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A DRAMÁTICA DO “USO DE SI” NO TRABALHO DA EQUIPE DE ENFERMAGEM EM CLÍNICA CIRÚRGICA

RESUMO

Objetivo:

conhecer como ocorre o “uso de si” do enfermeiro em unidade de internação clínica cirúrgica sob a ótica da ergologia.

Método:

pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso, fundamentada no materialismo histórico e dialético e no referencial teórico da ergologia. Os participantes foram 12 enfermeiros atuantes em unidade de internação clínica cirúrgica de um hospital de alta complexidade. As fontes de evidência para a produção dos dados foram observação sistemática, análise de documentos e entrevista semiestruturada. A produção dos dados foi realizada entre os meses de março a setembro de 2015. Os dados foram analisados conforme a análise de conteúdo temática.

Resultados:

a partir da análise surgiu a categoria temática: Dramáticas do “uso de si” no trabalho do enfermeiro em unidade de internação clínica cirúrgica. Evidenciou-se que os enfermeiros se organizam de diferentes formas para efetivação do processo de trabalho, concretizando o uso de si em diversas situações, as quais tem relação com o gerenciamento do cuidado. Destaca-se que, embora haja o trabalho prescrito, os saberes, a experiência e os valores têm influência sobre o uso de si por parte destes trabalhadores, com vistas a renormatizar o trabalho.

Conclusão:

o enfermeiro em unidade de internação cirúrgica, desenvolve seu trabalho baseado em normas antecendentes, entretanto, com base em seu conhecimento, experiência e subjetividade, efetiva o uso de si, com vistas a renormatizar as atividades, exercendo autonomia em prol da melhoria do cuidado.

DESCRITORES
Enfermagem; Trabalho; Subjetividade; Ergologia; Enfermeiro; Serviço de saúde

ABSTRACT

Objective:

to know how the nurse's "use of self" occurs in a surgical in-patient unit from the perspective of ergology.

Method:

a qualitative case study based on historical and dialectical materialism and the theoretical reference of ergology. The study participants were 12 nurses working in a surgical unit of a high complexity hospital. The evidence sources for the data production were systematic observation, document analysis and semi-structured interview. The data were produced between March and September 2015. Data were analyzed according to the thematic content analysis.

Results:

The thematic category: Dramatic "use of self" in the work of the nurse in a surgical in-patient unit, emerged from the analysis. It was evidenced that nurses organize themselves in different ways to carry out the work process, concretizing the use of themselves in several situations, which is related to the management of care. It should be noted that, although there is prescribed work, the knowledge, experience and values influence the use of self by these workers, with a view to renormalizing work.

Conclusion:

the nurses in a surgical in-patient unit develop their work based on previous norms, as well as their knowledge, experience and subjectivity, effective use of self, aiming to renormalize activities, exercising autonomy for the improvement of care.

DESCRIPTORS
Nursing; Job; Subjectivity; Ergology; Nurse; Health Service

RESUMEN

Objetivo:

comprender cómo actúa el "uso de sé" del enfermero en unidad de internación clínica de acuerdo con la ergología.

Método:

investigación de abordaje cualitativo, tipo estudio de caso, fundamentada en el materialismo histórico y dialéctico, y en el referencial teórico de la ergología. Participaron 12 enfermeros actuantes en unidad de internación clínica quirúrgica de un hospital de alta complejidad. Fueron fuentes de evidencia para producción de datos: observación sistemática, análisis documental y entrevista semiestructurada. Datos recopilados de marzo a setiembre de 2015, estudiados por análisis de contenido temático.

Resultados:

del análisis surgió la categoría temática: Dramatización del "uso de sé" en el trabajo del enfermero en unidad de internación clínica quirúrgica. Se evidenció que los enfermeros se organizan de diferentes maneras para ejecutar el proceso de trabajo, aplicando el sentido común en diversas circunstancias relacionadas con la gestión del cuidado. Se resalta que aunque el trabajo esté predeterminado, los saberes, la experiencia y los valores tienen influencia en el sentido común por parte de estos trabajadores, apuntando a renormatizar el trabajo.

Conclusión:

el enfermero en unidad de internación quirúrgica desarrolla su trabajo en base a normas y antecedentes; sin embargo, basándose en su conocimiento, experiencia y subjetividad, aplica el sentido común apuntando a renormatizar las actividades, ejerciendo su autonomía en pro de mejorar la atención.

DESCRIPTORES
Enfermería; Trabajo; Subjetividad; Ergología; Enfermero; Servicio de salud

INTRODUÇÃO

Atualmente, viver significa estar em permanentes transformações, tanto pessoais quanto profissionais, pois denota estar em contínuo movimento de mudanças perante a sociedade. Nessa perspectiva, com o passar do tempo, inclusive o trabalho humano foi modificando-se, de acordo com as diferentes etapas da evolução da sociedade, culminando, atualmente, com as prerrogativas do modelo capitalista.

O ser humano constitui sua história social produzindo e reproduzindo, na vida, por meio do trabalho, que, por isso, se torna, também, método de análise da vida intelectual, social, política e econômica. Sob esta ótica, pode-se dizer que os desafios do cotidiano induzem a cursar caminhos que têm, por finalidade, um contínuo e reflexivo vivenciar das atividades da vida humana, remetendo as pessoas, principalmente, “ao pensar” o trabalho no seu plano pessoal, profissional e em suas repercussões.11. Fischborn AF, Viegas MF. A atividade dos trabalhadores de enfermagem numa unidade hospitalar: entre normas e renormalizações. Trab Educ Saúde [Internet]. 2015 Dec [cited 2017 Oct 17];13(4):657-74. Available from: Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S19817462015000300657&lng=en&nrm=iso
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-22. Schwartz Y. Manifesto por ergoengajamento. In: Bendassolli PF, Soboll LAP, editors. Clínicas do trabalho. São Paulo (BR): Atlas; 2011.

