas quais o capital, como modo de produção global, desigual e combinado, vive seu momento de hegemonia do capital fictício e parasitário.

A desregulamentação do mercado financeiro, nesse contexto, busca a livre circulação de mercadorias e capitais e a imposição de receituários econômicos nos quais os Estados nacionais devem submeter-se, para que sejam atrativos aos investidores e reverter altos juros. Transfere-se, dessa maneira, o valor produzido nas economias nacionais.

Inicia-se uma transição para um novo Padrão de Reprodução do Capital1 1 “A noção de padrão de reprodução do capital surge para dar conta das formas como o capital se reproduz em períodos históricos específicos e em espaços geo territoriais determinados” (Osório, 2012, p. 33). O autor periodiza na obra três principais padrões de reprodução na América Latina: 1. agro mineiro exportador, industrial e de especialização produtiva. - exportador de “especialização produtiva” (Osório, 2012OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: OSORIO, J. et al. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.) - com cada região do mundo, no âmbito das cadeias globais de produção, dedicando-se a produzir e exportar determinados tipos de valores de uso. Esse processo gera novas contradições particulares na centralidade, na periferia e em cada formação nacional particular.

Transferem-se as plantas industriais para novos territórios como China e Índia, enquanto boa parte da América Latina reprimarizou a sua economia, com base em commodities, enquanto, nas economias imperialistas, mantêm-se os centros de alta tecnologia, o mercado financeiro e o controle da redistribuição geográfica da produção global. O capital fictício passou a negociar as ações sobre lucros futuros dessas companhias transnacionais, que extraem matérias-primas nos países periféricos, instalam as fábricas, onde a legislação trabalhista é fragilizada, e contabilizam os lucros nas economias centrais.

Esse novo padrão de reprodução reafirma o caráter Desigual e Combinado (Trotsky, 1977TROTSKY, L. A história da Revolução Russa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.) do modo de produção capitalista, ou seja, a coexistência de elementos arcaicos e modernos, e os diferentes níveis de desenvolvimento das forças produtivas entre países, e internamente às nações. Reforça essa hipótese Gunder Frank (1967FRANK, A. G. El desarrollo del subdesarrollo. Pensamiento Crítico, Habana, n. 7, ago. 1967.), em sua tese do “Desenvolvimento do Subdesenvolvimento”, em que o subdesenvolvimento dos países dependentes é estruturalmente fundamental para o desenvolvimento das potências imperialistas. Não se trata, portanto, de atraso no desenvolvimento capitalista ou retrocesso nas forças produtivas, mas sim capitalismo sui generis (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro, (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.).

Embora haja uma retomada da centralidade da produção de matérias-primas, existem, sob novas condições históricas, impostas pela mundialização do capital, como a financeirização e industrialização do campo, os adventos dos agrotóxicos e da transgenia, com maior composição orgânica, ou seja, proporcionalmente com o uso de ainda menos força de trabalho, além do processamento dos produtos. Há cada vez menos camponeses proprietários e menos proletários rurais para compor o exército industrial de reserva nas cidades. É com o aprofundamento do êxodo rural que a maioria da população brasileira e mundial, ao longo da segunda metade do século XX, passa a ser majoritariamente urbana.

Caciatori (2021CACIATORI, E. G. La dependencia brasileña de la exportación de commodities en la globalización: horizontes para superar la dependencia y repensar el desarrollo. (Mestrado em Derechos Humanos) - Universidad Autónoma de San Luis Potosí, 2021.) identifica na centralidade da exportação de commodities, acompanhada da desindustrialização relativa, como um mecanismo fundamental de reprodução da hegemonia do capital fictício, globalizado e colonial de modo a aprofundar e atualizar o subdesenvolvimento e a dependência. Como as potências centrais detêm o monopólio da produção dos produtos manufaturados, detêm controle também sobre os preços das matérias-primas e sua oscilação na condição contemporânea de commodity, cujo preço é ancorado ao dólar e sua oscilação pode ter profundo impacto no preço de bens de consumo popular como alimentos e combustíveis.

