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ITINERÁRIO TERAPÊUTICO DE PESSOAS COM ÚLCERA VENOSA EM ASSISTÊNCIA AMBULATORIAL1 1 Artigo elaborado com base na dissertação - Itinerário terapêutico de pessoas com úlcera venosa em assistência ambulatorial: contribuições à enfermagem, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em 2013.

RESUMO

Objetivou-se descrever o itinerário terapêutico de pessoas com úlcera venosa em assistência ambulatorial. Pesquisa qualitativa, desenvolvida no período de janeiro a fevereiro de 2013, por meio da entrevista semiestruturada com 14 pessoas com úlcera venosa, no serviço ambulatorial de um hospital público no Rio Grande do Sul, Brasil. Após a análise de conteúdo dos dados, elaboraram-se as categorias: busca ao Setor Popular, busca ao Setor Folk e busca ao Setor Profissional. A partir de como é identificada a origem da úlcera venosa e da influência do contexto sociocultural, as pessoas realizaram diferentes práticas de cuidados com frequentes revisões do percurso, em busca da cicatrização da lesão. Conclui-se que o itinerário terapêutico mostrou-se constituído por uma pluralidade de caminhos, em que os setores popular e profissional influenciaram intensamente a experiência da pessoa que convive com a úlcera venosa.

Enfermagem; Úlcera varicosa; Assistência ambulatorial

ABSTRACT

This study's objective was to describe the therapeutic journey of people with venous ulcers receiving outpatient care. This qualitative study was conducted from January to February of 2013 using semi-structured interviews with 14 people with venous ulcers cared for by an outpatient clinic at a public hospital in Rio Grande do Sul, Brazil. The following categories emerged from the content analysis: search within the Popular Sector; search within the Folk Sector; and search within the Professional Sector. Based on how the individuals identified the origin of the venous ulcer and were influenced by their sociocultural contexts, people implemented different care practices and had to frequently review their journey in the search for healing. The conclusion is that the therapeutic journey was composed of various paths in which the Popular and Professional Sectors strongly influenced the experience of people with venous ulcers.

Nursing; Varicose ulcer; Ambulatory care

RESUMEN

Se objetivó describir el itinerario terapéutico de personas con úlceras venosas en consulta externa. Investigación cualitativa desarrollada en el período de enero a febrero de 2013, a través de entrevistas semi-estructuradas con 14 personas con úlceras venosas en una clínica de consulta externa de un hospital público en Rio Grande do Sul, Brasil. Después del análisis de contenido de los datos se elaboraron las categorías: búsqueda del Sector Popular, búsqueda del Sector Folk y búsqueda del Sector Profesional. A partir de cómo es identificado el origen de la úlcera venosa y la influencia del contexto sociocultural, las personas realizan diferente prácticas de cuidado con frecuentes revisiones en busca de la curación de la lesión. Se concluye que el itinerario terapéutico está constituido por una pluralidad de caminos, donde los sectores populares y profesionales influyen fuertemente en la experiencia de la persona que vive úlcera venosa.

Enfermería; Úlcera varicosa; Atención ambulatoria

INTRODUÇÃO

A busca por cuidados em saúde pode ser influenciada por diversas questões, seja pela oferta da rede formal de assistência, seja pelos aspectos socioculturais do contexto em que as práticas de cuidados ocorrem. O percurso que a pessoa realiza na procura por tratamento e cura para a doença, desde a descoberta até sua resolutividade, denomina-se itinerário terapêutico na antropologia em saúde.1Mattosinho MMS, Silva DMGV. Itinerário terapêutico do adolescente com diabetes mellitus tipo I e seus familiares. Rev Latino-Am Enfermagem. 2007; 15(6):1113-9.

O conhecimento sobre o itinerário terapêutico pode possibilitar ao profissional da saúde compreender o contexto em que o paciente se encontra, bem como identificar suas potencialidades e carências. Além disso, geralmente há a visualização da repercussão da prática profissional e de outros sistemas de cuidado de saúde.2Maliska ICA, Padilha MICS. AIDS: a experiência da doença e a construção do itinerário terapêutico. Rev Eletr Enferm [online]. 2007 [acesso 2013 Jun 16]; 9(3):687-99. Disponível em: http://www.fen.ufg.br/revista/v9/n3/v9n3a09.htm
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Para explicar os comportamentos de procura de cuidados e dos itinerários percorridos, os conceitos de Modelos Explicativos e Sistemas de Cuidado à Saúde, desenvolvidos por Kleinman, possuem um importante papel de referência na literatura.3 Cabral ALLV, Vianna ALL, Martinez-Hemáez A, Andrade EIG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2011; 16(11):4433-42. Nessa perspectiva, saúde, doença e cuidado fazem parte de um sistema cultural que envolve a experiência dos sintomas, modelos de condutas, decisões em relação ao tratamento e práticas terapêuticas de avaliação dos resultados. Assim, são utilizados para identificar como as pessoas e o meio social ponderam sobre o cuidado à saúde e constituem-se internamente pela interação de três Setores: Popular, Folk e Profissional.4Kleinman A. Patients and Healers in the context of culture. Berkley (US): University of California; 1980.

O Setor Popular ou Informal é representado por pessoas não profissionais próximas ao doente, tais como: familiares, amigos e vizinhos, incluindo a comunidade, todo tipo de atividade e de apoios das redes sociais.4 Kleinman A. Patients and Healers in the context of culture. Berkley (US): University of California; 1980.

