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Vivências de pais/mães de crianças e adolescentes com câncer: uma abordagem fenomenológico-existencial Heideggeriana

Resumos

Pesquisa baseada na fenomenologia existencial heideggeriana, que objetivou compreender as vivências de pais/mães de crianças e adolescentes com câncer. Participaram 13 pais de oito pacientes, atendidos por uma associação beneficente do noroeste do Paraná, entre dezembro/2011 e março/2012, quando foram inquiridos com a questão: como tem sido para você vivenciar a experiência de ter um filho com câncer? Da análise, emergiram três temáticas: experienciando o estar presente e o estar ausente de o ente querido; compartilhando a tristeza existencial do filho; e aprendendo com o filho doente. Evidenciou-se que estes pais experimentam imprevistas transformações no cotidiano, desencadeando incertezas, medos e angústias. Entretanto, a mesma angústia que os faz quedarem-se diante do mundo, fá-los compreender a condição existencial do filho e de si próprios. Torna-se imprescindível que profissionais, como os da enfermagem, transponham o cuidado técnico-científico e busquem compreender suas necessidades existenciais com vistas a oferecer um cuidado integral e humanizado.

Pais; Criança; Adolescente; Neoplasias; Enfermagem


This study was based in Heideggerian existential phenomenology, and aims to understand the experiences of mothers/fathers of children and adolescents with cancer. A total of 13 parents of eight patients attended by a charitable association participated, between December 2011 and March 2012. They were asked the question: how has it been for you to experience having a child with cancer? Three issues emerged from the analysis: experiencing the being-present and the being-absent of the loved one; sharing the existential sadness of the child; and learning with the ill child. It was evidenced that these parents experience unexpected transformations in their routine, triggering uncertainties, fears and distress. The same distress that makes them suffer in this world, however, makes them understand the existential condition of the child and of themselves. It is essential that professionals - such as those of nursing - transpose the technical-scientific care and seek to understand these existential needs with a view to offering comprehensive and humanized care.

Parents; Child; Adolescent; Neoplasms; Nursing


Investigación basada en la fenomenología existencial heideggeriana que tuvo por objetivo comprender las vivencias de padres/madres de niño y adolescentes con cáncer. Participaron 13 padres de ocho pacientes, atendidos por una asociación de ayuda del noroeste de Paraná, entre diciembre/2011 y marzo/2012, cuando fueron encuestados con la pregunta: ¿Cómo ha sido para usted vivenciar la experiencia de tener un hijo con cáncer? Del análisis surgieron tres temáticas: experiencia de estar presente y el estar ausente del ente querido; compartiendo la tristeza existencial del hijo y aprendiendo con el hijo enfermo. Se evidenció que esos padres experimentan imprevistas transformaciones en el cotidiano desencadenando incertidumbre, miedos y angustias. Sin embargo, la misma angustia que los hace detenerse delante del mundo, los hará comprender la condición existencial del hijo y de sí mismos. Se hace imprescindible que los profesionales, como la enfermería, transpongamos el cuidado técnico-científico y busquemos comprender sus necesidades existenciales con el objetivo de ofrecer un cuidado integral y humanizado.

Padres; Niño; Adolescente; Neoplasias; Enfermería


INTRODUÇÃO

O câncer exerce um impacto negativo na vida das pessoas não só pela sua repercussão social e econômica, como pelo desgaste emocional a que o paciente e sua família são expostos. Embora seja considerado um mal crônico tratável e que, em inúmeras situações, pode ser sanado, sobretudo quando diagnosticado precocemente, permanece estigmatizado, cheio de mistérios e sofrimento.1Ribeiro AF, Souza CA. O cuidador familiar de doentes com câncer. Arq Cienc Saude [online]. 2010 [acesso 2012 Abr 15]; 17(1): Disponível em: http://www.cienciasdasaude.famerp.br/racs_ol/vol-17-1/IDL3_jan-mar_2010.pdf .
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Em se tratando do câncer nos anos iniciais da vida, a angústia toma proporções ainda maiores, uma vez que a criança está vivenciando o início de sua jornada, crescendo e se desenvolvendo na presença de uma doença que a ameaça e a condena.2Santos MR, Silva L, Misko MD, Poles K, Bousso RS. Desvelando o cuidado humanizado: percepções de enfermeiros em oncologia pediátrica. Texto Contexto Enferm [online]. 2013 Jul-Set [acesso 2014 Jul 04]; 22(3):646-53 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072013000300010 .
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Raro se comparado aos tumores em adultos, o câncer na infância e na adolescência responde por 2% a 3% de todos os tumores malignos. Além disso, atualmente, representa a principal causa de morte por doença nesse grupo.3Ministério da Saúde (BR), Instituto Nacional do Câncer, Coordenação de Prevenção e Vigilância do Câncer. Câncer da criança e do adolescente no Brasil: dados dos registros de base populacional e de mortalidade. Rio de Janeiro (RJ): INCA; 2008. Neste cenário epidemiológico, o diagnóstico do câncer infantojuvenil nem sempre ocorre precocemente como deveria ser, visto que a inespecificidade de suas manifestações, como febre, palidez, cefaleia, entre outros, em geral, surge discretamente, podendo ser esta a explicação para a demora no diagnóstico.4Nehmy RMQ, Brito AC, Mota JAC, Oliveira BM. A perspectiva dos pais sobre a obtenção do diagnóstico de leucemia linfóide aguda em crianças e adolescentes: uma experiência no Brasil. Rev Bras Saúde Matern Infant [online]. 2011 [acesso 2012 Jul 04] ;11(3): Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbsmi/v11n3/a10v11n3.pdf .
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- 5Santos LF, Marinho KC, Oliveira RR, Siqueira KM, Oliveira LMAC, Peixoto MKAV, et al. Ser mãe de criança com câncer: uma investigação fenomenológica. Rev Enferm UERJ. 2011 Out-Dez; 19(4):626-31.

