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Temporalidade: o existir e a perspectiva da finitude para o ser-acadêmico-de-enfermagem ao experienciar a morte1 1 Estudo parte da tese - A temporalidade do ser-acadêmico-de-enfermagem na experiência de cuidado: uma interpretação em Heidegger, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2012

Resumos

Pesquisa qualitativa fenomenológica que utilizou a Hermenêutica heideggeriana, que tem como objetivo compreender o significado da finitude para o ser-acadêmico-de-enfermagem ao experienciar a morte. Os dados foram coletados nos meses de março a maio de 2011, sendo entrevistados oito acadêmicos de enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. A entrevista fenomenológica foi audiogravada e posteriormente transcrita. A análise dos dados deu-se pela pré-compreensão, compreensão e interpretação das falas dos sujeitos. Emergiram as seguintes unidades de significado: Temporalidade e existência como prerrogativa do ser-acadêmico; A experiência da morte: quando um ente querido se vai; e A doença enquanto possibilidade de ser-para-a-morte. O ser-acadêmico-de-enfermagem compreende-se como ser temporalmente inserido no mundo e tem consciência de que é um ser-para-a-morte quando reflete sobre a morte, e seu retorno constante às questões fundamentais de seu ser, configurando-se como a base de toda a sua interpretação sobre a vida e o viver.

Estudantes de enfermagem; Relações familiares; Morte; Filosofia em enfermagem


Phenomenological qualitative research that used Heidegger's hermeneutics, with the aim to understand the meaning of finiteness for nursing students when experiencing death. Data were collected between March and May of 2011, by means of interviews with eight nursing students from the Federal University of Santa Catarina. The audio of the phenomenological interviews was recorded and later transcribed. Data were analyzed as per the stages of pre-understanding, understanding, and interpretation of what the participants said, and the following units of meaning emerged: Temporality and existence as a prerogative of the academic being, The experience of death: when a loved one passes away, and Disease as a possibility of being-toward-death. Nursing students view themselves to be temporarily inserted in the world and are aware that they are a being-toward-death when reflecting on death, and their constant return to fundamental questions of their being, configuring themselves as the basis of their entire interpretation about life and living.

Nursing students; Family relations; Death; Nursing philosophy


Estudio cualitativo que utilizó la hermenéutica fenomenológica heideggeriana con el objetivo de comprender el significado de la finitud para el estudiante de enfermería y la experiencia de la muerte. Los datos fueron recolectados entre marzo y mayo de 2011, se entrevistaron a ocho estudiantes de enfermería de la Universidad Federal de Santa Catarina. La entrevista fenomenológica fue audiogravada y transcritas posteriormente. El análisis de los datos fue por pre-comprensión, comprensión e interpretación del discurso de los participantes. Surgieron las siguientes unidades: la temporalidad y la existencia como la prerrogativa del ser académica, la experiencia de la muerte: cuando un ser querido se ha ido, y la enfermedad como una posibilidad del ser para la muerte. El estudiante de enfermería es comprendido como un ser que entró temporalmente en el mundo y como un ser para la muerte en consonancia con la muerte, y su retorno constante a las preguntas fundamentales de su ser, lo configuran como la base de la interpretación de la vida y del vivir.

Estudiantes de enfermería; Relaciones familiares; Muerte; Filosofía en enfermería


INTRODUÇÃO

As reflexões contemporâneas sobre o viver humano perpassam por fenômenos intrínsecos, por vezes vinculados à temporalidade e às experiências, ou observados pelo âmbito da morte ligada à finitude.

Filosoficamente, a morte vem sendo discutida desde seus primórdios, como condição humana de existir temporalmente. Heidegger, em sua obra, busca desvelar o fenômeno do ser e do tempo em suas nuances, e, nos parágrafos §68 e §69 de Ser e Tempo, aborda a temporalidade e a cotidianidade como possibilidades de abertura para a presença.1Heidegger M. Ser e tempo. Bragança Paulista (SP): Editora Universitária São Francisco; 2008.

O existir, enquanto temporalidade, está vinculado ao nexo da presença, em seu acontecer, que, quando liberado em suas condições existenciais e temporais, leva à compreensão ontológica da historicidade.1Heidegger M. Ser e tempo. Bragança Paulista (SP): Editora Universitária São Francisco; 2008.

