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Conservacionismo ambiental, assistência social e o atendimento a populações tradicionais

Environmental conservationism, social assistance in serving traditional populations

Resumo:

O artigo elucida o conservacionismo e a questão ambiental na Política de Assistência Social, em pesquisa de doutorado no Serviço Social. Objetiva identificar o trato às populações tradicionais ribeirinhas, que habitam unidades de conservação. A pesquisa exploratório-descritiva apresenta a prática profissional de assistentes sociais na Amazônia. Entre os resultados, aponta as limitações da Política Social com sua concepção impregnada pelo “fator amazônico”, desconsiderando a importância do bioma.

Palavras-chave:
Conservacionismo ambiental; Serviço Social; Política social

Abstract:

The article elucidates conservationism and the environmental issue in Social Assistance Policy, in PhD research in Social Work. It aims to identify the treatment of traditional riverine populations, who inhabit conservation units. The exploratory-descriptive research presents the professional practice of social workers in the Amazon. Among the results, it points out the limitations of Social Policy with its conception impregnated by the “Amazon factor”, disregarding the importance of the biome.

Keywords:
Environmental conservationism; Social Services; Social policy

1. Introdução

A partir da teoria crítica, a metodologia orientadora desta pesquisa se caracteriza como exploratório-descritiva que se valeu da etnografia com observação participante e a utilização adjunta da técnica de entrevistas narrativas como dispositivo basal de coleta de dados. Durante o trabalho de pesquisa, realizado no perímetro urbano dos municípios de Breves, Curralinho e Portel no Arquipélago do Marajó, no estado do Pará, onde estão os cinco menores índices de desenvolvimento humano do país, foi efetivada a coleta de dados com os profissionais da Política de Assistência Social sobre a implementação dessa política no atendimento à população moradora e/ou deslocada das áreas de conservação nos municípios elencados. Foram entrevistados 23 técnicos com diferentes formações, sendo: 16 assistentes sociais (dez formadas pela Faculdade de Serviço Social - FACSS-Breves/UFPA, e seis por diferentes instituições privadas); dois psicólogos; duas pedagogas; um advogado; uma teóloga; e um analista de sistema. Esses profissionais foram indicados pelas respectivas secretarias municipais de assistência social, atendendo à solicitação realizada pela pesquisadora. Os equipamentos visitados foram Centro de Referência de Assistência Social (Creas, dois), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS, cinco) e CadÚnico (três). Os profissionais entrevistados foram indicados pelas respectivas Secretarias Municipais de Assistência Social (Semtras), por já terem registrado atendimento a populações deslocadas de área de conservação. Entre os técnicos que participaram da pesquisa, 50% têm mais de cinco anos trabalhando na política de assistência e 8% têm mais de dez anos. Foram realizadas 11 perguntas para cada técnico entrevistado, com Termo de Livre Consentimento.

A hipótese levantada na pesquisa foi confirmada, demonstrando que entre as novas formas de acumulação capitalista estão proposições da economia verde, que passa a criar produtos para um mercado ecoambiental exógeno à região com o neoextrativismo, o qual negocia a venda de crédito de carbono (grileiros do carbono ou cowboy do carbono), adjetivando conceitos, sentidos e significados para a floresta, sem constituir base para transformação real da utilização dos recursos no território, com o objetivo de exaurir modos de vida, quando engendram processos de expropriação/despossessão, gerando deslocamento forçado e desreterritorialização das populações tradicionais, as quais são moradoras de unidades de conservação na Amazônia Marajoara Ocidental, no estado do Pará. Essas áreas destinadas para a conservação da floresta vêm registrando a saída das populações para o perímetro urbano de cidades de médio e grande porte (Breves, Belém, Manaus e Macapá) no Norte do Brasil.

Como resultado, houve demonstração efetiva que o deslocamento e a migração passam a ser provocados por um arcabouço de matriz “nova” do conservacionismo1 1 O conservacionismo surgiu, no fim do século XIX, no seio do ofício da engenharia florestal, quando houve interesse em explorar os recursos naturais de uma forma que não os esgotasse. Podemos ver aí, claramente, o núcleo ancestral do que chamamos hoje em dia de “desenvolvimento sustentável” (Little, 2004 p. 330). na floresta, estabelecido estruturalmente por forças desiguais entre o Estado brasileiro, os países do bloco Norte que investem neste modelo e as populações tradicionais ribeirinhas, habitantes geracionais de áreas que passam a ser de conservação na Amazônia Marajoara.