Na virada para o século XXI, aprofunda-se a tendência identificada por Marini, que é a cisão do Ciclo do capital, portanto há menor interesse da burguesia no consumo de massas no mercado interno, uma vez que se trata do padrão de reprodução centrado na exportação. Isso gera uma cisão da produção com as necessidades sociais.

Diferentemente das economias centrais, onde a classe trabalhadora viveu o contexto de relativo Bem-estar social, com pleno emprego da força de trabalho e amplos investimentos em políticas públicas e “salários indiretos”, favorecendo o consumo de massas, nas economias dependentes, não houve interesse nessas garantias para os trabalhadores e o consumo tornou-se estratificado.

No governo ilegítimo de Michel Temer, foi instituída a política de Paridade de Preço de Importação (PPI) dos combustíveis, independentemente da produção e refinamento de derivados do petróleo no Brasil, aprofundando a dependência do mercado mundial. Com o encarecimento dos combustíveis, vinculado à moeda estrangeira, isso repercute em todas as mercadorias, uma vez que historicamente a classe dominante brasileira optou pela malha rodoviária, favorecendo as indústrias automobilística e petrolífera. No auge da pandemia de covid-19, a gasolina e o gás de cozinha sofreram reajuste acumulado de mais de 46% (ANP, 2021ANP. Anuário Estatístico Brasileiro do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis 2021. Rio de Janeiro: ANP, 2021. Disponível em: Disponível em: http://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/ publicacoes/anuario-estatistico/anuario-estatistico-2021 . Acesso em: 20 fev. 2023.
http://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-...
).

Esse fenômeno também atingiu o conjunto dos alimentos, tais como arroz, feijão ou café e carne vermelha, produtos da cesta básica de consumo da classe trabalhadora. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2023DIEESE. Em 2022, preço da cesta básica aumenta em todas as 17 capitais pesquisadas. Nota à Imprensa. In: DIEESE. [Site]. São Paulo, 2023. Disponível em: Disponível em: http://www.dieese. org.br/analisecestabasica/2022/202212cestabasica.pdf . Acesso em: 20 mar. 2023.
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), entre dezembro de 2020 e dezembro de 2021, auge da pandemia, houve um elevado encarecimento da cesta básica em todas as capitais do Brasil, a ponto de o trabalhador remunerado pelo salário mínimo comprometer, em dezembro de 2021, em média 58,91% de sua renda mensal com bens básicos. Mesmo produzidos em larga escala pelo agronegócio brasileiro, esses produtos são destinados ao mercado externo. Impulsionados pela elevação do dólar, reproduz-se dessa forma a transferência de valor para as economias centrais mediante intercâmbio desigual, com a gestão da economia em detrimento das necessidades da população trabalhadora.

2. A cisão entre produção e as necessidades sociais aliada ao sequestro do fundo público das necessidades sociais em favor da dívida pública

Essa cisão também se expressa na gestão do fundo público, redirecionado para a remuneração do Sistema da Dívida (Fattorelli et al., 2023FATTORELLI, M. L. et al. Gastos com a dívida consumiram 46,3% do orçamento federal em 2022. In: Auditoria cidadã da dívida. [Site]. 2023. Disponível em: Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/gastos-com-a-divida-consumiram-463-do-orcamento-federal-em-2022 . Acesso em: 20 fev. 2023.
https://auditoriacidada.org.br/conteudo/...
). Com a mundialização e financeirização do capital, acirram-se, de forma crescente, as desigualdades sociais, inclusive os direitos sociais, como transporte, educação, saúde e previdência social, assumem a dimensão de mercadorias de luxo, exclusivas para uma parcela minoritária da população. Simultaneamente, a precariedade é intencionalmente generalizada para a grande maioria dos trabalhadores, com a transmutação dos serviços públicos estatais e dos direitos sociais, de forma abrangente.

Nessa mesma perspectiva, os salários indiretos, fruto do excedente do trabalho extraído do Estado por meio do sistema tributário injusto e regressivo, que taxa pesadamente o consumo popular e pouco ou nada grandes fortunas, lucros e dividendos. Os direitos sociais tornam-se objetos de financeirização, com a privatização da Saúde e da Educação, a capitalização da Previdência e demais contrarreformas neoliberais.