O trabalho é condição para a vida social, tornando-se fundamental para a vida humana.33. Antunes R. A dialética do trabalho. Escritos de Marx e Engels. São Paulo (BR): Expressão Popular; 2013. O processo de trabalho humano envolve intervenção sobre um objeto, promovendo uma transformação com vistas a atender necessidades. Este processo envolve três elementos: a atividade adequada a um fim, que é o próprio trabalho/a ação transformadora; a matéria que se aplica ao trabalho, o objeto de trabalho; os meios de trabalho/o instrumental de trabalho.44. Marx K. O capital: crítica da economia política: livro I. Rio de Janeiro (BR): Civilização Brasileira; 2013. Neste ínterim, destaca-se o processo de trabalho em saúde, que caracteriza-se como sendo complexo e composto por inúmeros participantes envolvidos na execução das ações: enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, farmacêuticos, funcionários da copa e higienização, bem como os setores de administração, entre outros.11. Fischborn AF, Viegas MF. A atividade dos trabalhadores de enfermagem numa unidade hospitalar: entre normas e renormalizações. Trab Educ Saúde [Internet]. 2015 Dec [cited 2017 Oct 17];13(4):657-74. Available from: Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S19817462015000300657&lng=en&nrm=iso
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Em relação ao trabalho de enfermagem, em âmbito hospitalar, é desenvolvido em grande parte por técnicos de enfermagem e enfermeiros que, de acordo com o seu grau de formação, exercem atividades e ocupam posições distintas na escala hierárquica do trabalho. Além de funções assistenciais e de cuidado relacionadas ao paciente, os enfermeiros, assumem ações de gestão, administrativas e de organização, incluindo também o trabalho de supervisão dos técnicos em enfermagem.11. Fischborn AF, Viegas MF. A atividade dos trabalhadores de enfermagem numa unidade hospitalar: entre normas e renormalizações. Trab Educ Saúde [Internet]. 2015 Dec [cited 2017 Oct 17];13(4):657-74. Available from: Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S19817462015000300657&lng=en&nrm=iso
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Com relação ao trabalho em unidade de internação cirúrgica, cenário dessa investigação, pode-se destacar a multiplicidade de atividades desenvolvidas pelos enfermeiros, direcionadas ao gerenciamento do cuidado de indivíduos que vivenciam o ato cirúrgico e seus familiares. Tais atividades envolvem tanto a realização de ações assistenciais propriamente ditas, como as gerenciais, relativas à organização do processo assistencial, do qual participam diferentes profissionais.

Para tanto, ao desenvolverem suas atividades, os enfermeiros se utilizam de diversos instrumentos de trabalho, destacando-se conhecimentos e saberes envolvidos na tomada de decisão e de condutas. Desta forma, os enfermeiros utilizam, durante o trabalho, seus conhecimentos/saberes subjetivos acumulados, que acabam influenciando na maneira com que atuam no trabalho.55. Pinno C, Camponogara S. O trabalho de enfermeiros em unidade de internação cirúrgica sob a ótica da ergologia. Biblioteca Lascasas [Internet]. 2015 July [cited 2017 Mar 17];11(3):80-9. Available from: Available from: http://www.index-f.com/lascasas/documentos/lc0855.php .
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Sob essa perspectiva, o filósofo francês Yves Schwartz66. Schwartz Y. Trabalho e saber. Trab Educ [Internet]. 2003 [cited 2017 Nov 17];12(1):21-34. Available from: Available from: http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/trabedu/article/viewFile/1227/989
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-77. Schwartz Y. Le paradigme ergologique ou um métier de philosophe. Toulouse(FR): Octares; 2000. propôs a abordagem ergológica para a produção de conhecimento sobre o trabalho. A proposta da ergologia consiste em produzir saberes, considerando o conhecimento e experiência dos trabalhadores, discutindo o trabalho em sua essência, os aspectos gerais e específicos envolvidos na atividade, o que inclui o constante questionamento a respeito dos saberes, suas normas e variabilidades.88. Schwartz Y. A abordagem do trabalho reconfigura nossa relação com os saberes acadêmicos: as antecipações do trabalho. In: Souza M, Faita D organizadores. Linguagem e trabalho: construção de objetos de análise no Brasil e na França. São Paulo (BR): Cortez; 2002.

O uso de si pelos trabalhadores, de acordo com a abordagem ergológica, caracteriza-se pelo “uso de si por si próprio”, quando o próprio trabalhador cria condições e estratégias particulares, utilizando sua subjetividade e autonomia em vista da atuação e superação dos desafios do trabalho, modificando prescrições e normas.22. Schwartz Y. Manifesto por ergoengajamento. In: Bendassolli PF, Soboll LAP, editors. Clínicas do trabalho. São Paulo (BR): Atlas; 2011. Parte 170. -se do pressuposto que nenhum trabalhador consegue apenas executar alguma atividade sem fazer uso do seu “si”, da sua autonomia e subjetividade.99. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói(BR): EdUFF; 2010.

A partir da perspectiva da abordagem ergológica, a vida é uma dramática constante de negociações entre a obrigação de fazer, no sentido do aqui e agora em um mundo repleto de normas, temporariamente estabelecidas, profundamente ambíguas. Nessa dramática de uso de si, não existe somente uma execução da atividade, mas o trabalhador é convocado em toda sua subjetividade.1010. Campos LF, Melo MRAC, Telles PCP Filho. Ergologia como referencial teórico: possibilidades para assistência e pesquisa em enfermagem. Rev Enferm Cent O Min [Internet]. 2014 Mar [cited 2017 Mar 17];4(2):1222-8. Available from: Available from: http://www.seer.ufsj.edu.br/index.php/recom/article/view/613/757
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O trabalhador vivencia a dramática do uso de si quando se encontra em momentos de escolhas, de dúvidas em relação ao trabalho prescrito e ao que realmente necessita ser realizado.