Do aparecimento de sintomas sugestivos até a determinação do diagnóstico, a família fica apreensiva, pressentindo que algo muito grave está para invadir suas vidas. O temor frente ao desconhecido e a sensação de impotência diante do não controlável são vividos intensamente,4Nehmy RMQ, Brito AC, Mota JAC, Oliveira BM. A perspectiva dos pais sobre a obtenção do diagnóstico de leucemia linfóide aguda em crianças e adolescentes: uma experiência no Brasil. Rev Bras Saúde Matern Infant [online]. 2011 [acesso 2012 Jul 04] ;11(3): Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbsmi/v11n3/a10v11n3.pdf .
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, 6Silva TCO, Barros VF, Hora EC. Experiência de ser um cuidador familiar no câncer infantil. Rev Rene. 2011 Jul-Set; 12(3):526-31. já que é sabido que o câncer na infância e seu tratamento não são experiências fáceis de serem enfrentadas. A doença envolve uma série de estressores, representada pelo momento do diagnóstico, a realização de procedimentos invasivos e internações, em que não apenas a criança é afetada, mas os pais que vivenciam de perto estes acontecimentos são significativamente impactados.7Jobe-Shields L, Aldefer MA, Barrera M, Vannatta K, Currier JM, Phipps S. Parental Depression and family environment predict distress in children prior to stem-cell transplantation. J Dev Behav Pediatr. 2009 Apr; 30(2):140-6.

Quando, enfim, o diagnóstico é confirmado, a possibilidade de morte faz-se real, tornando difícil para os pais aceitarem tal fato na vida de um filho. Estudos demonstram que é como se suas vidas fossem paralisadas, em função dos prejuízos na rotina profissional e da necessidade, não rara, de abandonar o emprego. Ademais, a dinâmica familiar é alterada, uma vez que não conseguem cuidar da casa e dar atenção aos outros filhos e ao cônjuge, além de terem o autocuidado comprometido e seus desejos e necessidades pessoais renunciados.5Santos LF, Marinho KC, Oliveira RR, Siqueira KM, Oliveira LMAC, Peixoto MKAV, et al. Ser mãe de criança com câncer: uma investigação fenomenológica. Rev Enferm UERJ. 2011 Out-Dez; 19(4):626-31. , 8 Castro EHB. A experiência do câncer infantil: repercussões familiares, pessoais e sociais. Rev Mal-estar Subj. 2010 Set; 10(3):971-94.Comumente, desenvolvem sintomas físicos e emocionais, podendo vivenciar uma dura experiência, repleta de dor e desespero.9Klassen AF, Gulati S, Granek L, Rosenberg-Yunger ZRS, Watt L, Sung L, et al. Understanding the health impact of caregiving: a qualitative study of immigrant parents and single parents of children with cancer. Qual Life Res. 2012 Nov; 21(9):1595-605.

10 Norberg AL. Pöder U, Ljungman G, von Essen L. Objective and subjective factors as predictors of posttraumatic stress symptoms in parents of children with cancer - a longitudinal study. Plos One. 2012 May; 7(5):1-7.
- 1111 Oliveira RR, Santos LF, Marinho KC, Cordeiro JABL, Salge AKM, Siqueira KM. Ser mãe de um filho em tratamento quimioterápico: uma análise fenomenológica. Ciênc Cuid Saúde. 2010 Abr-Jun; 9(2):374-82.

Assim, verificamos que ter um filho com câncer representa um evento extremamente desgastante para os pais, capaz de comprometer diversos aspectos de suas vidas.1212 Klassen AF, Raina P, McIntosh C, Sung L, Klaassen RJ, O'Donnell M, et al. Parents of children with cancer: which factors explain differences in health-related quality of life. Int J Cancer. 2011 Sep; 129: 1190-8. Este desgaste é potencializado quando se consideram o fato das complicações advindas da doença e a intensidade do tratamento serem raramente modificáveis,1313 Barakat LP, Marmer PL, Schwartz LA. Quality of life of adolescents with cancer: family risks and resources. Health Qual Life Outcomes [online]. 2010 [acesso 2012 Fev 02]; 8(63): Disponível em: http://www.biomedcentral.com/content/pdf/1477-7525-8-63.pdf .
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levando-os a enfrentarem, desde o início da doença, uma realidade de ameaças caracterizadas por separações, perdas, frustrações e mudanças.8Castro EHB. A experiência do câncer infantil: repercussões familiares, pessoais e sociais. Rev Mal-estar Subj. 2010 Set; 10(3):971-94.

Diante do exposto, percebemos o quanto os pais padecem com o adoecimento de um filho por câncer e ao se perceberem frente a frente com uma doença que carrega consigo o prenúncio da morte. Vivenciam, assim, diversas transformações em suas vidas, quando, na maioria das vezes, não estão preparados para enfrentá-las, sentindo-se amedrontados, inseguros e desesperançosos. Tais reflexões nos despertaram o seguinte questionamento: como os pais de crianças e adolescentes com câncer vivenciam tal evento? Para tanto, o objetivo deste estudo foi compreender as vivências de pais e/ou mães de crianças e adolescentes com câncer.

