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A VIVÊNCIA DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL NO USO DE PSICOFÁRMACOS NA PERSPECTIVA DO PENSAMENTO COMPLEXO

LA VIVENCIA DEL PORTADOR DE TRASTORNO MENTAL EN EL USO DE PSICOFÁRMACOS EN LA PERSPECTIVA DEL PENSAMIENTO COMPLEJO

RESUMO

Objetivo:

conhecer como o portador de transtorno mental vivencia o uso de psicofármacos.

Método:

pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva que utilizou como referencial teórico o pensamento complexo de Edgar Morin. Os dados foram coletados por entrevista semiestruturada, aplicada a 26 portadores de transtorno mental com prescrição médica de psicofármacos, e submetidos à análise categorial temática.

Resultados:

foi identificada uma categoria central: “A vivência complexa do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos”, que mostra as inter-relações entre as categorias temáticas: vivenciando os efeitos dos psicofármacos; utilizando os psicofármacos de modo irregular; identificando facilidades e dificuldades no uso de psicofármacos; e desenvolvendo estratégias para manutenção do uso regular de psicofármacos.

Conclusão:

a vivência do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos é um processo dinâmico e complexo que engloba a multidimensionalidade, envolvendo o ser humano e seu tratamento.

DESCRITORES:
Psicotrópicos; Saúde mental; Enfermagem psiquiátrica; Transtornos mentais; Centros comunitários de saúde mental

RESUMEN

Objetivo:

conocer como el portador de trastorno mental vivencia el uso de psicofármacos.

Método:

investigación cualitativa, exploratoria y descriptiva que utilizó como referencial teórico el pensamiento complejo de Edgar Morin. Datos fueron recolectados por entrevista semiestructurada aplicada a 26 portadores de trastorno mental con la prescripción de psicofármacos y fueron sometidos al análisis categorial temático.

Resultados:

emergió una categoría central: “La vivencia compleja del portador de trastorno mental en el uso de psicofármacos”, que muestra las interrelaciones entre las categorías temáticas: vivenciando los efectos de los psicofármacos; utilizando los psicofármacos de modo irregular; identificando facilidades y dificultades en el uso de psicofármacos; y desarrollando estrategias para mantenimiento del uso regular de psicofármacos.

Conclusion:

que la vivencia del portador de trastorno mental en el uso de psicofármacos es un proceso dinámico y complejo que engloba la multidimensionalidad que envuelve el ser humano y su tratamiento.

DESCRIPTORES:
Psicotrópicos; Salud mental; Enfermería psiquiátrica; Transtornos mentales; Centros comunitarios de salud mental

ABSTRACT

Objective:

to understand how mental disorder patients experience the use of psychotropic medications.

Method:

a qualitative, exploratory and descriptive research, which used Edgar Morin’s complex thinking as theoretical reference. The data were collected through a semi-structured interview applied to 26 mental disorder patients with psychotropic medical prescription and who were subjected to theme category-based analysis.

Results:

a central category emerged “The complex experience of mental disorder patients in the use of psychotropic medication”. This category shows the interrelations between thematic categories, such as: experiencing the effects of psychotropic medications; using psychotropic medication irregularly; identifying the advantages and difficulties of using psychotropic medication; and developing strategies to maintain the regular use of psychotropic medication.

Conclusions:

the experiences of mental disorder patients use of psychotropic medications is a dynamic and complex process that encompasses the multidimensionality involving human beings and their treatment.

DESCRIPTORS:
Psychotropic medication; Mental health; Psychiatric nursing; Mental disorders; Community mental health centers

INTRODUÇÃO

Com a descoberta dos neurolépticos, no início da década de 1950, impulsionou-se o desenvolvimento da psicofarmacologia no tratamento em saúde mental. Conquanto, qualquer sinal e sintoma de sofrimento psíquico passou a ser transformado em objeto de práticas médicas que se limitavam a rotulações diagnósticas, cujo tratamento pautava-se exclusivamente na prescrição de psicofármacos.11 Xavier MS, Terra MG, Silva CT, Mostardeiro SCTS, Silva AA, Freitas FF. The meaning of psychotropic drug use for individuals with mental disorders in outpatient monitoring. Esc Anna Nery. 2014 Apr-Jun; 18(2):323-9. No entanto, essa visão reducionista, embasada apenas na neurofisiologia, desconsiderava a complexidade do ser humano, bem como da existência de seu sofrimento, promovendo a banalização do uso destes medicamentos.11 Xavier MS, Terra MG, Silva CT, Mostardeiro SCTS, Silva AA, Freitas FF. The meaning of psychotropic drug use for individuals with mental disorders in outpatient monitoring. Esc Anna Nery. 2014 Apr-Jun; 18(2):323-9.-22 Kantorski LP, Guedes AC, Feijó, AM, Hisse CN. Negotiated medication as a therapeutic resource in the work process of a psycho-social care center: contributions to nursing. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 Oct-Dec [cited 2016 Jul 05]; 22(4):1022-9. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072013000400019
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

Contudo, no Brasil, com a Lei n. 10.216/2001, houve o redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental, o qual passou a enfatizar o portador de transtorno mental em sua complexidade e subjetividade a partir da atenção psicossocial.11 Xavier MS, Terra MG, Silva CT, Mostardeiro SCTS, Silva AA, Freitas FF. The meaning of psychotropic drug use for individuals with mental disorders in outpatient monitoring. Esc Anna Nery. 2014 Apr-Jun; 18(2):323-9. Neste modelo, o uso de psicofármacos passou a ter uma conotação diferenciada, deixando, assim, de ser coercitivo e alienador para ser um recurso terapêutico que auxilia na melhoria da qualidade de vida, na reabilitação, na reinserção social do indivíduo e no seu convívio em sociedade.22 Kantorski LP, Guedes AC, Feijó, AM, Hisse CN. Negotiated medication as a therapeutic resource in the work process of a psycho-social care center: contributions to nursing. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 Oct-Dec [cited 2016 Jul 05]; 22(4):1022-9. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072013000400019
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