O Setor Folk ou Tradicional constitui-se por reconhecidos especialistas não profissionais da cura, ou seja, sem regulamentação oficial. Nesse Setor estão grupos religiosos, benzedeiras, curandeiros, rezadores e especialistas em ervas que prestam cuidados por meio de tratamentos manipulativos, rituais de cura, dentre outros. Essas pessoas possuem os mesmos valores culturais da comunidade onde vivem. Assim, oferecem explicações sobre a doença de forma mais acessível à compreensão do grupo social.4Kleinman A. Patients and Healers in the context of culture. Berkley (US): University of California; 1980.

No Setor Profissional estão as profissões de cura da rede oficial de assistência à saúde. Para esses profissionais, geralmente, os aspectos biológicos são prioritários, enquanto que os aspectos psicossociais e culturais são de segunda ordem.

Nele encontram-se os profissionais da medicina científica ou de medicinas tradicionais, como a chinesa.4Kleinman A. Patients and Healers in the context of culture. Berkley (US): University of California; 1980.

Em cada um desses Setores, existem formas próprias de explicar e tratar a falta de saúde com maneiras particulares de interação durante o encontro terapêutico. No enfrentamento do processo de doença, há a necessidade de uma comunicação efetiva entre os Setores, o que permitirá troca de saberes.5 Garcia RP, Budó MLD, Oliveira SG, Beuter M, Girardon-Perlini NMO. Setores de cuidado à saúde e sua inter-relação na assistência domiciliar ao doente crônico. Esc Anna Nery. 2012; 16(2):270-6.Além da identificação das especificidades do caso, incluindo gravidade, disponibilidade e adequação dos recursos para as definições dos caminhos em busca de cuidados.6Amaral RFC, Souza T, Melo TAP, Ramos FRS. Itinerário terapêutico no cuidado mãe-filho: interfaces entre a cultura e biomedicina. Rev Rene. 2012; 13(1):85-93.

O enfermeiro, como parte do Setor Profissional, ao atentar para práticas que contextualizem os saberes e vivências populares, permite uma aproximação dos setores de cuidado. Além disso, possibilita refletir na sua prática como a experiência da doença é construída pela pessoa5Garcia RP, Budó MLD, Oliveira SG, Beuter M, Girardon-Perlini NMO. Setores de cuidado à saúde e sua inter-relação na assistência domiciliar ao doente crônico. Esc Anna Nery. 2012; 16(2):270-6. e mediada pela cultura.

Ao partir do pressuposto de que os aspectos culturais podem influenciar no cuidado de pessoas com lesões de pele, optou-se por investigar o itinerário terapêutico da pessoa com úlcera venosa. Este é o principal tipo de ferida crônica de membros inferiores e apresenta elevadas taxas de recidivas e cronicidade.7 Sant'Ana SMSC, Bachion MM, Santos QR, Nunes CAB, Malaquias SG, Oliveira BGRB. Úlceras venosas: caracterização clínica e tratamento em usuários atendidos em rede ambulatorial. Rev Bras Enferm. 2012; 65(4):637-44.

Destaca-se o cuidado de enfermagem na assistência profissional a essa população,7Sant'Ana SMSC, Bachion MM, Santos QR, Nunes CAB, Malaquias SG, Oliveira BGRB. Úlceras venosas: caracterização clínica e tratamento em usuários atendidos em rede ambulatorial. Rev Bras Enferm. 2012; 65(4):637-44. pois, ao cuidar de pessoas com feridas, é fundamental o estabelecimento de interação, com vistas a conhecer sua trajetória desde o surgimento da lesão, experiências e práticas utilizadas para tratá-la. Com isso pretende-se potencializar cuidados mais próximos do contexto das pessoas.8 Alcoforado CLGC, Santo FHE. Saberes e práticas dos clientes com feridas: um estudo de caso no município de Cruzeiro do Sul, Acre. Reme - Rev Min Enferm. 2012; 16(1):11-7.

Conhecer o caminho percorrido em busca de atendimento de saúde e as dificuldades encontradas no acesso aos serviços públicos de saúde possibilita também avaliar a necessidade de planejar ações mais eficazes em saúde. Uma vez que, na rotina dos serviços de saúde, como os ambulatórios, a presença de pessoa com úlcera venosa é frequente nos corredores e salas de curativos, devido à cronicidade das lesões e pouca resolutividade.9Angélico RC P, Oliveira AKA, Silva DDN, Vasconcelos QLDQ, Costa I KF, Torres GV. Sociodemographic profile, clinical and health of people with venous ulcers treated at a university hospital. J Nurs UFPE online [online]. 2012 [acesso 2014 Abr 20]; 6(1):62-8. Disponível em: http://www.ufpe. br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/ view/2100/pdf_759
http://www.ufpe. br/revistaenfermagem/in...

Nesse contexto, questiona-se: como ocorre o itinerário terapêutico de pessoas com úlcera venosa em assistência ambulatorial? Dessa forma, objetivou-se descrever o itinerário terapêutico de pessoas com úlcera venosa em assistência ambulatorial.

MÉTODO

Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida no serviço ambulatorial de um hospital público, do interior do Rio Grande do Sul (RS), Brasil. A escolha do campo se deu por ser um hospital-escola, que é centro de referência secundária e terciária em saúde da região Centro do RS e atende exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Participaram do estudo 14 pessoas com úlcera venosa. Como critérios de inclusão, consideraram-se: pessoas com úlcera venosa atendidas no ambulatório e que tiveram acompanhamento neste serviço no período da coleta de dados, e maiores de 18 anos. Para identificar os participantes, utilizaram-se os códigos E1 a E14, sendo a letra E referente a "entrevistado", seguida do número de ordem de participação no estudo.

