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Questões éticas na pesquisa de enfermagem subsidiadas pelo método audiovisual

Cuestiones éticas en la investigación de enfermería auxiliada por el método audiovisual

Ethical questions in the research of nursing subsidized for audiovisual method

Resumos

O artigo trata da articulação de questões éticas com o método audiovisual na pesquisa de Enfermagem, com o propósito de analisar as dimensões éticas e legais da pesquisa sobre os gestos no cuidado de enfermagem, envolvendo imagens visuais dos sujeitos envolvidos e destacando os aspectos da privacidade, a proteção da imagem, o sigilo e o anonimato.

Audiovisual; Ética; Pesquisa em enfermagem


El artículo trata de la articulación de cuestiones éticas con el método audiovisual en la investigación de Enfermería con el propósito de analizar las dimensiones éticas y legales de la investigación sobre los gestos en el cuidado de Enfermería involucrando las imágenes visuales de los sujetos envueltos destacando los aspectos de la privacidad, la protección de la imagen, el sigilo y el anonimato.

Audiovisual; Ética; Investigación en enfermería


The article deals with the juncture of ethical questions with the audiovisual method in Nursing research. Its intention is to analyze the ethical and legal dimensions of research concerning the gestures in nursing care involving visual images of the citizens involved, detaching the aspects of privacy, protection of one's image, secrecy and anonymity.

Audiovisual; Ethics; Research nursing


RELATO DE EXPERIÊNCIA

Questões éticas na pesquisa de enfermagem subsidiadas pelo método audiovisual

Ethical questions in the research of nursing subsidized for audiovisual method

Cuestiones éticas en la investigación de enfermería auxiliada por el método audiovisual

Lina Márcia M. BerardinelliI; Mauro Leonardo S. Caldeira dos SantosII

IProf. Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da FENF/UERJ. Doutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ. Membro do Grupo de Ensino, Pesquisa, Assistência e Cuidado Humano em Saúde/ DEMC/FENF/UERJ

IIProf. Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica pelaUFF. Doutor em Filosofia da Enfermagem pela UFSC

Endereço Endereço: Lina Márcia M. Berardinelli Av. Boulevard 28 de Setembro 157, 7º andar. 20551-030 - Rio de Janeiro, RJ E-mail: lmb@uol.com.br

RESUMO

O artigo trata da articulação de questões éticas com o método audiovisual na pesquisa de Enfermagem, com o propósito de analisar as dimensões éticas e legais da pesquisa sobre os gestos no cuidado de enfermagem, envolvendo imagens visuais dos sujeitos envolvidos e destacando os aspectos da privacidade, a proteção da imagem, o sigilo e o anonimato.

Palavras-chave: Audiovisual. Ética. Pesquisa em enfermagem.

ABSTRACT

The article deals with the juncture of ethical questions with the audiovisual method in Nursing research. Its intention is to analyze the ethical and legal dimensions of research concerning the gestures in nursing care involving visual images of the citizens involved, detaching the aspects of privacy, protection of one's image, secrecy and anonymity.

Keywords: Audiovisual. Ethics. Research nursing.

RESUMEN

El artículo trata de la articulación de cuestiones éticas con el método audiovisual en la investigación de Enfermería con el propósito de analizar las dimensiones éticas y legales de la investigación sobre los gestos en el cuidado de Enfermería involucrando las imágenes visuales de los sujetos envueltos destacando los aspectos de la privacidad, la protección de la imagen, el sigilo y el anonimato.

Palabras clave: Audiovisual. Ética. Investigación en enfermería.

INTRODUÇÃO

A realização de uma pesquisa1 cujo objeto de estudo abordou os gestos de cuidado em Enfermagem com ênfase em seu movimento cotidiano, subsidiada pelo método audiovisual, remeteu-nos a pensar nas peculiaridades dos princípios éticos fundamentados nas diretrizes sobre pesquisas que envolvem seres humanos, segundo as exigências da resolução CNS 196/96, baseado no Código de Nuremberg e da Declaração de Helsinque, entre outros.2

Os conflitos existentes que vão da elaboração do projeto, da habilidade do pesquisador às atividades do trabalho de campo com a câmera, conjugados com as bases teóricas, metodológicas, filosóficas e legais, além do rigor científico, contribuem para a superação dos desafios que o pesquisador enfrenta ao selecionar seres humanos como sujeitos de pesquisa, tendo como elemento provocador, a imagem visual. Sendo assim, se a resolução CNS 196/96 adota no seu âmbito a prevenção de procedimentos que asseguram a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem, o sigilo, o anonimato, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou comunidades,2 de que maneira pode-se realizar e aprofundar os estudos respectivos ao cuidar através de imagens, sem infringirmos esse código? Ou ainda, de que maneira os pesquisadores de enfermagem, poderão amenizar os riscos dos sujeitos envolvidos, protegendo-os, tratando-os com dignidade, respeitando-os em sua autonomia e defendendo-os em suas vulnerabilidades, utilizando o método audiovisual?