Diante do exposto, depreende-se que o trabalho do enfermeiro, embora supostamente tenha características atreladas ao cumprimento de tarefas, o que lhe confere uma conotação simplista, na verdade se constitui em uma delicada e complexa trama, que envolve diferentes aspectos e dimensões.

Desta forma, considera-se que, a abordagem ergológica constitui-se em uma estratégia para a apreciação do trabalho, no sentido de aportar subsídios para reflexões sobre o trabalho do enfermeiro em unidade de internação clínica cirúrgica e os múltiplos aspectos envolvidos no desenvolvimento dessa atividade. Assim sendo, a questão norteadora da investigação foi: como ocorre o uso de si do enfermeiro em unidade de internação clínica cirúrgica sob a ótica da ergologia? O objetivo geral do estudo consistiu em conhecer como ocorre o uso de si do enfermeiro em unidade de internação clínica cirúrgica sob a ótica da ergologia.

MÉTODO

O presente estudo consiste em uma pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso,1111. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre(BR): Bookman; 2015. fundamentada na vertente filosófica do materialismo histórico e dialético e no referencial teórico da ergologia.99. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói(BR): EdUFF; 2010. O caso estudado envolveu o uso de si do enfermeiro em unidade de Internação clínica cirúrgica de um hospital de alta complexidade do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. No período de realização da pesquisa, a unidade de internação clínica cirúrgica possuía 52 leitos instalados; contudo, quatro estavam bloqueados, restando 48 operacionais. No setor, são atendidos pacientes de diferentes clínicas: Cirurgia Geral, Urologia, Traumatologia, Cabeça e Pescoço, Digestiva, Torácica, Vascular e Proctologia. Em média, ocorrem 403 internações/ano. A média de permanência dos pacientes na Clínica Cirúrgica é 12,78 dias. A unidade contava, na época do estudo, com um total de 14 enfermeiros, sendo dez servidores públicos federais e quatro contratados pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).

Os participantes consistiram em 12 enfermeiros elegíveis para participar do estudo, a partir da aplicação do seguinte critério de inclusão: atuar no setor há, pelo menos, seis meses. Outros dois enfermeiros foram excluídos após aplicação dos critérios de inclusão/exclusão, devido ao fato de não trabalharem na unidade há mais de seis meses. Garantiu-se aos participantes do estudo o anonimato e a confidencialidade dos mesmos, com a utilização de nomes fictícios escolhidos pelas pesquisadoras na reprodução das falas, sendo denominados sequencialmente (E1, E2, E3, E4...). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A produção dos dados foi realizada entre os meses de março e setembro de 2015, após a autorização de Comitê de Ética em Pesquisa. Foram utilizadas as seguintes fontes de evidência:1111. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre(BR): Bookman; 2015. pesquisa documental, observação sistemática e entrevista semiestruturada. Primeiramente, realizou-se a pesquisa documental e a observação sistemática e, em seguida, as entrevistas semiestruturadas. A pesquisa documental teve como base a lista de leitos contendo a relação de pacientes internados, com atualização diária, e atas de reuniões, sendo analisadas as da equipe de enfermagem ocorridas desde o mês de outubro de 2009 até 24 de março de 2015, totalizando 73 atas. Também foram analisadas, concomitantemente à pesquisa documental e durante a fase de observação: evoluções de enfermagem, realizadas pelo enfermeiro e pelo técnico de enfermagem; relatórios de enfermagem, sendo que estes eram manipulados pelos enfermeiros e continham todos os leitos, nomes dos pacientes, cirurgia realizada e alguma anotação relevante. Foram analisados, ainda, os Procedimentos Operacionais Padrão (POPs) da instituição, os quais descrevem como devem ser realizados os procedimentos de enfermagem.

A etapa de observação ocorreu concomitantemente à etapa de pesquisa documental e anteriormente à realização de entrevistas individuais com os participantes. A observação incluiu os 12 enfermeiros atuantes que aceitaram participar da pesquisa. Houve a totalização de 35 horas de observação, divididas em doze períodos, sendo observados os três turnos de trabalho nos diferentes dias da semana. Os registros consistiram em anotações cursivas (contínuas), uso de palavras-chaves, checklist e códigos em diário de campo.11 Os períodos tiveram, em média, duas horas de observação, o que esteve pautado na qualidade da atenção despendida para essa atividade.

Em seguida ao período de observações e pesquisa documental, ocorreu a execução das entrevistas individuais. As entrevistas foram realizadas em sala reservada e tiveram duração média de 45 minutos a uma hora. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas para posterior análise. Foi utilizado o critério de exaustão12 para encerramento das entrevistas. A análise do material resultante da observação, pesquisa documental e da transcrição das entrevistas deu-se pela análise temática de conteúdo.13 No estudo de caso, a análise e reflexões dos achados estão presentes desde o início da produção dos dados, ou seja, desde o começo da observação e da pesquisa documental. Também se analisaram os resultados de forma triangular, identificando convergências ou divergências, proporcionando encadeamento das evidências.

RESULTADOS

A partir da análise dos resultados emergiu a categoria: Dramáticas do “uso de si” durante o trabalho do enfermeiro em unidade de internação clínica cirúrgica, evidenciando características do uso de si do enfermeiro durante o trabalho. Destaca-se, especialmente, o uso de si nas diversas atividades/procedimentos que realiza, os diferentes modos de organização durante os turnos de trabalho nas relações multiprofissionais, o que interfere na autonomia profissional, principalmente, levando-se em consideração a experiência pessoal de cada enfermeiro.