Segundo Souza (2016SOUZA, C. S. Capitalismo dependente e políticas sociais na América Latina. Reificações da “questão social”: armadilhas do capital em tempos de crise estrutural. Argumentum, Vitória, v. 8, n.1, p. 48-60, jan./abr. 2016.), a Seguridade assume centralidade estratégica na luta de classes nas economias dependentes, pois a simples venda da força de trabalho não garante o mínimo de proteção social à grande parte dos trabalhadores. Além disso, dada a subordinação ao rentismo, o fundo público, nessas economias, é tomado para rolagem das dívidas públicas, o que impõe aos trabalhadores latino-americanos a inviabilidade de um projeto de bem-estar social nos marcos do capital, como ressalta a autora:

[...] impossibilidade objetiva da existência de políticas sociais que sequer se equiparem às políticas sociais desenvolvidas no centro, que, mesmo sendo limitadas pela inviabilidade de uma real democracia no âmbito do capitalismo, puderam se estruturar em outras bases que não a dependência e a superexploração (Souza, 2016SOUZA, C. S. Capitalismo dependente e políticas sociais na América Latina. Reificações da “questão social”: armadilhas do capital em tempos de crise estrutural. Argumentum, Vitória, v. 8, n.1, p. 48-60, jan./abr. 2016., p. 58).

Na América Latina, os sistemas de proteção social, além de mais tardios, são profundamente excludentes e aprofundam a miserabilidade da classe trabalhadora, que, além da superexploração, sofre a tributação regressiva. Ao tributar pesadamente os bens de consumo popular, penaliza os mais pobres, mesmo que eles não sejam beneficiados pelos direitos sociais, devido à generalização do trabalho informal e às privatizações.

No Brasil, mesmo com a positivação de uma série de direitos e políticas públicas durante a redemocratização ao final da década de 1980, impôs-se a agenda do ajuste fiscal permanente. A desregulamentação dos capitais provou-se uma alternativa para contornar a tendência de queda da taxa de lucro, conforme Brettas (2017BRETTAS, T. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no Brasil. Temporalis, Brasília, v. 17, n. 34, jul./dez. 2017.) explana:

O Estado dependente brasileiro, em sua fase neoliberal, acentua sua capacidade de tornar lucrativas as ações privadas na prestação de serviços públicos, apontando caminhos para enfrentar as crises de acumulação e de hegemonia. Contrarreformas foram implementadas neste período, de modo que as conquistas mencionadas acima não ofuscam a força do projeto burguês. Apesar das tensões, trata-se da emergência de mecanismos cada vez mais sofisticados de expropriação dos meios de subsistência da classe trabalhadora, os quais se combinam com a superexploração - alimentando a acumulação capitalista e a retirada de direitos (Brettas, 2017BRETTAS, T. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no Brasil. Temporalis, Brasília, v. 17, n. 34, jul./dez. 2017., p. 62).

Novamente, buscou-se a contrarrevolução preventiva, que marca a estratégia histórica da burguesia brasileira, para evitar que o país transite para uma experiência minimamente progressista. Pode-se dizer que, na conduta política brasileira do período recente, a Nova República é caracterizada por períodos de maior ou menor grau de adesão à agenda neoliberal. Ao longo desse período, vários governos recorrentemente buscaram artifícios para burlar a Constituição no que tange à garantia dos serviços públicos, atendendo ao receituário neoliberal de desresponsabilização do Estado. Observou-se, na realidade, uma política monetária, fiscal e tributária na contramão do que propõe a Constituição, por meio de leis e mecanismos infraconstitucionais, que seguiram as receitas de órgãos multilaterais como o FMI e o Banco Mundial, sempre buscando superávit fiscal para manter a rolagem da dívida pública.

Ganha centralidade o papel da dívida pública, que não se trata de um fenômeno novo. Marx (2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.) relata sua origem ainda no período medieval, em Gênova e Veneza, que, por meio da Holanda, se espalha por toda a Europa, como forte mecanismo de acumulação primitiva de capital e expropriação financeira em massa:

A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como com um toque de varinha mágica, ela infunde força criadora no dinheiro improdutivo e o transforma, assim, em capital (...). Como a dívida pública se respalda nas receitas estatais, que têm de cobrir os juros e demais pagamentos anuais etc., o moderno sistema tributário se converteu num complemento necessário do sistema de empréstimos públicos (...). O grande papel que a dívida pública e o sistema fiscal desempenham na capitalização da riqueza e na expropriação das massas (Marx, 2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 535-36).