Os psicofármacos apresentam ação prioritária no sistema nervoso central, objetivando, precipuamente, minimizar os sinais e sintomas físicos e comportamentais do transtorno mental, melhorar o prognóstico do tratamento, o estado de saúde e favorecer abordagens terapêuticas voltadas ao processo de reabilitação e reinserção social.33 Fukuda IMK, Stefanelli MC. Assistência de enfermagem à pessoa submetida à psicofarmacologia. In: Stefanelli MC, Fukuda IMK, Arantes EC. Enfermagem psiquiátrica em suas dimensões assistenciais. São Paulo (SP): Manole; 2008. p. 206-27.

Embora seja um relevante recurso terapêutico, a literatura mostra baixos índices de adesão aos psicofármacos pelo portador de transtorno mental, sendo que muitos iniciam o seu uso, mas poucos o mantêm.44 Nicolino PS, Vedana KGG, Miasso AI, Cardoso L, Galera SAF. Schizophrenia: adherence to treatment and beliefs about the disorder and the drug treatment. Rev Esc Enferm USP. 2011 Jun; 45 (3): 706-13.

5 Silva TFC, Lovisi GM, Verdolin LD, Cavalcanti MT. Adhrence to drug treatment among schizophrenic spectrum patients: a systematic review of the literature. J Bras Psiquiatr. 2012; 61(4):242-51.

6 Conti V, Lora A, Cipriani A, Fortino I, Merlino L, Barbui C. Persistence with pharmacological treatment in the specialist mental healthcare of patients with severe mental disorders. Eur J Clin Pharmacol. 2012; 68 (12):1647-55.
-77 Kane JM, Kishimoto T, Correll CU. Non-adhrence to medication in patients with psychotic disorders: epidemiology, contributing factors and management strategies. World Psychiatry. 2013; 12 (3): 216-26. Estes índices também se comprovaram internacionalmente no estudo realizado no Canadá, com 6.201 portadores de transtorno mental, que evidenciou alta frequência de não adesão ao uso de todas as classes de psicofármacos, principalmente aos antidepressivos: em 45,9% dos casos.88 Bulloch AG, Patten SB. Non-adhrence with psychotropic medications in the general population. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2010 Jan; 45(1):47-56.

A baixa adesão ao uso dos psicofármacos se caracteriza como um dos principais desafios no tratamento em saúde mental. As causas do abandono à terapêutica medicamentosa variam de acordo com as especificidades de cada indivíduo; contudo, estão usualmente relacionadas à exacerbação de efeitos colaterais indesejáveis ou ao não assentimento dos portadores de transtorno mental quanto ao uso diário destes medicamentos por um longo período de tempo.11 Xavier MS, Terra MG, Silva CT, Mostardeiro SCTS, Silva AA, Freitas FF. The meaning of psychotropic drug use for individuals with mental disorders in outpatient monitoring. Esc Anna Nery. 2014 Apr-Jun; 18(2):323-9.

Para o portador de transtorno mental, o uso de psicofármacos se configura uma vivência complexa que o envolve em sua totalidade, sendo que os efeitos destes medicamentos não se limitam às explicações farmacológicas, visto que assumem uma dimensão maior em suas vidas. Esses efeitos interferem nos aspectos bioquímicos e se estendem às emoções, aos sentimentos, aos comportamentos, às atitudes, à avaliação e às redefinições de suas ações. Portanto, a escolha por continuar usando os psicofármacos se constitui um processo dinâmico permeado por significações, expectativas, volições e sofrimento intenso, fomentando um expressivo impacto sobre a vida dos pacientes.99 Vedana KGG. Convivendo com uma ajuda que atrapalha: o significado da terapêutica medicamentosa para a pessoa com esquizofrenia [tese]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica; 2011.

Considerando que o uso de psicofármacos apresenta-se como um processo dinâmico e que envolve uma multiplicidade de fatores, utilizar o pensamento complexo de Edgar Morin1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre (RS): Sulina; 2015.-1111 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2003. como referencial teórico mostra-se relevante para desvelar a realidade complexa da vivência do portador de transtorno mental no uso destes medicamentos, contextualizando a multiplicidade das inter-relações e associações concernentes a este fenômeno.

O pensamento complexo corresponde a um tecido de diversificados componentes indissociavelmente relacionados, representados pelas ações, reações, relações, retroações, delimitações e casualidades, que tecem o mundo fenomênico, a realidade existencial. Salienta-se que as primícias do pensamento complexo não intentam, assim como nesta pesquisa, desvelar todas informações do fenômeno, mas respeitar as múltiplas dimensões.1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre (RS): Sulina; 2015.-1111 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2003.

Este pensamento representa um modo de perceber e conceber a realidade humana como um fenômeno em que se coexistem o acaso, o inextricável, a ordem, a desordem, o determinismo, o indeterminismo, o uno e o diverso, a ambiguidade, a contradição e, principalmente, a noção de incerteza. Deste modo, para compreender o processo indefinido que engloba o ser humano e o mundo, faz-se necessário um conhecimento multidimensional que integre e una as dimensões de uma realidade, opondo-se aos mecanismos de pensamento reducionistas e fragmentados.1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre (RS): Sulina; 2015.-1111 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2003.Assim, investigar a vivência dos portadores de transtorno mental no uso de psicofármacos sob a perspectiva da complexidade possibilita reunir, integrar, contextualizar os principais aspectos que envolvem este fenômeno multidimensional, com intuito de favorecer a manutenção da terapêutica medicamentosa.