Diante das considerações em foco, a nossa intenção é compartilhar a experiência da pesquisa sobre os gestos de cuidado em diferentes registros de imagens, trazendo à tona as dimensões éticas e legais dessa investigação e contribuir para que outros pesquisadores interessados no conhecimento alusivo a esse estudo, enfrentem o desafio da pesquisa subsidiada pelo audiovisual, pois se trata de um método muito fecundo para coleta e tratamento das informações e possibilidades de benefícios aos profissionais e clientes envolvidos, além da aproximação, troca e retorno imediato às pessoas filmadas e entrevistadas.

Como eixo norteador do presente artigo, delineamos as dimensões éticas e legais da pesquisa envolvendo as imagens dos sujeitos participantes, discutindo os aspectos da confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem, o sigilo e o anonimato baseando-se num estudo eminentemente com imagens, com finalidade de compartilhar experiências e saberes com os pesquisadores de enfermagem que se interessam pelo estudo em questão.

A IMAGEM EM MOVIMENTO

A intenção da utilização da imagem em movimento na pesquisa sobre os gestos no cuidado de enfermagem foi de buscar novos instrumentos teórico-práticos de áreas de conhecimentos convergentes, para apreender, dar sustentação e análise ao estudo de característica interdisciplinar. Além disso, recorrer a outros modos de investigar o cuidar de enfermagem, para que pudéssemos refletir e analisar com mais profundidade o dinamismo desse fenômeno que constitui o cerne do saber e do fazer em Enfermagem. Através de leituras, conversa informal com especialistas e observação de filmes clássicos e etnográficos, identificamos que, na imagem em movimento, há recursos preciosos para revelar o processo de cuidado em toda sua complexa amplitude.

A imagem em movimento serviu de instrumento de mediação, que levou a realidade até o público, despertou vestígios de experiências anteriores de cuidar de clientes hospitalizados, mobilizou sentimentos e emoções, gerou idéias e pensamentos. Cada gesto ou expressão fisionômica conferia ritmo à multiplici-dade de sensações que os enfermeiros imprimiam na tela, com sua prática, proporcionando condições para que focalizássemos o cuidado a partir de sua realidade mais concreta e visível.

Entendemos que a maneira mais indicada para registro de dados do objeto da investigação seria a mediação do recurso audiovisual, uma vez que as imagens em movimento permitem registrar, examinar e analisar de maneira privilegiada os gestos na sua duração e ritmo, na relação com o espaço e tempo, em interação com a fala, nos permitindo ver, rever, constatar e reter o que, muitas vezes, passa desapercebido.

A opção por este tipo de pesquisa foi desafiadora, por sua característica de novidade em nosso meio; por demandar particular cuidado em sua operacionalização e nas demais etapas que uma investigação cientifica requer. Porém, a positividade da mesma, rica de coleta e tratamento das informações, possibilitou uma troca e retorno imediato aos participantes filmados e entrevistados, como também, aumentou nosso instrumental de observação, registro e entendimento através da imagem, que se constrói quando os enfermeiros se preparam para cuidar e/ou estão cuidando, em íntima relação com a clientela.

DOS CONFLITOS INICIAIS DA PESQUISA COM A IMAGEM À APLICABILIDADE DOS PRECEITOS ÉTICOS LEGAIS

No início de qualquer pesquisa, seja ela com imagens ou não, o pesquisador deve previamente começar por descrever, no papel, o seu projeto de pesquisa, pensando em todos os detalhes, principalmente nas particularidades que envolvem os aspectos éticos de uma pesquisa. É justamente nesse momento que aparecem os conflitos iniciais da pesquisa mediada por imagens.

