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INFLUÊNCIAS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO CUIDADO DE ENFERMAGEM NA CASA DE SAÚDE ESPERANÇA EM JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS, BRASIL (1994-1998)

RESUMO

Estudo sócio histórico cujos objetivos são o de descrever o processo de inserção de enfermeiros e analisar as estratégias de reformulação do cuidado de enfermagem na Casa de Saúde Esperança, no período de 1994 a 1998. Fontes históricas, documentos escritos e orais, forma analisados com base no conceito de saber/poder de Michel Foucault. Os resultados mostraram que, após quase três décadas funcionando com ausência ou com apenas uma enfermeira, a Casa de Saúde Esperança contratou quatro enfermeiros visando atender exigências legais de funcionamento. Para ampliar o saber/poder da enfermagem, os enfermeiros promoveram reuniões e capacitações junto à equipe. Concluímos que as estratégias utilizadas produziram efeitos como: maior reconhecimento do saber/poder da enfermagem, o saber prático deu lugar ao saber científico; desenvolvimento de uma assistência mais humanizada; credenciamento da instituição em psiquiatria IV, que pela classificação dos hospitais psiquiátricos permite seu funcionamento em convênio com o Sistema Único de Saúde.

DESCRITORES:
História da enfermagem; Enfermagem psiquiátrica; Auxiliares de psiquiatria; Cuidados de enfermagem

ABSTRACT

The aim of this socio-historical study was to describe the insertion process of nurses and to analyze the reformulation strategies of nursing care at the Casa de Saúde Esperança from 1994 to 1998. Historical sources, written and oral documents, were analyzed based on Michel Foucault's concept of power/knowledge. The results showed that, after nearly three decades of working in the absence of or with only one nurse, the Casa de Saúde Esperança hired four nurses, in order to meet the legal requirements of operation. To expand their power/knowledge in nursing, the nurses promoted meetings and trainings with the team. It was concluded that the strategies used produced effects such as: greater recognition of the power/knowledge in nursing; practical knowledge giving way to scientific knowledge; development of a more humanized care; and accreditation of the institution in psychiatry IV, which, by psychiatric hospitals' classification, allowed its operation in partnership with the Unified Health System.

DESCRIPTORS:
Nursing history; Psychiatric nursing; Psychiatric aides; Nursing care

RESUMEN

Estudio socio histórico cuyo objetivos son describir el proceso de inserción de enfermeros y analizar las estrategias de reformulación del cuidado de enfermería en Casa de Saúde Esperança, entre los años 1994 y 1998. Fuentes históricas, documentos escritos y orales, analizados basándose en el concepto de saber/poder de Michel Foucault. Los resultados mostraron que después de casi tres décadas de funcionamento con ausencia o con solo una enfermera, la Casa de Saúde Esperança contrató cuatro enfermeros para atender exigencias legales de funcionamiento. Para ampliar el saber/poder de la enfermería, promovieron reuniones y capacitaciones junto al equipo. Las estrategias utilizadas produjeron efectos como: mayor reconocimiento del saber/poder de enfermería, en la que un saber práctico dio lugar a un saber científico; desarrollo de un modelo asistencial más humanizado; acreditación de la institución en siquiatría IV, por esa clasificación los hospitales siquiátricos tenían permiso para trabajar en convenio con el Sistema único de salud.

DESCRIPTORES:
Historia de la enfermería; Enfermería psiquiátrica; Auxiliares de psiquiatría; Atención de enfermería

INTRODUÇÃO

Fundada no final da década de 1930, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil, para atender pacientes de ambos os sexos, portadores de transtorno mental, a Casa de Saúde Esperança (CSE) teve seu funcionamento, até a década de 1990, marcado por uma assistência pautada exclusivamente na internação e no tratamento psiquiátrico tradicional, inicialmente realizado por uma equipe constituída por médicos e atendentes de enfermagem.11. Silva RBC, Guimarães JCL. Casa de Saúde Esperança. Rev Centro de Estudo Karl Jaspers. 1980; 1(1):5-9. O modelo de tratamento predominante da psiquiatria tradicional, nas décadas de 1930 a 1990, se caracterizava pelo alinhamento ao modelo clínico-biológico, tendo o hospital psiquiátrico como centro do tratamento. Nesse modelo, o cuidado não tinha pretensões de reabilitação, apenas mantinha o portador de transtorno mental isolado socialmente por longos períodos de internação, o que permitia a assistência da enfermagem ser realizada por pessoal não qualificado.11. Silva RBC, Guimarães JCL. Casa de Saúde Esperança. Rev Centro de Estudo Karl Jaspers. 1980; 1(1):5-9.

Assim, este estudo evidencia como problema de pesquisa, o fato de que, durante mais de três décadas em que a CSE esteve em funcionamento, o profissional enfermeiro foi ausente e, quando esteve presente foi por curto espaço de tempo, devido à dificuldade desses profissionais em se manterem na instituição e ao desinteresse de seus dirigentes em contratar profissionais graduados, cujos salários oneravam o orçamento institucional.

O contexto histórico-político-social nas últimas décadas do século XX é denso ao que tange às políticas de saúde mental no Brasil. O Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Lei Federal 8.080/90, investiu no avanço do movimento de reforma psiquiátrica que vinha se organizando desde a década de 1970 e fora estabelecido pelo Projeto nº 3.657, também conhecido como projeto de Lei Antimanicomial, apresentado ao Congresso Nacional em 1989. Desde então, processos como desospitalização e desinstitucionalização foram incentivados por outras legislações que passaram a vigorar nos anos de 1990 e 2000. Surgiram também novos dispositivos de atenção em saúde mental fora do hospital e integrados à rede de atenção primária do SUS. Esses projetos são responsáveis por desenvolver estratégias para contemplar medidas assistenciais para a humanização do atendimento e para a preservação dos direitos de cidadania das pessoas portadoras de transtorno mental.22. Almeida Júnior JC. Arenas de produção de políticas públicas: a nova política nacional de saúde mental. Rev Direito GV. 2013 Jul-Dez; 9(2):659-80.