A nosso ver, pesquisas com este escopo justificam-se, uma vez que dados epidemiológicos demonstram que, no Brasil, a partir dos cinco anos de idade, o câncer é considerado a primeira causa de morte por doença em ambos os sexos. Esta realidade, permeada pela facticidade de cada ser humano estar no mundo à mercê das fatalidades, leva-nos a crer que, cada vez mais, pais que vivenciam em sua existência a experiência de terem filhos, crianças e/ou adolescentes, com câncer necessitarão ser acolhidos e compreendidos pelos profissionais de saúde, especialmente os da enfermagem. Encontram-se fragilizados, haja vista que, nesses momentos, passam por sofrimento emocional e desgaste físico suscitado pela doença e seu tratamento. Isto requer a compreensão da indigência de cuidados destes seres, a qual inclui a identificação e a consideração de suas necessidades biopsicossociais para o planejamento das ações e programas de saúde, visando à qualificação crescente dos profissionais e, por conseguinte, da assistência prestada por eles.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo, com abordagem fenomenológica. A escolha por esta abordagem ocorreu em função de seus pressupostos teórico-filosóficos possibilitarem às investigações em enfermagem uma análise e um entendimento no entorno da saúde, uma vez que procura compreender o homem em seu estando-no-mundo, ou seja, em suas vivências, experiências e relações com o mundo cotidiano, desvelando as subjetividades do fenômeno vivido.1414 Almeida IS, Crivaro ET, Salimena AMO, Souza IEO. O caminhar da enfermagem em fenomenologia: revisitando a produção acadêmica. Rev Eletr Enferm [online]. 2009 [acesso 2012 Jun 15]; 11(3) Disponível em: http://www.fen.ufg.br/revista/v11/n3/v11n3a30.htm .
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Nesta perspectiva, a fenomenologia existencial heideggeriana, como referencial filosófico, vem contribuir para a pesquisa em Enfermagem, por permitir que o pesquisador almeje explicar o sentido do Ser com base na descrição dessas experiências.1515 Duarte MR, Rocha SS. As contribuições da filosofia heideggeriana nas pesquisas sobre o cuidado em enfermagem. Cogitare Enferm. 2011 Abr-Jun; 16(2):361-4. Nessa busca por compreender o homem em sua facticidade, pretendemos desvelar o modo de ser por ele manifestado em seu discurso, sendo possível, então, descortinar o fenômeno que se mostra por intermédio do próprio ser.1616 Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008.

Logo, a região de inquérito ou a região ôntico-ontológica constituiu-se da situação na qual o fenômeno que nos propomos a desvelar ocorreu, ou seja, as vivências de pais e/ou mães que experienciam o câncer infantojuvenil na vida de um filho.

Destarte, a realização do presente estudo se deu em uma associação beneficente, localizada em um município do noroeste do Paraná, que presta assistência social e de enfermagem, inclusive domiciliar, a 120 pacientes carentes portadores de câncer e a suas famílias.

A fim de realizar o levantamento dos participantes, primeiramente, localizamos todos os cadastros de crianças e adolescentes atendidos pela associação, sendo encontradas oito famílias que possuíam um portador de câncer infantojuvenil.

Assim, optamos por incluir como participantes da pesquisa todos os pais e/ou mães, biológicos ou não, dessas crianças ou adolescentes com câncer com idade entre zero e 19 anos, conforme a definição de câncer infantojuvenil apresentado pelo Instituto Nacional do Câncer,3Ministério da Saúde (BR), Instituto Nacional do Câncer, Coordenação de Prevenção e Vigilância do Câncer. Câncer da criança e do adolescente no Brasil: dados dos registros de base populacional e de mortalidade. Rio de Janeiro (RJ): INCA; 2008. que aceitassem participar do estudo, capazes de verbalizar claramente suas vivências ao conviver com o filho doente, que tivessem seus filhos em tratamento ou em acompanhamento periódico após a conclusão do tratamento e cujos nomes estivessem cadastrados na associação durante o período de realizadas as entrevistas.

Após os contatos iniciais, realizados por meio telefônico ou nos endereços disponibilizados, explicávamos a eles os objetivos do estudo, a importância de sua participação e avaliávamos sua adequação aos critérios de inclusão. Nesse processo, das oito famílias localizadas, apenas cinco pais e todas as oito mães, de oito crianças e/ou adolescentes portadores de câncer, atenderam aos critérios de inclusão. A exclusão de três pais na pesquisa se deu em função de dois deles não conviverem com a criança doente, não sendo possível contatá-los, e da recusa de outro em participar do estudo, totalizando13 participantes.

A estes, solicitamos o agendamento de um primeiro encontro, sendo realizadas de uma a três visitas de aproximação, com a finalidade de que uma empatia mútua surgisse, ou seja, que os pais se sentissem seguros em falar de suas vivências e que nós também nos sentíssemos prontos para ouvi-los.

Na abordagem fenomenológica, o pesquisador tem uma interrogação e vai percorrê-la com a pretensão de compreendê-la. Para isto, tal inquietação precisa se apresentar ao pesquisador como fenômeno, ou seja, enquanto algo que exige um desvelamento, uma "iluminação". Neste pensar, utilizamos como questão norteadora: Como tem sido para você vivenciar a experiência de ter um filho com câncer?