O Estado, em nome do “bem comum”, que este avoca representar, aliena sua riqueza nacional, de posse coletiva por meio de impostos, para contrair dívidas, pelas quais são pagos juros aos credores. Marx (2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.) aponta que, com um “toque de mágica”, a dívida transforma dinheiro imobilizado, no tesouro nacional, em capital, que pode ser trocado por títulos facilmente transferíveis, de modo que, além de alavancar os empreendimentos industriais e coloniais, que dão origem ao atual sistema de bolsa de valores e aristocracia financeira.

Rosa Luxemburgo (1985LUXEMBURGO, R. Acumulação do capital . Rio de Janeiro: Zahar, 1970.), por sua vez, destaca os empréstimos internacionais como o caminho mais seguro para os velhos países capitalistas manterem os países jovens sob seu controle. O sistema de empréstimos, portanto, de dívidas públicas, permite ao capital conter a contradição entre a realização da mais-valia com a capitalização.

Na fase imperialista da acumulação do capital, os países atrasados passaram a industrializar-se e desenvolver o capitalismo, às custas dos quais o capital obteve sua mais-valia. Luxemburgo (1985LUXEMBURGO, R. Acumulação do capital . Rio de Janeiro: Zahar, 1970.) conclui que o papel dos empréstimos internacionais é um mecanismo fundamental de exploração dos povos, instrumento este de submissão dos países periféricos quanto aos interesses das potências capitalistas. Segundo Toussant (2022TOUSSANT, E. R. Luxemburgo e a dívida como instrumento do imperialismo. In: Comitê para a abolição das dívidas ilegítimas. [Site]. CADTM, 2022 Disponível em: Disponível em: http://www.cadtm.org/Rosa-Luxemburgo-e-a-divida-como-instrumento-do-imperialismo . Acesso em: 20 fev. 2023.
http://www.cadtm.org/Rosa-Luxemburgo-e-a...
), tal sistema de empréstimo foi fundamental para a emancipação dos Estados que adentram o Mercado Mundial, sob tutela das potências imperialistas.

Na crise do capital de 2008 e durante o auge da pandemia mundial, os governos passaram a emitir moedas para salvar o sistema bancário, com objetivo claro de reestruturação monetária e fiscal para garantir o lucro privado com garantia estatal, principalmente por títulos de dívida estatal e de fundos de pensão.

A dívida pública, ao longo da última década (2011 a 2022), segue sendo a maior despesa do Estado brasileiro, que corresponde a aproximadamente 40% da meta do orçamento executado da União, cumprindo papel fundamental de alavancagem de capital fictício nacional e estrangeiro, conforme série histórica ilustrada no Quadro 1:

Quadro 1.
Série histórica dos valores percentuais e nominais do orçamento executado da União destinados a juros e amortizações da dívida pública

Os recursos anteriormente arrolados comprovam uma política de Estado de remuneração do capital fictício em detrimento das necessidades sociais da classe trabalhadora, tanto em governos socialiberais quanto neoliberais, e seu montante vem crescendo nos últimos anos.

A dívida atingiu tal patamar especialmente devido ao crescimento das operações compromissadas, nas quais o Banco Central remunera diariamente “sobra de caixa” dos bancos com títulos da dívida, de modo a manter elevada artificialmente a taxa de juros, sob justificativa de “conter a inflação”. A consequência concreta dessa política é desincentivar o acesso ao crédito, principalmente para pessoas físicas e pequenos negócios, gravemente atingidos pela pandemia, responsáveis por gerar proporcionalmente mais empregos formais que os grandes conglomerados.

3. O aprofundamento da superexploração aliada ao patriarcado e ao colonialismo

Devido às características particulares das economias dependentes, a precariedade das condições de trabalho no Brasil e na América Latina não é fruto da reestruturação produtiva recente, mas sim daquela intensificada por ela. A superexploração é a “modalidade imperante” da acumulação capitalista nas economias dependentes e uma das principais particularidades da questão social no Brasil, com histórica desvalorização da força de trabalho, em termos de salário e direitos (Santos, 2012SANTOS, J. S. Questão social: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez, 2012.).