A pesquisa bibliográfica (Hazeu, 2015HAZEU, M. T. O não lugar do outro: sistemas migratórios e transformações sociais em Barcarena. 2015. 337f. Tese (Doutorado em Ciências Socioambientais) - Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2015.; Ramirez, 2014RAMÍREZ, S. M. C. Migração interna e deslocamento forçado: análise do padrão migratório colombiano do final do século XX e começo do século XXI. Belo Horizonte: UFMG; CEDEPLAR, 2014.; Magalhães, 2007MAGALHÃES, S. B. Lamento e dor: uma análise socioantropológica do deslocamento compulsório provocado pela construção de barragens. 2007. 278 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - École Doctorale Vivant et Sociétés, Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.) referencia o deslocamento forçado das populações como consequência de diferentes experiências, que vão desde o conflito armado entre grupos pertencentes ao agronegócio até o grande latifúndio, o tráfico de drogas, as obras de infraestrutura, como hidrelétricas e estradas planejadas pelo Estado, os desastres ambientais, e o conservacionismo e o protecionismo ambiental, utilizando a violência contra a população civil. É comum, no Brasil, ler esse argumento nas revisões de literatura, já que não existe no país regulação ou trato oficial para indivíduos e/ou populações deslocadas, só havendo regulação internacional em relação aos deslocamentos forçados. As contribuições acadêmicas (Aragon, 2013ARAGON, L. E. Amazônia: conhecer para desenvolver e conservar, cinco temas para um debate. São Paulo: Hucitec, 2013.; Corbin, 2007CORBIN, H. P. Brazilian migration to Guyana as a livelihood strategy: a case study approach. 2007. 117 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento) - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2007., 2009CORBIN, H. P. Migração Internacional e desenvolvimento: o caso da Guiana. In: ARAGON, L. E. (org.). Migração internacional na Pan-Amazônia. Belém: NAEA/UFPA, 2009. p. 163-185.) sobre o assunto ajudam a compreender os complexos processos de deslocamentos forçados internos, mas a elaboração bibliográfica construída na tese aponta que, avançando, os motivos são de ordem bem mais ampla e estrutural, que não reconhecem a existência das populações para efetivar expropriação de seus territórios para o “mercado verde”, onde são negociados os germoplasma da fauna e flora, o crédito de carbono e todo tipo de matéria orgânica que atenda ao neoextrativismo.

2. O conservacionismo, o racismo e a questão ambiental

Paradoxalmente, em nome da conservação, apesar da redemocratização no Brasil, a partir da Constituição de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. (Constituição [1988]). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988a. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 29 maio 2023.
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), também conhecida como “Constituição Cidadã” e “Constituição Verde e Ecológica”, o reconhecimento de direitos territoriais e socioculturais dos povos e das comunidades tradicionais continua enfrentando violências, ameaças e situação de insegurança. Embora tais processos (conservação e deslocamento forçado) sejam distintos, entre as consequências da preservação ambiental estão: violação de direitos étnicos; inviabilização do exercício do modo de vida tradicional e da organização comunitária; expulsão e etnocídio, que levam ao deslocamento.

As áreas naturais protegidas são implantadas em territórios ocupados por sociedades pré-industriais ou tradicionais. Segundo Diegues (1998DIEGUES, A. C. Ilhas e mares: simbolismo e imaginário. São Paulo: Hucitec, 1998.), essas populações locais se sentem usurpadas em seus direitos sobre a terra onde viveram seus antepassados, bem como ensinaram e aprenderam seu modo de vida, diferentemente das populações urbano-industriais.

A implantação de áreas para lazer, contemplação ou modernamente preservação ambiental é vista como roubo de território, sobre o qual as populações locais reivindicam direitos estáveis de acesso, controle ou uso da totalidade ou parte dos recursos existentes. As populações tradicionais questionam o mito que afirma serem as áreas protegidas espaços sem habitantes (Diegues, 2008aDIEGUES, A. C. A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas. São Paulo: USP, 2008a.). A representação simbólica desses espaços é construída a partir das relações de produção e reprodução social, as quais compõem a estrutura de uma sociedade, como: as relações de parentesco, de mútua ajuda, de comunidade etc. A retirada das terras dessas comunidades significa a impossibilidade de continuar existindo como grupo portador de determinada cultura e de uma relação específica com o mundo natural domesticado.

Por um lado, há o não reconhecimento da existência das populações que habitam áreas destinadas a receber o selo de unidade de conservação; por outro, o abandono pelo poder público e pela sociedade envolvente, negando-se condições de subsistência e projetos autônomos de etnodesenvolvimento. Essa política vem se configurando como estratégia consciente de vencer as comunidades pelo cansaço e pela desesperança.

Chamamos também a atenção para o método de expulsão lenta e gradual pela restrição do acesso aos meios de vida. Desta forma, se oculta a realidade da expulsão de comunidades de territórios tradicionalmente ocupados, e se dificulta a formação de um debate público amplo sobre a relação entre a conservação de territórios de grande importância ambiental e o futuro de comunidades que habitaram secularmente esses territórios sem prejuízo de sua integridade (Castro, 2015CASTRO, E. V. de. O recado da mata (apresentação). In: KOPENAWA, D.; BRUCE, A. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 11-41., p. 545).

Mais surpreendente é constatar a existência de “refugiados da conservação”, vítimas de racismo e injustiça ambiental e da política hegemônica, no campo ambiental, pautada pela fantasia moderna da natureza imaculada. Ilustra bem essa polêmica a política de implementação de unidades de conservação, condicionada pelo que Diegues (2008bDIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2008b.) denomina, em obra clássica das Ciências Sociais, “o mito moderno da natureza intocada” - instrumento ideológico que domina o imaginário dos sujeitos que lidam nessa seara, repercutindo em saberes e práticas e, atualmente, alimentada pela economia verde e por emergentes propostas de concessão de gestão de unidades de conservação à iniciativa privada. Todavia, o “mito moderno da natureza intocada” não resiste à análise rigorosa, na medida em que, primeiramente, torna contestável a existência de espaços selvagens que não tenham sido tocados pela mão humana, aferindo, cada vez mais, força.