A coleta de dados ocorreu de janeiro a fevereiro de 2013, por meio da entrevista semiestruturada, que se realizou no próprio ambulatório, em sala previamente reservada. Na entrevista, inicialmente investigaram-se os dados de identificação e, a seguir, como os participantes realizavam a procura por tratamento e cuidados com a úlcera; e como ocorreu a busca aos Setores Popular, Folk e Profissional. Esses dados permitiram identificar os fatores pessoais, sociais e culturais de cada pessoa, que influenciaram no itinerário terapêutico construído desde o surgimento da úlcera venosa.

Os dados foram tratados de acordo com a análise de conteúdo,1010. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo (SP): Edições 70; 2011. que é constituída por três etapas: pré-análise, na qual foram realizadas as transcrições das entrevistas e organização do material empírico; exploração do material, em que foi efetivada a categorização a partir do material empírico, o qual indicou a procura pelos Setores Popular, Folk e Profissional; e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação, que se constituiu da articulação entre o conteúdo empírico e o referencial teórico.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade a que está vinculada, sob o Protocolo n. 23081.000145/200819. Foram considerados os princípios éticos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após serem elucidados sobre o objetivo do estudo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Apresenta-se, primeiramente, a caracterização dos entrevistados e, a seguir, o itinerário terapêutico de pessoas com úlcera venosa em assistência ambulatorial, nas categorias: Busca ao Setor Popular, Busca ao Setor Folk e Busca ao Setor Profissional.

As 14 pessoas com úlcera venosa, participantes do estudo, tinham entre 47 e 79 anos de idade e nove eram do sexo feminino. O tempo de existência da lesão variou entre seis meses e 25 anos; 13 participantes tinham uma lesão e um apresentava duas lesões; dez já haviam tido recidivas e quatro tinham úlcera venosa pela primeira vez. No que tange à presença de comorbidades, três pessoas referiram ter Diabetes Mellitus (DM); duas, Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS); duas tinham DM e HAS; uma tinha DM, HAS; Insuficiência Renal Crônica; e seis negaram comorbidades.

Busca ao Setor Popular

O percurso realizado pela pessoa com úlcera venosa iniciou-se quando foram identificadas alterações na integridade da pele. No domicílio, os cuidados foram realizados com base em suas crenças e valores. Verificaram-se, porém, dificuldades em identificar os primeiros sinais como uma situação que necessitava de assistência profissional.

Na busca por cuidado no Setor Popular, foi mencionada a utilização de práticas caseiras, conforme a experiência pessoal ou com intensa influência da família e de vizinhos. Passava uma pomada, um álcool, que naquela época passava álcool nessas coisas, e ia levando (E6); Eu não dava bola, era pequenininha e eu ia trabalhar. Sempre eu deixava atada, mas, ao invés de eu cuidar, botar remédio para curar, eu não botava, aí ela só tinha tendência de aumentar(E5).

Os primeiros sinais foram mascarados ao serem tratados com alternativas caseiras, que os amenizavam, porém não os solucionavam. As tentativas caseiras foram as primeiras práticas de cuidados, tendo sido a procura pelo serviço de saúde realizada, muitas vezes, após essas tentativas para solucionar o problema.1111 Budó MLD, Resta DG, Denardin JM, Ressel LB, Borges ZN. Práticas de cuidado em relação à dor: a cultura e as alternativas populares. Esc Anna Nery. 2008; 12(1):90-6.

Para decidir quem ou que tipo de ajuda buscar, os entrevistados levaram em consideração as experiências das pessoas da família, vizinhos, e quem já havia vivenciado situações parecidas. O fato de existirem pessoas com úlcera venosa na família influenciava a busca por cuidado. A minha mãe também tinha, fazia alguns remédios em casa (E4). Essa é uma coisa de família, a minha avó tinha, a minha mãe tinha e agora nós, no caso, quatro, de seis [irmãos]. A minha irmã por mais de 30 anos [teve a úlcera] e curou, parece mentira, com pomada. A minha sobrinha fazia os curativos, todos os dias, e sarou a perna dela (E12).

Confirma-se que foi o Setor Popular, representado especialmente pela família, o que mais se envolveu no contexto da doença e do cuidado. O autotratamento pelas pessoas e familiares é a primeira intervenção terapêutica em diferentes culturas. Eles utilizam as crenças e valores sobre a doença para entender o que está acontecendo e para planejar os cuidados a serem realizados.4Kleinman A. Patients and Healers in the context of culture. Berkley (US): University of California; 1980.

A busca por cuidados no Setor Popular foi marcante pela pluralidade de práticas. Entre os cuidados com a ferida estavam a limpeza e assepsia, pois se objetivava evitar ou minimizar os riscos de infecção e complicações, bem como facilitar o processo de cicatrização. Lavava com água e sabão. Uns diziam que era bom, outros diziam que não era bom, só lavar por fora (E7); Muitas vezes eu nem ia ao posto, eu mesmo comprava uma água oxigenada, ou qualquer coisa que fosse para limpar, e o sorinho, que é o principal para limpar bem. Quando não tinha soro eu fervia uma água e deixava esfriando, para limpar(E10).

Assim, mesmo sem possuir soluções ou medicamentos preconizados pelo sistema profissional de saúde, geralmente as pessoas utilizavam empiricamente as mais variadas formas e substâncias para realizarem a limpeza das suas feridas.

Desse modo, os saberes e as práticas populares são utilizados para prestar o cuidado que atenda as necessidades, ainda que diferente da forma preconizada pelo saber científico.8Alcoforado CLGC, Santo FHE. Saberes e práticas dos clientes com feridas: um estudo de caso no município de Cruzeiro do Sul, Acre. Reme - Rev Min Enferm. 2012; 16(1):11-7.