A categoria superexploração, proposta por Marini, é categoria central no estudo do capitalismo dependente, que opera como uma lei particular nessas economias como uma medida contratendencial frente à queda da taxa de lucro e à transferência do valor extraído em favor da centralidade do capital. Para contrarrestar o caráter desigual na concorrência do mercado externo e o atraso técnico na produtividade, a acumulação capitalista dependente lança mão do expediente da superexploração da força de trabalho.

A superexploração é melhor definida pela maior exploração da força física do trabalhador, em contraposição à exploração resultante do aumento de sua produtividade, e tende normalmente a se expressar no fato de que a força de trabalho se remunera abaixo de seu valor real (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro, (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005., p. 13).

É do desgaste mais acentuado da força de trabalho que o capital dependente busca compensar a diferença de produtividade das economias centrais no mercado mundial. Por esse motivo, a superexploração combina os seguintes expedientes, para além dos mecanismos de mais-valia absoluta e relativa presentes no capitalismo de forma geral:

  1. Prolongamento da jornada de trabalho;

  2. Intensificação da força de trabalho;

  3. Remuneração abaixo do valor.

Cabe ressaltar que não se trata apenas de um superlativo dos mecanismos de exploração denunciados por Marx em O Capital. Marini demonstra uma tendência das economias latino-americanas de se inserirem de maneira subordinada ao mercado mundial como países agroexportadores, portanto eles transferem sempre para os países imperialistas parte dos valores que criam internamente.

O valor de troca da força de trabalho é expresso em salário, ou seja, os bens necessários para sua reposição de seus meios de subsistência em condições normais, enquanto seu valor de uso representa a sua capacidade de produzir novos valores por meio do seu trabalho vivo sobre os meios de trabalho morto. Por isso há uma discrepância no valor da força de trabalho, o que impossibilita generalizar o pressuposto da força de trabalho comprada pelo seu valor, como detalha Osório:

[...] é o valor da força de trabalho que se remunera abaixo de seu valor, o que não ocorre em relação a outras mercadorias. Isso está relacionado à particularidade dessa mercadoria, que não apenas cria valor, que gera valorização, mas também permite, por meio de prolongamentos da jornada de trabalho, da intensificação do trabalho ou por salários abaixo do valor da força de trabalho, elevar a taxa e a massa de mais-valia, sem alterar a composição orgânica do capital, e tudo isso sem pressionar para baixo a taxa de lucro (Osório, 2018OSORIO, J. Sobre superexploração e capitalismo dependente. Cadernos CRH, Salvador, v. 31, n. 84, set./dez. 2018., p. 495).

Enquanto a elevação da produtividade e da composição orgânica aciona a tendência à queda da taxa de lucro, via de regra só resta ao capital dependente remunerar a força de trabalho abaixo do valor, característica fundamental dessa forma particular de capitalismo.

O prolongamento da jornada de trabalho é tempo alienado na produção de riqueza para outrem, extração de mais-valia absoluta.

A intensidade do trabalho, diferentemente da produtividade, é mensurada pelo desgaste físico e mental despendido durante a jornada de trabalho, o que leva ao desgaste prematuro da força de trabalho, com o esgotamento de sua capacidade laboral ou deterioração das condições de vida.

Valor da força de trabalho é mediado pela luta de classes, que estabelece um parâmetro histórico-moral, o qual pode ser traduzido por um conjunto de bens e serviços indispensáveis para a manutenção da vida do trabalhador e de sua família. Uma vez que os parâmetros de determinada correlação de forças não são cumpridos, há uma “invasão usurpadora do domínio do tempo de trabalho necessário” (Marx, 2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 388). Além de extrair o tempo de trabalho excedente, o capital apropria-se de parte do fundo de consumo e do fundo de vida do trabalhador (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro, (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.).

Essa perspectiva é corroborada no momento que mais-valia relativa, nesses parâmetros, assume a preponderância na acumulação capitalista, uma vez que se eleva a oferta mundial de alimentos produzidos nas economias periféricas, reduzindo o valor médio da força de trabalho nas economias centrais (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro, (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.).