Com relação às atividades que o enfermeiro desenvolve, estas são prescritas e normatizadas. No entanto, existe uma essência, caracterizada pela subjetividade/ individualidade, tanto pessoal quanto histórica de cada enfermeiro, a qual pode ser percebida e descrita nos seguintes depoimentos:

[...] eu ainda percebo bastante diferença na realização do procedimento técnico, mesmo que esteja descrito que é para ser feito de uma forma; diferença na realização de cada um, cada um [enfermeiro] acaba trazendo seu jeito de trabalhar e não faz exatamente como está ali [normas, procedimento operacional padrão] (E12). [...] mas ninguém é igual; não significa que a técnica da colega seja errada ou a minha seja errada, cada pessoa tem um jeito, a gente segue princípios (E6).

Percebe-se, também, por meio dos depoimentos e da observação realizada, que a maneira como os enfermeiros organizam-se para executar o seu trabalho diferencia-se entre os mesmos: [...] a gente já tem uma prática bem longa, se organizar é pegar teu relatório e confrontar ou comparar e ver (E9).

Cada participante da pesquisa organiza-se da forma que considerar a melhor para si, levando em conta as normas antecedentes e o trabalho prescrito, como confirmado na observação e nas entrevistas. No depoimento de E9, quando menciona sobre o relatório, refere-se ao relatório de enfermagem, o qual é realizado pelo enfermeiro da noite anterior e os enfermeiros da manhã, tarde e noite do dia seguinte, que o utilizam para conhecimento das informações de todos os pacientes internados na Unidade. Esse relatório vai sendo atualizado em cada passagem de plantão e durante o próprio plantão. Apreendeu-se, durante o período de observação, que o relatório é algo muito importante para o trabalho do enfermeiro, sendo, muitas vezes, utilizado como norteador das atividades que serão desenvolvidas naquele respectivo plantão. Ainda com relação ao relatório de enfermagem, E1 afirmou o seguinte:

Eu fechava o olho, eu sabia tudo que meu paciente tinha, eu não precisava de relatório. O enfermeiro tem que ter o controle total de seu paciente; se foi designado 25 pacientes, tu tem que ter o controle daqueles pacientes; imagina coisa ridícula o médico vem te pedir o paciente tal, mas eu não sei, como que tu não vai saber! Isso é inadmissível, não pode fazer: não sei, eu acho. Essas palavras não poderiam existir para a enfermagem: eu acho, talvez, eu não sei (E1).

A partir da fala de E1, pode-se perceber que a norma da instituição consiste em utilizar o relatório de enfermagem. No entanto, o mesmo não o faz, mas, nem por isso, considera que seu trabalho é desqualificado. No período de observação, alguns enfermeiros utilizavam o relatório de enfermagem e outros não o utilizavam, criando diferentes formas para sua própria organização, o que se salienta nos seguintes relatos:

eu sou muito organizada. Eu procuro organizar da melhor forma possível para atender o paciente. Então, eu tenho o meu relatório e eu tenho o meu papelzinho de bolso, todas as pendências que o paciente me solicita eu escrevo no meu papelzinho e procuro sanar todas até o final do plantão, [...] eu procuro me organizar assim (E11). Eu tenho por hábito anotar aqui [papel de bolso]. Quando estão me passando o plantão eu já vou colocando as intercorrências, aquilo que ficou pendente, paciente do leito 20 passou um cateter central e fez um RX [Radiografia] e não foi avaliado, então já anoto: leito 20 avaliar RX. Na passagem de plantão, quando eu recebo, eu já anoto alguma coisa e depois quando eu passo as visitas, eu já vou vendo as intercorrências junto ao paciente (E7).

Com relação a essa organização do trabalho do enfermeiro, cada um organiza-se de uma forma singular, e, uma das formas que se destaca, tanto na observação quanto nas entrevistas, é a organização de “si” com relação às prioridades do processo de trabalho:

[...] a gente socorre esses pacientes que estão precisando de imediato ajuda, de cuidado, ou por estarem graves ou uma bomba de infusão estar apitando ou sangramento, curativo molhado, paciente com dor, essas coisas são as primeiras coisas que a gente faz (E5). Eu priorizo pela complexidade, pelo quadro do paciente, pacientes em ventilação mecânica eu prefiro ir com as gurias [técnicas de enfermagem] (E10). [...] vou me organizando e fazendo aquilo que é prioridade (E6).

Destaca-se que, no cenário investigado, face à característica da instituição, a qual é referência para atendimentos de alta complexidade em sua região de abrangência, e da falta de leitos de terapia intensiva em número suficiente para atender a demanda de pacientes graves, é muito comum haver pacientes graves internados nas enfermarias. Esse fato resulta em uma necessidade adicional de organização, por parte de toda equipe assistencial, especialmente dos enfermeiros, como identificado na observação.

Durante o processo de trabalho do enfermeiro na unidade de internação clínica cirúrgica, pode-se observar que este se organiza tentando resolver as prioridades com relação aos pacientes, como explicitado e corroborando com os depoimentos de E5, E10, E6. Esse assunto também é alvo de discussão em reunião de equipe, haja vista a constatação em ata (ata nº 005/2013), de que deve haver uma priorização, por parte dos enfermeiros, para atendimento a pacientes graves, inclusive com ênfase para solicitação de auxílio dos técnicos de enfermagem. Assim, os enfermeiros destacam a prioridade de atendimentos aos pacientes graves:

[...] na passagem do plantão, já se consegue ter uma visão geral de como estão os pacientes, de como está a unidade. Então, ali, já se consegue determinar, por exemplo, se tem um paciente grave, se tem um paciente em ventilação mecânica, essa é a tua prioridade ou se tem um paciente instável (E1).

Com relação à atuação do enfermeiro com o técnico de enfermagem, evidenciou-se diferentes situações por meio das quais o enfermeiro realiza diferentes usos de si, como observado nos depoimentos a seguir:

[...] eu tenho impressão que eu tenho um bom traquejo ainda, consigo bastante coisas com os funcionários, inclusive com funcionários muito complicados (E9). Outra coisa é realmente dar atenção individual para todos os funcionários. Hoje de noite eu vou trabalhar com dois funcionários, eu já conversei com os dois funcionários: assim e assim, que nós vamos fazer, eu vou te ajudar nisso, nisso e naquilo (E6). Uma coisa que eu sempre procuro fazer, toda vez que eu vou me entrosar num grupo diferente, é conhecer as pessoas com quem vou trabalhar, procurar cativar (E10).