Entre os diversos tratamentos utilizados no Setor Popular também estavam o uso de açúcar e automedicação. Chegaram a me ensinar a botar açúcar, que é bom para cicatrizar. O açúcar dói, tu não aguenta (E6); Em casa eu passava remédio pomada, a dexametasona, e daí eu fui ao médico. Ele se apavorou porque eu fui passar essa pomada, eu disse: 'eu não sei, por isso nós viemos aqui'. Era para alergia, e eu usava na ferida logo que apareceu (E4).

Identificou-se que a pessoa com úlcera avaliou que a orientação de cuidado realizada por alguém de sua rede de relações poderia não ser a adequada para a sua situação de saúde. Outra questão pontuada foi o uso da automedicação, como uma prática corriqueira, a qual costuma retardar ou até mesmo antecipar a busca pela assistência de um profissional de saúde.

Como recursos utilizados no tratamento foram identificados ainda chás e plantas medicinais. Às vezes usava algum remédio, muita gente ensinava a usar remédio caseiro, lavar com chá (E7); Eu usava a babosa, porque me disseram que era muito boa para usar ali, lavar e deixar (E10).

As pessoas da família e vizinhos são quem indicam os chás e que, geralmente, fornecem as plantas. Essa indicação é baseada nas experiências adquiridas ao ter sucesso com o uso de determinadas plantas como recurso medicinal.1Mattosinho MMS, Silva DMGV. Itinerário terapêutico do adolescente com diabetes mellitus tipo I e seus familiares. Rev Latino-Am Enfermagem. 2007; 15(6):1113-9. Além das questões culturais, como fatores que têm contribuído para uso popular de plantas no cuidado de feridas, estão as dificuldades econômicas, de acesso a profissionais e serviços de saúde.8Alcoforado CLGC, Santo FHE. Saberes e práticas dos clientes com feridas: um estudo de caso no município de Cruzeiro do Sul, Acre. Reme - Rev Min Enferm. 2012; 16(1):11-7.

Também no Setor Popular, a prática do repouso era reconhecida pelos entrevistados como um cuidado para favorecer a cicatrização da úlcera venosa. O repouso ajuda. Como é uma ferida aberta, conforme vai caminhando vai abrindo mais, ficando de pé. Então, quanto mais repouso eu puder fazer, melhor (E1); O maior cuidado que exigem é o repouso, quanto mais repouso, mais rápido terá benefício de cicatrizar (E3).

Nos depoimentos foi recorrente a referência ao repouso, o qual pode ter sido orientado pelos profissionais de saúde, mas também é um cuidado oriundo do Setor Popular. Assim, uma reinterpretação do saber profissional realizada pela pessoa com úlcera venosa.

Confirma-se que as pessoas articulavam as crenças e práticas sobre a saúde e a doença existentes no seu contexto cultural, com a reinterpretação das práticas profissionais. Os profissionais da saúde também constituem fontes de informações, conhecimentos e de incremento às crenças já existentes.1212 Rosa LM, Búrigo T, Radünz V. Itinerário terapêutico da pessoa com diagnóstico de câncer: cuidado com a alimentação. Rev enferm UERJ. 2011;19(3):463-7.

Conforme a avaliação da situação da úlcera venosa, identificaram-se os caminhos a serem seguidos: permanecer com os cuidados realizados ou buscar uma outra solução para cicatrização da lesão. Fazia em casa os curativos e depois que ficou assim [...] muito grande, que só aumentava, não me lembro qual doutor disse que esses curativos têm que ser com pessoa especializada (E12).

Neste estudo, ao se utilizar práticas e cuidados do Setor Popular, puderam-se identificar o agravamento e a complicação da úlcera, assim, necessitando partir para a busca no Setor Folk e/ ou Profissional. Porém, isso não significa que os cuidados do Setor Popular tivessem sido desconsiderados. Tanto nas sociedades ocidentais, como nas orientais, 70% a 90% das doenças são tratadas nesse setor. É nele que as decisões sobre como, quando e que outro setor deve ser consultado se definem, ou seja, qual itinerário terapêutico deverá ser seguido.4Kleinman A. Patients and Healers in the context of culture. Berkley (US): University of California; 1980.

Busca ao Setor Folk

No Setor Folk identificou-se que a fé, as rezas, o apoio espiritual auxiliaram na reprogramação de vida das pessoas com úlcera venosa. No entanto, o uso de alguns produtos nas lesões, durante as práticas de benzeduras, nem sempre ajudou e, pelos relatos, até agravaram as situações.

Como práticas utilizadas no Folk, citaram-se a reza, a oração e a busca no centro de umbanda, conforme se constata nos fragmentos a seguir: Nunca benzi, só oração para melhorar e oram por mim também, são os irmãos da minha igreja (E13); O único chá que tomei foi o tal chá de arnica. Tomei porque é antiinflamatório e eu fui num [...] centro de umbanda (E8); Eu fui um dia, tinha um caboclo lá, fizeram [...] uma, duas, três vezes (E14).

As visitas ao centro de umbanda, às benzedeiras e a realização de rezas estavam entre as principais práticas espirituais vivenciadas como formas de tratamento e cuidado, ao perceberem que algo diferente estava acontecendo, e as pessoas costumavam buscar explicações. Nesse sentido, essas práticas podem auxiliar nos momentos de tensão, ao confortar e aliviar os sintomas.