Ao pensar o ser, Heidegger traz à tona a questão da sua origem, a qual supõe ao homem um início e um fim, a partir de um acontecer temporal. A origem heideggeriana vincula-se ao ser da presença, que, representa o fenômeno que induz o homem a pensar, não fortemente ao nascimento ou nascença em si, sua perspectiva centra-se na morte. O mesmo autor diz que Heidegger não se refere em particular ao problema ôntico e ontológico do nascimento e nem à sua experiência.2Loparic Z. Origem em Heidegger e Winnicott. Nat Humana. 2007 Jul-Dez; 9(2):243-74.

Neste ínterim, estão em jogo a vida e a morte enquanto fenômenos possíveis ao ser, onde "o sentido no qual a vida assume uma função: é o âmbito, a realidade fundamental, o circum-includente unitário, dentro do qual são erigidos todos os fenômenos".1:30 Aqui, a vida e a morte estão dadas para o ser-no-mundo, em sua temporalidade, e tratadas não como partes de um existir, mas como condição intrínseca do ser.

O processo de formação em enfermagem envolve diferentes contextos e atores, onde o ser-acadêmico vivencia momentos de aprendizagem envolvendo conhecimentos teórico-práticos. Quando em contato com o ambiente real de aprendizagem no campo prático, este ser-acadêmico se depara com a morte, e evidencia sua própria finitude, o que pode influenciar sobremaneira o seu modo de cuidar. Por isto, conhecer os sentimentos e as experiências do ser-acadêmico-de-enfermagem no processo de aprendizagem envolvendo a morte pode trazer elementos para minimizar as suas angústias e o sofrimento que esta realidade mostra.

O ser-acadêmico-de-enfermagem experiência a morte em seu cotidiano já nas primeiras inserções no campo de prática, e depara-se, neste momento, com sensações e sentimentos de perda, finitude e fragilidade da vida. Estes sentimentos o remetem a si mesmo, à sua família e às pessoas a quem ama, gerando tensão e medo da perda.

Essas dimensões do ser, vida e morte, estão presentes para o ser-acadêmico-de-enfermagem em seu cotidiano, o que suscita a seguinte pergunta de pesquisa: como o ser-acadêmico-de-enfermagem vivencia e experiência a morte? Pensar sobre essas questões e revelar temporalmente o significado da morte para o ser-acadêmico se constituem como perspectiva deste estudo, que tem como objetivo compreender o significado da finitude ao experienciar a morte para o ser-acadêmico-de-enfermagem.

METODOLOGIA

Pesquisa fenomenológica que utiliza o referencial teórico de Heidegger,1Heidegger M. Ser e tempo. Bragança Paulista (SP): Editora Universitária São Francisco; 2008.

Loparic Z. Origem em Heidegger e Winnicott. Nat Humana. 2007 Jul-Dez; 9(2):243-74.
- 3Heidegger M. Marcas do caminho. Petrópolis (RJ): Vozes, 2008. tendo a perspectiva hermenêutica no movimento de pré-compreensão, compreensão e interpretação do fenômeno, não como algo fragmentado ou sequencial, mas como algo que desvele o fenômeno em movimento, onde a "hermenêutica da presença torna-se também uma hermenêutica no sentido de elaboração de condições de possibilidade de toda investigação ontológica".1:69

O estudo teve como participantes oito acadêmicos matriculados na terceira fase do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. A obtenção dos depoimentos ocorreu nos meses de março a maio de 2011, por meio de entrevista fenomenológica, em uma sala de aula na Universidade Federal de Santa Catarina. A entrevista foi audiogravada e transcrita posteriormente. Após leitura repetida, os relatos apontaram para a compreensão e a interpretação do fenômeno.

Foram atendidas as exigências da Resolução n. 196/96, que trata da pesquisa com seres humanos.4Conselho Nacional de Saúde (BR) [pagina na internet]. Resolução n. 196/96. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. [acesso 2012 Abr 04]. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm
http://www.conselho.saude.gov.br/resoluc...
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade, sob protocolo n. 1086/10. Os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os participantes foram identificados com código alfa-numérico para garantir o anonimato.

Emergiram dos dados as seguintes unidades de significado para esta análise: Temporalidade e existência como prerrogativa do ser-acadêmico; A experiência da morte: quando um ente querido se vai; e A doença enquanto possibilidade de ser-para-a-morte.