Os depoimentos evidenciam que, muito além do enfermeiro apenas realizar suas atividades de rotinas, tem-se toda uma equipe, composta por diferentes trabalhadores da saúde, com a qual o mesmo deve trabalhar em conjunto para a prestação da assistência qualificada. A partir dessa perspectiva, em que o enfermeiro atua de maneira singular, fazendo diferentes usos de si, durante o processo de trabalho, depreende-se que ocorre maior ou menor uso de autonomia, levando-se em consideração as atividades pelas quais é responsável. Além disso, a autonomia também gera implicações, diretamente relacionadas com a própria equipe de enfermagem e com a equipe multiprofissional.

A autonomia foi objeto de discussão nas reuniões de equipe, conforme explicitado nas Atas nº 10/2011 e 06/2010: [...] ressalta a importância da autonomia dos enfermeiros na unidade. E que o enfermeiro deve se comprometer e se empenhar para o trabalho ter bom andamento e sucesso [...] (Ata nº 10/2011). O enfermeiro pode fazer qualquer atividade da sua função sem desmerecer seu cargo (Ata nº 06/2010). Por meio do que foi explicitado nas atas, percebe-se que, durante as reuniões, a temática autonomia do enfermeiro tornou-se aspecto importante nas discussões para ter um bom andamento e sucesso durante o processo de trabalho e, também, em vista do estímulo e promoção da autonomia do enfermeiro. Nesse sentido, os participantes relataram o seguinte:

eu acho que aqui, esse andar [unidade de internação clínica cirúrgica] te dá uma “baita” autonomia do enfermeiro e por ser um hospital-escola também, tu [enfermeiro] tem autonomia de lidar com o médico, residente; pelo menos, eu busco isso no meu trabalho, de falar muito com as pessoas [equipe multiprofissional] de conversar o caso dos pacientes (E11). [...] eu acho que a gente tem bastante autonomia para decidir algumas coisas (E10). A autonomia, o respeito vai se conquistando. Através das tuas ações. Por exemplo, quando algum [técnico de enfermagem] chama para avaliar algum paciente, tu [enfermeiro] indo lá, avaliar, fazer, dar uma resposta, assim tu [enfermeiro] vai conquistando (E2).

Os participantes sinalizaram o uso de sua autonomia de diferentes maneiras com relação às decisões a serem tomadas com o paciente, atividades específicas (avaliação de pacientes), respeito e confiança para com a equipe. Esses aspectos permeiam o decorrer do processo de trabalho do enfermeiro, constituindo-se em algo peculiar e delicado, que é extremamente diferente entre um enfermeiro e outro, uma vez que está ligado aos diferentes usos de si que podem acontecer.

Em relação aos posicionamentos/usos de si que devem ser adotados pelos enfermeiros, estes podem ser observados no depoimento a seguir:

[...] por exemplo, eu decidir uma coisa frente ao paciente, esse paciente está com 37,4 de temperatura, não vamos fazer esse sangue, eu digo, pode fazer, isso eu acho que é autonomia. Ou, então, o paciente está com bexigoma [bexiga com mais de urina do que a sua capacidade normal] e vamos passar uma sonda, vamos passar uma sonda de alívio ou de demora; não, eu vou passar uma de demora; esse paciente está grave. Não, está evoluindo bem. (E2)

Na perspectiva desse depoimento, salienta-se que, no cenário investigado, o enfermeiro possui autonomia para a tomada de decisões diante das problemáticas que surgem durante o processo de trabalho. Durante a observação realizada, percebeu-se que o enfermeiro se deparava com diversas situações nas quais devia adotar alguma conduta perante o paciente. Quando isso ocorria, após realizar a mesma, necessitava comunicar ao médico e/ou técnico de enfermagem. Ao comunicar e ao mesmo tempo argumentar e esclarecer o porquê de sua decisão, os outros profissionais não questionavam ou duvidavam da conduta do enfermeiro. A ocorrência dessas situações representam maior autonomia ao enfermeiro, o que pode ser observado no depoimento a seguir:

autonomia é poder chegar no lugar de serviço e poder fazer todo o plano de trabalho para aquele turno, ver um paciente que precisa de um colchão específico, de uma cobertura [cobertura para lesões de pele], o enfermeiro tem autonomia para chegar lá e dizer não, mas tem que ter base para isso. Exemplo: eu acho que o melhor é o alginato [tipo de cobertura para lesão de pele] e ter o poder de decidir por aquilo, por mais que os residentes venham e querem carvão [tipo de cobertura para lesão de pele]. Tem que ter autonomia e saber argumentar. [...] Bastante conhecimento porque não adianta querer dizer: é para usar alginato; mas não sei para que serve o alginato, se chegar e dizer que tem que ser o alginato, eles vão me perguntar porque tem que ser o alginato e não tem que ser o carvão, aí não adianta dizer porque ‘eu acho melhor’, mas acha melhor porquê? [...] (E7).

A partir do depoimento E7, percebe-se que a efetivação da autonomia do enfermeiro envolve desde aspectos do desenvolvimento pessoal (uso de si e subjetividade) até as questões que abarcam o trabalho em si. Com relação a esses aspectos, destaca-se o seguinte depoimento:

um dia eu tive o desprazer de me encontrar com um residente [médico] [...], ele disse que teria que ensinar os enfermeiros a trocar os drenos de tórax. Eu digo: mas como assim? [...] eu acho que tu falou com a pessoa errada, na unidade [unidade de clínica cirúrgica] errada, na hora errada. Como assim ensinar? Tem que ter um pouco mais de humildade para falar com as pessoas. Então, se tu achas que a gente [enfermeiros] está fazendo alguma coisa errada, essa coisa não está errada, a gente está fazendo aquilo que nos foi passado, mas se tem uma inovação, a gente é realmente aberto para todas as inovações. Outro exemplo: um paciente estava com alta, e eu disse: não, esse paciente não vai ter alta. Ele não tem condições de ir embora com essa lesão aberta. Aí, o residente foi dizer: quem eu pensava que eu era, que eu estava interrompendo uma alta. Eu digo: eu sou um profissional de nível superior tanto quanto tu e de feridas eu entendo e esse paciente não pode ir embora assim [...]. Ela foi para o hospital de origem, mas depois de duas semanas (E1).