A manifestação da espiritualidade, por meio da crença em um Ser Superior, que conforta nos momentos de angústia e aflição, apareceu como uma estratégia utilizada no enfrentamento da doença.13 13 Rocha LS, Beuter M, Neves ET, Leite MT, Brondani CM, Perlini NMOG. O cuidado de si de idosos que convivem com câncer em tratamento ambulatorial. Texto Contexto Enferm [online]. 2014 [acesso 2014 26 abr.]; 23(1): 29-37. Disponível em: http:// www.scielo.br/pdf/tce/v23n1/pt_0104-0707tce-23-01-00029.pdf
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As práticas religiosas são buscadas para sustentar o conforto emocional e espiritual. O amparo religioso e a fé são necessários, independentemente do nível socioeconômico.8Alcoforado CLGC, Santo FHE. Saberes e práticas dos clientes com feridas: um estudo de caso no município de Cruzeiro do Sul, Acre. Reme - Rev Min Enferm. 2012; 16(1):11-7.

Também, entre as práticas no Folk, foram enfatizadas as benzeduras, principalmente com folhas verdes, água, óleo e carvão, polvilho, erva seca, entre outras substâncias e produtos. Para benzer eram utilizadas essas substâncias, as quais em alguns relatos eram colocadas na lesão e, em outros, somente passadas sobre a ferida.

O Setor Folk foi utilizado na busca para solucionar a úlcera venosa, antes do Setor Profissional. Eu fui nessas coisas de saravá [termo usado em religiões afro-brasileiras como saudação], nas benzedeiras, nisso aí que eu ia. Depois eu comecei a ir no posto de saúde para consultar, às vezes baixava hospital(E5).

Uma questão que influenciou a busca por cuidados no Setor Folk foi a proximidade com as pessoas que realizavam as práticas nesse setor, pois se constatou que existiam, na família, pessoas que eram "especialistas de cura". Um dia eu fui. O caboclo me chamou lá, é o meu filho que incorpora. Ele fez um negócio com mel e não sei o que mais botaram, passou por cima da faixa porque eu estava com a bota [de Unna]. Tinha mel e coisas que não sei o que eram. Só sei que ficou um negócio preto em cima e era com cachaça (E14).

A busca ao Setor Folk, juntamente com as práticas de tratamento do Setor Profissional, constituiu-se em uma tentativa para potencializar a cicatrização da úlcera venosa. O entrevistado, mesmo fazendo tratamento com a bota de Unna, recorreu às práticas de cuidado do Setor Folk.

Em outra situação, as práticas de cuidados do Setor Folk, quando não resolutivas, causaram complicações e ocasionaram a busca ao serviço profissional. Isso foi identificado quando ocorreu a utilização de práticas que comprometiam o estado de saúde da pessoa com úlcera venosa. Eu misturava muita coisa, eu não era evangélica. Naquela benzedeira, mundaréis de coisas que eu botava ali e aquilo ali não me ajudou nada, ao invés de ajudar, estragou mais. Eram as minhas cunhadas, um dia eu fiquei bem doente e elas botaram um negócio no pé que tirou toda a pele. Aí se assustaram e me trouxeram no pronto socorro aqui no centro (E5).

Identificou-se a falta de resolutividade com as práticas usadas no Setor Folk, tendo sido considerado que estas poderiam estar relacionadas ao agravamento da lesão. No caso da pessoa com úlcera venosa, a cronicidade e a recorrência podem agravar a situação socioeconômica e dificultar a locomoção, sendo estes alguns empecilhos para o acesso ao tratamento.1414 Korelo RIG, Valderramas S, Ternoski B, Medeiros DS, Andres LF. Aplicação da microcorrente como recurso para tratamento de úlceras venosas: um estudo piloto. Rev Latino-Am. Enfermagem. 2012 [acesso 2013 abril 18]; 20(4): [08 telas]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n4/pt_16.pdf
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Ao considerar que um dos entrevistados nasceu em uma comunidade remanescente de quilombo, acredita-se que ele possa ter sido influenciado a buscar inicialmente recursos de cura no Setor Folk. No contexto de uma comunidade afro-brasileira o conhecimento popular em relação ao tratamento das doenças tem intensa influência do sistema de crenças ou dos integrantes das congregações religiosas. A crença religiosa é recorrente no sentido de explicar as doenças e o cuidado necessário.15 15 Silveira CL, Budó MLD, Ressel LB, Oliveira SG, Simon BS. Apoio social como possibilidade de sobrevivência: percepção de cuidadores familiares em uma comunidade remanescente de quilombos. Ciênc Cuid Saúde. 2011; 10(3):585-92.

Busca ao Setor Profissional

Na busca ao Setor Profissional enfatizou-se a procura por diversos serviços de saúde e o atendimento médico. Inicialmente, as pessoas com úlcera venosa buscavam pelo atendimento primário de atenção à saúde, por vezes sem resolutividade dos problemas, pois a origem de suas dificuldades nem sempre era tratada adequadamente. Dessa forma, foram encaminhados aos serviços especializados para efetivo diagnóstico e tratamento. Ao percorrerem este itinerário, enfrentaram dificuldades no acesso aos serviços, como também a falta de profissionais especializados em sua região ou cidade, ocasião em que ocorreu a necessidade de deslocamento a centros especializados de saúde. Também, neste percurso identificou-se a busca por assistência profissional em serviços de saúde particulares.