DISCUSSÃO E DESVELAMENTO DOS SIGNIFICADOS DO FENÔMENO SER-ACADÊMICO-DE-ENFERMAGEM E A PERSPECTIVA DA FINITUDE

A pré-compreensão aqui emerge a partir da aproximação com o fenômeno e sua concepção, que em um primeiro momento denominamos de 'temporalidade e existência como prerrogativa do ser-acadêmico'. O segundo movimento hermenêutico, caracterizado como compreensão, vincula-se às vivências e experiências do ser-acadêmico com a perspectiva da finitude, por meio de suas lembranças, desde a infância até os dias atuais, o que chamamos de 'a experiência da morte: quando um ente querido se vai', e, por último, 'a doença enquanto possibilidade de ser-para-a-morte', a compreensão aqui representada pelo vivenciar. A terceira perspectiva é a interpretação do fenômeno, que ocorre simultaneamente nas outras duas, como ir e vir no movimento heideggeriano de velamento e desvelamento.

Temporalidade e existência como prerrogativa do ser-acadêmico

Historicamente, a morte é tratada pela sociedade como uma condição da vida. Por isto, "vivências, homens singulares, um povo, uma cultura sucumbem na morte"1:36 e a analogia do homem com a morte é diferente daquela que tem com outros fenômenos transitórios. A morte caracteriza o ser temporal que todos nós somos, e nossa existência, enquanto seres, está diretamente conectada nesta perspectiva. O ser-acadêmico-de-enfermagem percebe-se enquanto ser finito e mortal quando se insere no campo hospitalar em seu processo de formação acadêmica. Ao vivenciar a morte do outro ele reflete sobre sua própria morte e a de seus entes queridos.

Em outras nuances da morte experienciada pelo homem em sua história, temos aquela em que a sua relação corresponde à morte do outro, não mais à própria morte, como os filósofos mencionam, mas à perspectiva de que ela ocorra a um ente querido, um amigo, um familiar, assumindo aí a dimensão de sofrimento e dor pela perda. Em meados do século XIX, o homem passa a ocupar-se menos com a própria morte e mais com a morte do outro. Esta atitude permanece até os dias de hoje, onde há preocupação consigo, mas, também, com a possibilidade de perder quem amamos. A partir do século XX, a morte, que era tratada como um fenômeno da natureza, que ocorria em casa, junto de seus entes, é dominada pela técnica, e vincula-se ao hospital, ao tratamento, à equipe de saúde, e não mais à família, como outrora.5Oliveira SG, Quintana AM, Bertolino KCO. Reflexões acerca da morte: um desafio para a enfermagem. Rev Bras Enferm. 2010 Nov-Dez; 63(6):1077-80.

Os aspectos temporais vinculados à morte e ao morrer trazem a perspectiva da vida, do viver como condição do ser-aí. A vida é uma disponibilização criativa, um expor-se, onde o ser-aí, denominado por Heidegger como presença ou ser-no-mundo, está nesta vida como experimentando e apreendendo o que é vivenciado em uma condição que denomina cisão-sujeito-objeto, o qual não pode ser separado.1Heidegger M. Ser e tempo. Bragança Paulista (SP): Editora Universitária São Francisco; 2008.

No movimento de pré-compreensão, o transitar pelos conceitos e definições sobre o fenômeno que está sendo desvelado é imprescindível, para que possam ser compreendidos os movimentos do ser-acadêmico e a possibilidade de ser-para-a-morte.

Percebemos nas entrevistas que o ser-acadêmico-de-enfermagem reconhece sua dimensão temporal, e a perspectiva da morte faz parte de sua experiência de vida. Nos momentos descritos por ele, estão em jogo a condição de saúde e doença, situações em sua infância que lhe trazem lembranças do hospital, de procedimentos médicos, de perda de familiares na morte e as condições existenciais que a finitude lhe apresenta a cada dia.