As entrevistas foram realizadas em dia, horário e local da preferência dos familiares, no período de dezembro de 2011 a março de 2012, tendo duração média de 31 minutos. Os relatos foram registrados com o auxílio de um gravador digital e, em seguida, transcritos na íntegra para posterior análise.

Para captar a plenitude expressa pelos sujeitos em suas linguagens, optamos pela análise individual de cada discurso. Assim, a priori, realizamos leituras atentas de cada depoimento, separando os trechos ou unidades de sentidos (US) que, para nós, mostraram-se como estruturas fundamentais da existência dos participantes entrevistados.1717 Josgrilberg RS. O método fenomenológico e as ciências humanas. In: Castro DSP, Ázar FP, Piccino JD, Josgrilberg RS, organizadores. Fenomenologia e análise do existir. São Paulo (SP): Sobraphe; 2000. p. 75-93. A posteriori, passamos a analisar as unidades de sentido de cada depoimento, realizando seleção fenomenológica da linguagem de cada sujeito,1717 Josgrilberg RS. O método fenomenológico e as ciências humanas. In: Castro DSP, Ázar FP, Piccino JD, Josgrilberg RS, organizadores. Fenomenologia e análise do existir. São Paulo (SP): Sobraphe; 2000. p. 75-93. que deu origem às temáticas ontológicas, analisadas à luz de algumas ideias heideggerianas, bem como de estudiosos sobre o tema e pesquisadores que versam sobre o câncer infantojuvenil.

Por se tratar de uma pesquisa que envolve seres humanos, obedecemos a todos os preceitos éticos e legais regulamentados pela Resolução n. 466/12 do CNS-MS. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá, sob o Parecer n. 714/2011. A anuência em participar do estudo foi registrada por meio da aplicação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em duas vias de igual teor, e após a prévia e completa instrução dos participantes de pesquisa.

Clarificamos que, com a finalidade de preservar o anonimato dos depoentes e não apenas nominá-los de uma forma genérica (S1... S2...), partimos de singularidades expressas por eles e apreendidas por nós durante os encontros, referenciando-os com o nome de pedras preciosas. Esta escolha deveu-se ao fato de que nos foi possível vislumbrar que, como as pedras preciosas sofrem desgastes e incisões num processo de lapidação para se tornarem belas e brilhantes,1818 Franco RR, Campos JES. As pedras preciosas: noções fundamentais. São Paulo (SP): Editora São Paulo; 1971. nós os percebemos sendo lapidados diante de suas facticidades, verificando, por intermédio de seus discursos, que, de alguma forma, estão melhorando como seres humanos, aprendendo e/ou amadurecendo com a doença de seus filhos.

RESULTADOS

Dos 13 participantes da pesquisa, pertencentes a oito famílias, cinco eram pais e oito, mães, com idades entre 21 a 74 anos, a maioria casada/amasiada e de religião católica, apenas dois possuíam Ensino Superior, tendo como profissão: um ensacador, um motorista, um ourives, um lavrador aposentado, um analista, duas artesãs e uma professora, além das cinco autodenominadas do lar. Dos oito filhos portadores de câncer infantojuvenil, quatro eram crianças com idade entre dez meses e onze anos: duas com tumor de Wilms, uma com tumor pélvico e uma com sarcoma ósseo; e quatro eram adolescentes com idade entre 12 e 18 anos: um com rabdomiossarcoma testicular, um com leucemia, um com tumor cerebral e um com linfoma. Deste total, quatro estavam realizando algum tipo de tratamento (cirúrgico, quimioterápico, radioterápico e/ou medicamentoso) e quatro fazendo acompanhamento periódico.

Após a análise da linguagem dos participantes, emergiram três temáticas ontológicas: experienciando o estar presente e o estar ausente de o ente querido; compartilhando a tristeza existencial do filho e aprendendo com o filho doente, apresentadas a seguir.

Experienciando o estar presente e o estar ausente de o ente querido

Certamente que receber a notícia de que um filho está com câncer provoca nos pais profunda tristeza e preocupação. Sentimentos que logo se somam à angústia de vivenciar dolorosas separações decorrentes do necessário deslocamento para a realização do tratamento e acompanhamento da doença em centros especializados.

[...] eles não ficavam quase em casa, ficavam mais no hospital e a gente sentia muita falta dele [...] (Alexandrita); [...] porque eles estavam para lá e era a saída. Continuava no trabalho, e eles lá. O terrível é a distância, você se sente inútil apesar de ter que trabalhar. Quantas e quantas vezes eu pensei de abandonar tudo e correr para ficar do ladinho [choro] (Opala).

Sofrem com a distância tanto os pais que ficam responsáveis pela casa e pelos demais filhos como os que acompanham o filho doente nessa busca incessante pela cura: [...] porque eu mal chegava e tinha que voltar. Ficava o outro menino, ficava o esposo [...] nós ficamos três meses lá sem vir para cá, foram três meses. Ai meu Deus, muita luta, muita angústia, e ficar na casa dos outros [...]. O meu filho mais velho, eu tive que deixar com a minha mãe [...] (Água-marinha); [...] abandonei serviço, abandonei casa, a minha outra filha, abandonei tudo para correr atrás de médico para ele [...] (Turmalina Rosa); não é fácil você sair de casa e viver em outro mundo durante um ano e meio de tratamento, você sai da tua casa e vai viver numa outra casa, com outras experiências. Eu tive que abandonar a casa, abandonar a filha. Minha filha ficou com a minha mãe [...] (Pérola).