Em nome da conservação, comunidades tradicionais têm vivido conflitos socioambientais. A política ambiental clássica se confronta com direitos sociais e étnico-culturais, protagonizando, por vezes, episódios de injustiça e de racismo ambiental. Predominam, no campo da ecologia ortodoxa, posições preservacionistas e/ou conservacionistas, as quais, preocupadas apenas com a tutela da biodiversidade, consideram a ação humana sempre negativa e perturbadora, ignorando a tese de que a intervenção humana estimulou o desenvolvimento da biodiversidade, como conhecemos hoje em dia.

Em conjuntura de neoliberalismo e Estado mínimo, os recursos naturais, apesar de estratégicos e inerentes à soberania nacional, não conseguem resistir ao assédio do capital privado. A proposta de institucionalização do que vem se denominando “economia verde” cumpre a função de internalizar e incorporar à lógica do sistema a questão ambiental, transformando a conservação em serviço pago e, portanto, em mercadoria.

As vertentes ecológicas (preservacionismo e conservacionismo), apregoadas pelo capital, acreditam poder conservar o planeta, mantendo sob sua égide o que ainda resta de espaço preservado e rico em biodiversidade, silenciando manifestações contrárias, tornando invisíveis as lutas e as reivindicações das populações humanas e não humanas que habitam esses espaços. Tal postura vem sendo contestada por pesquisas no campo da etnociência, as quais indicam que as comunidades tradicionais são potenciais aliadas na manutenção da riqueza ambiental, por meio da qual, em grande parte, são responsáveis, inventariando inúmeras contribuições, bem como valorizando e respeitando técnicas, modos de sentir, pensar e agir diferentes, ou seja, outras formas não predatórias de se relacionar com a natureza.

Para além da fragilidade da fábula e da imposição das práticas preservacionistas/conservacionistas, a política ambientalista clássica no Brasil aponta que o preservacionismo sempre esteve ligado a grandes organizações ambientalistas internacionais, e influenciou mais decididamente “a concepção e instalação de vários parques e outras unidades de conservação, principalmente a partir dos anos 1970” (Diegues, 2005DIEGUES, A. C. História e memória caiçara: Enciclopédia Caiçara. São Paulo: Hucitec; Nupaub, 2005. v. 4., p. 50), tratando-se de modelo limitado, sendo visto como etnocêntrico sob a perspectiva do respeito às comunidades tradicionais.

Dessa forma, a implementação de áreas protegidas ou unidades de conservação no Brasil importou o modelo estadunidense, incompatível com os trópicos e com a nossa realidade, em que grande parte da biodiversidade convive, de maneira harmônica ou, ao menos, funcionalmente, com a sociodiversidade de comunidades tradicionais que ocupam e protegem territórios ancestralmente.

A implantação de unidades de conservação, sem o respeito e a consideração às populações tradicionais, resultou em inúmeros danos e prejuízos, como: restrição em direitos civis (direito de ir e vir e de inviolabilidade de domicílio) e direitos sociais (educação, saúde, acessibilidade, transporte etc.); usurpação do direito ao território ocupado, agravada pelo fato de, em geral, não possuírem título de propriedade das áreas, o que lhes subtrai o direito ao recebimento de indenização por desapropriação, restando-lhes apenas serem realocadas, em virtude das vedações ambientais impostas. Os moradores são lançados a uma situação de subserviência às autoridades impostas pela sociedade hegemônica, forçando o deslocamento deles para viverem em condições de vulnerabilidade social no meio urbano, em virtude da opressão (limitação e criminalização de atividades tradicionais para sobrevivência, como a caça, a roça e a pesca) e da demora na definição da situação fundiária, engendrando enorme insegurança às comunidades, o que é conveniente ao Estado, o qual se exonera da obrigação de reassentamento e indenização em caso de saída dos moradores. O cotidiano passa a ser marcado pela restrição ou pelo desestímulo à preservação do patrimônio cultural imaterial, como as festas, os mutirões etc., não há incentivo a atividades de geração de renda. Passa a ser rotineira a destruição ambiental por ações de terceiros, como caçadores, pescadores industriais, cortadores de palmito, madeireiros, mineradores ilegais, encorajados pela retirada dos moradores tradicionais das áreas de conservação e pela ausência de fiscalização adequada; e, simultaneamente, abandono do Estado, que só se faz presente nas comunidades afetadas pelas regras da conservação para mostrar sua face punitiva, ocasionando danos morais individuais e coletivos aos grupos etnicamente diferenciados, em função das violações mencionadas (Diegues, 2008aDIEGUES, A. C. A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas. São Paulo: USP, 2008a.).