No momento de elaboração do projeto, esse processo se torna muitas vezes contraditório com as idéias que o pesquisador pretende colocar em prática para descobrir aquilo que nem ele, nem a comunidade científica conhecem (daí a razão da pesquisa). Já na fase em que o projeto se encontra estruturado para ser examinado por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), capaz de recusá-lo, é que poderão surgir todas as arbitrariedades, todas as manipulações e censuras em relação às idéias ali depositadas. Muitas vezes o pesquisador fica submetido a uma comissão de pessoas de outras áreas de conhecimento, o que acaba criando barreiras eficazes contra a inovação, pois toda idéia inovadora causa um olhar de desconfiança e até mesmo de descrédito, podendo encontrar um elemento do Comitê que levante argumentos lógicos ou éticos, favorecendo o mais simples a recusa do projeto.

Isso faz com que o pesquisador abandone a sua idéia original, para percorrer caminhos mais triviais, porém, mais de acordo com as regras pré-estabelecidas, seja por receio dos obstáculos que porventura pode encontrar com o uso das imagens, ou mesmo por não se sentir seguro com o eixo teórico-metodológico para interpretar as fontes documentais (Leis, Normas, Códigos, etc.) que constituem os aspectos éticos. Para isso, destacamos algumas informações que consideramos importantes antes de submeter o projeto ao Comitê de Ética, evitando que o mesmo volte para cumprir as exigências solicitadas pelos membros do Comitê.

Na elaboração do projeto subsidiado por imagens, o texto deve apresentar, além da estrutura básica, esclarecimento detalhado dos aspectos éticos-legais relativos ao projeto. Os essenciais são a adequada avaliação de risco-benefício para os participantes e a instituição envolvida, a carta de informação institucional, a carta de informação e de consentimento livre e esclarecido aos participantes, às chefias dos serviços alvo da investigação e a garantia da preservação da privacidade. A avaliação da relação risco-benefício deve ser feita utilizando dados internacionais e locais. A forma de obtenção do consentimento informado deve ser escrita e o modelo do termo de consentimento informado que será utilizado deve ser anexado ao projeto. Há também a necessidade de destacar no termo de consentimento, que as imagens captadas no campo da pesquisa serão veiculadas entre os profissionais da saúde e a comunidade científica da categoria.

Por outro lado, também deve-se levar em consideração a diferença existente entre anonimato e confidencialidade, já que no anonimato o pesquisador, freqüentemente, é incapaz de estabelecer uma conexão entre os dados e o individuo, e na confidencialidade geralmente o pesquisador estabelece conexão entre ambos, porém tem o compromisso de não revelá-los.3 Nesse sentido, a pesquisa subsidiada pelo audiovisual deve assegurar as peculiaridades dos princípios éticos de respeito ao campo e aos direitos de todos os participantes da pesquisa. Assim, procurando relatar a nossa experiência, cujo objeto de estudo investigou os gestos de cuidado em Enfermagem com ênfase em seu movimento cotidiano, procuramos mostrar em planos* * Plano: trecho de um filme onde não ocorre interrupção ou corte. Durante uma filmagem, o plano é definido pelo trecho compreendido entre o início e o final do disparo da câmera. o tempo utilizado pela equipe de enfermagem, ao cuidar de um cliente, e toda a complexidade que envolve esse ato, com uma sucessão de acontecimentos, seguindo os princípios de escolha técnica de registro da imagem.

Isso, para que pudéssemos captar todo o ritmo das ações, o movimento corporal e a gestualidade dos enfermeiros, no momento exato em que interagiam com o cliente. Levando em consideração o alerta de que "quando um ritual comporta um grande número de ações simultâneas, uns certos números de gestos podem parecer sem interesse, enquanto que outros parecem mais importantes, ora, na análise das imagens percebe-se que entre esses gestos, é o mais inaparente, o mais discreto, que é o mais importante." 4: 429

Seguindo os passos para a realização dessas imagens, solicitamos autorização junto à direção do Hospital, às chefias de unidades, aos clientes e seus familiares, aos participantes que foram convidados e manifestaram-se favoráveis em ceder suas imagens e a participar daquela investigação. A carta de informação da pesquisa e de consentimento livre e esclarecido foi lida para cada participante e, depois, essa mesma carta foi entregue para que eles pudessem se interar melhor daquilo que eles estariam participando. Em seguida, as autorizações foram coletadas por escrito.