Acredita-se que a compreensão da multiplicidade das inter-relações e associações relacionadas ao uso de psicofármacos, na ótica de quem a vivencia, auxilia na implementação de intervenções nos serviços de saúde mental voltadas à melhoria da adesão à terapêutica medicamentosa e da qualidade da assistência ofertada, ao considerar a realidade investigada dessa clientela.1212 Miasso AI, Cassiani SHB, Pedrão LJ. Affective bipolar disorder and ambivalence in relation to the drug treatment: analyzing the causal conditions. Rev Esc Enferm USP. 2011 Apr; 45(2):433-41. Nesta perspectiva, este estudo tem o seguinte objetivo: conhecer como o portador de transtorno mental vivencia o uso de psicofármacos.

MÉTODO

Pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, desenvolvida em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Curitiba-PR. Participaram da pesquisa 26 portadores de transtorno mental de idade igual ou superior a 18 anos que tinham prescrição médica de psicofármacos. Com auxílio da avaliação da equipe multiprofissional, excluíram-se os pacientes que, no período da coleta de dados, apresentaram exacerbação de sinais e sintomas decorrentes do transtorno mental e os com baixas condições cognitivas para responder às perguntas.

No transcorrer de duas semanas, foi realizada a aproximação do entrevistador com os pacientes pela participação de todas as atividades propostas no CAPS. Após este período, foram realizadas seis reuniões com os portadores de transtorno mental, com o apoio da equipe multiprofissional, para convidá-los a participar da pesquisa e agendar as entrevistas, considerando o horário e a data de preferência deles.

Dos 320 portadores de transtorno mental em tratamento no CAPS, no período da coleta de dados, 105 participaram de uma das reuniões, sendo que três se recusaram a participar e 19 foram excluídos: sete por não apresentarem condições cognitivas para responder às perguntas e 12 por estarem com exacerbação de sinais e sintomas. Dos 83 pacientes aptos a participar, 26 foram entrevistados de acordo com o fechamento do número de participantes pela saturação teórica de dados. Constatou-se a escassez de temas relevantes a partir da entrevista 23, sendo realizadas mais três com o propósito de certificar a saturação dos dados.

Os dados foram coletados de março a maio de 2015, por entrevista semiestruturada, com a questão: como você vivencia o uso de psicofármacos no seu tratamento em saúde mental? As entrevistas duraram, em média, 50 minutos; foram áudio gravadas e aplicadas individualmente em local disponibilizado pela coordenação do serviço.

Os dados foram analisados pela técnica de análise categorial temática operacionalizada pelas etapas analíticas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e interpretação.1313 Bardin L. Análise de conteúdo. 10ª ed. São Paulo (SP): Edições 70s; 2011.

Na etapa pré-análise, fez-se a transcrição na íntegra das entrevistas, a leitura flutuante para apreender as principais ideias contidas e a elaboração dos índices e indicadores dos fragmentos de texto relacionados ao objeto de estudo. Na exploração do material, os dados foram codificados e categorizados de acordo com agrupamento semântico por analogia em categorias temáticas, buscando as conexões e integrações entre os dados brutos. Por fim, na etapa do tratamento dos dados obtidos e interpretação, foram realizadas as inferências e as interpretações, norteando-se nos significados e conhecimentos das mensagens emitidas pelos participantes, correlacionando-as e contrastando-as com o pensamento complexo de Edgar Morin,1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre (RS): Sulina; 2015.-1111 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2003. resultando num tecido de diversificados componentes que tecem o fenômeno complexo da vivência do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Setor de Ciências de Saúde da Universidade Federal do Paraná, sob o parecer n. 406.158, CAAE: 20816713.9.0000.0102. Os preceitos éticos foram salvaguardados em consonância à Resolução n. 466/2012. Os participantes foram identificados com a letra “p”, sequenciada de um numeral (p1...p26), sem guardar correlação com a ordem das entrevistas.

RESULTADOS

No processo de integração das múltiplas conexões dos relatos dos participantes, emergiu a categoria central denominada “A vivência complexa do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos”, a qual está representada na figura 1 pelo indivíduo na posição central do fenômeno, demonstrando a complexidade do objeto de estudo a partir das inter-relações e integrações entre as quatro categorias temáticas emergentes.

Figura 1
A vivência complexa do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos

Com este diagrama, intenta-se representar a vivência do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos, a qual demonstrou se constituir em um processo dinâmico e complexo, representado por caráter multidimensional da realidade. Cada categoria temática simboliza uma destas dimensões que estão continuadamente interligadas e entrelaçadas, ora com mais intensidade, ora com menos; do mesmo modo como ocorre o viver do portador de transtorno mental em todos os âmbitos de sua vida.

Ao receber a prescrição de psicofármacos e ao utilizá-los, os participantes permanecem vivenciando os efeitos dos psicofármacos; utilizando os psicofármacos de modo irregular; identificando facilidades e dificuldades no uso de psicofármacos; e desenvolvendo estratégias para a manutenção do uso regular de psicofármacos.