Grupos são desterrados como autênticos “refugiados da conservação”, sendo essa uma nova tipologia (Dowie, 2006DOWIE, M. Problems in paradise: how making new parks and wildlife preserves creates millions of conservation refugees around the world. SFGate, San Francisco, jun. 2006. Disponível em: Disponível em: https://www.sfgate.com/green/article/Problems-in-paradise-How-making-new-parks-and-2517162.php . Acesso em: 3 jun. 2023.
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) para explicar esse fenômeno que, infelizmente, não é tão novo. Os refugiados da conservação existem em cada continente, com exceção da Antártica, e, em todos os relatos, vivem de forma muito mais difícil que antes, banidos de territórios que ocuparam por centenas, às vezes milhares, de anos. Sobre o conceito de refugiados da conservação, assinala Dowie (2008DOWIE, M. Refugiados da conservação. In: DIEGUES, A. C. (org.). A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas . São Paulo: Edusp, 2008. p. 17-30.) que não se confunde com o de refugiados ambientais, que vivenciam situação de insustentabilidade e de risco (especialmente, para a vida humana), provocada por alterações do ecossistema (seca, desertificação, inundações, doenças etc.) - diferentemente dos refugiados da conservação, em que as violações de direitos e as vulnerabilidades resultam da retirada à força de comunidades de seu território ou da inviabilização de modos de vida tradicional para a suposta “conservação” da natureza, não em função de mudanças do ecossistema.

Vislumbra-se uma nova forma de colonialismo/imperialismo: um neocolonialismo verde-ambiental. Pautar a questão da categoria “refugiados da conservação” tem o mérito de dar visibilidade, ao menos política, a processos de extinção, expulsão e opressão de comunidades tradicionais vinculadas a áreas ambientalmente íntegras. As comunidades tradicionais, por sua vez, sempre demonstraram capacidade admirável de resistência e, cada vez mais, organizam-se para ensinar ao mundo sobre conservação ambiental, bem como modos mais justos e solidários de convivência humana.

Entre as abordagens de salvaguarda do planeta está o conservacionismo, tentando equalizar consumo e preservação em pontos do território e se valendo da estratégia de criação de áreas de conservação, de forma a seguir o modelo norte-americano. O arquipélago do Marajó no estado do Pará foi “classificado” como uma dessas áreas de preservação ambiental, fazendo com que o poder político atuasse para indicar o caminho de utilização dos recursos para o “desenvolvimento”, conforme apregoado por técnicos do Poder Executivo.

Dentro do Movimento Social Rural Brasileiro, desde os anos de 1970, trabalhadores rurais e extrativistas amazônicos deram início à resistência à ideia de as áreas de proteção ambiental serem espaços vazios. Assim, organizaram-se em sindicatos para serem reconhecidos como ocupantes das grandes áreas destinadas à conservação local. Em 1985, organizaram o Conselho Nacional dos Seringueiros, formando uma grande frente de discussão do conservacionismo no Brasil e formulando a proposta de reservas extrativistas, que ficou conhecida como a “Reforma Agrária dos Seringueiros” (Allegretti, 2002ALLEGRETTI, M. H. A construção social de políticas ambientais: Chico Mendes e o movimento dos seringueiros. 2002. Tese (Doutorado Desenvolvimento Sustentável) - Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, 2002.), para manter as populações tradicionais em áreas historicamente ocupadas, bem como seus territórios, e dirimir conflitos agrários.

Em 1987, os assentamentos extrativistas foram incorporados ao Programa Nacional de Reforma Agrária, atendendo ao Relatório Brundtland2 2 A comissão mundial sobre o meio ambiente, criada em 1983 pela Assembleia Geral da ONU, elaborou o Relatório Brundtland, em 1987, O nosso futuro comum, em que apresenta a impossibilidade de manutenção dos padrões de consumo e produção, referenciando a necessidade de estabelecimento de novas relações entre o meio ambiente e o ser humano, através do desenvolvimento sustentável que responda às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade de atendimento das futuras gerações. (ONU, 1987), que propôs o desenvolvimento sustentável, através da Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, levando os assentamentos extrativistas no Brasil, por meio do Decreto n. 98.897, em 1989, a fazer parte do Programa Nacional de Meio Ambiente. Diante das exigências internacionais e da pressão dos movimentos sociais da Amazônia, houve aproximação entre o movimento ambientalista preconizado pela elite intelectual do país e o movimento dos seringueiros que, juntos, passaram a compor a agenda de reivindicações, seguindo o movimento indígena em defesa de seus territórios.

Para o movimento social brasileiro, a expressão “ambiental” é limitada, vaga e genérica, sendo constituída como instrumento político e ideológico, apenas entre as décadas de 1980 e 1990, e passando a haver incentivo aos sistemas tradicionais de manejo da floresta utilizado pelas populações rurais que apresentam baixo ou nenhum impacto. As regras apresentadas na celebração da Convenção de Ramsar, com suas emendas - 1982, 1987 e 1993 - (São Paulo, 1997), e da Convenção da Biodiversidade (ONU, 1992) já demonstram a importância do reconhecimento das populações que vivem em área de conservação e a sua experiência, aliando conservação e subsistência, de modo a primar pelo conceito de sustentabilidade, consolidado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), informalmente conhecida como “Cimeira da Terra” ou “Eco-92”, no princípio 22 da Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento.