Apesar das novas legislações sustentarem as bases da reforma psiquiátrica, as instituições de internação mantiveram seu funcionamento e a transição do modelo tradicional para o modelo psicossocial ocorreu e ainda vem ocorrendo lentamente. Em Minas Gerais tinha-se o eixo conhecido como "corredor da loucura", formado pelas cidades de Belo Horizonte, Barbacena e Juiz de Fora que juntas abrigavam 80% dos leitos psiquiátricos do estado e essa lentidão é resultado de interesses políticos e econômicos que envolvem processos de liberação de leitos hospitalares, criação de novos dispositivos de atenção em saúde mental e fechamento de instituições.2

Foi somente no início da década de 1990 que a CSE contratou uma enfermeira para atuar como responsável técnica (RT). Algumas dificuldades impediam que as melhorias fossem implementadas, tais como: resistência da equipe de enfermagem em reconhecer sua autoridade; ausência de enfermeiros supervisores nos plantões; baixa escolaridade dos atendentes de enfermagem; modelo psiquiátrico tradicional em vigor. Posto isto, essa enfermeira empenhou-se para que houvesse a contratação de outros enfermeiros o que ocorrera em 1994, após uma fiscalização do Conselho Regional de Enfermagem (COREn), que impôs a CSE o cumprimento da Lei do Exercício Profissional de Enfermagem.33. Rodrigues AAP. Casa de Saúde Esperança em Juiz de Fora-MG: Uma Visão Histórica Sobre a Enfermagem Psiquiátrica 1994-1998 [dissertação]. Rio de Janeiro (RJ). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery, Programa de Pós Graduação em Enfermagem; 2012.

A contratação de enfermeiros pela CSE estava relacionada a diversos fatores sociais, políticos e econômicos. A criação de leis que davam suporte às novas políticas em saúde mental modificava o funcionamento e a organização das instituições psiquiátricas, provocando um movimento dessas instituições em busca do chamado credenciamento, o qual permitiria o funcionamento e o convênio com o SUS e trazia vantagens financeiras para estes estabelecimentos.

Portanto, a entrada de enfermeiros na CSE veio propiciar a adequação da instituição às novas concepções de tratamento psiquiátrico que no crescente movimento de reforma da assistência psiquiátrica no Brasil voltara-se para a reabilitação, com o propósito de evitar a permanência na instituição psiquiátrica de internação e auxiliar a inserção dos portadores de transtorno mental na sociedade. Nos anos de 1990, a ideologia do cuidado comunitário ganhou força e manteve o tema da reabilitação, incluindo o objetivo de trazer ao indivíduo independência, capacidade de autogerenciamento e melhor qualidade de vida.44. Vidal CEL, Bandeira M, Gontijo ED. Reforma psiquiátrica e serviços residenciais terapêuticos. J Bras Psiquiatr [online]. 2008 [cited 2015 Mar 02]; 57(1):. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0047-20852008000100013
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Diante do exposto, este estudo tem como objeto o desenvolvimento da enfermagem psiquiátrica na CSE em Juiz de Fora, no período de 1994 a 1998, demarcando, respectivamente, o ano da contratação de quatro enfermeiros pela CSE e o ano da reformulação da assistência de enfermagem, a partir da implantação de normas e rotinas a serem seguidas pela equipe. Os objetivos são o de descrever o processo de inserção de enfermeiros e analisar suas estratégias para reformular a assistência de enfermagem na CSE nesse período.

Acredita-se na relevância histórica de se registrar a existência de uma instituição que ainda mantinha o modelo psiquiátrico tradicional na década de 1990 e o papel da equipe de enfermagem na transformação desse modelo para uma melhor reflexão sobre o desenvolvimento da reforma psiquiátrica no Brasil. O estudo se justifica pela necessidade de se conhecer a trajetória das instituições em diferentes regiões e períodos históricos, pois permite estudar a prática da enfermagem psiquiátrica na rede assistencial pública e privada no contexto do movimento de reforma psiquiátrica. Para tanto, tomamos como referência a CSE: um hospital psiquiátrico de referência no município de Juiz de Fora.

MÉTODO

Estudo sócio-histórico, qualitativo, cujas fontes primárias foram documentos escritos localizados no acervo da CSE e relatos orais produzidos no período de agosto a dezembro de 2011, através de entrevistas com onze profissionais que trabalharam na CSE. As fontes secundárias foram livros e artigos. Para a produção de documentos orais utilizou-se a história oral temática, entendida como um processo de alargamento da possibilidade do uso de fontes para a escrita factual, além de trazer para os historiadores instrumento para lidar com a subjetividade.55. Santos TCF, Barreira IA, Gomes MLB, Baptista SS, Peres MAA, Almeida Filho AJ. A memória, o controle das lembranças e a pesquisa em história da enfermagem. Esc Anna Nery [online]. 2011 Jul-Set [cited 2015 Abr 02]; 15(3):616-25. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452011000300025&lng=en&nrm=iso
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O projeto que deu origem ao presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery/Hospital Escola São Francisco de Assis/Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2011 (protocolo 040/2011).