Evidenciamos ainda, através dos discursos, que até mesmo a união conjugal pode sofrer prejuízos com o distanciamento: o casamento em si, você sabe, é um estresse de estar longe de casa, cuidando da filha, o marido aqui trabalhando, à distância. [...] o casamento acabou desgastando, talvez, sei lá, a doença dela. Não vou falar que é culpa dela, mas acaba, querendo ou não, influenciando um pouco, querendo ou não a gente acaba se separando [...] (Rubi).

Compartilhando a tristeza existencial do filho

Nas linguagens dos participantes, percebemos o quanto eles se mantêm envolvidos nesse processo de adoecimento. É como se sentissem as mesmas dores pelas quais seus filhos passam e, demonstrando compaixão ante suas aflições, caminham junto a eles por este vale de sofrimento.

Quantas vezes eu sofri de ver ela ali querendo comer uma salada [...] sofri e me alegrei ao mesmo tempo de ver a alegria dela em poder comer salada quando ia fazer um exame e via que a imunidade estava um pouco melhor [...] (Turquesa); [...] perguntei para ele o que era, ele se abriu e falou 'pai eu não aguento mais, eu preciso sair, eu vejo meus amigos ficando, meus amigos estão pegando as meninas e eu estou aqui preso'. Aquele dia foi uma flecha, sabe [choro]?! Eu conversei um tempo com ele [choro, buscando fôlego], deixei ele na sala, fui para dentro do quarto chorar [...] (Opala); É difícil hein, meio chato, porque ele sofre, mas a gente sofre mais, porque a gente tem que acompanhar ele, ver todo o sofrimento dele. Foram bem difíceis esses quatro anos [...] (Safira).

Esses pais são tomados por profunda angústia, que os faz questionarem e se indignarem diante de tal acontecimento.

[...] por que logo com ele? Por que não comigo, que sou pecadora? Ele que não entende nada, nem sabe o que está acontecendo [...] (Esmeralda).

Entretanto, ao co-existir com um filho com câncer, percebem também que, de alguma forma, são capazes de aliviar os desconfortos de sua pequena joia.

Esse um ano e meio ele deixou de fazer muita coisa, a gente isolou a família, porque isolar só ele não é justo, a gente tem que entrar junto e trabalhar junto para o tratamento dar certo [...] porque você se doa um para o outro, assim que a gente fez, a gente se doou por ele (Pérola); Lá no hospital, quando estava só eu e ela, a gente brincava muito, até ela tinha um caderno, tipo um diário, que, no começo, como ela não podia levantar, eu escrevia um monte de coisa, ela ia falando e eu ia escrevendo: 'hoje foi o início do tratamento de quimioterapia e tal, tal, tal'. Eu escrevi umas dez folhas para ela, mas eu acho que ela desanimou, porque viu que o negócio ia ser longo, então paramos (Topázio); Eu usava máscara também por causa dela usar, para ela não se sentir constrangida. Todo lugar que ela ia, era de máscara, não saía para lugar nenhum sem: se ia para o terreiro, usava; dentro de casa, usava; se eu ia para a escola com ela, eu colocava máscara e ela ia de máscara (Âmbar).

Aprendendo com o filho doente

Com o adoecimento do filho, esses pais são levados a buscar formas de compreender e superar sua facticidade quando, então, conseguem identificar algo de positivo nesta dolorosa experiência.

Enfim, a gente foi reagindo e levantando a autoestima dele. E ele, como toca e canta, conseguiu jogar para cima tudo que estava sentindo e revertemos o quadro para uma coisa boa, como aprender com aquilo que estava sendo muito difícil para nós (Pérola); Hoje, mais maduro, às vezes, prefiro agradecer muito mais a ficar reclamando. Eu estou aprendendo com isso, eu acho que tem gente em situações até piores do que a minha, e tem, eu ainda tenho condições de dar amor e carinho ao meu filho [...] (Diamante); Então, essas coisas vêm, mas a gente tem que aprender, eu estou tentando, porque eu estou vivendo isso, [...] o que tiver que ser vai ser, não tem como a gente mudar, isso eu já tenho plena consciência. Eu não sei na hora, mas eu já tenho a consciência do que pode acontecer. Claro que a gente não quer, mas seja o que Deus quiser. Vai ser sempre um choque, um susto, mas eu estou firme (Rubi).

Nesse caminhar repleto de espinhos, os pais encontram significados e retomam valores esquecidos.

Essa situação nos trouxe um significado muito importante de nos relacionarmos com nossos filhos. Eu acho que isso para mim foi muito importante, porque, às vezes, eu chegava, se tinha algum assunto para resolver, já saía, não tinha aquele momento. Hoje não, hoje eu vejo que eu tenho uma atenção maior com eles (Citrino).

DISCUSSÃO

A analítica existencial elaborada em Ser e Tempo1616 Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008. propõe uma profunda reflexão do ser humano, analisando o seu modo constitutivo de ser, ou seja, a fluidez de seu existir. E, ao existir, o Ser-aí constata o fato que foi lançado no mundo, numa situação sem oportunidades de escolha, que o leva a experienciar situações não planejadas, não esperadas. Logo, ao descobrir o câncer em um filho e tomar consciência que a dura peregrinação em busca da cura trará consigo a solidão e a sensação de abandono, o mundo no qual o Ser-aí existe afunda-se na insignificância e o mundo que se abre para ele traz em si a dor do afastamento dos entes que compartilhavam seu existir.