A ideia apregoada pela União Internacional para Conservação da Natureza, desde as décadas de 1960 e 1970, foi efetivada no IV Congresso Mundial sobre Parques Nacionais e Áreas Protegidas (Caracas, 1992), atribuindo papel fundamental e positivo para a ocupação e o manejo dos recursos, efetivados pelas populações tradicionais.

3. Populações tradicionais ribeirinhas e o território

O termo “populações tradicionais”, no Brasil, referia-se, até a Constituição de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. (Constituição [1988]). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988a. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 29 maio 2023.
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), às populações indígenas e a outros grupos locais, como pescadores artesanais, pequenos agricultores de subsistência, caiçaras, caipiras, camponeses, extrativistas e pantaneiros, que fazem uso direto dos recursos da natureza, com a utilização de tecnologia, ocasionando baixo impacto e dependendo diretamente dos recursos naturais, além de deterem etnoconhecimento ou conhecimento ecológico da região. As populações tradicionais que são vistas como produtoras da biodiversidade, segundo a conceituação de Diegues (1992DIEGUES, A. C. Populações litorâneas, movimentos sociais e ecossistemas da costa brasileira. São Paulo: USP, 1992., p. 182):

Comunidades tradicionais estão relacionadas com um tipo de organização econômica e social com reduzida acumulação de capital, não usando força de trabalho assalariado. Nelas produtores independentes estão envolvidos em atividades econômicas de pequena escala como agricultura e pesca, coleta e artesanato. Economicamente, portanto, essas comunidades se baseiam no uso de recursos naturais renováveis. Uma característica importante desse modo de produção mercantil (Petty mode of production) é o conhecimento que os produtores têm dos recursos naturais, seus ciclos biológicos, hábitos alimentares etc. Esse know-how tradicional, passado de geração em geração, é um instrumento importante para conservação.

É propalado, na literatura acumulada sobre a Amazônia, o patrimônio da sociedade global que precisa ser cuidado. O ponto de vista ecológico apregoa ser esse espaço um dos únicos que possuem recursos esgotáveis que ainda não foram explorados, gerando estabilização para o clima do planeta, uma das últimas reservas biológicas, um imenso depósito, bem como o entendimento dessa floresta como um dos últimos espaços do planeta para expansão das fronteiras de exploração de recursos naturais. Segundo Hurtienne (2009 apudFernandes; Moser, 2021FERNANDES, J. S. N.; MOSER, L. Comunidades tradicionais: a formação sócio-histórica na Amazônia e o (não) lugar das comunidades ribeirinhas. Katálysis, Florianópolis, v. 24, n. 3, p. 532-541, set./dez. 2021., p. 538), trata-se de um espaço econômico para a acumulação do capital nacional e internacional:

A expansão do capitalismo, na região, tem causado profundos danos ambientais, resultado de um extrativismo predatório, que é diferente do extrativismo dos povos indígenas ou dos caboclos, que geralmente é sustentável.

A compreensão de riqueza inexplorada legitima a ideia de atraso da região amazônica. Partindo desse entendimento, são notórios: o movimento de marginalização das populações tradicionais - em foco, neste artigo, as ribeirinhas -, no caminhar do “desenvolvimento da Amazônia”, a ausência do Estado e a carência de políticas públicas voltadas para esses grupos sociais que vivem a ribeirinidade.

O conceito de ribeirinidade aparece pela primeira vez a partir de debates e reflexões de Lourdes Gonçalves Furtado e Maria Cristina Maneschy, docentes do programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará, ao publicarem um artigo em coautoria inédito e intitulado Gens de mer et contraintes sociales: les pêcheurs côtiers de l´etat du Párá, nord du Brésil, em (2002), no qual as autoras aplicaram o conceito em suas realidades de análise, propondo o termo ribeirinidade como expressão de um modo de viver dos grupos sociais localizados à margem de mananciais aquáticos, de onde emanam os elementos materiais, imateriais e simbólicos que configuram o modo de vida desses grupos (Neto; Furtado, 2015NETO, F. R.; FURTADO, L. G. A ribeirinidade amazônica: algumas reflexões. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 24, p. 158-182, 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/97408 . Acesso em: 25 set. 2022.
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, p. 159).

O Estado é considerado, simultaneamente, um interlocutor e um adversário para os ribeirinhos. Por um lado, é visto como uma entidade que pode garantir direitos territoriais, demarcações de terras e acesso a outras políticas públicas específicas. Por outro, impõe mecanismos legais e de violência que matam os povos, por meio de suas políticas genocidas sobre os territórios.

Na busca pelo desenvolvimento e pela modernização, é inviabilizado o modo de vida dos que utilizam e vivem do recurso de forma comum (ribeirinhos, indígenas, quilombolas e demais povos amazônicos). Logo, os que chegam para explorar o recurso mascaram as expressões da questão social e os conflitos historicamente constituídos. A partir do entendimento de ribeirinidade, seja ela rural, seja urbana, fica nítido que a relação com o espaço é muito mais do que delimitação geográfica e a predação de recursos estabelecida pela lógica colonial que vem marcando essas populações por séculos, adensando as desigualdades sociais e os conflitos socioambientais.