Às economias dependentes, em especial as latino-americanas, é atribuído, pela divisão internacional do trabalho, o papel de abastecer as economias centrais com produtos primários, especialmente gêneros alimentícios, produzidos e barateados pelas economias dependentes, as quais provocam a desvalorização real da força de trabalho nos países centrais, portanto é fundamental deslocar o eixo de acumulação da mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro, (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.).

Nesse sentido, a TMD esclarece o papel nefasto que a dependência assume, não só para a classe trabalhadora dos países periféricos, mas também para os trabalhadores das economias centrais.

Há de se observar o caráter estrutural do racismo e do patriarcado nas formações econômico-sociais dependentes, em especial o Brasil, fundado no escravismo secular, cujas consequências repercutem até hoje na gênese e nas particularidades da Questão Social no Brasil, no âmbito da totalidade do modo de produção capitalista.

Segundo Ferreira e Fagundes (2021FERREIRA, C. C. C.; FAGUNDES, G. Dialética da questão social e a unidade classe, gênero e raça. Temporalis, v. 21, n. 42, p. 62-76, 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.22422/temporalis.2021v21n42p62-76 . Acesso em: 20 fev. 2023.
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), o capital lança mão do expediente do racismo estrutural e do heteropatriarcado para ampliar os processos de exploração e alienação da classe trabalhadora como um todo, como estratégia permanente do capital de ocultar o trabalho expropriado e rebaixar o preço da força de trabalho.

À medida que diminui o peso da indústria de transformação no Brasil, cresce o ramo de comércio e serviços, e as grandes cidades operam como se fosse a “grande fábrica”. Em igual medida, cresce o trabalho precário, informal e vinculado às plataformas digitais, com frágeis direitos.

Segundo dados recentes do IBGE (novembro de 2022), há um desemprego oficial de 8,9%, além de 39% de trabalhadores na condição de informalidade, ou seja, quase metade da classe trabalhadora não tem garantia de direitos trabalhistas e previdenciários. Estes somados exercem pressão na oferta do exército de reserva de força de trabalho sobre os trabalhadores formais de modo a rebaixar salários, piorar as condições de trabalho e fragilizar ainda mais a organização político-sindical.

Mesmo com o salário mínimo formal, aprovado para 2023, de 1.320 reais, muito aquém do salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE (2023DIEESE. Em 2022, preço da cesta básica aumenta em todas as 17 capitais pesquisadas. Nota à Imprensa. In: DIEESE. [Site]. São Paulo, 2023. Disponível em: Disponível em: http://www.dieese. org.br/analisecestabasica/2022/202212cestabasica.pdf . Acesso em: 20 mar. 2023.
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) de 6.641 reais, com uma discrepância entre o valor praticado para o valor histórico-moral da força de trabalho de quase 1 para 5.

A partir de um recorte de classe, gênero e raça, observa-se, segundo dados do IBGE (2022IBGE. Síntese de indicadores sociais, 2022. Brasília, IBGE, 2022. Disponível em: Disponível em: http://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9221-sintese-de-indicadores-Sociais.html . Acesso em: 20 fev. 2023.
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), que a maior parte da força de trabalho ativo é composta pela população negra (55% da população), sendo especialmente as mulheres negras que recebem os menores salários e são mais atingidas pelo desemprego e pela informalidade, conforme ilustra o Quadro 2.

Quadro 2.
Desigualdades de renda e condições de trabalho por classe, gênero e raça

No âmbito da jornada de trabalho (IBGE, 2022IBGE. Síntese de indicadores sociais, 2022. Brasília, IBGE, 2022. Disponível em: Disponível em: http://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9221-sintese-de-indicadores-Sociais.html . Acesso em: 20 fev. 2023.
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), 53% dos trabalhadores exercem jornada entre 40 e 44 horas semanais, dentro do limite legal, ainda que elevada quando comparada a padrões internacionais. 21% dos trabalhadores exercem jornada média superior a 44 horas semanais, cujo prolongamento eleva a taxa de exploração e compromete a integridade física e mental do trabalhador. Esse número aumenta para 25% entre homens brancos e 23% entre homens negros, e contrasta com 16% entre mulheres brancas e 15% entre mulheres negras. Por trás desses dados, desoculta-se a histórica sobrecarga das mulheres de trabalho não pago doméstico, submetido à dinâmica de reprodução do capital de ocultar a (super) exploração e o nivelamento para baixo do valor da força de trabalho.