Com isso, averiguamos, pela linguagem dos depoentes, que a doença e seu tratamento, enquanto um ente que veio ao encontro dos pais, trouxeram consigo imprevistas separações, provocando sofrimento e certa revolta, visto que afastar-se do filho, nesse momento, configura-se em algo inaceitável para o pai/mãe que permanece em casa. Da mesma maneira, para o pai/mãe que acompanha o filho doente, distanciar-se da família e do próprio lar, seu refúgio, faz com que se sinta desprotegido e angustiado, padecendo em um mundo nada familiar.

Percebemos ainda que, ao se afastarem dos filhos saudáveis, esses pais experimentam um conflito entre estar-com o filho doente e pensar que deixa o saudável desamparado, avivando-lhe a sensação interior de culpa, por sentir que abandona e esquece os demais filhos, corroborando com estudo recente.1919 Grau C, Espada MC. Percepciones de los padres de niños enfermos de cáncer sobre los cambios en las relaciones familiares. Psicooncología. 2012; 9(1):125-36. Assim, torna-se sofrido vivenciar tal situação, uma vez que pode desencadear sentimentos angustiantes relacionados ao desempenho do seu papel como mãe.5Santos LF, Marinho KC, Oliveira RR, Siqueira KM, Oliveira LMAC, Peixoto MKAV, et al. Ser mãe de criança com câncer: uma investigação fenomenológica. Rev Enferm UERJ. 2011 Out-Dez; 19(4):626-31. , 1111 Oliveira RR, Santos LF, Marinho KC, Cordeiro JABL, Salge AKM, Siqueira KM. Ser mãe de um filho em tratamento quimioterápico: uma análise fenomenológica. Ciênc Cuid Saúde. 2010 Abr-Jun; 9(2):374-82.

Na concepção heideggeriana, a angústia que os pais revelam em suas falas deixa à mostra seu estado interior, visto terem que vivenciar uma situação que, para eles, era desconhecida. Consiste em uma ameaça à existência do ser na angústia, é aquilo que não está em nenhuma parte, que é inóspito, não havendo familiaridade com seu cotidiano.1616 Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008.

O distanciamento entre cônjuges também foi verificado nos discursos. Afastamento este que transpõe as dimensões geográficas e recai sobre o envolvimento afetivo que os une, podendo enfraquecê-lo, uma vez que, neste momento, estão inteiramente e somente preocupados com o cuidado do filho. Nestas ocasiões, a relação conjugal sofre interferências pela longa duração do tratamento, já que a necessidade de deslocamentos frequentes é percebida como fator comprometedor dessa união, sobretudo pela distância.8Castro EHB. A experiência do câncer infantil: repercussões familiares, pessoais e sociais. Rev Mal-estar Subj. 2010 Set; 10(3):971-94. Além disso, a falta de comunicação e de oportunidades para expressar sentimentos, acrescidos dos prejuízos acarretados à vida sexual podem contribuir para as separações conjugais de pais de filhos com câncer.1919 Grau C, Espada MC. Percepciones de los padres de niños enfermos de cáncer sobre los cambios en las relaciones familiares. Psicooncología. 2012; 9(1):125-36.

Acerca destas questões, a literatura aponta que transformações inesperadas que envolvem o tratamento e hospitalizações na dinâmica familiar implicam em desconfortos para os pais, porque podem ser privados da convivência com amigos, cônjuge e demais filhos, de passeios e descanso.2020 Nascimento CAD, Monteiro EMLM, Vinhais AB, Cavalcanti LL, Ramos MB. O câncer infantil (leucemia): significações de algumas vivências maternas. Rev Rene. 2009 Abr-Jun; 10(2):149-57.

A essência do Ser-aí reside em sua existência, evidenciando que só poderemos compreender suas vivências se mergulharmos em sua existencialidade.1616 Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008. Assim, diante de tantas e necessárias separações, tratar tais questões afastadas da existencialidade de quem experiencia esse fenômeno, sob uma visão prática do empirismo, é não se envolver com a autenticidade da mundaneidade de mundo desses seres.5Santos LF, Marinho KC, Oliveira RR, Siqueira KM, Oliveira LMAC, Peixoto MKAV, et al. Ser mãe de criança com câncer: uma investigação fenomenológica. Rev Enferm UERJ. 2011 Out-Dez; 19(4):626-31. Neste sentido, para que nós, enfermeiros, possamos cuidar do outro, precisamos compreendê-lo em sua dimensão existencial, a qual envolve um existir repleto de sentimentos e significados.21 21 Melo LL, Valle ERM. The toy library as a possibility to unveil the daily life of children with cancer under outpatient treatment. Rev Esc Enferm USP [online]. 2010 [acesso 2012 Jul 04]; 44(2):517-25 Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v44n2/39.pdf .
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No pensar heideggeriano, o homem, enquanto ser-no-mundo, sempre se descobre como ser-com (Mit Sein), em que o outro (Mit Dasein) também é um ser-no-mundo, ou seja, um ser para o outro, numa con-vivência. E é sendo-com-outro que o homem vislumbra a possibilidade de estar-comalguém não apenas como objeto de cuidado, mas de uma forma envolvente e significante, uma vez que, na doença, a copresença não se ocupa, mas se preocupa com o outro.16 16 Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008.