O território utilizado como conceito basilar pelo Serviço Social e na Política Social, no Brasil, pós-Constituição de 1988, advém dos estudos do geógrafo brasileiro Milton Santos, que entende que não consiste apenas em um conjunto de sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas, mas que deve ser entendido como território usado, sendo que é o uso do território, e não o território em si, que faz dele objeto de análise social (Santos, 2007SANTOS, M. O dinheiro e o território. In: SANTOS, M.; BECKER, B. (org.). Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007. p. 13-21.; Santos; Silveira, 2006SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.).

Sinônimo de localização geográfica, o uso do território se dá pela dinâmica dos lugares. “O território é o fundamento do trabalho; o lugar da resistência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida” (Santos, 2007SANTOS, M. O dinheiro e o território. In: SANTOS, M.; BECKER, B. (org.). Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007. p. 13-21., p. 14).

O Estado se revela como um aparato necessário à reprodução capitalista, à medida que, através das suas ações, assegura a troca das mercadorias e a própria exploração da força de trabalho, sob a forma assalariada, segundo Mascaro (2013MASCARO, A. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.). Entre outras, a façanha do Estado se efetiva no processo de mutação das cadeias exploratórias e de contínua opressão devastadora nos territórios na Amazônia. Os planos nacionais de desenvolvimento, as estratégias governamentais visavam atender ao capital e a seu interesse externo, captando investimentos para o “desenvolvimento e a modernização” pretendida por estes para as cidades da Amazônia. Estabeleceram processos incoerentes e controversos, devido à logística adaptada à utilização de alta tecnologia, ao mesmo tempo que ampliaram a desigualdade, com índices de desenvolvimento humano baixíssimos, expandindo a marginalização e a exclusão.

Lembremo-nos de Iamamoto (2009IAMAMOTO, M. V. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação. 17. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2009.), quando afirma que essa contradição entre modernidade e desigualdade é fruto de traços históricos que são persistentes na formação social do Brasil. É o moderno sendo construído por meio do arcaico e, simultaneamente, transformando-o no contexto da globalização, adensando a questão social no país. Na região amazônica, as heranças do passado assombram o presente no cotidiano.

A abordagem política para o desenvolvimento instalado na Amazônia é inoculada, como afirma Mbembe (2016MBEMBE, A. Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Arte e Ensaios: Revista do PPGA/EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, n. 32, dez. 2016.), como “máquinas de guerra” de governos militares, com os Planos Nacionais de Desenvolvimento (I PND 1972-1974, II PND 1975-1979, III PND 1979-1985) e a ideia de “segurança nacional”. A Amazônia tem sido alvo de planejamentos e decisões externas sobre seu modelo de desenvolvimento econômico, social e cultural, ou seja, decisões que vêm “de fora para dentro do bioma”, com a submissão da burguesia nacional que, até os dias atuais, utiliza-se de estratégias pragmáticas de planejamento para homogeneizar e tentar controlar e/ou exterminar a diversidade de ambientes e culturas existentes na floresta.

Para explicar a inexistência de atendimento das demandas explicitadas pelas populações tradicionais ribeirinhas, a legislação pertinente ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (Brasil, 2005BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Sistema Único de Assistência Social - SUAS: Norma Operacional Básica NOB/SUAS: construindo as bases para a implantação do Sistema Único de Assistência Social. Brasília: MDS, 2005. Disponível em: Disponível em: https://www.itajuba.mg.gov.br/semas/2018/nob_suas_2005.pdf . Acesso em: 28 jun. 2023.
https://www.itajuba.mg.gov.br/semas/2018...
, 2012BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Resolução n. 33, de 12 de dezembro de 2012. Aprova a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS. Brasília: MDS, 2012. Disponível em: Disponível em: http://blog.mds.gov.br/redesuas/resolucao-no-33-de-12-de-dezembro-de-2012/ . Acesso em: 30 jun. 2023.
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) ainda se utiliza da expressão “fator amazônico”, como apontam os estudiosos da assistência, no estado do Pará, Campos (2013CAMPOS, E. B. As sociedades amazônicas e o SUAS. In: CRUS, J. F. da et al. (org.). Coletânea de artigos comemorativos dos 20 anos da Lei Orgânica de Assistência Social. Brasília: MDS, 2013. p. 31-51.) e Teixeira (2013TEIXEIRA, J. B. A Amazônia e a interface com o SUAS. In: CAMPOS, E. B. (org.). Fator amazônico e a interface com o Sistema Único de Assistência Social. Belém: ICSA; UFPA, 2013. p. 12-29.). Entendemos que a nomenclatura “fator amazônico” traz, em seu cerne, o conteúdo etnocêntrico e etnocida. Com diferentes, submúltiplos e até polissêmicos entendimentos, o fator Amazônia é ligado ao acordo equivocado de vazio geográfico, ausência e riscos naturais.