Essas situações vividas fazem parte da experiência fundamental do ser, denominadas de concepção prévia, entendidas como uma diretriz que sustenta tudo, a base de tudo o que podemos denominar vida. Então, "o nexo da vida consta de uma sequência de vivências no tempo. Nesta sequência de vivências, só é propriamente real a vivência simplesmente dada em cada agora. As vivências passadas e futuras já não são mais ou ainda não são reais".1:464

Em outra perspectiva, o autor supracitado afirma que, tomando por base a caracterização da vida enquanto período entre o nascimento e a morte, concebido de forma simplesmente temporal, não é suficiente para explicar este fenômeno. Há algo mais neste nexo do que somente o tempo, os eventos acontecem em si e o ser tem a possibilidade de experienciá-los de diferentes maneiras. Sendo assim, quando compreendido existencialmente, o nascimento não é e nunca pode ser um passado, no sentido do que não é mais simplesmente dado. Da mesma maneira, a morte não tem o modo de ser de algo que ainda simplesmente não se deu mais, que está pendente e em advento. "De fato, a presença só existe nascente e é nascente que ela já morre, no sentido de ser-para-a-morte".1:465- 66

Este solo da vida delimita a existência como a caracterização de algo, sua determinação de ser si-mesmo, em um apurado sentido do eu, porém, esta delimitação formal da existência dá-se a partir de uma interpretação de si-mesmo e da própria vida concebida pelo sentido do ser, onde o si-mesmo está vinculado ao mundo próprio, compartilhado e circundante, dando sentido à sua experiência, caracterizando a historicidade.1Heidegger M. Ser e tempo. Bragança Paulista (SP): Editora Universitária São Francisco; 2008.

O ser-acadêmico-de-enfermagem vivencia esta concepção histórica onde transita conforme podemos perceber no relato:

[...] se hoje eu tenho compaixão, se hoje posso exercer a enfermagem, porque acho que a enfermagem não é para qualquer um, você lida com as pessoas, você lida com um período crítico, então, para você ser um bom enfermeiro, para você cuidar de uma pessoa, você tem que ter uma imagem de vida, você tem que ter uma história de vida que te faça ser humilde o bastante para poder cuidar de uma pessoa, é uma construção do que sou hoje, acho que hoje consigo, vou conseguir, espero, como enfermeira, olhar para as pessoas com olhar diferente, poder dar um pouco de mim na profissão (A10).

Quando menciona que espera por algo em sua vida, um porvir está manifesto. O porvir é uma condição do ser, e não necessariamente está vinculado a uma perspectiva de futuro, mas a um acontecer da experiência. Outro relato que vincula o esperar enquanto possibilidade temporal diz respeito a como o ser-acadêmico-de-enfermagem quer vincular-se cotidianamente de forma diferente do que tem observado, denotando posicionamento próprio de sua vida.

Eu espero ser assim, e não perder isso com o tempo, sou carinhosa, e não como a gente vê hoje em dia, muita gente que não está nem aí para o serviço e faz de qualquer jeito, não queria me tornar mais uma (A3).

No movimento de retomada, descrita por Heidegger como lembrança, o ser-acadêmico-de-enfermagem rememora sua infância, e de como sua infância pode ter influenciado seu ser-para-a-morte, quando menciona o cuidado de sua mãe e o significado deste gesto enquanto modo de ser temporal.

[...] eu lembro da minha infância Tenho uma vizinha de infância que quando ela ficava doente, a mãe dela não cuidava, aí ela ia para a minha casa e a minha mãe cuidava (A4).

A experiência da morte: quando um ente querido se vai

Experienciar a morte se configura como modo de ser do ser-acadêmico-de-enfermagem que, ao ser questionado, desvela-se para seu enfrentamento. Cada ser, possui em seu íntimo uma concepção sobre esse vivenciar e pensa, no entanto, que isto lhe será suficiente para minimizar o sofrimento e a dor que a perda traz.

Para a filosofia heideggeriana, "na medida em que a vida é um todo fluente e infinito, mas que os conceitos são formas que estabilizam a vida torna-se impossível apreender verdadeiramente a vida".1:51 Portanto, as acepções sobre a morte assumem em cada ser uma possibilidade de sentido, que resgatamos nas situações difíceis, e conviver com a certeza da finitude alimenta muitas incertezas, neste universo de possibilidades que é a vida.

A perspectiva da morte gera no ser muitas sensações, pode-se sentir medo, ansiedade, angústia, tristeza, mas há uma em especial que faz com que o ser reflita sobre suas convicções: a sensação de que não viveu intensamente, de que poderia ter feito mais, outras coisas, deveria ter tido outras experiências. Esta percepção da vida, ao deparar-se com a possibilidade da morte, faz emergir sentimentos de culpa e estresse.5Oliveira SG, Quintana AM, Bertolino KCO. Reflexões acerca da morte: um desafio para a enfermagem. Rev Bras Enferm. 2010 Nov-Dez; 63(6):1077-80.