A recomendação primeira5 estabelece que as imagens sejam feitas a partir do que os participantes considerarem digno de ser filmado. Por isso, o pesquisador deve observar os seguintes aspectos: "tratar com respeito cada participante, o campo da pesquisa e a instituição; evitar mentiras ou enganar os participantes, nem registrar conversas ou imagens com gravadores e câmeras escondidas". Ao explicar a carta de informação e o consentimento livre e esclarecido aos sujeitos da pesquisa deve ser claro e explícito com todos os intervenientes relativamente aos termos do acordo e deve respeitá-lo até a conclusão do estudo; manter a fidelidade aos dados que obtêm, sem inventar ou distorcer os mesmos. Deixar claro que os participantes envolvidos podem desistir de participar da pesquisa, como podem ver suas imagens antes da edição do vídeo, tendo a oportunidade de escolher as melhores imagens ou cenas a serem divulgadas.

O estudo em foco, desde o início, seguiu as normas de pesquisas em seres humanos definidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, segundo a Resolução 196/96, respeitando o rigor da pesquisa científica e atendendo às exigências éticas e científicas fundamentais, "do consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvos e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (autonomia); ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência), comprometendo-se com os máximos benefícios e o mínimo de danos e riscos; garantia de que os danos previsíveis serão evitados (não maleficência); relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária (justiça e eqüidade)." 6:22

A entrada em campo somente aconteceu, após todos os procedimentos éticos serem legalizados e liberados, assim como as cartas de informação e de autorização dos participantes da pesquisa e da Instituição terem sido devidamente autorizadas e assinadas.

O AUDIOVISUAL E A ESCOLHA ÉTICA DE REGISTRO DAS IMAGENS

Através de uma seqüência cinematográfica em que o esquimó Nanook caça a foca, André Bazin** ** André Bazin é ensaísta, cineasta, teórico e influente crítico de cinema das décadas de 40 e 50. Foi sem dúvida a voz mais importante e inteligente a defender uma teoria e uma tradição cinematográficas baseadas no poder das imagens mecanicamente registradas e não no poder aprendido do controle artístico sobre tais imagens. , conduziu a análise do filme afirmando que o que deve ser respeitado é a unidade espacial do acontecimento, no momento em que a ruptura da cena transformaria a realidade em sua mera representação imaginária. Essa forma de mostrar a realidade acontece com os documentários exclusivamente didáticos, cujo propósito não é a representação, mas a explicação do acontecimento. Assim, o cineasta conseguiu mostrar a relação entre o homem e o animal, constatando "a amplitude real da espera" 7: 69 como também, constatou o poder da imagem cinematográfica, no sentido de preservar a autenticidade da duração, de trazer para a imagem a espessura de um instante vivido. Quanto à cena citada, ele acrescenta que "a câmera não pode ver tudo ao mesmo tempo, mas do que escolhe ver, ela se esforça ao menos para não perder nada."7 O entendimento de Bazin em relação à câmera traduz a pertinência a um sistema de produção de imagens.

O referencial teórico7 sustentou a reflexão e a discussão sobre o audiovisual e a escolha ética de registro das imagens no campo da pesquisa no que concerne à temporalidade do fenômeno do cuidar em Enfermagem. De acordo com o registro das imagens, deve haver a unidade da imagem, no tempo e no espaço.7 Esses elementos constituem referenciais importantes para captura das imagens do cuidado de enfermagem. Como exemplo, podemos citar a amplitude real da espera para realização de um procedimento, o tempo utilizado para cuidar de um cliente e a interação enfermeiros e clientes.

Com esses fundamentos, planejamos e realizamos o registro do cotidiano dos enfermeiros e suas equipes, com as nuanças e aparatos necessários, o que, por motivos de ordem metodológica, demandou respeito ao tempo real em que os fenômenos e os processos do ato de cuidar se desenvolviam. Ao adotar esse procedimento, levamos em consideração que é preciso evitar que o olhar fragmente o mundo; ao contrário, cumpre saber observá-lo de forma global, na sua duração.7 Segundo essa postura teórica, somente assim será possível alcançar a intuição mais funda do que cada fenômeno ou vivência contém de essencial.

Nesse caso, é preciso não apenas ver, mas registrar para enxergar o que ocorre quando a equipe de enfermagem cuida de outro ser humano. Dessa forma, captamos o que há no amplo espectro dos limites das ricas e nunca repetidas relações que se estabelecem entre enfermeira e cliente, no processo de cuidado. Esses procedimentos metodológicos nos concedem o privilégio de atuar como testemunhas diretas dos fenômenos eleitos como objeto da investigação.