A dinamicidade e a não linearidade desta vivência constituem um tecido junto com diversificados componentes, indissociavelmente relacionados, que sucedem da retroalimentação e do reforço mútuo dos aspectos vivenciados pelo portador de transtorno mental; resultando, assim, em uma realidade complexa. Portanto, qualquer modificação em uma destas categorias repercute no todo da vivência do uso de psicofármacos e cada mudança no todo repercute nas partes. Principalmente, ao considerar que cada categoria exprime a multidimensionalidade do ser humano ao expressar a integração e interconexão entre as várias faces da vivência, como a: subjetividade, saúde mental, condição física, ocupacional, econômica, espiritual do indivíduo, bem como o âmbito familiar e social.

Vivenciando os efeitos dos psicofármacos

A vivência do uso de psicofármacos para os portadores de transtorno mental demonstrou envolver variados sentimentos, emoções e expectativas associados aos efeitos que estes incitam na sua saúde mental e física, nos aspectos ocupacionais e interpessoais. Os efeitos positivos do uso de psicofármacos foram reconhecidos pela redução e remissão da sintomatologia do transtorno mental, minimização da ideação suicida, melhora na organização do pensamento, no equilíbrio emocional, no maior autocontrole sobre suas vidas e na motivação para o relacionamento com seus familiares. Os remédios estão melhorando o meu quadro, antes não conseguia dormir, tinha muita angústia e impaciência [...]; Com esses remédios, a minha saúde mental está muito boa, meu pensamento está mais organizado e sem pensamentos suicidas (p10). Os remédios melhoraram a relação familiar. Antes não chegava perto dos meus netos e não podia escutar o choro deles. Agora eu consigo pegá-los no colo (p3).

Embora os psicofármacos ocasionem importantes benefícios na vida do portador de transtorno mental, também fomentam, concomitantemente, intensos efeitos negativos a partir de efeitos colaterais, como: a lentificação psicomotora, sonolência, esquecimento, efeitos extrapiramidais, aumento do peso corporal, disfunção sexual e agravos na saúde física.

Engordei muito com esses remédios e isso me deixa pior, não consigo nem me olhar no espelho. Tem um paciente que sempre me chama de gorda. É muito triste ouvir isso (p7). Com esses remédios, tenho muito esquecimento, não consigo lembrar de quase ninguém [...]. Minha mente fica lenta e [participante cita o nome do psicofármaco] deixa o meu corpo lerdo e tremendo. Sinto que estou dopado, que estou em outro mundo (p14). Por causa desses medicamentos eu e meu marido dormimos separados. Não tenho vontade de ter relações sexuais. Não tenho vontade, desejo, não sinto prazer (p15).

Outro efeito negativo vivenciado pelos participantes está associado a não interrupção por completo e de modo definitivo de todas as angústias e sofrimentos procedentes do transtorno mental, uma vez que continuam a apresentar episódios de tristeza, crise de ansiedade, sintomas psicóticos e até mesmo ideação suicida.

Mesmo com os remédios, não tenho alegria. Ainda escuto vozes me chamarem e me perseguirem, tenho até vontade de morrer. Eles diminuem essas coisas, mas não tiram (p13). Sinto coisas me apalpando, vozes falando comigo, às vezes, parece que a minha língua vai enrolar. Sinto isso mesmo tomando esses remédios, vozes me xingando [...]. Ainda tenho alucinações, mas diminuiu um pouco com os remédios (p14).

A dualidade dos efeitos dos psicofármacos leva o portador de transtorno mental à ambivalência e, como consequência, este avalia as vantagens e desvantagens em utilizá-los. Essa ambivalência é externalizada a partir de uma sucessão de sentimentos de angústia, receio, expectativa, ansiedade, apreensão, desgaste, desesperança, sofrimento e impotência.

Ao vivenciá-los, alguns participantes preferem não utilizar os psicofármacos e conviver com a possibilidade de reincidência do transtorno mental a adaptar-se aos efeitos colaterais. Enquanto isso, outros preferem utilizar os psicofármacos e tentar habituar-se aos efeitos colaterais, apesar da presença de alguns sintomas decorrentes do transtorno.

Eu tomo o medicamento, mas preferia não ter que tomá-lo, porque não resolve todo o meu problema. Ele simplesmente camufla, ameniza as dores, os sintomas e os traumas [...]. Sei que não vai resolver por completo, porque ainda tenho crises e eu fico em uma contenção química. Preferia estar livre dessa contenção, mesmo com a possibilidade de ter crise, não gosto de viver assim [...]. Mas o medicamento também ajuda, porque me acalma (p1).

Utilizando os psicofármacos de modo irregular

A existência dos efeitos negativos dos psicofármacos fomenta angústias e sofrimentos aos indivíduos, levando-os, assim, ao uso irregular dos medicamentos, bem como à modificação da prescrição sem o consentimento dos profissionais de saúde. O uso irregular dos psicofármacos ocorre pelo aumento da dose prescrita para minimizar a permanência de alguns sintomas do transtorno mental, pela redução da dose para aliviar os efeitos colaterais, pelo uso abusivo e autoadministração de psicofármacos prescritos a terceiros.

Comecei a tomar por conta um remédio que era receitado para o meu pai, para a ansiedade dele. Esse remédio tirou a angústia que eu tinha, eu estava quase morrendo de ansiedade [...]. Tomei também o remédio dele utilizado para dormir, mas não deu certo (p11). Antes eu tomava muitos comprimidos de [participante cita o nome do psicofármaco], tomava um seguido do outro. Tomava um e, depois de uma hora, tomava outro. Acabava tomando sempre porque me aliviava a tensão. Cheguei a ficar dependente deste medicamento, porque quando não tinha mais, o meu organismo sentia falta, tinha muita agitação e tremedeira no corpo (p14). O psiquiatra diminuiu a dose do meu remédio porque estava fazendo mal, mas não fiquei bem e resolvi aumentar a dose, mas não adiantou, continuei do mesmo jeito (p17).