Nesse ponto de vista temporal, o ser enfrenta a perda de entes queridos, o que se configura em "uma das experiências mais intensamente dolorosas que o ser humano pode sofrer".6:389

Geralmente, a morte é concebida em nosso imaginário como uma sucessão temporal onde primeiramente o ser nasce, cresce, tem experiências, envelhece e só então a morte está presente no imaginário, como um depois. Esta visão biologicista da morte nem sempre acontece no cotidiano do ser, e o assombra por meio da doença, de um acidente, de um mal súbito, ou outra possibilidade não pensada racionalmente.

Pensar a morte enquanto perda, principalmente quando se trata de pessoas queridas, suscita sofrimento e dor diante da impossibilidade de se fazer alguma intervenção. A ausência do "familiar poderá levar a família à solidão existencial, em que todos os socorros e proteções serão ineficazes para debelá-la; assim, a família sente-se completamente perdida e desvalida",7:215 como podemos perceber no relato: [...] meu avô faleceu, foi bem triste, a minha avó ficou desolada. No começo ela não tinha ânimo para nada, não comia direito, foi outro obstáculo. Até minha avó entender o que aconteceu, ela passar bem por isso e ter ânimo, que tem que seguir, a vida continua, demorou. Hoje ela está bem (A1).

Sob este ângulo do ser-acadêmico-de-enfermagem, a morte do avô trouxe consequências para sua companheira de muitos anos, desestabilizando também sua vida, tendo em vista a convivência por longo tempo suscitar apego e afinidade mútuos e a perda de um dos entes gerar profundas mudanças em quem ficou. Ressalta-se aqui o quanto é difícil para os familiares aceitarem este processo de morte/morrer, considerando que a morte de um membro da família provoca intensa reação para o indivíduo enlutado e para o sistema familiar.7Santos EM, Sales CA. Familiares enlutados: compreensão fenomenológica existencial de suas vivências. Texto Contexto Enferm. 2011; 20(esp):214-22.

O ser-aí se manifesta na cotidianidade, e as vivências deste ser são trazidas à tona, sob a sua perspectiva diante das situações que fazem parte de seu mundo. Ser seu ente querido pressupõe que, em sua ausência na morte, a dor é sua, pela perda de seu ente, e, neste momento de sofrimento, apesar de já ter conhecimento da doença e da fragilidade de seu familiar, não compreende a morte como parte da vida humana.

[...] eu perdi o meu avô, foi bem triste. Ele sempre foi doente, ele era diabético, ele tinha um pulmão só, ele era debilitado. Às vezes ele tinha que ficar no oxigênio em casa. Eu tenho até pena, o tubinho de oxigênio dele lá, teve uma época em que ele vivia mais no hospital do que em casa (A3).

O impacto que a morte causa na vida familiar e, neste caso, no ser-acadêmico-de-enfermagem, é levado para a vida toda. Ao perder um ente, o ser guarda em suas lembranças a imagem deste e a revisita sempre que se defronta com uma situação parecida com aquela da sua perda. O ser-acadêmico-de-enfermagem neste estudo revelou a morte enquanto presença em sua vida. De diferentes maneiras ela se apresentou. Geralmente, em um primeiro momento, com os avós, mas também com primos, tios e outras pessoas queridas. Esta perda é lembrada por ele como fatalidade, injustiça, como algo que não deveria ter acontecido naquele momento, mesmo sem referir qual seria então o melhor momento para este acontecimento, quando ele seria menos doloroso.

[...] eu tenho um avô que nunca conheci, ele morreu antes de eu nascer, e tenho um avô que morreu quando eu estava na sexta série, ele estava com câncer no pulmão, eu era bem apegada a ele (A4).

[...] os meus avós eu quase não conheci, eles faleceram muito cedo, por parte de pai; quando eu nasci, um pouco depois, a minha avó, um ano depois, chegou a falecer e, por parte de minha mãe, os pais dela já tinham falecido, então eu não tive a oportunidade de conhecer (A5).