É bom lembrar que, além disso, o pesquisador precisa imbuir-se antes de qualquer situação, de disposição para realizar um trabalho de campo. Com esse propósito, necessita de boa dose de paciência, respeitando o tempo necessário de espera para a captura das imagens e observação constante das modificações do ambiente, conhecendo o local, os acontecimentos que ocorrem no ambiente, as pessoas, e estar familiarizado a ponto de as pessoas, se acostumarem com a presença da câmera naquele local.

O procedimento ético com a câmera é transformar a ação de filmar o mais próximo da normalidade do ambiente, sem modificá-lo, nem buscar estratégias de modificações dos objetos que pertencem àquele cenário, nem interferir na ação dos participantes em cena, bem como ter o cuidado de não desviar a atenção daquilo que eles estão fazendo. Neste sentido, a forma de documentar o ocorrido, cujo propósito não é a representação, mas a explicitação dos acontecimentos, perde todo o interesse, se o que foi captado não ocorreu em sua realidade física e espacial diante da câmera.7

O método de registro audiovisual seguiu os valores, o ritmo e a cadência adequada ao ambiente que estava sendo filmado, guiado pelas atividades que estavam sendo documentadas, compartilhando o cuidado com as enfermeiras. A decisão de fazer parte do grupo deve emergir naturalmente, da própria atitude com a câmera, sem impor as idéias do pesquisador ou ceder ao desejo de dar aparência ou apresentação nova ao mobiliário, às equipes, às paredes, ao material e até mesmo ao próprio local.

A concretização desta pesquisa surgiu a partir do desenvolvimento sistemático do trabalho de campo; as imagens foram apreendidas por uma câmera de vídeo digital, formato 8mm. Esse equipamento possui a vantagem de ser de fácil uso e manuseio, devido ao seu peso de 250 gramas. A utilização desse aparelho pequeno, próprio para amadores, possibilitou o trânsito por todos os lados, sem aparatos de iluminação ou fios passando de um lado para outro. O manuseio e a postura com a câmera e a entrada do pesquisador em campo seguiram os princípios da Antropologia Visual8-9 e da Etnografia, devido à exigência fundamental de observação da realidade.

Assim, a partir de um vasto campo de experiências proposto pelo filme etnográfico e de suas produções afins que implica na captação do momento como está acontecendo, localizando a câmera na melhor posição possível, no ângulo exato, no momento justo, para apreender a complexidade e a totalidade do fenômeno estudado, desenvolvemos o trabalho de campo, pautado nessa experiência e no apoio da Antropologia Visual.

O objeto da Antropologia Visual pode ser assim resumido: "o homem, tal como ele é apreendido pelo filme, na unidade e na diversidade das maneiras como colocam em cena suas ações, seus pensamentos e seu meio ambiente." 8:17 Conforme essa interpretação, o objeto inclui "tudo que se encontra localizado no eixo que une a mais discreta aparência de uma atividade humana, ou de seu produto, àquilo que esse mesmo aspecto exprime, ou dissimula, da sociedade à qual ele se refere." 9:22

A produção desse tipo de imagens exige que o pesquisador tome uma série de decisões sobre quando, onde e por quanto tempo filmar, onde posicionar a câmera, como enquadrar a cena, como determinar a duração.8 Todas essas decisões compõem um conjunto de procedimentos técnicos e éticos com a câmera.

A forma de apreender a realidade, do ponto de vista da Antropologia Visual, requer uma abordagem mais artesanal do que técnica. Assim, optamos por esse método de filmar, apesar do apelo de um conjunto de técnicas audiovisuais avançadas, uma vez que não desejávamos captar imagens tradicionais, com roteiro pronto, no estilo jornalístico, seguindo o modelo de reportagem. Animava-nos a possibilidade de contar com uma forma alternativa de apropriação da imagem que tivesse conseqüência teórica de investigação, de descoberta, de reflexão e de aprendizagem, no sentido de alcançar os objetivos da investigação. Dessa maneira, optamos por trabalhar com a precisão de determinada realidade por meio do audiovisual, o que significa pensar no tempo de espera, considerar o imprevisto de uma ação, respeitando o tempo exato de um acontecimento. Isso implicou a necessidade de respeitar o tempo de duração de determinado cuidado, para apreender a complexidade e a totalidade dos cuidados de enfermagem, sem controle do tempo, tentando registrar o máximo possível de informações.