Os procedimentos para a produção do referencial oral foram: contato prévio com cada possível colaborador, através de e-mail ou telefonema, convidando-o a participar da pesquisa; agendamento de local e data, escolhidos pelos colaboradores, para a realização da entrevista, as quais foram gravadas em dispositivo mp3 e tiveram duração aproximada de 40 minutos; transcrição das entrevistas; apresentação da transcrição aos colaboradores para concordância sobre sua utilização na pesquisa e divulgação através de artigos e trabalhos científicos. Cabe destacar que essas etapas seguiram as recomendações éticas da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

Dos 11 profissionais que colaboraram para a produção de fontes orais desta pesquisa, cinco são citados neste artigo: dois enfermeiros e três médicos, todos graduados na cidade de Juiz de Fora. A maioria era formada há mais de cinco anos quando começou a trabalhar na CSE. O tempo de permanência na instituição variou entre dois e 13 anos.

Os colaboradores são citados no texto com a inicial correspondente à profissão - Enfermeiro (E); Médico (M) - e número correspondente à ordem sequencial da entrevista com a finalidade de garantir a confidencialidade das informações. A base teórica da análise do corpus documental foi o conceito de Michel Foucault presente no prescrito de saber/poder e em conformidade com o método histórico, considerando o contexto em que os documentos foram produzidos, bem como a crítica externa e interna dos mesmos. Nesse processo, foram realizadas leituras repetidas com vistas à identificação de elementos de análise a serem apresentados como resultados.55. Santos TCF, Barreira IA, Gomes MLB, Baptista SS, Peres MAA, Almeida Filho AJ. A memória, o controle das lembranças e a pesquisa em história da enfermagem. Esc Anna Nery [online]. 2011 Jul-Set [cited 2015 Abr 02]; 15(3):616-25. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452011000300025&lng=en&nrm=iso
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Após esses procedimentos, os resultados foram organizados em ordem cronológica e temática, depois foram contextualizados, chegando-se aos seguintes tópicos de agenda: a contratação de enfermeiros pela CSE e a inserção de novos saberes na equipe de enfermagem; reorganização do espaço disciplinar da CSE; as transformações do espaço assistencial e o credenciamento da CSE em Psiquiatria IV.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A contratação de enfermeiros pela CSE e a inserção de novos saberes na equipe de enfermagem

No início da década de 1990, a Reforma Psiquiátrica brasileira já havia aprovado leis que exigiam mudanças nos modelos hospitalares. Por outro lado, o desenvolvimento da enfermagem aprovara a Resolução nº146 de 1992, a qual normatizava em âmbito nacional a presença do enfermeiro em todas as unidades de serviços de saúde onde fossem desenvolvidas ações de enfermagem. Logo, o profissional enfermeiro já era reconhecido como imprescindível para o funcionamento das instituições de saúde e para a nova configuração da assistência psiquiátrica. Contava-se com a participação desse profissional na reformulação dos princípios da assistência e redefinição das prioridades assistenciais, bem como o dos dispositivos que possibilitariam a extinção gradativa do modelo manicomial de atendimento.

Em Minas Gerais, na década de 1990, a Coordenação Estadual de Saúde Mental evidenciou que as instituições psiquiátricas vivenciavam um estado de precariedade em relação à estrutura física e à assistência prestada e iniciou um processo de mudança, criando políticas de saúde mental voltadas para questões como: infraestrutura das instituições psiquiátricas e qualidade da assistência, considerando a relação entre equipe de saúde/número de pacientes internados.66. Ribeiro MS, Stroppa ALPC, Salomão Neto A, Bastos MO, Costa DMT. Reforma Psiquiátrica e Atenção Primária à Saúde: O Processo de implantação do sistema municipal de saúde Mental de juiz de Fora - MG. Rev APS. 2003 Jan-Jun; 6(1):19-29.

A reorganização do modelo de assistência psiquiátrica ampliou o campo de ação da enfermagem que precisava sair da antiga rotina de cuidados básicos e vigilância dos portadores de transtorno mental hospitalizados para ocupar-se também da reabilitação e reinserção social destes indivíduos, tornando o cuidado mais complexo e abrangente e consolidando o que passava a se chamar de saúde mental. No entanto, na CSE, ainda na década de 1990, o modelo disciplinar necessário à vigilância hierárquica era composto majoritariamente por atendentes de enfermagem na base e pelo médico diretor no topo da pirâmide profissional, que não funcionava como um sistema disciplinar rígido, carecendo de uma vigia e de uma submissão às pessoas a uma pirâmide de olhares. Na CSE o médico diretor não circulava pelas enfermarias de forma constante, atenuando a presença do olhar hierárquico sobre a equipe de enfermagem.

As mudanças no espaço disciplinar da CSE foram influenciadas pela ampliação de pessoal, o que foi bem caracterizado em 1994, quando a única enfermeira responsável pelos serviços de enfermagem solicitou à direção da instituição a contratação de outros enfermeiros, a fim de montar as equipes de plantão com a presença dos mesmos conforme exigia a Lei do Exercício Profissional da Enfermagem.77. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN -146/1992. [online] 1992 Jun 01 RJ [cited 2015 Mar 03]. Available from: http://pr.corens.portalcofen.gov.br/resolucao-cofen-146_2212.html
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Para a CSE, a contratação desse profissional representava uma estratégia que permitiria reorganizar a assistência psiquiátrica na instituição, através da participação dos mesmos na reformulação dos princípios da assistência e redefinição das prioridades assistenciais e dos dispositivos que possibilitariam a extinção gradativa do modelo manicomial de atendimento, uma vez que a CSE buscava atender às exigências legais para continuar funcionando. Com a remodelação da assistência psiquiátrica na década de 1990, os enfermeiros buscavam novas possibilidades de cuidado ao dar voz aos sujeitos, ao se voltar para eles, sua história e subjetividade, e não mais apenas para os sintomas.88. Oliveira RMP. Um espaço para a enfermagem psiquiátrica e de saúde mental. Esc Anna Nery. 2006 Dez; 10(4):615-7.