O ser livre para a morte coloca a existência em sua finitude, e esta finitude retira da presença a condição eterna de bem-estar a que temporalmente se oferece enquanto possibilidade, e a coloca "na simplicidade de seu destino".1:476

Os relatos do ser-acadêmico-de-enfermagem revelam que as vivências da perda, ao serem revisitadas, são capazes de fazê-lo vislumbrar a própria finitude como possibilidade de ser-para-a-morte, que o tempo adormece, mas a sua historicidade desvela. Assim, a mesma disposição antecipadora ao qual o ser-aí está imerso o conduz à compreensão de sua finitude, na tentativa de compreender a morte de outros entes.7Santos EM, Sales CA. Familiares enlutados: compreensão fenomenológica existencial de suas vivências. Texto Contexto Enferm. 2011; 20(esp):214-22.

A doença enquanto possibilidade de ser-para-a-morte

Nosso cotidiano nos revela uma contraditória percepção sobre a morte: em um aspecto, chama-nos a atenção cada notícia vinculada à morte ou ao processo de morrer, trazidos a todo instante pelos meios de comunicação; em outro aspecto, quando pensamos ou vivenciamos algo que nos aproxima ou lembra a nossa morte ou a de um ente querido, tentamos mudar de assunto ou sublimar tal pensamento a algo espiritual.

A doença é um desses aspectos que nos mantêm sempre conectados à morte e suas nuances. Quando um fenômeno abala a saúde e o ser passa a equilibrar sua vida a partir do que tem disponível emocionalmente e fisicamente, pensar na morte é quase sempre inevitável. Ao receber um diagnóstico médico detectando alguma alteração na saúde, por menor que seja, abrem-se as portas do ser para uma série de expectativas acerca de sua existência como ser-no-mundo.

Ao rememorar fatos ocorridos em sua vida, vinculados a algum tipo de fragilidade, o ser-acadêmico-de-enfermagem descreve a doença da mãe como uma experiência desagradável, na qual vivenciou sentimento de perda e dor vendo a morte como possibilidade:

[...] o que tenho marcado na minha adolescência de cuidado foi, mais ou menos com uns 15, 16 anos, a minha mãe ficou doente, ela teve trombose, e foi um período que ela ficou internada, acho que uns quatro meses, foi um período de choque para mim. Passa naquele momento na cabeça que eu posso perder a minha mãe, foi bem complicado (A5).

Outro relato sobre a experiência com a doença e a perspectiva da finitude é descrito pelo ser-acadêmico-de-enfermagem que vivenciou uma situação de cuidadora da mãe. Nesta referência sobre a doença, conta que a mãe precisou tomar uma decisão importante, envolvendo não somente a si, mas a outro ser, conforme observamos: [...] teve uma época que eu cuidei da minha mãe, ela tinha um mioma. Ela já tinha esse mioma inclusive quando estava grávida de mim. O médico tinha dito para ela: 'tu queres mesmo levar a gravidez à frente? Porque pode ser que aconteça de ter que escolher, ou o mioma ou o bebê, ou ela também', que a vida dela também estaria em risco, mas daí a minha mãe levou a gravidez até o final. Minha mãe tinha muito medo de fazer cirurgia, ela tinha muito receio, até hoje ela tem, minha mãe tem bastante receio com saúde, hospital (A1).

Os enfermeiros trabalham diretamente com esta realidade em seu cotidiano e, desde seu processo de escolha profissional, já sabem que a presença da morte é uma prerrogativa de seu trabalho. Em sua formação profissional, o ser-acadêmico-de-enfermagem transita por um contexto contrário ao de aceitação de morte natural, mas adquire conhecimentos e aprende a negar a morte e preservar a vida. Nossa sociedade ocidental é negadora da morte e, profissionalmente, a morte é considerada como um fracasso, tendo em vista os enfermeiros serem instruídos para impedi-la.8Oliveira WIA, Amorin RC. A morte e o morrer no processo de formação do enfermeiro. Rev Gaúcha Enferm. 2008 Jun; 29(2):191-8. Nesse caso dos profissionais, a morte de um ser cuidado gera dúvidas e questionamentos sobre a sua competência.