Os participantes reconheceram que o uso irregular de psicofármacos ocasiona impacto nocivo em suas vidas ao suscitar inúmeras tentativas de suicídio e internamentos: Se eu parar de tomar o remédio, já tento suicídio, como aconteceu na última vez. [...]. Quando não tomo, passo alguns dias bem, mas depois começo a ver vultos e coisas que não existem, ouvir vozes com comando de suicídio; por isso, tenho muitas tentativas de suicídio [...] Tenho vinte internamentos e, todas às vezes, eu parei de tomar os remédios (p8).

Identificando facilidades e dificuldades no uso de psicofármacos

As facilidades percebidas pelos portadores de transtorno mental se relacionam, precipuamente, ao apoio dos profissionais do CAPS quanto aos cuidados despendidos pelo técnico de referência, equipe de enfermagem e médico psiquiatra. Expressaram que o uso dos medicamentos depende, prioritariamente, da abertura dos profissionais de saúde em escutá-los e atendê-los de acordo com as suas angústias e receios. O apoio familiar - quer pelo incentivo e pela participação ativa de seus entes queridos no tratamento, ou também na aquisição dos medicamentos - foi identificado como facilitador do uso de psicofármacos.

Quando tenho dúvida sobre alguns medicamentos, pergunto para as técnicas de enfermagem, principalmente, se eles causam algum efeito colateral. Elas me orientam (p1). A minha filha compra os remédios. Quando ela não consegue, é o meu marido (p3). A relação que eu tenho com o psiquiatra é muito boa, ele me ajuda e me orienta sobre os medicamentos [...]. Ele considera as coisas que eu falo (p5). A minha filha me ajuda sempre, me dá os remédios quando esqueço. Ela também me lembra de tomar. Todos os dias, ela me visita para levar os remédios e ver como estou (p15). A minha técnica de referência é bem paciente comigo, ela escuta o que falo, me incentiva bastante e acredita em mim. Acho que, se não fosse a ajuda dela, eu não estava mais tomando os remédios por causa dos efeitos ruins (p24).

As dificuldades demonstradas estão associadas à: dificuldade de obtenção da receita médica e consulta psiquiátrica, alta rotatividade dos profissionais de saúde, baixa condição financeira para aquisição de psicofármacos e dificuldade na autoadministração.

Às vezes, me confundo com os remédios. Esses dias, tomei os remédios da noite no período da manhã [...]. Me atrapalho com os nomes e as cores [...]. Cheguei a fazer confusão com os remédios, tomava um e achava que não tinha tomado e tomava de novo (p9). Aqui muda muito o psiquiatra e os outros profissionais; com isso, a gente fica meio perdido no tratamento. Difícil para conseguir manter uma evolução no tratamento (p16). Estou afastada do meu trabalho e não estou tendo condições de pagar os remédios [...]. Neste último ano, está sendo bem difícil comprá-los, porque só meu marido está trabalhando. Já cheguei a ficar uma semana sem tomá-los (p18). Na segunda feira, teve assembleia aqui no CAPS e todos os pacientes falaram sobre a dificuldade de marcar consulta com o psiquiatra. Faz três meses que entrei em tratamento aqui e só tive a primeira consulta. Têm muitos pacientes para pouco psiquiatra (p19).

Desenvolvendo estratégias para a manutenção do uso regular de psicofármacos

Os participantes utilizam estratégias relacionadas a ações e atos praticados para a manutenção do uso de psicofármacos e a resolução dos problemas procedentes dos transtornos mentais a partir do acompanhamento contínuo dos efeitos colaterais, dos cuidados alimentares e de armazenamento dos medicamentos e, mormente, da realização de medicação supervisionada por familiares e profissionais de saúde.

Às vezes, não sinto fome, mas como forçado para não fazer mal para o meu estômago [...]. Esses remédios são muito fortes e, se não comer algo antes, passo mal, porque tenho gastrite e, às vezes, tenho que parar um tempo de tomar o remédio para o transtorno (p2). Os meus remédios ficam aqui no CAPS. Tenho que vir duas vezes na semana buscá-los [...]. As técnicas de enfermagem que separam e entregam os remédios [...]. Elas cuidam porque sou muito esquecido e, às vezes, acabava tomando duas vezes ou não tomando. Com essa organização, os remédios vêm no plástico, separados, e não tem como errar (p14). Quando os médicos dão a receita, eu a coloco na porta da geladeira para não esquecer os horários de tomar e para lembrar de pegar os remédios no posto de saúde (p17).

Os participantes reconheceram que somente com a terapêutica medicamentosa os sinais e sintomas do transtorno não são suprimidos; por conseguinte, buscam outros recursos terapêuticos para aliviar os sofrimentos vivenciados e para uma efetiva reabilitação, tais como apoio espiritual a partir da igreja, grupos terapêuticos e exercícios físicos.

A igreja me ajuda a melhorar [...]. Me sinto muito fortalecida quando vou à igreja e sinto mais vontade de vir aqui no CAPS e fazer as atividades e até de tomar os remédios (p1). Eu gosto de participar dos grupos terapêuticos das terças-feiras, que geralmente são passeios. Nós chegamos a ir ao salão de beleza, ao museu e ao parque [...]. Acho muito gostoso fazer essas atividades porque mantenho a minha cabeça ocupada (p18). Nos dias que não venho ao CAPS, faço quarenta minutos de caminhada no parque e ando mais quarenta de bicicleta. Parece que isso tira um pouco a ansiedade e me sinto melhor, mais disposto, mais alegre. Fazer exercício faz bem à minha saúde mental (p24).