Dessa maneira, a enfermeira que sugeriu a contratação foi autorizada pela direção da CSE a selecionar quatro enfermeiros para compor o quadro de pessoal da instituição. A escolha dos profissionais a serem contratados ocorreu diretamente pela enfermeira, uma vez que a instituição não dispunha de departamento de seleção e recrutamento: [...] Não foi aberto processo seletivo, um colega foi indicando o outro. Eu recebia os currículos, fazia as entrevistas e contratava aquele que parecia ter mais perfil para lidar com essa clientela. Dois deles não tinham experiência na psiquiatria e os outros já estavam inseridos em instituições com características próprias. É uma área muito difícil de encontrar esse profissional, não temos pessoal profissionalmente apto dentro da psiquiatria. Encontramos sim, na maioria das vezes, aqueles que meramente já trabalharam em um hospital psiquiátrico, não possuindo qualquer das qualidades que devem caracterizar um indivíduo para trabalhar em saúde mental [...] (E1).

A análise da enfermeira mostra as influências da história da psiquiatria no cuidado de enfermagem psiquiátrica e a lentidão do seu desenvolvimento. A enfermagem psiquiátrica, no início do século XX, mantinha um cuidado cercado de preconceitos que envolviam a superlotação, as precárias condições das instituições e os estereótipos sobre o portador de transtorno mental. Além disso, os baixos salários levavam à desvalorização do profissional de enfermagem que trabalhava em psiquiatria, o que, de certo modo, até hoje interfere na escolha desta área de atuação e de especialização dos enfermeiros de forma negativa, embora haja reconhecimento acadêmico e profissional da enfermagem psiquiátrica.99. Esperidião E, Silva NS, Caixeta CC, Rodrigues J. A Enfermagem Psiquiátrica, a ABEn e o Departamento Científico de Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental: avanços e desafios. Rev Bras Enferm [online]. 2013 [cited 2015 Abr 04]; 66(spe):. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-71672013000700022&script=sci_arttext
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Apesar da pouca oferta de enfermeiros com experiência na área de psiquiatria em Juiz de Fora, houve a preocupação em selecionar profissionais capazes de oferecer qualidade à assistência na CSE: [...] Durante a entrevista, pedi que falassem um pouco de suas experiências profissionais, de suas expectativas. Procurei perceber o envolvimento, o conhecimento, a postura e o interesse [...] (E1).

A enfermeira informou também que, durante a escolha dos novos enfermeiros, procurou afinidades dos mesmos com a enfermagem psiquiátrica: [...] durante a entrevista, procurei nos candidatos, atraídos pelo recrutamento, analisar aspectos profissionais e pessoais dos candidatos, tendo em vista a adequação ao cargo [...] (E1).

O padrão ou critério para uma seleção deve ser obtido a partir das características do cargo a ser preenchido. Dessa maneira, a base para a seleção é a obtenção de informações para o cargo com a finalidade de propiciar comparação entre o perfil estabelecido e o perfil do candidato, como: conhecimento técnico científico, experiência profissional, comprometimento com a instituição e o gerenciamento, além da assiduidade, postura, pontualidade e ética, visando o alcance dos resultados esperados e a integração do novo profissional ao grupo de trabalho.10

Em relação ao perfil dos enfermeiros, um deles trabalhava na urgência e emergência de um hospital geral, onde tinha contato com pacientes psiquiátricos; dois não tinham experiência anterior em psiquiatria; um houvera trabalhado na CSE anteriormente e estava retornando. Todos tinham a idade entre vinte e cinco e trinta e cinco anos e foram graduados pela Universidade Federal de Juiz de Fora, sendo três homens e uma mulher. Um dos candidatos era também graduado em música e nenhum deles tinha especialização em saúde mental. A enfermeira RT que entrevistou os candidatos era graduada pela Escola de Enfermagem Hermantina Beraldo, em 1975, e especialista em enfermagem obstétrica.1111. Casa de Saúde Esperança. Ata de Reunião de Enfermeiros da CSE, Livro de Atas nº01, Atas de reunião nº 01 a 23, 1994 a 1998. Juiz de Fora (MG); 1998. p.1-22.

Os enfermeiros foram contratados conforme a Consolidação das Leis do Trabalho e o horário de trabalho estabelecido era em regime de plantão 12 por 36 horas com o plantão diurno de sete às 19 horas e o plantão noturno das 19 às sete horas. A partir dessa contratação foi garantida a presença do enfermeiro em cada equipe de plantão, ficando os mesmos responsáveis pela supervisão das duas alas masculinas e três alas femininas. Um trabalho em escalas programadas, além da enfermeira responsável pelo serviço de enfermagem que estava na instituição.1111. Casa de Saúde Esperança. Ata de Reunião de Enfermeiros da CSE, Livro de Atas nº01, Atas de reunião nº 01 a 23, 1994 a 1998. Juiz de Fora (MG); 1998. p.1-22.

Assim, a equipe de enfermagem da CSE foi sendo mais esquadrinhada, o que levou à reorganização pela entrada de mais um membro na pirâmide disciplinar, que agora estava composta hierarquicamente, da base para o topo, pelos atendentes, auxiliares e técnicos de enfermagem, enfermeiros plantonistas e chefe de enfermagem RT. A chegada desses novos profissionais inseriu no espaço da CSE um grupo com saberes próprios de uma profissão pela qual os atendentes, auxiliares e técnicos de enfermagem passaram a ser supervisionados, o que representava uma ruptura no antigo modelo e o início da tomada do poder de gerenciamento dos serviços de enfermagem pelos enfermeiros recém-contratados.