A assistência profissional foi buscada em situações em que ocorreu um agravamento do comprometimento vascular, como no caso de uma trombose. No encontro com o profissional houve a identificação do diagnóstico, que esclareceu a causa da dificuldade de cicatrização da lesão, que era considerada simples e de cicatrização rápida, mas que foi tornando-se complexa e crônica. Ficou sempre essa manchinha roxa, depois de um tempo abriu, como se fosse uma picadinha de mosquito. Achávamos que fosse uma feridinha, que passa algum remedinho e daí fecha, mas o meu pé, cada vez mais inchado, e a perna inchava. Daí eu fui para frente, foi aí que esse médico de [nome da cidade que fica a 66,2 km do ambulatório do estudo] disse, eu me queixava do meu pé, o meu pé estava assim [demonstra o aumento de tamanho], e tinha dado a trombose. No médico, 'isso é falta de circulação e coisa das varizes', disse assim, e ele me encaminhou. A clínica dele era particular. Então eu fui lá e ele me deu os remédios para a circulação, e fui tomando, e me tratando com ele. (E6).

Nessa busca ao Setor Profissional destacaram-se os serviços particulares como recurso usado, antes do serviço público de assistência à saúde. Além disso, em algumas situações, esse serviço foi utilizado como forma de ingresso para o acompanhamento no serviço público, caracterizando o inadequado acesso ao sistema público de saúde.

De maneira semelhante, o uso de serviços particulares ou convênios/planos de saúde acabou consolidando novas portas de entrada ao sistema de saúde. A busca a serviços particulares foi identificada como responsável pelo encaminhamento para internação hospitalar pelo SUS. Confirmou-se que as pessoas acessavam o sistema de diferentes formas, como serviços privados e públicos nos diferentes níveis de atenção.1616 Camacho TP, Barboza MCN, Roese A.Trajetórias percorridas por usuários com doença cardiovascular até ainternação hospitalar. Rev Enferm UFSM [online]. 2013 [acesso 2014 Abr 26]; 3(3):509-17. Disponível em: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/reufsm/article/view/8233/pdf
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Ainda, identificou-se procura tardia aos serviços de saúde, os quais apresentam lacunas importantes no atendimento. Entre essas estão a dificuldade de acesso e capacitação profissional das equipes envolvidas, para estimular e manter um contato mais próximo e efetivo com a população (des)assistida.1717 Oliveira K, Veronez M, Marques CDC, Higarashi IH, Marcon SS. Itinerário percorrido pelas famílias de crianças internadas em um hospital escola. Rev Bras Enferm. 2014; 67(1): 36-42.

Na procura pelo atendimento profissional encontraram-se como características a constante busca por diferentes serviços e a mudança de assistência à saúde de um município para outro. O primeiro lugar que eu recorri quando começou este problema foi o posto de saúde do município de [cidade A que fica a 63,4 km do ambulatório do estudo], e eles me encaminharam para outro médico de [cidade B que fica a 70,8 km do ambulatório do estudo], aí ele me encaminhou para cá. Lá em [cidade A] não tem muito recurso e me mandaram para [cidade B], e o médico entendeu de bem me encaminhar para o consultório do Dr. C e ele me encaminhou [...] A consulta foi particular, eu consultei um dia e ele me mandou com os papéis prontos e no outro dia eu vim aqui(E3).

A busca por cuidados ocorreu em diferentes serviços de saúde, entretanto, houve dificuldade em obter a resolutividade do problema. As pessoas identificaram precisar agir por conta própria e buscar diferentes serviços de saúde para solucionar a sua necessidade. Assim, como estratégias para transpor a fragilidade do sistema de saúde, as pessoas procuraram por um serviço particular e até mesmo saíram do município onde residiam e foram em busca de um serviço de saúde em outra cidade.1616 Camacho TP, Barboza MCN, Roese A.Trajetórias percorridas por usuários com doença cardiovascular até ainternação hospitalar. Rev Enferm UFSM [online]. 2013 [acesso 2014 Abr 26]; 3(3):509-17. Disponível em: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/reufsm/article/view/8233/pdf
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Outra questão recorrente foram os contatos informais para iniciar o acompanhamento no serviço ambulatorial do estudo. As pessoas da rede de relações e mesmo os familiares foram os responsáveis por realizar o contato informal com o médico para iniciar o acompanhamento. A minha filha começou a trabalhar aqui, daí as colegas disseram para ela 'quem sabe tu arruma uma consulta para tua mãe, com o doutor?' Um dia ela falou para ele, ele deu um papelzinho para marcar uma consulta. Depois, eu comecei a me tratar com ele (E5).

Para abrir as portas do sistema, as pessoas construiram várias estratégias, além de apreenderem determinadas "regras sociais" vigentes nos serviços de saúde. Quando ocorreu a decisão de procurar atendimento médico, utilizaram-se como estratégia para obter atendimento a busca da ajuda de terceiros, ou abordagem direta ao médico.1818 Oliveira LH; Mattos RA; Souza AIS. Cidadãos peregrinos: os "usuários" do SUS e os significados de sua demanda a prontos-socorros e hospitais no contexto de um processo de reorientação do modelo assistencial. Ciênc Saúde Coletiva. 2009; 14(5):1929-38.

Diante desta constatação, pontua-se a necessidade de revisão das regras de acesso, construindo com os usuários uma nova possibilidade de entrada no sistema. Isso significa que o modelo assistencial deva ser adequado para se adaptar continuamente à realidade, na busca de um cuidado na perspectiva da integralidade. Dessa forma, é o sistema de saúde que precisa se adequar às necessidades dos usuários (parte mais frágil no sistema) e não o contrário.1919 Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev. Latino-Am. Enfermagem [online]. 2010 [acesso 2014 Abr 26]; 18(3):[09 telas]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v18n3/pt_23
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O acompanhamento com o profissional de saúde foi marcante no itinerário terapêutico de pessoas com úlcera venosa. Esta ação de cuidado foi destacada, porém pode ter sido iniciada em diferentes serviços de saúde, como se encontra a seguir: eu fui logo ao médico, fui no posto sempre, eles botavam aquele carvão para mim (E4); para cuidar da minha ferida sempre um acompanhamento médico. Antes era lá [cidade de origem], depois aqui, aqui comecei a vir todas as terças-feiras(E14); no dia que rebentou essa varize na minha perna, a peça que eu estava lavou de sangue. Daí eu vim parar aqui no hospital e o doutor fez tudo, deu remédio, e eu passei para outros médicos(E12).