DISCUSSÃO

Os resultados permitiram conceber a complexidade que tece a vivência do portador de transtorno mental no uso dos psicofármacos ao possibilitar reunir, integrar e contextualizar este fenômeno, identificando, também, a dimensão singular e individual de cada participante ao considerar as implicações na subjetividade, nos aspectos ocupacionais e interpessoais. Ao mesmo tempo, possibilitou a emersão de aspectos que envolvem o múltiplo e o complexo, bem como suas inter-relações visualizadas na categoria central “A vivência complexa do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos”. Nesta vivência, o indivíduo se posiciona na intersecção das dimensões, no centro do fenômeno, visto que, na complexidade, o indivíduo pode ser considerado um sujeito que se posiciona no ponto central do seu mundo para lidar com este e consigo mesmo.1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre (RS): Sulina; 2015.

As dimensões, representadas pelas categorias temáticas, mostraram-se intimamente unidas, interligadas e em constante modificação, formando, assim, a vivência complexa do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos. Esta perspectiva vai ao encontro do pensamento complexo que enseja apreender a multidimensionalidade e a complexidade da realidade a partir da busca das relações e inter-relações em cada fenômeno e seu contexto.1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre (RS): Sulina; 2015.-1111 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2003.

Nesta pesquisa, assim como na literatura, vivenciar o uso dos psicofármacos não se restringe aos portadores de transtorno mental, a explanações biológicas, aspectos bioquímicos e fisiológicos da ação destes medicamentos no organismo; entretanto, mostrou-se interligado às influências e repercussões concomitantes na subjetividade, saúde mental, condição física, ocupacional, interpessoal, econômica e espiritual.99 Vedana KGG. Convivendo com uma ajuda que atrapalha: o significado da terapêutica medicamentosa para a pessoa com esquizofrenia [tese]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica; 2011.

Sob o olhar da complexidade, o ser humano não deve ser compreendido como um ser unicamente biológico, uma vez que é considerado, em sua excelência, como um ser singular e multidimensional. O homem nos é desvelado em sua complexidade ao representar, simultaneamente, um ser inteiramente biológico e inteiramente cultural, psíquico, espiritual, sociológico, histórico e físico.1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre (RS): Sulina; 2015.-1111 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2003.,1414 Morin E. Ciência com consciência. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2005.

Estas dimensões, mesmo que divergentes, estão intimamente relacionadas e perpassam o mesmo indivíduo, transformando-o em um ser complexo, ao tentar identificar as articulações, as características e as distinções entre elas.1414 Morin E. Ciência com consciência. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2005. Nesse sentido, o portador de transtorno mental, ao vivenciar o uso destes medicamentos e os sintomas do transtorno, manifesta modificações em seu corpo e mente, bem como apresenta consequências e influências ambientais e culturais que também repercutem em seu organismo e em sua vida.

Os participantes perceberam os efeitos positivos do uso dos psicofármacos pela melhora dos sintomas do transtorno mental e de toda a sua vida. Concatenando a este achado, um estudo desenvolvido com portadores de transtorno mental em tratamento em um ambulatório de saúde mental de um hospital no interior do Rio Grande do Sul, mostrou que o uso de psicofármacos promove a saúde física e mental, auxilia no desempenho das atividades do dia a dia, na resolução de alguns problemas e na motivação para viver.11 Xavier MS, Terra MG, Silva CT, Mostardeiro SCTS, Silva AA, Freitas FF. The meaning of psychotropic drug use for individuals with mental disorders in outpatient monitoring. Esc Anna Nery. 2014 Apr-Jun; 18(2):323-9.

Os efeitos positivos da terapêutica medicamentosa se relacionam à esperança e ao anseio para uma reabilitação possível, para um estar melhor e poder conviver ao máximo a plenitude da vida. No entanto, os indivíduos vivenciam concomitantemente a contradição expressa pelo aparecimento de efeitos colaterais e a não interrupção de todos os sintomas.

A vivência de intensos efeitos colaterais ocasiona inúmeras perdas e limitações para o indivíduo, favorecendo sentimentos negativos e sofrimentos que podem comprometer a interação com a família e a sociedade.1212 Miasso AI, Cassiani SHB, Pedrão LJ. Affective bipolar disorder and ambivalence in relation to the drug treatment: analyzing the causal conditions. Rev Esc Enferm USP. 2011 Apr; 45(2):433-41. Estes efeitos colaterais favorecem a não continuidade do uso de psicofármacos e a baixa adesão ao tratamento.1515 Haddad PM, Brain C, Scott J. Nonadherence with antipsychotic medication in schizophrenia: challenges and management strategies. Patient Relat Outcome Meas. 2014 Jun; 2014 (5):42.-1616 Bet PM, Hugtenburg JG, Penninx BWJH, Hoogendijk WJB. Side effects of antidepressants during long-term use in a naturalistic setting. Eur Neuropsychopharmacol. 2013 Nov; 23(11):1443-51. Ao vivenciar a dualidade destes efeitos, os participantes apresentam constantemente o sentimento de ambivalência.