Reorganização do espaço disciplinar da CSE

O momento em que se seguiu a contratação dos enfermeiros foi marcado por conflitos, uma vez que os atendentes de enfermagem ignoravam a presença do enfermeiro e se dirigiam diretamente ao médico diretor do hospital, quando diante de algum problema que não se sentiam em condições de solucionar. Essa situação foi ilustrada pelos entrevistados quando apontaram a resistência dos auxiliares de enfermagem e atendentes em relação à presença do enfermeiro na instituição: [...] Eles falavam assim: o que essa pessoa veio fazer aqui? Eu sei fazer, o que ela veio me ensinar? Porque o conhecimento que tinham, para eles, já era o suficiente. Mas era pouco e eles não entendiam que era pouco. E, até que eles tomassem conhecimento disso, levou-se um tempo [...] (M2).

[...] De uma maneira geral, a relação com a equipe era boa. Porém, determinados funcionários não aceitavam a presença da enfermeira, porque, naquela época, não tinham bem essa noção de hierarquia dentro do hospital. Eles estavam acostumados a decidirem tudo, então não estava desenvolvida bem essa noção de hierarquia. Eles achavam que podiam tomar decisões sozinhos, principalmente quando a gente não estava presente [...] (E1).

O questionamento sobre o papel do enfermeiro por um lado reflete rejeição à presença dele na equipe, por outro, mostra que os atendentes sentiam-se detentores de um saber estruturado na prática cotidiana e que nem por isso deixa de ser um saber. O saber formal, reconhecido socialmente, não era claramente uma necessidade para esses profissionais, pois o que já sabiam lhes permitia exercer o poder nas enfermarias da CSE. Mas isso só foi possível enquanto não se efetivou a presença do enfermeiro com este saber formal, reconhecido e que, por isso, poderia se impor e transformar as práticas até então exercidas.12

Inicia-se uma transformação administrativa e assistencial na CSE, influenciada por um novo saber/poder trazido pelos enfermeiros, bem como pelo exercício da vigilância hierárquica inerente à supervisão de enfermagem e ao planejamento da assistência, que compete ao enfermeiro.

A assistência de enfermagem na CSE era marcada por uma supervisão indireta e, com a chegada dos enfermeiros, iniciou-se um processo de organização e redistribuição das atividades dos atendentes, auxiliares e técnicos de enfermagem. Inevitavelmente, surgiram conflitos, pois até a chegada dos enfermeiros, o ponto de referência da equipe era o médico ou a administradora, sendo que na maioria das vezes as decisões partiam deles mesmos: [...] Eram os atendentes que tomavam as atitudes e decisões das medicações, depois que comunicavam, depois que já tinham feito muita coisa. Tivemos muita resistência [...] (M3).

Observamos que a ausência da vigilância contínua dava poder aos atendentes de enfermagem, que tomavam atitudes sem a prescrição médica e sem consultar o médico. Isso fora possível porque em instituições disciplinares o poder se exerce em rede e, no caso da CSE, na ausência de enfermeiro, esse poder se apresentava incorporado por aqueles que permaneciam na instituição, na prática cotidiana e que desenvolviam um saber próprio capaz de solucionar problemas vivenciados sem consultar de imediato o profissional legalmente competente.

Um dos maiores obstáculos enfrentados pelos enfermeiros recém-contratados era referente ao reconhecimento da hierarquia profissional, ou seja, o respeito ao Código de Ética da profissão de enfermagem, já que cabia ao enfermeiro a supervisão direta da equipe. Assim, o enfermeiro deveria orientar o pessoal de enfermagem para garantir a prestação de uma assistência segura e correspondente às atribuições de cada membro da equipe de enfermagem.13

A falta de formação dos atendentes de enfermagem e os anos de trabalho na CSE faziam com que esses e os poucos auxiliares e técnicos de enfermagem não reconhecessem os enfermeiros como parte da sua equipe, atitude justificada por aspectos, como: não conhecerem da lei do exercício profissional da enfermagem e terem trabalhado durante muitos anos sob a supervisão do médico, que também os apoiava, uma vez que, não havia questionamento direto sobre a conduta, nem mesmo a de medicar os pacientes primeiro e comunicar ao médico depois. Logo, era esperado que esta súbita transformação dos papéis, funções e competências, causasse desconforto na equipe de enfermagem.

Um terceiro aspecto está relacionado à trajetória da assistência de enfermagem psiquiátrica, a qual mantinha muitos profissionais ainda apegados a velhos e maus hábitos, adquiridos durante anos de uma prática baseada no modelo biomédico e de uma enfermagem pouco ou nada autônoma.1313. Ribeiro JMS. Autonomia profissional dos enfermeiros. Rev Enf Ref [online]. 2011 [cited 2015 Abr 04]; ser III(5): Available from http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-02832011000300003
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Até então, nunca houvera na CSE normatização da equipe de enfermagem em sua estrutura organizativa e assistencial, mesmo existindo uma lei desde a década de 1980. Isso foi resultado de uma política administrativa que visava o lucro através da contratação de profissionais menos qualificados mesmo que isso representasse baixa qualidade assistencial. Por outro lado, a equipe de enfermagem reconhecia a hierarquia na figura do médico diretor ou da administradora, com quem já estavam habituados e com quem era mais fácil conseguir decisões a seu favor, devido à distância dessas pessoas da prática cotidiana nas enfermarias, espaço em que a equipe de enfermagem exercia seu saber/poder.