No depoimento de E1, pode-se salientar o seu uso de si “firme”, impondo-se com relação à alta de uma paciente da unidade de internação clínica cirúrgica e promovendo sua autonomia com relação à outra classe de profissional da área de saúde. Para haver autonomia, os enfermeiros relataram nos depoimentos que é necessário possuir conhecimento durante o processo de trabalho. O mesmo pode ser visto nos seguintes depoimentos:

autonomia, acho que é a capacidade que tenho de decidir sobre o que é melhor para o paciente dentro da minha alçada, dentro dos meus conhecimentos. Quanto maior a minha bagagem de conhecimento, mais segurança eu vou ter e melhor eu vou desenvolver minha autonomia. Consequentemente, se eu tenho segurança para tomar as minhas decisões, eu passo isso para os outros profissionais, que também vem a construir na parte da minha autonomia (E1). [...] Quando falam em autonomia, o que vem a minha cabeça é conhecimento, porque para ti ter uma autonomia, em primeiro lugar tu tem que ter conhecimento (E11). Conhecimento. [...] só pode ter autonomia se tu tem conhecimento; se tu não tem conhecimento, tu não tem condições de debater com ninguém, tu não pode articular nada, tem só que aceitar (E9).

Diante dos depoimentos, evidencia-se que o conhecimento é um aspecto essencial para o exercício da autonomia dos enfermeiros. No momento em que os mesmos possuem conhecimento em relação às atividades assistenciais, poderão fazer sucessivos e resolutivos usos de si ao ponto de proporcionar autonomia durante o processo de trabalho. O conhecimento também é referido envolvendo a experiência dos enfermeiros: eu vejo que o pessoal que já trabalha há mais tempo tem mais experiência, mais autonomia, não liga para o médico perguntando se pode ou não pode, eles sabem (E7).

O participante (E7) relatou que quando o profissional de enfermagem atua há mais tempo, o mesmo possui mais experiência e maior autonomia. Por fim, destaca-se que, por mais que exista o trabalho prescrito e as normas antecedentes, os quais regem o trabalho de enfermagem, os enfermeiros fazem uso de sua subjetividade pessoal e histórica em cada atividade que desenvolvem, efetivando seu uso de si.

Dessa forma, o trabalho do enfermeiro em unidade de internação clinica cirúrgica, configura-se em uma dramática, na qual estão envolvidas as normas antecedentes (o trabalho prescrito) e a atividade efetivamente realizada, mediada pelo uso de si, o qual está ancorado em saberes, experiências anteriores e valores do trabalhador - no uso de si. Ao se conhecer o modo como os enfermeiros de unidade de internação clínica cirúrgica fazem uso de si, consequentemente, pode-se buscar estratégias para fomentar maior autonomia no trabalho, com vistas a um cuidado mais qualificado e maior visibilidade profissional.

DISCUSSÃO

Os resultados da investigação permitem inferir que os enfermeiros, no seu trabalho em unidade de internação clínica cirúrgica, efetivam o seu trabalho levando em consideração normas antecedentes, ou seja, o trabalho prescrito. Entretanto, com base em seus saberes, experiências e valores, sentem-se convocados a renormatizar atividades, envolvendo-se em dramáticas do uso de si.

A dramática do uso de si pelo enfermeiro, remete-se não somente ao fato de uma execução de atividades e fatores que influenciam no processo de trabalho, mas, de um ‘uso’ da sua subjetividade e experiência profissional. Os saberes coletivos e individuais, adquiridos por meio da experiência e do conhecimento científico, envolvem essa dimensão dramática dos usos de si no trabalho de enfermagem, na produção de normas, saberes e valores na atividade.1414. Santos TM, Camponogara S. A look at the work of nursing and ergology. Trab Educ Saúde [Internet]. 2014 Apr [cited 2017 Nov 14];12(1):149-63. Available from: Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462009&lng=en&nrm=iso
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Por meio dos depoimentos dos participantes, destaca-se que os mesmos enfatizam que, durante o trabalho, existem normas antecedentes e o trabalho prescrito, que devem seguir. No entanto, para a realização das atividades (técnicas e procedimentos de responsabilidade do enfermeiro), afirmaram sobre o ‘jeito’ que cada um desenvolve para a efetivação de seu trabalho. Este ‘jeito’ é marcado pelo seu uso de si.

Nessa dramática do uso de si, não existe somente uma execução da atividade, mas, o trabalhador é convocado em toda sua subjetividade.1515. Campos LF, Melo MRAC, Telles PCP Filho. Ergologia como referencial teórico: possibilidades para assistência e pesquisa em enfermagem. Rev Enferm Cent O Min [Internet]. 2014 Mar [cited 2017 Mar 17];4(2):1222-8. Available from: Available from: http://www.seer.ufsj.edu.br/index.php/recom/article/view/613/757 .
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Também pode-se dizer que a realização da atividade envolvendo o uso de si perpassa o verbal e o não-verbal, atravessa o corpo e a alma, o biológico e o cultural, o efetivo e o racional, envolvendo o inconsciente, o pré-consciente e o consciente do enfermeiro.1616. Beyer FM. Penser le politique dans l’activité à partir des orientations du travail. Ergologia [Internet]. 2014 Mar [cited 2017 Nov 17];1(11):25-69. Available from: Available from: http://www.encadrer-et-manager.com/pdf/6-ANVIE.pdf
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Desta forma, considera-se que o uso de si envolve não somente o físico, mas, o emocional, o afetivo e o histórico-social.