A possibilidade de aceitar a morte natural atualmente não faz parte do cotidiano profissional do enfermeiro, bem como da vida dos seres, na medida em que a tecnologia e os recursos desenvolvidos até então permitem que o ser doente tenha mais tempo de vida, ou a cura de sua patologia. A morte natural difundida entre os séculos V e XV, que ocorria no ambiente familiar, assistida por todos, e era aceita como uma certeza da vida, vivenciada e compartilhada entre os amigos e familiares, dando a oportunidade ao ser de despedir-se, não é mais vivenciada no mundo ocidental atualmente.5Oliveira SG, Quintana AM, Bertolino KCO. Reflexões acerca da morte: um desafio para a enfermagem. Rev Bras Enferm. 2010 Nov-Dez; 63(6):1077-80.

Entretanto, diante da perspectiva da morte, o ser-acadêmico-de-enfermagem vê em si o desvelamento do ser-para-a-morte, onde a finitude se concretiza como inevitável. E, ao escolher sua profissão, sua família tenta protegê-lo do sofrimento e da dor, conforme a descrição: [...] 'pensa bem, tu vai lidar com pessoas doentes, pode pegar uma doença, vai chorar, vai sofrer, sabe que tu é chorona, é sentimental, pode sofrer quando alguém morrer, quando alguém que tu queria muito, ficar pior' [o pai falando]. Aí eu fiquei pensando e disse: e se eu cuidar de alguém que ficar bom, a pessoa se recuperar e não morrer, ou mesmo, se a pessoa morrer, eu vou cuidar dessa pessoa, é isso que é importante, essa pessoa precisa de alguém que cuide dela (A7).

Por outro lado, há opiniões diferentes sobre a morte e seu modo de ser, como menciona outro estudo relacionado ao ser-acadêmico-de-enfermagem destacando que os recém-ingressos no curso têm a morte como inimiga, e acreditam ser seu objetivo lutar contra ela e preservar a vida.9Santos JL, Bueno SMV. Educação para a morte a docentes e discentes de enfermagem: revisão documental da literatura científica. Rev Esc Enferm USP. 2011 Mar; 45(1):272-6.

Em geral, os enfermeiros evitam falar sobre a morte em seu cotidiano, e quando falam, substituem a palavra morte por outra, que às vezes não significa a mesma coisa, ou ainda, se referem a ela de forma evasiva, dando a entender sobre o que estão falando.5Oliveira SG, Quintana AM, Bertolino KCO. Reflexões acerca da morte: um desafio para a enfermagem. Rev Bras Enferm. 2010 Nov-Dez; 63(6):1077-80. Este comportamento pode ser percebido neste relato do ser-acadêmico-de-enfermagem: [...] uma vez me deu convulsão, minha mãe conta que foi um susto grande, porque tive a convulsão, estava com febre muito alta, eles estavam me levando para o hospital e eu tive a convulsão. Fiquei internada, fiquei muito tempo desacordada da convulsão, foi sério. Para eles, foi um susto grande, até achavam que podia acontecer uma coisa mais grave (A1).

A dificuldade em abordar o tema acontece pelo fato de os profissionais, em sua formação, estarem vinculados à preservação da vida e à cura, sendo essas prerrogativas que lhe conferem gratificação pelo seu trabalho.1010 Vargas D. Morte e morrer: sentimentos e condutas de estudantes de enfermagem. Acta Paul Enferm. 2010 Mai-Jun; 23(3):404-10. Ao se referirem à morte, os profissionais experimentam sentimentos de tristeza e impotência, pois cuidar é sempre estar envolvido com o cuidado em uma relação de proximidade, principalmente quando houve um tempo maior nesta convivência.1111 Júnior FJG, Santos LCS, Moura PVS, Melo BMS, Monteiro CFS. Processo de morte e morrer: evidências da literatura científica de enfermagem. Rev Bras Enferm. 2011 Nov-Dez; 64(6):1122-6.

Nesta dinâmica existencial, o ser-acadêmico encontra obstáculos oriundos de sua compreensão prévia sobre a finitude, e ao mesmo tempo, se depara com outras possibilidades que não conhecia, este contexto se apresenta em um momento decisivo pessoal e profissional, pois sua ocupação com o cuidado lhe confere esse confronto permanente com a presença. Nesse sentido, "liberar a estrutura do acontecer e suas condições existenciais e temporais de possibilidade significa conquistar uma compreensão ontológica da historicidade".1:466 E, ao reconhecer-se enquanto ser histórico, o ser-acadêmico reflete sobre sua trajetória de vida e compreende sua própria temporalidade, como observamos na fala: [...] primeiro foi com meu avô, há oito anos atrás, desenvolveu um câncer de estômago, ele teve que operar do estômago. Ele ficou bem até dois anos atrás, daí voltou, não voltou na verdade, porque era outro câncer, na garganta, foi se agravando, dói um tempo, cuidando várias coisas. A gente levou ele, fez terapia, quimioterapia e tudo e, no final, foi para o pulmão e não teve jeito, foi um período difícil para a gente, assim, bem drástico (A2).