Como estratégia, o grupo de enfermeiros buscou uma comunicação mais efetiva, entre os diferentes níveis, para a construção de um trabalho harmonizado visando à melhoria nos procedimentos e tendo o portador de transtorno mental como foco de atenção da instituição. A resistência e a não adesão de alguns atendentes, auxiliares e técnicos de enfermagem ao cumprimento das ordens e a não aceitação das mudanças proposta, levou à demissão de alguns desses profissionais da CSE, principalmente, dos atendentes de enfermagem que não aceitaram realizar a profissionalização, imposta pela Lei Federal nº 7.498/86, e exigida pelos enfermeiros. Essa lei reconhecia a existência de trabalhadores de enfermagem sem qualificação exercendo a profissão, mas, concedeu um prazo de até dez anos para que todos fossem profissionalizados e se tornassem, no mínimo, auxiliares em enfermagem.14

Para Foucault esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder. Dessa forma, a presença do enfermeiro impõe mecanismos disciplinares que evidenciam uma maneira específica de punir isto é, os indivíduos são avaliados e individualizados.1515. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro (RJ): Graal; 2012.

[...] Teve uma parte da equipe de atendentes que não aderiu às mudanças. Então, foi muito difícil de trabalhar com eles, principalmente aqueles atendentes mais antigos, de 20 anos de casa, 30 e tantos anos, que não estavam acostumados a ter a liderança do enfermeiro. Quando chegamos lá e começamos a elaborar normas e rotinas e a fazer com que eles cumprissem, começaram a reclamar, resistir. Mas, essas pessoas foram anuladas pelos outros que participavam com a gente. Acabou que os novos funcionários, que foram contratados, foram anulando esses antigos e eles perderam a força [...] (E4).

O trabalho dos enfermeiros voltou-se para a disciplinarização dos espaços; da enfermagem; do portador de transtorno mental e do próprio hospital. Passaram a valorizar as normas de conduta, de bom senso, de bom trato às pessoas portadoras de transtorno mental, se referindo também à limpeza do ambiente, além da alimentação. Neste contexto, o poder passa a ser do enfermeiro, detentor de um saber autorizado e responsável pela organização da equipe de enfermagem hospitalar, dominando todo o processo e reproduzindo, em certa medida, as relações sociais de classe. Ao estabelecer relações de poder com os atendentes e auxiliares de enfermagem e com os outros profissionais para a sua própria reprodução remete-se a um novo campo de saber que, reciprocamente, constitui novas relações de poder.1414. Menear M, Briand C. Implementing a continuum of evidence-based psychosocial interventions for people with severe mental illness: part 1-review of major initiatives and implementation strategies. Can J Psychiatry [online]. 2014 [cited 2015 Abr 04]; 59(4):. Available from http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4079135/
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Para desenvolver esse processo, o enfermeiro utilizou instrumentos como: a observação, a coleta de dados, o planejamento, a evolução, a avaliação, os procedimentos técnicos, o relacionamento e a comunicação entre o portador de transtorno mental, enfermagem e os demais profissionais.1616. Briand C, Menear M. Implementing a continuum of evidence-based psychosocial interventions for people with severe mental illness: part 2-review of critical implementation issues. Can J Psychiatry [online]. 2014 [cited 2015 Abr 04]; 59(4):. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4079132/
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Dessa forma, o cuidado de enfermagem, que inicialmente era executado de maneira integral por uma pessoa (mesmo que não profissionalizada), passa a ser fragmentado em diferentes técnicas ou tarefas possibilitando o desenvolvimento da prática de enfermagem denominada funcional, a qual visa economia de tempo e maior agilidade na execução do serviço. Dentro desse sistema, os cuidados a serem prestados aos portadores de transtorno mental são distribuídos entre os elementos da equipe de enfermagem que, supostamente, tenham competência técnica para executá-lo, visto que as tarefas são divididas por grau de complexidade e faz com que a mesma pessoa seja atendida por vários integrantes da equipe de enfermagem.17

Essas formas de circulação do saber da enfermagem, constituídas pelo saber do enfermeiro, dos atendentes, dos auxiliares e dos técnicos de enfermagem, classificados como saberes periféricos, nos leva a entender que "[...] o hospital não é só uma máquina de curar, mas, também, um instrumento de produção, acúmulo e transmissão de saber que assegura o exercício do "poder".15:162 Na busca de uma melhor estratégia e rendimento das atividades propostas, a alternativa utilizada pelos enfermeiros remetia mais a uma técnica de articulação de poder, de organização e controle do tempo e das atividades e esses exercícios tinham como objetivo o adestramento e a docilização dos corpos. "[...] É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado".15:118

As transformações do espaço assistencial e o credenciamento da CSE em Psiquiatria IV

Inserido nesse contexto, o movimento de Reforma Psiquiátrica exigia uma enfermagem moderna, qualificada, dinâmica, com novas práticas e conceitos, que fosse instrumento de produção, de solidariedade, de trocas sociais e de profissionalismo para lidar com a loucura e com o sofrimento, para que o portador de transtorno mental fosse respeitado como ser humano possuidor de direitos e deveres. Diante dessa realidade, os enfermeiros e demais membros da equipe de enfermagem teriam que ser profissionais aptos para atender integralmente e, sempre que fosse preciso, estimular o paciente no intrincado das relações humanas.33. Rodrigues AAP. Casa de Saúde Esperança em Juiz de Fora-MG: Uma Visão Histórica Sobre a Enfermagem Psiquiátrica 1994-1998 [dissertação]. Rio de Janeiro (RJ). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery, Programa de Pós Graduação em Enfermagem; 2012.