Por meio do uso de si, o enfermeiro não é considerado uma “massa mole”, a qual inscreveria passivamente a memória da reprodução das atividades do trabalho. No momento em que se afirma que o trabalho também é uso de si, considera-se que o mesmo é um lugar de problema, de uma tensão problemática, de um espaço de sempre negociação: não existe uma simples execução de atividade, mas sim, uma essência, um uso. É o trabalhador, no seu ser, que é convocado, com capacidades e recursos pessoais infinitamente vastos.77. Schwartz Y. Le paradigme ergologique ou um métier de philosophe. Toulouse(FR): Octares; 2000.

Diante dos resultados, percebe-se que os enfermeiros, apesar de terem uma rotina de trabalho semelhante, imprimem ao seu trabalho um modo peculiar de organizar-se, na perspectiva de buscar assegurar a qualidade do cuidado a ser prestado aos pacientes. A partir deste contexto e da visão ergológica, assegura-se que o trabalhador implica-se nas atividades com os seus valores, sua história singular e, principalmente, com a sua capacidade instituinte para o trabalho. Isto permite-lhe transformar-se e transformar o seu trabalho quando renormatiza as normas antecedentes, fazendo uso de si.

Nenhum trabalho é mera execução, repetição de movimentos, gestos, sequências de atividades. Todas as atividades são ressingularizadas e consistem em uma renormatização envolvendo como cada enfermeiro organiza-se, tanto por meio do relatório como por prioridades. A partir dessa perspectiva, o trabalho em saúde, especialmente o do enfermeiro, pode se caracterizar como um contexto e espaço no qual ocorrem debates entre normas e as renormatizações. A renormatização considera os saberes e poderes concretizados, efetivamente, durante a prática do enfermeiro, por meio das relações que aí se estabelecem.11. Fischborn AF, Viegas MF. A atividade dos trabalhadores de enfermagem numa unidade hospitalar: entre normas e renormalizações. Trab Educ Saúde [Internet]. 2015 Dec [cited 2017 Oct 17];13(4):657-74. Available from: Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S19817462015000300657&lng=en&nrm=iso
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-22. Schwartz Y. Manifesto por ergoengajamento. In: Bendassolli PF, Soboll LAP, editors. Clínicas do trabalho. São Paulo (BR): Atlas; 2011. Assim, o trabalho do enfermeiro consiste em um espaço de microdecisões; é o lugar para questionar as normas e o prescrito.

A passagem de plantão foi mencionada, pelos participantes, como um momento importante, por já possibilitar o planejamento de uma organização inicial para as atividades do turno de trabalho. O reconhecimento da passagem de plantão entre os enfermeiros é tema relevante para o cotidiano dos hospitais, pois, a partir desse ritual ocorre a oportunidade de apoio entre os trabalhadores de enfermagem que estão saindo e os que estão chegando ao trabalho.

O código de ética dos profissionais de enfermagem dispõe como deveres e responsabilidades a garantia da continuidade do cuidado de enfermagem em condições seguras, bem como a prestação de informações, escritas e verbais, completas e fidedignas, necessárias para assegurar a continuidade do cuidado.1717. Gonçalves MI, Rocha PK, Anders C, Kusahara M, Tomazoni A. Communication and patient safety in the change-of-shift nursing report in neonatal intensive care units. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2018 May 17];25(1). Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016002310014
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-1818. Conselho Federal de Enfermagem. Código de ética dos profissionais de enfermagem [online]. 2012 [cited 2012 Oct 12]. Available from: Available from: http://www.portalcofen.gov.br
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Contudo, os dados revelam que esse momento, embora seja uma atividade prescrita, revela uma apreensão muito particular da atividade, por parte de cada trabalhador, permitindo, inclusive, um direcionamento do seu trabalho.

Além disso, pode-se destacar que o uso de si distinto de cada enfermeiro pode ser caracterizado no momento em que os participantes relataram sobre o diálogo e a convivência com outros profissionais, dar maior e melhor assistência possível ao paciente, conquistar a confiança. Essas especificidades de usos de si dos enfermeiros ocorrem, principalmente, com os técnicos de enfermagem, com os quais os enfermeiros atuam, diretamente, durante o processo de trabalho. Cada enfermeiro comunica-se de forma específica e peculiar com os técnicos em enfermagem, em vista da organização do cuidado dispensado ao paciente.

Considerando a observação realizada, a análise dos documentos e dos depoimentos, percebe-se que o enfermeiro autônomo é aquele capaz de gerenciar suas atividades com competência. Destaca-se que, para que essa autonomia ocorra, efetivamente, durante o trabalho, o enfermeiro deve se utilizar de usos de si no desempenho de atividades e na tomada de decisões, as quais devem basear-se, também, na ética, no respeito e no compromisso social.

A partir disso, a postura do enfermeiro, ao desenvolver atividades, envolvendo o uso de si, para exercer autonomia, talvez seja um dos principais desafios que lhes são impostos no trabalho em unidade de internação clínica cirúrgica, a qual é composta por grande número de profissionais de saúde e, muitas vezes, abriga pacientes de extrema complexidade. A confluência dessas problemáticas ou dramáticas do uso de si envolvem, também, um debate de normas e valores que servem como construção do meio de trabalho, ocasionando facilidades e dificuldades do enfermeiro em fazer uso de si.1717. Gonçalves MI, Rocha PK, Anders C, Kusahara M, Tomazoni A. Communication and patient safety in the change-of-shift nursing report in neonatal intensive care units. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2018 May 17];25(1). Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016002310014
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O enfermeiro desenvolve sua experiência aprimorando sua prática, adquirindo conhecimento e desenvolvendo suas competências na vivência no mundo do trabalho.