A ideia pragmática de reduzir toda a diversidade amazônica a um conjunto de fatores, componentes de um planejamento, apresenta-se, conforme os termos de Koga (2005KOGA, D. O território e suas múltiplas dimensões na política de assistência social. Cadernos de Estudos: Desenvolvimento Social em Debate, v. 2, n. supl., p. 17-21, 2005.), equivocadamente como um resgate da identidade de um território marcado por imensas diversidades e singularidade, as quais não podem ser subsumidas às dificuldades logísticas e operacionais de governos militares e neoliberais.

4. A política social, o Serviço Social e os ribeirinhos

A Política Nacional de Assistência Social é operacionalizada pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), que ofertam serviços prescritos pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), Acolhimento de Crianças e Adolescentes, Medidas Socioeducativas, CadÚnico, Benefício de Prestação Continuada (BPC), Bolsa Família, Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e Benefícios Eventuais. Esses serviços não alcançam os ribeirinhos que vivem em unidades de conservação no Marajó ocidental. Há total desconsideração do artigo 62 da Resolução n. 33 (Brasil, 2012BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Resolução n. 33, de 12 de dezembro de 2012. Aprova a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS. Brasília: MDS, 2012. Disponível em: Disponível em: http://blog.mds.gov.br/redesuas/resolucao-no-33-de-12-de-dezembro-de-2012/ . Acesso em: 30 jun. 2023.
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, n.p.), que reconhece: “o cofinanciamento dos serviços socioassistenciais de proteção social básica e especial, que deverá considerar fatores que elevam o custo dos serviços na Região Amazônica”.

Os dados aferidos pela pesquisa demonstram ausência no atendimento do usuário morador das unidades de conservação no Marajó ocidental, dentro do bioma amazônico, concentrando todos os equipamentos da política em perímetros urbanos. Em se tratando da população tradicional, a realidade tem maior grau de lacuna dessa política, conforme expõem dados coletados durante a pesquisa realizada nas unidades de conservação: Floresta Nacional de Caxiuanã, Resex Terra Grande Pracuúba e Resex Mapuá no Marajó.

Todos os interlocutores da pesquisa afirmaram participarem de diferentes programas de transferência de renda (Bolsa Família, BPC etc.), mas nenhum tinha conhecimento da relação existente entre a política de assistência social e o recurso recebido, o que demonstra o esvaziamento das proposições contidas na Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) e na Política de Assistência Social (PNAS) (Brasil, 1993BRASIL. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 dez. 1993. Disponível em: Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf . Acesso em: 28 jun. 2023.
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, 2004BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social (PNAS) . Brasília: MDS, 2004. Disponível em: Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf . Acesso em: 28 jun. 2023.
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), bem como do II Plano Decenal da Assistência Social (2016/2026BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. II Plano Decenal da Assistência Social 2016-2026. Brasília: MDS, 2016.).

A primeira grande dificuldade apontada pelos profissionais entrevistados é a identificação dos deslocados das áreas de conservação, pois, em todos os instrumentais utilizados pelo Suas durante o acolhimento, que é o primeiro procedimento realizado, não há perguntas que levem à identificação dessa situação, uma vez que o endereço solicitado é o atual no perímetro urbano ou rural. Esse tipo de situação (deslocamento) só é identificado se a entrevista for realizada com escuta qualificada, visto que, como a procura, em sua maioria, é pelo benefício eventual, pelo apoio nutricional (cesta básica) e pelo registro no cadastro único, após o atendimento das demandas, há o encerramento do serviço.

Todos os registros realizados de situação de deslocamento forçado de áreas de conservação são feitos em arquivos pessoais dos técnicos, não compondo os documentos oficiais. A partir desses registros “informais”, as demandas mais procuradas pelas populações deslocadas são: benefício eventual (cesta básica), registro no CadÚnico, documentação civil (certidão de nascimento e identidade), matrícula na escola para crianças, consulta médica, denúncia de violência sexual e violência doméstica e formação profissional.

Entre os motivos que mais aparecem para a saída das áreas de conservação, está a violação de direitos, como briga por terra, fome, falta de escola e falta de posto médico. Nos municípios onde foi realizada a pesquisa da tese, não há trabalho específico para atender à demanda pela política de assistência nas unidades de conservação. Os três municípios utilizam ação itinerante, que transporta de barco as equipes da Política de Assistência e da Política de Saúde até as áreas rurais (sem distinguir o que é unidade de conservação), levando ações de documentação, registro no CadÚnico, vacinação e atendimento ambulatorial pelo menos uma vez ao ano. Porém, os técnicos são unânimes ao informar que essas ações não alcançam a população, em sua grande parte devido a não haver reconhecimento por parte da Política de Assistência Social da singularidade das populações tradicionais ribeirinhas que habitam áreas de conservação no bioma Amazônia.

Quando perguntado sobre o que poderia ser feito para atender às populações que se deslocam das áreas de conservação, as respostas que mais apareceram foram: (i) fazer mapeamento para reconhecer que o problema existe, trazendo-o para a formalização da demanda; (ii) criar um espaço adequado para receber essa população, para verificação e atendimento de suas demandas na cidade; (iii) ter mais CRAS volantes para se fazer presente nessas áreas; (iv) estabelecer parcerias com a secretária de educação, para divulgação da Política de Assistência nas escolas que existem próximo e dentro das unidades de conservação; e (v) exigir que o sindicato rural e a universidade informem essas populações sobre seus direitos.