Nas linguagens dos depoentes, apreendemos seu pesar ao sentirem-se impotentes perante a condição existencial do filho, já que a doença o faz viver uma vida que não lhe pertencia. E, mesmo transmitindo a ele seu amor e cuidado, sua presença não consegue preencher o vazio existencial que o filho traz consigo, tendo em vista a impossibilidade de desfrutar de uma vida saudável como antes.

Nestas situações, os pais experienciam a dor e a agonia ao testemunharem limitações físicas, sociais e emocionais, impostas a seus filhos pelo câncer, que interferem significativamente em sua vida familiar, escolar e comunitária.2020 Nascimento CAD, Monteiro EMLM, Vinhais AB, Cavalcanti LL, Ramos MB. O câncer infantil (leucemia): significações de algumas vivências maternas. Rev Rene. 2009 Abr-Jun; 10(2):149-57. Por isto, não se conformam que a doença tenha adentrado na vida de seu filho, desejando até mesmo colocar-se em seu lugar se possível fosse.

Contudo, em algum momento de sua trajetória, este viver aflito pode conduzi-los à compreensão da condição existencial do filho, tornando-se capazes de tomar uma nova consciência diante da facticidade que se apresenta. Destarte, transpondo o cuidado enquanto simples e puro ato de cuidar, este passa a configurar-se num caminho de abertura para as inúmeras possibilidades a serem desveladas.2222 Oliveira MFV, Carraro TE. Cuidado em Heidegger: uma possibilidade ontológica para a enfermagem. Rev Bras Enferm. 2011 Mar-Abr;64(2):376-80.

É quando o Ser-aí abre para si mesmo seu próprio ser e esta abertura elimina obstruções, encobrimentos, obscurecimentos e se mostra por si só.1616 Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008. Neste mostrar em sua claridade, os pais revelam-se como cuidadores autênticos, assumindo e compartilhando com seu ente querido a temporalidade sofrível do tratamento e encontrando formas de amenizar seu sofrimento.

Ao compreenderem sua condição existencial, esses pais se desvelam como um ser de preocupação, lançando-se no sentido daquilo que é passível de ocupação e feitura ao que é urgente e inevitável, especialmente na solicitude com os entes que se mostram significativos para eles.2323 Salci MA, Sales CA, Marcon SS. Sentimentos de mulheres ao receber o diagnóstico de câncer. Rev Enferm UERJ. 2009 Jan-Mar; 17(1):46-51. Dessa maneira, os pais têm como preocupação imediata minimizar, ante a impossibilidade de eliminar, as aflições que seus filhos têm vivenciado, acalentando-os com o amor e a dedicação que carregam em seus corações.

Na analítica existencial heideggeriana, depois do mundo e do ente que habita o mundo, o Ser-em plenifica o terceiro momento estrutural do ser-no- mundo, correspondendo à própria abertura do homem ao mundo. É a compreensão que permite a abertura do Ser-aí, de tal modo que, retomando seu sentido existencial, desenvolve um entendimento de sua situação.16 16 Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008.Projeta não somente o mundo enquanto um horizonte das preocupações cotidianas, mas o seu poder ser autêntico.2424 Sales CA, Schuhli PAP, Santos EM, Waidman MAP, Marcon SS. Vivências dos familiares ao cuidar de um ente esquizofrênico: um enfoque fenomenológico. Rev Eletr Enferm [online]. 2010 [acesso 2012 Jun 28]; 12(3) Disponível em: http://www.fen.ufg.br/revista/v12/n3/v12n3a06.htm. .
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O homem é capaz de transcender sua própria dor, manifestando-se de formas distintas, a fim de apropriar-se do mundo que o rodeia. O Ser-aí passa a viver autenticamente no mundo, tornando-se um Ser de preocupação consigo e com o outro, ou seja, transcender indica que o homem em seu estar-lançado-no-mundo está capacitado a imputar um sentido próprio ao Ser.1616 Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008.

Assim, depreendemos dos discursos dos pais que, embora o adoecimento de um filho represente um evento não planejado em sua existência, procuram superar esse momento, tendendo a extrair algo de positivo desta dolorosa experiência, aprendendo com as dificuldades e amadurecendo como pessoas. À medida que reconhecem suas possibilidades, percebem que estas vão além da doença, são tão infinitas e ilimitadas quanto o amor que nutrem por seus filhos, e é a partir desse entendimento que passam a compreender sua condição existencial.

Na fala de Rubi, entrevemos que ela demonstra ter consciência de que o adoecer faz parte da existência humana, contudo, sua linguagem expressa o quão está sendo difícil conviver com uma doença como o câncer, que traz em si o presságio de profundas vicissitudes e a presença incômoda da perspectiva de morte. Pela sua corporeidade e tom de voz, pudemos perceber que a mesma angústia, a qual lhe trouxe tanto sofrimento, fá-la emergir de seu estado de queda e buscar forças para enfrentar o que, antes, causava-lhe temor e, agora, já lhe é familiar, ou seja, a possibilidade de morte de sua filha.