A primeira procura ao médico pode ter sido influenciada pelo conhecimento sobre a úlcera, pois já existiam pessoas na família com a mesma lesão, e também por causa da forma como se iniciou. No entanto, o que se constata é que vários caminhos foram realizados pelas pessoas com úlcera venosa, as quais passavam por diferentes médicos e também por diversos serviços de saúde, conforme a avaliação pessoal da necessidade de assistência à saúde.

Frente a isso, as questões relativas à saúde e à doença necessitavam ser analisadas junto com as demais dimensões da vida social. A escolha ou a busca das pessoas pelos cuidados foi influenciada por seus costumes, crenças e valores, ou seja, pela sua cultura. Trata-se de elementos sobre os quais os atores sociais construíram significados para as ações e interações.1919 Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev. Latino-Am. Enfermagem [online]. 2010 [acesso 2014 Abr 26]; 18(3):[09 telas]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v18n3/pt_23
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Além disso, o modo como foi organizada a oferta do serviço de saúde mostrou-se pouco resolutivo, permitindo diminutas possibilidades de respostas às suas necessidades em saúde. Notouse a variedade de barreiras na busca aos serviços de saúde, como a dificuldade de estabelecimento do diagnóstico correto ou precoce, e a visão fragmentada originou encaminhamentos e triagens inadequados.2020 Visentin A, Lenardt MH. O itinerário terapêutico: história oral de idosos com câncer. Acta Paul Enferm. 2010; 23(4):486-92.

Entre os serviços de saúde que foram procurados na busca por atendimento estavam o Pronto Atendimento (PA) e Unidade de Pronto Atendimento (UPA). No começo, eu ia no hospital, depois comecei a fazer no hospital, que tinha ambulatório, e ali ficava mais perto, e depois me passaram para o postinho. Quando estava muito ruim eu ia no PA, mas no PA não fazem curativo, só dão remédio. Eu via que estava inflamado, muito inchado, e daí eu procurava outro recurso. [No PA] eles me davam receita e mandavam ir no posto (E9); Cheguei na UPA, ali me olharam e me lançaram lá para o hospital. No hospital é outra história, fiquei fazendo curativo. Uns vinte dias, saí de lá, fui para casa e tive que fazer a sessão de hemodiálise e voltei. Daí o médico disse: 'Tu vais ficar' - Doutor por que eu vou ficar? 'Tua lesão está horrível' (E8).

Entre os participantes do estudo identificou-se a necessidade de internações hospitalares frequentes, o que talvez pudesse ter sido evitado se mantivessem a condição estabilizada com o acompanhamento adequado. Em muitos dos casos, a internação aparece como um sinalizador das falhas do atendimento que, se bem conduzido, poderia interromper essa trajetória antes do agravamento da condição de saúde.1717 Oliveira K, Veronez M, Marques CDC, Higarashi IH, Marcon SS. Itinerário percorrido pelas famílias de crianças internadas em um hospital escola. Rev Bras Enferm. 2014; 67(1): 36-42.

As pessoas com úlcera venosa realizam diferentes percursos em busca de solução para o seu problema de saúde, sendo verdadeiros peregrinos, são elas que fazem o seu trajeto pelos serviços de saúde.

Apesar da expansão da rede ambulatorial e da definição da atenção básica como porta de entrada do sistema, historicamente os usuários do SUS apresentam preferência por prontos-socorros e hospitais ao buscar por assistência médica.1818 Oliveira LH; Mattos RA; Souza AIS. Cidadãos peregrinos: os "usuários" do SUS e os significados de sua demanda a prontos-socorros e hospitais no contexto de um processo de reorientação do modelo assistencial. Ciênc Saúde Coletiva. 2009; 14(5):1929-38. Independente do nível ou tipo de serviço, deve ocorrer o acolhimento da pessoa que realizada a busca pela assistência.1818 Oliveira LH; Mattos RA; Souza AIS. Cidadãos peregrinos: os "usuários" do SUS e os significados de sua demanda a prontos-socorros e hospitais no contexto de um processo de reorientação do modelo assistencial. Ciênc Saúde Coletiva. 2009; 14(5):1929-38.