Além disso, durante os diálogos estabelecidos com os técnicos, foi evidenciado o desconhecimento dos Princípios de Trato dos Deslocados Internos, das especificidades dos moradores de unidade de conservação e da política específica para o atendimento e reconhecimento das populações ribeirinhas como estratégia de conservação, pois não é de conhecimento desses profissionais qualquer ação que tenha sido desenvolvida para melhorar ou fixar a população tradicional no território, pois é como se não existissem, é como se não pertencessem à espécie, conforme argumenta Fanon (1968FANON, F. Os condenados da terra. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968., p. 30):

Este mundo dividido em compartimentos, este mundo cindido em dois é habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto colonial reside em que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não logram nunca mascarar as realidades econômicas humanas. Quando se observa em sua imediaticidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. A espécie dirigente é antes de tudo a que vem de fora, a que não se parece com os autóctones, “os outros”.

O questionamento e a crítica efetivada pelos marxistas indicam como mitigadoras as reformas sociais, pois contribuem com a delonga do capitalismo, de forma contraprodutiva e inconcludente, com resultados desumanos, ameaçando a vida humana (Mandel, 1995MANDEL, E. O neoliberalismo e a alternativa socialista na atualidade. In: MAAR, W. L. (org.). Liberalismo e socialismo: velhos e novos paradigmas. São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1995. p. 210-225.). A contrapartida pelo mal-estar na vida em sociedade vem através da proteção social como medida protetiva de substância conflitiva, considerando que a chamada “redistribuição de renda” não se efetiva, além de levar à planificação de grandes recursos, os quais são gerenciados pelos organismos financeiros (bancos) sem realmente impactar em melhores condições de vida para os que conseguem permanecer nas unidades de conservação.

5. Considerações finais

O projeto proposto para a realização da pesquisa e a obtenção de conhecimento que balizasse a elaboração e a escrita da tese se constitui no trabalho realizado durante a docência no Marajó, que permitiu desvendar o discurso ideológico no cotidiano vivido na beira dos rios, na floresta, na convivência com populações tradicionais por 14 anos, obtendo os registros de vidas que foram expostas ao conservacionismo como se nada valessem. São famílias inteiras que foram deslocadas forçosamente pelo Estado brasileiro com expropriação de terras que se tornaram de conservação.

O regramento exposto nos documentos que regularizam as unidades de conservação e disciplinam seus planos de manejo não incorporam os costumes de vida das populações tradicionais com seu modo de produção e reprodução social, com todo o recurso sendo de utilização e preservação comum, incorporando diferentes gerações no mesmo território, o que tem levado à escassez e à fome, pois as delimitações dos terrenos não acionam a prática de extrativismo, caça e pesca utilizados tradicionalmente pelos moradores.

A trajetória das pessoas deslocadas foi descrita, narrada por pessoas, sobreviventes desta nova modalidade de destinação de terras na Amazônia, pontuando toda a tragédia dos anos de deslocamento forçado e, muitas vezes, nem se reconhecendo como vítima desse processo. Ao identificar as diferentes dinâmicas de deslocamento, ficam evidentes o sofrimento e o empobrecimento das pessoas, levando muitas delas à morte, e as que insistem em viver passam a ser usuárias das políticas sociais de Assistência Social (Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Benefícios Eventuais) que não identificam estes usuários com as suas especificidades, nem com suas demandas no Cadastro Único (CadÚnico), que tem entre outros objetivos o controle dos que recebem recursos do governo federal e sistematização das demandas para a formulação de políticas públicas.

Os deslocados e os moradores de unidades de conservação são registrados no CadÚnico como moradores de áreas rurais, sem especificação da sua singularidade. A Política Social não registra e, consequentemente, não reconhece as demandas que advêm das áreas onde o conservacionismo foi implantado no Marajó ocidental, conforme apresentado e documentado na tese.

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  • 1
    O conservacionismo surgiu, no fim do século XIX, no seio do ofício da engenharia florestal, quando houve interesse em explorar os recursos naturais de uma forma que não os esgotasse. Podemos ver aí, claramente, o núcleo ancestral do que chamamos hoje em dia de “desenvolvimento sustentável” (Little, 2004LITTLE, P. E. Ambientalismo e Amazônia: encontros e desencontros. In: BURSZTYN, M. (org.). Amazônia: cenas e cenários. Brasília: Editora UnB, 2004. p. 321-344. p. 330).
  • 2
    A comissão mundial sobre o meio ambiente, criada em 1983 pela Assembleia Geral da ONU, elaborou o Relatório Brundtland, em 1987, O nosso futuro comum, em que apresenta a impossibilidade de manutenção dos padrões de consumo e produção, referenciando a necessidade de estabelecimento de novas relações entre o meio ambiente e o ser humano, através do desenvolvimento sustentável que responda às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade de atendimento das futuras gerações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2024
  • Aceito
    03 Abr 2024
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