Sobre o assunto, estudo menciona que é possível que o sofrimento experimentado por esses pais os instiguem a caminhar em direção à sua existência, o que é importante durante essa experiência, porque pode favorecer a busca pela sobrevivência, a maneira de enfrentar e se adaptar a esse processo de adoecimento.25 25 Angelo M. Ouvindo a voz da família: narrativas sobre sofrimento e espiritualidade. O Mundo da Saúde. 2010 Out-Dez; 34(4):437-43.Nesse pensar, a transcendência mantém estreita ligação com a facticidade, ou seja, não há transcendência sem facticidade, uma vez que o homem somente supera a si próprio quando algum acontecimento inesperado vem ao seu encontro.2424 Sales CA, Schuhli PAP, Santos EM, Waidman MAP, Marcon SS. Vivências dos familiares ao cuidar de um ente esquizofrênico: um enfoque fenomenológico. Rev Eletr Enferm [online]. 2010 [acesso 2012 Jun 28]; 12(3) Disponível em: http://www.fen.ufg.br/revista/v12/n3/v12n3a06.htm. .
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As falas dos pais se assemelham aos resultados de estudos recentes que demonstram que estes, mesmo vivenciando sentimentos como sofrimento, dor, angústia e desespero, ao descobrirem o câncer em seus lares, passaram por experiências que caracterizam como sendo de aprendizado e de crescimento,8Castro EHB. A experiência do câncer infantil: repercussões familiares, pessoais e sociais. Rev Mal-estar Subj. 2010 Set; 10(3):971-94.tornando-se capazes de desenvolver compaixão, empatia, paciência, força interior e novas perspectivas sobre a vida.9Klassen AF, Gulati S, Granek L, Rosenberg-Yunger ZRS, Watt L, Sung L, et al. Understanding the health impact of caregiving: a qualitative study of immigrant parents and single parents of children with cancer. Qual Life Res. 2012 Nov; 21(9):1595-605.

Assim, o sofrimento gerado pelo adoecimento da filha fez Citrino refletir acerca de sua existência como pai. Antes, ocupava-se apenas com as banalidades de seu cotidiano, mas vivenciar tal experiência incitou-o a reaver sua preocupação, reafirmando sua presença na vida não apenas da filha doente, mas de todos os filhos.

Apesar dos transtornos que a situação acarreta, trazendo consigo inúmeras mudanças para o seio familiar, existe a possibilidade de se compreender existencialmente e, independentemente de tudo o que está acontecendo, é possível aprender e se perceber antes e depois,8Castro EHB. A experiência do câncer infantil: repercussões familiares, pessoais e sociais. Rev Mal-estar Subj. 2010 Set; 10(3):971-94. tendo a chance de imprimir novo significado à própria existência.

Diante do exposto, o presente estudo retrata o cotidiano desses pais no tempo e no espaço de suas vivências, podendo ser considerado um fator limitante da pesquisa, por não nos permitir generalizar os resultados. Apesar disto, acreditamos em sua relevância como uma forma de provocar a reflexão dos profissionais que os assistem, especialmente os da equipe de enfermagem, devido à presença constante na assistência a estes seres. Pode incitá-los a repensarem suas ações no que se refere à valorização do ser humano, sensibilizando-os a transpor o cuidado técnico e científico e a pautar sua atenção na compreensão das necessidades existenciais, a fim de que sejam capazes de oferecer conforto físico, apoio psicoafetivo, social e até espiritual aos pais que experienciam o câncer infantojuvenil na vida de um filho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao adentrarmos no universo existencial dos participantes do estudo, visualizamos que ter um filho com câncer conduz os pais a experimentarem imprevistas transformações em seu cotidiano. Eles são levados a viverem em um mundo repleto de acontecimentos inesperados e nada familiares, que lhes causam aflições, angústias, medo, desespero e incertezas, permeando o presente e o futuro do ente querido e de si próprio. Um turbilhão de sentimentos envolve suas perspectivas de vida junto ao filho doente, aos filhos saudáveis e ao cônjuge.

Entretanto, no âmbito existencial, intercedidos pela hermenêutica heideggeriana, abarcamos nas concepções dos pais que a mesma angústia que os fez, inicialmente, quedarem-se diante do mundo, vivendo de uma forma inautêntica, fá-los emergir de suas banalidades e tornarem-se cuidadores autênticos ao compreenderem a condição existencial do filho.

Decorrente do processo que vivenciam, em algum momento dessa trajetória, são capazes de compreender sua própria condição existencial de estarem lançados no mundo como pais e mães de filhos com câncer e, disso, tirar algum ensinamento. Ante as dificuldades, passam a valorizar a vida em todas as suas dimensões, até as que consideram mais ínfimas, convivendo com a possibilidade da morte, mesmo sem aceitá-la, tomando consciência de que esta é irrefreável. Assim, pela reflexão, voltam-se para si e preocupam-se em melhorar sua atuação como pais e seres humanos, uma vez que, ao pisarem no picadeiro da vida, reconhecem como sua a obrigação de darem o melhor de si em prol da vida de seu filho.

Somos impulsionados, assim, à reflexão sobre o cuidado praticado, a fim de proporcionar uma assistência que contemple as necessidades destes seres-no-mundo. Neste contexto, é imprescindível olhar não somente para sua dimensão física, mas para a totalidade de seu ser. A nosso ver, torna-se evidente a necessidade de o profissional utilizar o tempo como uma ferramenta de escuta para melhorar a qualidade da assistência, visto que a temporalidade de conviver com o câncer infantojuvenil em suas existências aviva sentimentos de angústia, provenientes de não ter com quem, nem como partilhar os anseios que lhes causam desconforto físico e mental, restringindo, consequentemente, sua qualidade de vida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2014
  • Aceito
    21 Out 2014
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