A medida da quantidade de trabalho em determinado espaço de tempo detecta o desgaste físico e psíquico de quem o exerce. Marini (2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro, (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.) identifica justamente no adoecimento e nos acidentes de trabalho o indicador mais concreto para expressar essa condição. Segundo o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho (2022OBSERVATÓRIO DE SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO. Frequência de Notificações - CAT. 2022. Disponível em: Disponível em: https://smartlabbr.org/sst . Acesso em: 20 fev. 2023.
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), desenvolvido e mantido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) entre 2012 e 2021, foram registradas 6,2 milhões de Comunicações de Acidentes de Trabalho (CATs), e o INSS concedeu 2,5 milhões de benefícios previdenciários acidentários, incluindo auxílios-doença, aposentadorias por invalidez, pensões por morte e auxílios-acidente. Apenas em 2021, foram comunicados 571,8 mil acidentes e 2.487 óbitos associados ao trabalho, com aumento de 30% em relação a 2020.

Articulando esses dados empíricos do mundo do trabalho com a fundamentação teórica apresentada por Marini, observa-se, nas últimas décadas, o aprofundamento do neoliberalismo, o agravamento da dependência e da superexploração, especialmente após à implementação da Reforma Trabalhista (2017), e a generalização do trabalho sem vínculo jurídico-formal, portanto desprovido das conquistas da classe trabalhadora do último século, positivadas em legislação e políticas públicas de proteção social, especialmente a população negra e feminina.

Considerações finais

Segue vigente o desafio teórico proposto por Marini aos marxistas latino-americanos: estudar as formações sociais concretas da América Latina com o propósito de definir as determinações que estão na base da luta de classes e enfrentar a dinâmica do capitalismo dependente. As categorias apresentadas por Marini adquirem relevância e novas determinantes diante da realidade contemporânea.

O mais moderno mercado internacional coexiste com o mais arcaico extrativismo, assim como a mais moderna informática viabiliza plataforma de trabalho que condiciona ciclistas e motociclistas a jornadas laborais superiores a 12 horas diárias, típicas da primeira Revolução Industrial, além do deplorável episódio recente de trabalho análogo à escravidão no Sul do país.

O avanço das forças produtivas sob o jugo do Capital, em vez de garantir melhores condições de vida, leva à maior extração de mais-valor do trabalho.

As políticas de austeridade concretizam-se de forma desigual no mundo, com maior peso sobre as economias dependentes, que têm as dívidas públicas como principal meio de transferir valor ao centro imperialista. A desigualdade no desenvolvimento das relações capitalistas cria diferenciais de produtividade e concentração de renda e riqueza. A ofensiva do capital busca rebaixar a nível global o valor da força de trabalho, de modo que a superexploração se agrava e se generaliza. Eis a atualidade da questão social no capitalismo dependente, que aprofunda as desigualdades e as resistências. A retomada da especialização produtiva no setor primário reforça a hegemonia da fração burguesa do agronegócio, e mesmo sendo o Brasil campeão na exportação de carne e grão, há milhões de trabalhadores em insegurança alimentar. Aliado a isso, o capital fictício captura o fundo público, desidrata os serviços públicos e mantém a roda da dívida pública girando.

Atravessamos um período de agravamento do neoliberalismo com requintes autoritários, e o atual governo de conciliação de classes enfrenta dificuldade de reverter retrocessos e retomar direitos. Nosso desafio político é retomar e ampliar a mobilização e auto-organização da classe trabalhadora, que é diversa em termos de gênero, raça, condições e modos de vida. Apenas uma acurada compreensão da dinâmica concreta das relações sociais permitirá a massificação da luta pela superação da (super)exploração, da expropriação de direitos, da opressão e da condição de capitalismo dependente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2023
  • Aceito
    06 Set 2023
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