Para dar início à fase exploratória da pesquisa, para documentar o cuidado através da ação da enfermeira, foram necessárias algumas decisões em relação à atitude e às regras de inserção do pesquisador no campo. Essa atitude deve ser seguida em qualquer tipo de método, principalmente quando os registros são realizados através de uma câmera. Neste caso, evitamos idéias preconcebidas, em relação ao ambiente, à instituição, à câmera e às pessoas que estavam cuidando. Para levar a bom termo o estudo, foi necessário, antes de tudo, inteirarmo-nos dos códigos, símbolos e valores utilizados pelos membros do grupo, cujas particularidades podem ser sutilmente diferentes das nossas. Isso porque é crucial respeitar cada membro do grupo, entendendo o seu universo cultural.

Decorre daí que, quando não nos permitiram fotografar ou filmar determinado ritual realizado pelo grupo, respeitamos tal decisão, sem qualquer subterfúgio. Mesmo fazendo parte daquele grupo, estávamos documentando aquele momento e devíamos fazê-lo da melhor forma, sem esquecer os princípios ético e legais na pesquisa.

Ao iniciar a captação das imagens, visitamos o local, estabelecemos contato com os clientes, conversamos e explicamos os propósitos da investigação, para que se sentissem à vontade diante da câmera. Explicita-mos o objetivo das imagens e do cunho científico da pesquisa. Conhecemos as equipes de saúde que atuavam naquele local e, em seguida, solicitamos autorização escrita para uso de suas imagens na pesquisa. Quando os clientes não podiam dar o consentimento expresso, devido a condições clínicas, solicitamos autorização de um familiar para as gravações.

A preocupação inicial era a de superar os receios que a filmagem dentro de uma enfermaria poderia causar entre os clientes e os profissionais. Porém, de modo geral, conquistamos a confiança dos participantes, de forma natural e rápida. Um elemento facilitador residiu na circunstância de que já atuávamos no hospital; usávamos roupas brancas como eles, chegávamos no mesmo horário de trabalho, parávamos nos intervalos para conversar com o grupo, respondendo às perguntas de cada um, deixando que a curiosidade em relação à câmera fosse respondida. À medida que filmávamos, até mesmo só para testarmos a câmera junto ao grupo, estabelecemos uma relação cordial, mostrávamos suas imagens pelo visor lateral. Essa atitude representou algo como se oferecêssemos ao grupo uma tribuna livre para suas falas, valorizando suas crenças, valores e percepções.

Após o período de filmagens com a câmera, decupamos as imagens, ou seja, dissecamos o filme. A decupagem técnica é a divisão de um filme plano a plano, seqüência por seqüência, com indicações precisas para auxiliar o trabalho de montagem do vídeo, que conseqüentemente deu suporte ao trabalho analítico das imagens.

O vídeo constituiu-se em um produto da pesquisa, apresentando as idéias centrais oriundas da mesma, compondo uma seleção de imagens e um ensaio teórico-metodológico audiovisual sobre os gestos de cuidar. 10 Dessa forma, o vídeo está disponível para observações e estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência da pesquisa com o método audiovisual e sua aproximação com questões éticas permitiu verificar que os atributos técnicos e episte-mológicos de um método no qual serão aplicados instrumentos de coleta de dados que efetuarão os resultados de uma pesquisa, devem levar em consideração o preceito ético com rigor científico no desenvolvimento da pesquisa, principalmente, no que tange ao cuidado de enfermagem direcionado à vida e promoção e recuperação da saúde.

Estudar gestos de cuidado através do audiovisual possibilitou trazer à tona a dimensão subjetiva subjacente à ação objetiva do cuidado, favorecendo o estudo dos gestos de cuidado, bem como a identificação, classificação e interpretação dos significados dos mesmos.

Entendemos que os gestos não são apenas movimentos involuntários de uma ação corporal, pois eles estão associados a elementos internos ao profissional e à equipe e às condições ambientais intra e extra-institucionais.

A tecnologia audiovisual permite ampla difusão e campos fecundos de experimentação. No caso da produção de dados audiovisuais na pesquisa de enfermagem com abordagem interdisciplinar, a partir dos registros das imagens, da análise intensiva das imagens editadas, torna-se possível reconstituir o objeto observado, revê-lo tantas vezes quanto for necessário, integrando-o num corpo metodológico em que teoria e técnica cinematográfica e da antropologia visual estão estreitamente ligadas.