Dentre as transformações ocorridas na assistência de enfermagem nesse período foi implantado o processo de enfermagem (PE) em cumprimento à lei do exercício profissional da enfermagem* * Lei 7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem. Dispõe no artigo 11, como atividades exclusiva do enfermeiro a consulta de enfermagem; prescrição da assistência de enfermagem; cuidados diretos de enfermagem a pacientes graves com risco de vida; cuidados de enfermagem de maior complexidade e que exijam conhecimentos de base científica e capacidade de tomar decisões imediatas. , cuja inserção se tornou uma estratégia na organização da assistência de enfermagem nas instituições, atendendo, assim, um dos requisitos para o credenciamento em psiquiatria IV. Sobre a implantação do PE, um entrevistado comentou: [...] Na admissão, a enfermeira fazia consulta, fazia prescrição dos cuidados de enfermagem, porque a gente não tinha muito esse cuidado aqui. Isso foi muito importante, até para mostrar que a assistência psiquiátrica hospitalar é possível, o que a gente não admite é o asilo [...] o foco passou a ser mais no paciente e não na doença [...] (M2).

Motivados pela autoridade que competia aos enfermeiros, nesse período, foram realizados treinamentos para realização de curativos nos pacientes com úlceras por pressão, treinamentos sobre antibioticoterapia, soroterapia e outros diversos cursos e treinamentos com toda a equipe: [...] Foram realizados muitos cursos: de primeiro socorros; qual a conduta numa parada cardíaca; qual o papel dos auxiliares de enfermagem e da enfermeira; o que a enfermagem precisava fazer na hora que precisasse entubar um paciente, porque o médico não faz sozinho, precisa de alguém para auxiliá-lo; como fazer dosagem de glicemia; como usar os aparelhos que começaram a chegar à instituição; coisas simples, mas de muita importância para a equipe. Mas, tudo isso só pode ser feito com a contratação dos enfermeiros, em maior número, porque quando era um só, você não podia nem querer que ele fizesse isso, porque não dava conta, ele já tinha muitas coisas burocráticas para fazer [...] (M2).

Para que o tratamento dispensado aos portadores de transtorno mental fosse mais humanizado, a CSE passou a abrir o hospital em novos horários de visita, pois alguns pacientes ficavam sem visita devido às dificuldades de condução aos domingos: [...] Passamos a abrir o hospital para mais visitas, pois algumas famílias moravam fora e vir aqui aos domingos era mais difícil, tinham menos horários de ônibus. Os visitantes acabavam se atrasando e não conseguiam chegar aqui no hospital. No início, nós abrimos a visita para todos os dias da semana, depois observamos que estava demandando muito tempo dos profissionais, que ficavam dando assistência aos familiares, parentes dos pacientes. Então, decidimos abrir para visitas somente às quintas- feiras e domingos. [...] (M1).

Fazia parte do processo de humanização também a participação e a inclusão da família no tratamento e acompanhamento do portador de transtorno mental. Reconhecer a família como unidade de cuidado, inseri-la na agenda terapêutica dos serviços de saúde mental, tornando-a um agente ativo de participação ou transformação e desconstruir um modelo de intervenção arraigado no imaginário social representa, ainda hoje, um desafio para os profissionais de saúde.1717. Borba LO, Paes MR, Guimarães AN, Labronici LM, Maftum MA. A família e o portador de transtorno mental: dinâmica e sua relação familiar. Rev Esc Enferm USP [online] 2011 [cited 2015 Abr 04]; 45(2):442-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n2/v45n2a19.pdf
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Nesse processo ocorreu a extensão dos cuidados de enfermagem aos familiares dos pacientes internados na CSE, através de reuniões e durante as visitas que esses faziam aos internos. Os familiares passaram a receber instruções verbais e escritas, eram incentivados a participar mais ativamente do tratamento e dos processos de decisão, pois eram considerados atores sociais indispensáveis para a efetividade da assistência psiquiátrica e entendido como um grupo com grande potencial de acolhimento e ressocialização de seus integrantes.1717. Borba LO, Paes MR, Guimarães AN, Labronici LM, Maftum MA. A família e o portador de transtorno mental: dinâmica e sua relação familiar. Rev Esc Enferm USP [online] 2011 [cited 2015 Abr 04]; 45(2):442-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n2/v45n2a19.pdf
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Dessa forma, os profissionais da CSE buscaram formas adaptativas de promoção à saúde e humanização do tratamento por meio de esforços educativos e terapêuticos compartilhados com o portador de transtorno mental e seu eixo familiar, o que facilitava a reintegração na rede das relações sociais.

Durante esse processo de transformação, a CSE contou também com um Coral de pacientes e funcionários que foi organizado por um enfermeiro que também era músico. O coral foi, de fato, implementado e chegou a fazer recitais na cidade, como descreve um entrevistado: [...] Nós tivemos muitas inovações lá. Essa do coral foi uma grande inovação que tivemos. Eu saía com os pacientes para a rua mesmo, para cantar no shopping center, para cantar nas Igrejas, nos outros hospitais psiquiátricos. O coral funcionava como uma proposta terapêutica. Os médicos encaminhavam os pacientes para o meu coral e o meu coral, na verdade, era um grupo terapêutico, tinha um projeto, tinha uma proposta, então os médicos encaminhavam os pacientes para cantar no coral [...] (E4).