Este processo de compreensão é desvelado pelo ser-acadêmico ao revisitar suas lembranças, "compreender não é um mero registro de si, que apenas acompanharia todos os comportamentos da presença. Compreender significa projetar-se em cada possibilidade de ser-no-mundo, isto é, existir como essa possibilidade".1:480

Com relação ao processo compreensivo e interpretativo do fenômeno, o ser "ao apropriar-se da compreensão, a interpretação se move em sendo compreensivamente para uma totalidade conjuntural já compreendida".1:211 A assimilação do compreendido, que se mantém velado, desenrola-se no desvelamento conduzido pela visão prévia, a qual se fundamenta em uma posição prévia, como uma possibilidade determinada de interpretação.1Heidegger M. Ser e tempo. Bragança Paulista (SP): Editora Universitária São Francisco; 2008.

As reflexões do ser-acadêmico sobre a finitude, a morte e a perda em suas vivências possibilitaram a compreensão do ser-para-a-morte que todos somos e, a partir daí, sua interpretação da existência como prerrogativa temporal foi desvelada. Ao voltar-se para si mesmo, reconhece sua trajetória de vida enquanto viver e as suas experiências como um experienciar temporalmente, conforme sua interpretação: [...] as coisas passam e o tempo não volta, eu sempre digo para os meus colegas, eles dizem que querem que o tempo passe rápido. Eu sou diferente, eu já quero que o tempo não passe, eu quero aproveitar cada minuto, porque eu sei que o tempo passa rápido e eu quero aproveitar cada minuto. Wntão eu aproveito essas experiências também como profissional, eu tento aproveitar o máximo (A10).

Ao acolhermos esta possibilidade interpretativa para a existência, reconhecemos a singularidade e especificidade de cada ser e cada ente deste ser se manifesta em sua simplicidade, onde cada ente não se desvela senão por sobre o fundamento de uma compreensão prévia-conceitual, embora não ciente daquilo que esse ente respectivo é e como ele é. Toda interpretação ôntica move-se no solo de uma ontologia, solo esse de imediato e na maioria das vezes oculto. 1:72

O tempo passa a ser compreendido como o início de toda a existência, é por termos noção de nossa finitude, de nossa morte física, que organizamos nossa vida desde o momento que nos reconhecemos enquanto seres-no-mundo.

A perspectiva existencialista emerge como outra possibilidade de compreender a vida, considerando o homem como autor de sua história, como o grande responsável por seu destino e, neste sentido, mantendo o vínculo espaço-temporal no qual está inserido.

CONCLUSÃO

Ao nos debruçarmos na fenomenologia hermenêutica para desvelar o fenômeno do ser-acadêmico-de-enfermagem e sua experiência sobre a finitude e a morte, percebemos que este ser compreende-se como ser temporalmente inserido no mundo e tem consciência de que é um ser-para-a-morte.

Suas reflexões trazem à tona um universo de possibilidades de interpretação desta finitude, quando reflete sobre a morte, e seu retorno constante às questões fundamentais de seu ser, configurando-se como a base de toda a sua interpretação sobre a vida e o viver.

O ser-acadêmico-de-enfermagem enquanto ser-para-a-morte define-se como ser temporal e manifesta-se como ser-com, ou seja, um ser socialmente constituído, atento a seus entes queridos próximos de sua essência, preocupado com o outro e consigo mesmo. A compreensão e a interpretação das vivências do ser-acadêmico-de-enfermagem acerca da morte podem suscitar novas perspectivas para o ensino de enfermagem enquanto profissão de cuidado, onde conhecer seus acadêmicos e futuros profissionais permite compreender as suas condutas em seu porvir. A morte, enquanto paradoxo da vida, mais do que interpretada, deve ser assimilada como única certeza da vida e que nunca será desvelada em sua totalidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2013
  • Aceito
    05 Dez 2013
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