Portanto, além de fomentador e inspirador de reflexões, o audiovisual constituí uma tecnologia a serviço da ciência, da reflexão, do ensino e da aprendizagem por meio de imagens.

Quanto às questões éticas, pode-se dizer que ainda existe na comunidade científica dificuldade no entendimento de que a pesquisa social também é um experimento com seres humanos. As pesquisas, mesmo as teóricas, trabalham com a vida, portanto têm implicações éticas. Além disso, a maioria das pesquisas em Ciências Humanas usa o homem como informante dos dados a serem analisados, tanto as de procedimento quantitativos, quanto qualitativos ou como um veículo de experimentações de vacinas, drogas e substâncias psicoativas, entre outros.

Todos os procedimentos afetam o sujeito participante, não apenas os experimentos, mas as entrevistas, os questionários construídos dentro do maior rigor científico, pois o fazem refletir, recordar, criar expectativas e estabelecer relações. O mesmo acontece com as imagens, quando mostradas para seus expectadores, suas manifestações podem ser múltiplas: "amor, ódio, cólera."11:122 entre outras sensações, de repulsa, de aproximação, de identificação e até mesmo de sofrimento. A exemplo disso, é só remetermos o nosso pensamento para um filme que assistimos e lembrarmos de quantas sensações subjetivas ele nos causou.

Portanto, as indagações acerca das pesquisas com imagens procedem, mas não sem levar em conta os outros aspectos citados anteriormente. O que conta mesmo é a postura e o caráter ético do pesquisador, por ser ele o responsável desde o esquadrinhamento da pesquisa até o relatório de seus resultados, a fidedignidade e a validação junto à comunidade, alvo da pesquisa. Por isso, ele precisa ser comprometido e honesto com a divulgação do produto pesquisado.

A Resolução 196/96 permite que todos os seus aspectos sejam sistematizados e colocados em prática e ainda mexe com os pesquisadores, no sentido de fazê-los refletir sobre a repercussão de suas pesquisas, sobre o que é bom para o outro e para a humanidade. Acreditamos ser este o primeiro passo para o entendimento da ética na ciência e para uma ciência honesta e virtuosa.

Artigo original: Relato de Experiência

Recebido em: 15 de agosto de 2004

Aprovação final: 06 de dezembro de 2004

  • 1 Berardinelli LM. Gestos de cuidado em enfermagem estudo interdisciplinar através de imagens [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery/ UFRJ; 2003.
  • 2 Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (BR). A Ética nas ciências humanas. Cad Ética Pesqui. 2000 Jul;1(1):34-46.
  • 3 Padilha MICS. Questões éticas: cuidados metodológicos na pesquisa de enfermagem. Texto Contexto Enferm. 1995 Jul-Dez;4(2):118-32.
  • 4 Rouch J. Le filme ethnographique. In: Rouch J. Ethnologie génerale. Paris: Gallimard; 1968. p. 429-71.
  • 5 Bogdan R, Biklen S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Ed; 1994.
  • 6 Fortes PA. As pesquisas em seres humanos e o princípio ético de justiça. Cad Ética Pesqui. 1999 Fev;3(2):22-3.
  • 7 Bazin A. O cinema. São Paulo: Brasiliense; 1991.
  • 8 France C. Cinema e antropologia. Campinas: SP.Unicamp; 1998.
  • 9 France C. Do filme etnográfico à antropologia fílmica. Campinas: SP.Unicamp; 2000.
  • 10 Berardinelli LM. Gestos de cuidado [videocassete]. Rio de Janeiro: Nutes/UFRJ; 2002.
  • 11 Aumont J. A imagem. 2a ed.Campinas: Papirus; 1995.
  • Endereço:
    Lina Márcia M. Berardinelli
    Av. Boulevard 28 de Setembro 157, 7º andar.
    20551-030 - Rio de Janeiro, RJ
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  • *
    Plano: trecho de um filme onde não ocorre interrupção ou corte. Durante uma filmagem, o plano é definido pelo trecho compreendido entre o início e o final do disparo da câmera.
  • **
    André Bazin é ensaísta, cineasta, teórico e influente crítico de cinema das décadas de 40 e 50. Foi sem dúvida a voz mais importante e inteligente a defender uma teoria e uma tradição cinematográficas baseadas no poder das imagens mecanicamente registradas e não no poder aprendido do controle artístico sobre tais imagens.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2005

    Histórico

    • Aceito
      06 Dez 2004
    • Recebido
      15 Ago 2004
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