Uma pesquisa desenvolvida com 36 familiares e 36 pessoas com esquizofrenia em tratamento em serviços de saúde mental no interior de São Paulo elucidou que a terapêutica medicamentosa é demarcada constantemente pela ambivalência, uma vez que o portador de transtorno mental tem consciência da necessidade do seu uso para estabilizar o quadro clínico, conquanto apresenta simultaneamente efeitos desagradáveis.1717 Vedana KGG, Miasso AI. The meaning of pharmacological treatment for schizophrenic patients. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014 Jul-Aug; 22 (4):670-8.

Esta ambivalência, na perspectiva do pensamento complexo, mostra-se associada a uma atitude dialógica, na qual os efeitos positivos e negativos dos psicofármacos se excluem reciprocamente; no entanto, mostram-se inseparáveis ao vivenciar este sentimento. A atitude dialógica possibilita unir dois princípios que deveriam se excluir mutuamente, mas são indissociáveis em uma realidade; assim, aspectos antagônicos podem ser complementares.1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre (RS): Sulina; 2015.-1111 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2003.

A ambivalência parece auxiliar o indivíduo a estabelecer a relação que assume com o uso do medicamento, se os utiliza de modo regular ou irregular. Esta relação está intimamente relacionada à identificação de potencialidades e dificuldades no uso, bem como ao desenvolvimento de estratégias para a manutenção desta terapêutica. Deste modo, exprime uma relação de reciprocidade entre o todo e as partes desta realidade.

Na dimensão “utilizando os psicofármacos de modo irregular”, a existência dos efeitos negativos dos psicofármacos fomentou aos indivíduos a atitude de modificar a prescrição médica sem o consentimento dos profissionais de saúde. O uso irregular, para muitos portadores de transtorno mental, mostrou ser uma das únicas fontes de esperança para reduzir os sofrimentos vivenciados, demonstrando uma busca exasperada pela melhora da sua saúde.

Uma pesquisa, desenvolvida a partir da consulta de 167 prontuários de pacientes em tratamento em um núcleo de saúde mental de Ribeirão Preto-SP, mostrou que 60% dos pacientes utilizam os psicofármacos de modo irregular, prática que repercute em grande risco de recaída, de agravamento do transtorno, de menor resposta ao tratamento e de prolongamento do tempo de reabilitação.1818 Cardoso L, Galera SAF. Mental patients and their profile of compliance with psychopharmacological treatment. Rev Esc Enferm USP. 2009 Mar; 43 (1):154-60.

Com base no referencial da complexidade, torna-se importante considerar que o indivíduo é o próprio autor da sua vida com capacidade de pensar, escolher, tomar decisões e agir. No entanto, quando o ser humano executa qualquer ação, esta começa a desprender-se de suas intenções primárias. A ação adentra em um mundo de interações e influências e, consequentemente, o ambiente se apropria dela e, até mesmo, possibilita que se transforme no oposto das reais intenções.1010 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre (RS): Sulina; 2015.

Esta perspectiva se mostrou evidente nesta pesquisa, pois os participantes empreenderem a ação de modificar a prescrição médica para minimizar os sofrimentos ocasionados pelo transtorno e pela terapêutica medicamentosa; porém, esta ação intensificou ainda mais os sofrimentos pela exacerbação dos sintomas, episódios de ideação e tentativas de suicídio e, até mesmo, a necessidade de internações em serviços de saúde mental.

Na dimensão “identificando facilidades e dificuldades no uso de psicofármacos”, os participantes identificaram múltiplas influências que interferem no uso seguro. Tais influências parecem estabelecer um nexo entre o pensamento e as ações realizadas pelos participantes, auxiliando-os na escolha da manutenção ou não do uso de psicofármacos e na realização de estratégias. Este aspecto foi encontrado em outras pesquisas que apontaram que a adesão ao uso de medicamentos é um processo que envolve múltiplo fatores.1717 Vedana KGG, Miasso AI. The meaning of pharmacological treatment for schizophrenic patients. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014 Jul-Aug; 22 (4):670-8.-1818 Cardoso L, Galera SAF. Mental patients and their profile of compliance with psychopharmacological treatment. Rev Esc Enferm USP. 2009 Mar; 43 (1):154-60.

O apoio recebido pelos profissionais de saúde e familiares impulsiona o portador de transtorno mental a usar os psicofármacos de modo regular a partir dos sentimentos de motivação, segurança e confiança. Estudos corroboram aos achados desta pesquisa, ao explanarem a importância de uma relação profissional embasada no acolhimento, na aliança e na comunicação terapêutica para favorecer a manutenção do tramento.1919 Ferreira ACZ, Borba LO, Capistrano FC, Czarnobay J, Maftum MA. Factors that interfere in patient compliance with chemical dependence treatment: health professionals’ perceptions. Rev Min Enferm. 2015 Abr-Jun; 19 (2):157-64.

20 Thompson L, McCabe R. The effect of clinician-patient alliance and communication on treatment adherence in mental health care: a systematic review. BMC Psychiatry. 2012; 12:86.
-2121 Bessa JB, Waidman MAP. Family of people with a mental disorder and needs in psychiatric care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 Jan-Mar [cited 2016 Jul 05]; 22 (1):61-70. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072013000100008
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

Quanto ao apoio familiar, uma pesquisa desenvolvida com pacientes com doença crônica em uso de medicamentos mostrou que a família representa uma fonte de segurança e apoio a seus entes, de partilha de afeição, ternura, amor e respeito, facilitando práticas de autocuidado e o sucesso na terapêutica medicamentosa.2222 Barreto MS, Marcon SS. Patient perspectives on family participation in the treatment of hypertension. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2014 Jan-Mar [cited 2016 Jul 05]; 23 (1):38-46. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072014000100038
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

As dificuldades vivenciadas pelos participantes favoreceram os sentimentos de desânimo, desesperança e insegurança do indivíduo, levando, assim, à não manutenção do uso do medicamento. Porém, a literatura ressalta que os fatores que dificultam a adesão ao uso de psicofármacos podem ser modificados, por conseguinte, devem ser considerados no planejamento do cuidado para a promoção de comportamentos benéficos ao seu uso.1717 Vedana KGG, Miasso AI. The meaning of pharmacological treatment for schizophrenic patients. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014 Jul-Aug; 22 (4):670-8.