As pessoas com úlcera venosa, na expectativa de resolução do seu problema, buscaram o serviço de saúde e nem sempre conseguiram a assistência de que necessitavam. Identificaram-se falta de diagnóstico da úlcera e de exames laboratoriais, acesso restrito a angiologistas, terapia tópica resumida à troca de curativos e ausência de terapia compressiva, descontinuidade do tratamento e reavaliação das lesões, reflexo da inexistência de sistema de referência e contrareferência integral e colaborativo entre os níveis de assistência do SUS.2121 Dantas DV, Torres GV, Nóbrega WG, Macedo EAB, Costa IKF, Melo GSM, et al. Assistance to patients with venous ulcers based on protocols: literature review in electronic databases. Rev Enferm UFPE [online]. 2010 [acesso 2013 Abr 18]; 4(Esp 4):194450. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/ revistaenfermagem/index.php/revista/article/viewArticle/1481
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- 2222 Nóbrega WG, Melo GSM, Costa IKF, Dantas DV, Macedo EAB, Torres GV. Changes in patients' quality of life with venous ulcers treated at the outpatient clinic of a university hospital in Natal City, Brazil. Rev Enferm UFPE [online]. 2011 [acesso 2013 Abr 14]; 5(2):220-7. Disponível em: http:// www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/viewArticle/1478
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Em relação ao atendimento profissional, destacou-se que a forma de compartilhar a informação, de abordagem e a valorização do conhecimento das pessoas cuidadas são alguns pontos que necessitam ser melhorados. Faz-se relevante que os profissionais de saúde estejam sensíveis ao contexto da pessoa cuidada. Assim, conhecer a realidade na qual a pessoa está inserida, sua origem e seus valores pode resultar numa abordagem eficiente e eficaz.6Amaral RFC, Souza T, Melo TAP, Ramos FRS. Itinerário terapêutico no cuidado mãe-filho: interfaces entre a cultura e biomedicina. Rev Rene. 2012; 13(1):85-93.

A busca por cuidados podia ocorrer em mais de um Setor ao mesmo tempo: a gente faz de tudo. Toma os remédios dos médicos também, um antibiótico, um antialérgico, porque, às vezes não dá para aguentar a coceira, coisa mais triste. Daí o outro diz tal coisa é bom, vou lá e consigo para mim. Não tenho ideia de tudo que a gente usa, às vezes acha que foi uma coisa e foi outra [que melhorou]. Eu já estou usando os remédios dos médicos e estou lavando com o chá, fico com medo de misturar muita coisa (E10).

Essa diversidade de recursos pode ser motivo de dúvidas e insegurança para as pessoas com úlcera venosa sobre o resultado do tratamento. Na situação de pessoas com feridas, também se faz relevante considerar o contexto cultural e a visão de mundo da pessoa, para assim manter uma relação dialógica buscando a coerência do cuidado. Considera-se que o cuidado transcende o tratamento das feridas e a visão integral da pessoa possibilita identificar suas necessidades e particularidades. Ainda mais que a presença de uma ferida modifica o cotidiano das pessoas, sensibilizando-as emocional e fisiologicamente.7Sant'Ana SMSC, Bachion MM, Santos QR, Nunes CAB, Malaquias SG, Oliveira BGRB. Úlceras venosas: caracterização clínica e tratamento em usuários atendidos em rede ambulatorial. Rev Bras Enferm. 2012; 65(4):637-44. , 23 23 Waidman MAP, Pagliarini MA, Rocha SC, Correa JL, Brischiliari A, Marcon SS. O cotidiano do indivíduo com ferida crônica e sua saúde mental. Texto Contexto Enferm [online]. 2011 [acesso 2013 Jun 26]; 20(4):691-9. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n4/07.pdf
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Nesse sentido, há a necessidade de a intervenção profissional ampliar-se para além da ferida, cuja avaliação e tratamento visem a pessoa, um ser complexo e integral. Para superar o desconhecimento sobre a práticas de cuidados e os motivos que permeiam a busca pelos serviços de saúde, de modo a incorporar os diversos determinantes e condicionantes de saúde.

CONCLUSÕES

A busca por cuidados realizada pela pessoa com úlcera venosa sofreu influência da maneira como se identificava sua origem ou do contato com pessoas que já haviam tido a lesão na família. Na fase inicial, no Setor Popular, encontrou-se a ênfase da família e rede de relações para permanecer com os cuidados no domicílio. Além dessa ênfase, no Setor Folk intensificou-se a influência de questões religiosas. No Setor Profissional foi referenciada a busca por diversos serviços de saúde e consultas médicas.

Nesta busca, nem sempre resolutiva, foram reveladas tensões resultantes da organização de uma rede de assistência pública universal, a qual pouco favorece na oferta de atenção adequada e equânime no subsistema público, com outros modelos de autoatenção presentes no cenário da pesquisa. Revelou-se a existência de pessoas, muitas vezes solitárias, na busca por um cuidado que lhes é devido por questões de direito, como cidadãos frente a uma legislação que deveria lhes assegurar um cuidado integral, mas que ainda apresenta fragilidades importantes.

Com este trabalho, espera-se que se possa contribuir para a compreensão sobre o processo de adoecimento e a busca pela atenção à saúde dessas pessoas. Nesse sentido, evidenciam-se lacunas a serem trabalhadas no sistema de saúde como um todo e com os profissionais de saúde na busca de práticas alternativas para a qualificação da atenção com vistas a proporcionar um atendimento mais adequado às reais necessidades das pessoas com úlceras venosas.

Ao identificar a diversidade de recursos buscados pela pessoa com úlcera venosa, constataram-se práticas de cuidados pouco resolutivas que resultaram em frequentes revisões do percurso em busca da cicatrização da lesão. Nessa perspectiva, novos trajetos foram realizados, e conhecer como estes ocorrem pode proporcionar ao profissional da saúde compreender o contexto sociocultural em que ela se encontra e ampliar as possibilidades para o planejamento do cuidado.

Verifica-se a predominância de práticas originárias dos Setores Popular e Profissional, o que talvez possa ter sido influenciado ao entrevistar pessoas com úlcera venosa que realizavam acompanhamento em serviço ambulatorial. Assim, há a necessidade de aprofundar o desenvolvimento de estudos na enfermagem sobre esta temática, uma vez que se mostra como uma ferramenta para otimizar as ações do enfermeiro no acompanhamento e cuidado da pessoa com úlcera venosa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    July-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2014
  • Aceito
    10 Jun 2014
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