O período que se seguiu a entrada dos enfermeiros foi de muita produção. O hospital comprou um micro-ônibus para começar a fazer a reinserção social dos pacientes, através de visitas e passeios: [...] o ônibus que o hospital comprou servia também para levar os pacientes ao circo. Alguns pacientes, por exemplo, estavam lá internados há quinze, vinte anos e nunca tinham ido ao circo [...] (M1).

No final de fevereiro de 1995, em meio a inúmeras mudanças assistenciais, físicas e de recursos humanos, a CSE recebeu a visita do Grupo de Acompanhamento e Avaliação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar (GAAPH), formado por uma equipe multiprofissional e composto por membros da Coordenação Estadual de Saúde Mental e por representantes do Conselho Federal de profissionais da área de saúde.

Esse grupo estabelecia critérios explícitos para o processo de credenciamento dos hospitais em Psiquiatria III e IV de forma que se instrumentalizava também o Estado no sentido de regular e supervisionar as práticas hospitalares através do cumprimento das exigências estabelecidas pela Portaria do Ministério da Saúde n. 224/92, a qual ditava as normas para o atendimento hospitalar/hospital especializado em psiquiatria.

Nos hospitais classificados em Psiquiatria tipo III a cobrança dos procedimentos e internação era consideravelmente inferior em relação aos classificados em Psiquiatria IV. Após comprovar sua adequação às normas, um mês após a visita do GAAPH, em março de 1995, a CSE recebeu comunicado do credenciamento. Assim, após essa autorização o hospital foi credenciado para Psiquiatria IV e habilitou-se para a cobrança conforme a tabela de procedimentos correspondente, o que aumentava significativamente os valores, tanto dos procedimentos, quanto das diárias de internação.

Nesse sentido, entende-se que a remuneração dos serviços estava vinculada à qualidade do cuidado prestado. A preocupação com a efetiva qualidade dos mesmos, a busca da garantia e do cumprimento das normas em vigor foi o que gerou toda a motivação das mudanças dentro da CSE. A contribuição e responsabilidade dos enfermeiros nas mudanças que foram implementadas e aos poucos aperfeiçoadas no sentido de transformar o espaço assistencial da CSE, antes do isolamento tradicional para um espaço minimamente social, é imensurável. Nos anos de 1996/1997 foi mantida a continuidade dos treinamentos com a equipe como forma de assegurar a manutenção da competência dessa equipe em relação à assistência de enfermagem.1818. Moreira LHO, Alves M. The formation of social reintegration strategies of the psychic suffering carrier: new directions for psychiatric nursing. Issues Ment Health Nurs [online]. 2014 Sep [cited 2015 Abr 08]; 35(9):680-8. Available from: doi: 10.3109/01612840.2014.901451
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-1919. Peres MAA, Alencar BI. Desenvolvimento da assistência médica e de enfermagem aos doentes mentais no Brasil: os discursos fundadores do hospício. Texto Contexto Enferm [online]; 2009 [cited 2015 Abr 08] 18(4):635-42. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072009000400004
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O ano de 1998 foi marcado principalmente pela implementação de rotinas previstas e pela elaboração de outras não existentes, além da obrigatoriedade da realização das mesmas em todos os setores do hospital. Em ata a enfermeira RT deixa registrado, conforme trecho: "[...] Foram colocadas, em cada posto de enfermagem, pastas de plástico preto contendo manuais com todas as normas e rotinas do serviço de enfermagem [...]".11:18-9 Em dezembro desse mesmo ano, a enfermeira RT deixa a CSE, por motivo de sua aposentadoria, deixando marcada toda sua trajetória na busca incessante de um atendimento com menos riscos e mais humanizado,1111. Casa de Saúde Esperança. Ata de Reunião de Enfermeiros da CSE, Livro de Atas nº01, Atas de reunião nº 01 a 23, 1994 a 1998. Juiz de Fora (MG); 1998. p.1-22. No entanto, os profissionais que lá permaneceram tinham uma nova organização da enfermagem e seus profissionais eram capacitados, treinados e a normalização era instituída, permitindo o reconhecimento do saber/poder de toda a equipe de enfermagem na CSE.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No período de 1994-1998, a CSE investiu na contratação de enfermeiros pressionada pelas novas regras legais, o que levou a uma ampliação do saber/poder da enfermagem, a partir de estratégias implantadas pelos enfermeiros para melhor capacitar a equipe e qualificar o cuidado prestado ao portador de transtorno mental internado. A CSE buscou alternativas para efetivar as novas práticas que respondessem às exigências de uma realidade imposta por um novo modelo de atenção à saúde mental: baseado no modelo psicossocial.

No contexto em que se passa o estudo, pode-se concluir que mudanças eram motivadas pelo desafio de conseguir o credenciamento em psiquiatria IV, sob pena de ter prejuízos financeiros. Tal prejuízo viria caso não fosse comprovado o cumprimento das exigências impostas pelas novas portarias através de documentação e fiscalização que viabilizassem que a CSE continuasse em funcionamento. As novas práticas de gestão e as estratégias de promoção de uma assistência humanizada habilitaram a CSE ao credenciamento em psiquiatria IV.

Dessa forma, a assistência de enfermagem foi reorganizada com base nas legislações referentes à Reforma Psiquiátrica e ao exercício profissional da enfermagem, que ditaram as regras para que a CSE pudesse continuar funcionando dentro da nova condição, que permitiria, apesar de ser um tratamento de internação, uma assistência direcionada à reabilitação psicossocial. Criaram-se assim condições para que o enfermeiro pudesse trabalhar com maior autonomia, desenvolvendo as práticas de enfermagem psiquiátrica na instituição.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2014
  • Aceito
    01 Jul 2015
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