Sob a ótica da complexidade, considera-se estratégia aquilo que integra a evolução de uma situação específica a partir da eventualidade e dos acontecimentos, com intuito de modificar e reparar a realidade. Também é visualizada como a arte de utilizar um conhecimento que surge a partir de uma ação, de elaborar planos de intervenções e ter capacidade para organizar o máximo de certezas para lidar com o que é considerado incerto.1414 Morin E. Ciência com consciência. 8ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2005.

Coadunando esta perspectiva, os portadores de transtorno mental e os profissionais de saúde, com intuito de minimizar os efeitos negativos, as dificuldades identificadas no uso e a fim de evitar seu uso irregular, desenvolveram estratégias para a manutenção do uso de psicofármacos. Estas, portanto, favoreceram uma disposição aumentada para o uso dos psicofármacos e para o processo de reabilitação.

Entre tais estratégias, a literatura aponta que o tratamento supervisionado pelos profissionais de saúde tem uma posição de notoriedade na manutenção do tratamento.2323 Ferreira RCZ, Caliari JS, Figueiredo RM. Concepts of nurses on supervised treatment of tuberculosis in Brazil. Rev Ibero-americana saúde e envelhecimento. 2015; 1(2): 219-32. A supervisão do uso de psicofármacos comumente é indicada a pacientes que apresentam baixa adesão e dificuldade na autoadministração, evitando que tenham posse de um número elevado de comprimidos e que os utilizem de maneira abusiva ou como tentativa de suicídio.2424 Fortes S, Menezes A, Athié K, Chazan LF, Rocha H, Thiesen J, et al. Psiquiatria no século XXI: transformações a partir da integração com a atenção primária pelo matriciamento. Physis. 2014; 24(4):1079-102.

Um estudo, realizado com pacientes e profissionais de saúde de unidades básicas de saúde do município de São Paulo-SP, mostrou que a implementação do tratamento supervisionado, na perspectiva dos profissionais, favorece sentimento de segurança aos indivíduos, a convicção de que ingeriram os medicamentos, a oportunidade diária de reforçar importância do tratamento, a visualização da evolução do quadro clínico e, até mesmo, a melhora no relacionamento entre profissionais e pacientes.2525 Queiroz EM, Bertolozzi MR. Tuberculosis: supervised treatment in North, West and East Health Departments of São Paulo. Rev Esc Enferm USP. 2010 Jun; 44 (2):449-56.

Como o uso de psicofármacos não minimiza todos os sintomas do transtorno mental, os pacientes utilizam como estratégia outros recursos terapêuticos para aumentar a sua qualidade de vida. No contexto da atenção psicossocial, faz-se necessária a construção e o desenvolvimento de múltiplos recursos terapêuticos que considerem a subjetividade e a reinserção social do indivíduo a partir da sua cidadania e autonomia. Salienta-se que a utilização de outros recursos terapêuticos, principalmente terapias grupais, favorece uma ação interdisciplinar mais apropriada, com uma prática profissional mais humana e resolutiva.2626 Benevides DD, Pinto AGA, Cavalcante CM, Jorge MSB. Cuidado em saúde mental por meio de grupos terapêuticos de um hospital-dia: perspectivas dos trabalhadores de saúde. Interface (Botucatu). 2010 Jan-Mar; 1 (32):127-38.

Uma das limitações desta pesquisa está relacionada ao fato de a coleta de dados ter acontecido em somente um dos CAPS, do município, não sendo possível conhecer e inter-relacionar as vivências dos pacientes no uso de psicofármacos em outros dispositivos de atenção em saúde mental. Esta pesquisa, por sua vez, instiga a novas investigações a fim de modificar e complementar o referido fenômeno.

CONCLUSÃO

Este estudo permitiu conhecer que a vivência do portador de transtorno mental constitui-se em um processo dinâmico e complexo. Ao serem submetidos a terapêutica medicamentosa, os portadores de transtorno mental permanecem constantemente: vivenciando os efeitos dos psicofármacos expressos pelos efeitos positivos e negativos e pelo sentimento de ambivalência; utilizando os psicofármacos de modo irregular para aliviar as angústias ocasionadas pelos efeitos negativos destes medicamentos; identificando facilidades e dificuldades para a manutenção da terapêutica medicamentosa; e desenvolvendo estratégias para a manutenção do uso regular dos psicofármacos. Estas dimensões emergentes mostram-se em constante transformação e estão intimamente interligadas e influenciadas entre si, constituindo, deste modo, a vivência complexa do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos.

Ressalta-se que os resultados obtidos podem favorecer o rompimento de práticas e intervenções simplificadoras e fragmentadas, ainda predominantes na atenção em saúde mental, ao conceber a multidimensionalidade que envolve o ser humano e seu tratamento.

  • 1Artigo extraído da dissertação - A vivência complexa do portador de transtorno mental no uso de psicofármacos, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 2015. Esta pesquisa integra o projeto “Adesão ao uso de medicamento pelo portador de transtorno mental”, que obteve subsídios financeiros do CNPq.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2016
  • Aceito
    23 Ago 2016
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