O uso de si pelo enfermeiro ocorre de forma simultânea entre “o uso de si por si próprio” e o “uso de si pelos outros”, incluindo o compromisso microgestionário com o local de trabalho; assim sendo, a negociação entre essas dramáticas é sempre difícil.99. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói(BR): EdUFF; 2010. Desta forma, o mau e o bom uso de si do enfermeiro influenciará no produto final e, consequentemente, a postura adotada lhe garantirá a percepção dos demais trabalhadores de maneira negativa ou positiva com relação a sua autonomia profissional.

Como relatado pelos participantes da pesquisa, a autonomia implica em conhecimento e experiência, como forma de superar os imprevistos, as problemáticas, os conflitos e as renormatizações. Neste sentido, destaca-se a importância dos saberes constituídos, os quais tem relação com os conhecimentos, conceitos e competências disciplinares acadêmicas e/ou profissionais. Ou seja, os saberes e conhecimento que são necessários, porém, anteriores e exteriores à situação de trabalho a qual o sujeito se encontra.1919. Peres AM, Ezeagu TNM, Sade PMC, Souza PB, Gómez-Torres D. Mapping competencies: identifying gaps in managerial nursing training. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2017. [cited 2017 Dec 20];26(2):e06250015. Available from: Available from: https://dx.doi.org/10.1590/0104-07072017006250015
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Tais saberes possibilitam, ao mesmo tempo, tanto a fundamentação do trabalho prescrito, como a renormatização da atividade, quando o trabalhador, nesse caso, o enfermeiro, é convocado a participar dessa dramática do uso de si.

Assim sendo, é necessário apoiar-se sobre os protocolos, mas, é pertinente fazer uso de si mesmo para tratar com aspectos não estandardizados das atividades, havendo, assim, uma convocação à experiência para tratar sobre aspectos singulares da situação.99. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói(BR): EdUFF; 2010. Atualmente, nos meios de trabalho, que são regulados pelo prescrito, normas gestoras, técnicas e econômicas, percebe-se que toda atividade de trabalho é sempre, em parte, a aplicação de normas antecedentes. Se houvesse somente a normatização, as situações de trabalho equivaleriam a um protocolo experimental, no qual as atividades seriam completamente manipuláveis e operatórias por qualquer trabalhador, pois a experimentação tentaria eliminar todos os vieses, não envolvendo a experiência/subjetividade do trabalhador e, consequentemente, dificultando seu uso de si.99. Schwartz Y, Durrive L. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói(BR): EdUFF; 2010.

Por fim, salienta-se que, por mais que exista o trabalho prescrito e as normas antecedentes, os quais regem o trabalho de enfermagem, os enfermeiros fazem uso de sua subjetividade, pessoal e histórica, em cada atividade que desenvolvem, efetivando seu uso de si. Ao desenvolverem a atividade laboral dessa forma, possibilitam a abertura para uma prática profissional mais autônoma.

Considera-se como limitações do estudo, o fato de ser realizado em uma única instituição e a escassez de estudos com base nesse referencial teórico, especialmente em unidade de internação cirúrgica. Nesse sentido, destaca-se a necessidade de novas investigações sobre o tema e com base nesse referencial, visando fomentar discussões sobre o trabalho do enfermeiro, acima de tudo no que tange a autonomia e visibilidade.

CONCLUSÃO

A partir dos resultados desta pesquisa foi possível conhecer como ocorre o uso de si do enfermeiro em unidade de internação clínica cirúrgica a partir da ótica da ergologia. Com base no referencial proposto para ancorar a análise dos dados da presente investigação, pode-se concluir que o trabalho dos enfermeiros atuantes em unidade de internação clínica cirúrgica é baseado e fortemente ligado ao trabalho prescrito (legislação, normas antecedentes), que delineia as atividades que o enfermeiro deve efetivar. No entanto, a possibilidade de alterações/mudanças, caracterizadas pela renormatização, que os mesmos podem realizar, é ampla. A partir do momento em que os enfermeiros modificam sua prática, envolvendo seus conhecimentos e sua própria experiência, eles concretizam seu uso de si.

O uso de si do enfermeiro em unidade de internação clínica cirúrgica ocorre de diversas e especificas formas. Também abarca aspectos subjetivos, históricos e de experiência relativa ao trabalho de enfermagem. O enfermeiro faz uso de si perante às demandas não programadas que surgem durante o turno de trabalho, especialmente com relação ao cuidado aos pacientes considerados prioritários (pacientes graves), passagens de plantão, dentre outros. As observações realizadas reiteram a singularidade e os diferentes usos de si em diversas situações vivenciadas pelos enfermeiros diariamente.

O conhecimento que o enfermeiro possui é fundamental para que este faça, efetivamente, uso de si e de sua subjetividade, proporcionando maior autonomia em ambiente de trabalho. Desta forma, cada enfermeiro, com o seu “si”, tece a trama do trabalho coletivo, ‘tecendo’, ao mesmo tempo, com os demais profissionais da equipe, o cuidado ao paciente internado em clínica cirúrgica. Trilhar este caminho, por meio do referencial da Ergologia, estabelece prerrogativas para melhor compreender o trabalho do enfermeiro em âmbito hospitalar para poder transformá-lo. Neste sentido, contribui-se para que as atividades possam ir muito além da técnica/procedimento, promovendo a autonomia do enfermeiro e, consequentemente, melhor qualidade ao cuidado prestado.

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NOTAS

  • ORIGEM DO ARTIGO
    Artigo extraído da dissertação - O trabalho do enfermeiro em unidade de internação clínica cirúrgica sob a ótica da ergologia: um estudo de caso. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria, em 2016.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA
    Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, Sob nº 980.591, e CAAE 41040815.9.0000.5346.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2018
  • Aceito
    30 Maio 2018
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