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A TECNICIZAÇÃO E A PRÁTICA DO CUIDADO AO PARTO: UMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA A PARTIR DE HUSSERL1 1 Resultados das reflexões do estágio pós-doutoral, apresentado ao Programa de Pós-Doutorado em Enfermagem do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em 2014.

RESUMO

O parto constitui-se como uma das mais importantes experiências no mundo da vida, vivenciado, por muito tempo, pelas mulheres e suas famílias sem a intervenção de técnicas e a presença de pessoas que não faziam parte do seu mundo. As razões técnica e científica inerentes ao campo do parto e nascimento passaram a ocupar o espaço da objetivação dos fatos do mundo e a racionalidade passou a predominar. Recuando até as origens da tecnicização da prática do cuidado ao parto, este texto pretende refletir acerca do parto como um processo clínico centrado sobre sua pura dimensão biológica. Tem como base inspiradora a filosofia fenomenológica, de Husserl, a matematização da natureza e a tecnicização de nossa relação com o mundo. Para ampliar o olhar para além das técnicas em saúde, compreender a intersubjetividade e resgatar a dignidade humana.

DESCRITORES:
Saúde da mulher; Enfermagem obstétrica; Humanização da assistência; Cuidados de enfermagem; Obstetrícia.

ABSTRACT

Childbirth is one of the most important experiences in the world of life, which women and their families have experienced for a long time without the intervention of techniques and without the presence of people who were not part of their world. The technical and scientific reasons inherent in the field of labor and birth began to occupy the space of the objectification of the world's facts and rationality started to prevail. Moving back to the origins of the technicalization of childbirth care, this article intends to discuss the reduction of labor to a clinical process focused on its purely biological dimension. Its inspiring base is Husserl's phenomenological philosophy, the mathematization of nature and technicalization of our relationship with the world, in order to expand perspectives beyond the health techniques, understand intersubjectivity and rescue human dignity.

DESCRIPTORS:
Women's health; Obstetric nursing; Humanization of assistance; Nursing care; Obstetrics.

RESUMEN

El parto se constituye como una de las experiencias más importantes en el mundo de la vida, vivido por mucho tiempo, por las mujeres y sus familias sin la intervención de técnicas y de la presencia de personas que no hacían parte de su mundo. Las razones técnicas y científicas inherentes al ámbito del parto y nacimiento comenzaron a ocupar el espacio de la objetivación de los hechos del mundo y la racionalidad empezó a prevalecer. Retrocediendo a los orígenes de la tecnificación de la práctica del cuidado al parto, este artículo se propone a reflexionar sobre la reducción del parto a un proceso clínico centrado en la pura dimensión biológica. Tiene como base la filosofía fenomenológica de Husserl, la matematización de la naturaleza y la tecnificación de nuestra relación con el mundo. Esto con el objetivo de ampliar las perspectivas más allá de las técnicas en salud, comprender la intersubjetividad y rescatar la dignidad humana.

DESCRIPTORES:
Salud de la mujer; Enfermería obstétrica; Humanización de la atención; Atención de enfermería; Obstetricia.

INTRODUÇÃO

A Fenomenologia tem isto de característico: ao invés de partir do pressuposto de um mundo objetivo, como realidade existindo de antemão, prévia a todas as operações subjetivas, ela parte da subjetividade, de suas vivências e processos constitutivos de sentido, e obtém o mundo como resultado ou correlato de sua experiência. Assim, para a Fenomenologia, não há um mundo a não ser como correlato de um sistema de experiências, sempre realizadas na primeira pessoa (sob a forma: eu), mas ao mesmo tempo sempre intersubjetivamente validadas e confirmadas em processos de vida comunitária e comunicativa.11. Alves PM. Introdução à tradução portuguesa. In: Husserl E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Lisboa (PT): Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa; 2006.

A subjetividade que experiencia o mundo é, assim, desde a origem, uma subjetividade que já está sempre imersa em processos intersubjetivos de vida e de comunicação, de modo que o mundo que surge como correlato da experiência é sempre, e desde sua origem, um mundo comum. Neste contexto, mais fundamental que saber que é o mundo que se nos depara como correlato de nossas experiências é saber como se nos depara esse mundo que está aí, disponível para nosso conhecimento, nossa ação e nossa manipulação técnico-científica. É esse o lugar teórico da Fenomenologia: seu interesse vai do mundo de que temos experiência até o sentido e significado de nossa experiência de mundo.11. Alves PM. Introdução à tradução portuguesa. In: Husserl E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Lisboa (PT): Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa; 2006.

Essa questão fenomenológica é, portanto, de natureza regressiva: ela vai do mundo até a subjetividade doadora de sentido. A Fenomenologia11. Alves PM. Introdução à tradução portuguesa. In: Husserl E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Lisboa (PT): Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa; 2006.-22. Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Lisboa (PT): Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; 2008. começa, pois, por caracterizar o aparecer de um mundo como um tecido de experiências doadoras de sentido, as quais são, desde sua origem, intersubjetivas e comunicativas. De imedia to, dois núcleos essenciais se evidenciam para este questionamento regressivo. A primeira questão poderia fomular-se assim: haverá algo como uma forma primitiva, originária, da experiência do mundo e qual seria, então, o seu teor de sentido? A segunda questão seria a seguinte: sendo a subjetividade constituinte sempre já, originariamente, uma intersubjetividade comunicativa, unificada em formas diversas de comunidade, o sentido da experiência de mundo seria por todo lado o mesmo ou traduziria ele, antes, um enraizamento dos sujeitos nas diversas formas de sua vida em comunidade?

À primeira questão, responde a Fenomenologia do seguinte modo: há, de fato, uma forma primitiva, fundante, da experiência de mundo, que subjaz a todas as outras e da qual todas as outras são derivações. Ela é designada pelo conceito de mundo da vida (Lebenswelt) e o projeto da sua descrição fenomenológica assume a forma de uma ontologia do mundo da vida. Quanto à segunda questão, a Fenomenologia pode respondê-la do seguinte modo: o mundo da vida, como forma primitiva da experiência de mundo, é sempre desde logo um mundo cultural, portanto, um mundo cujo sentido se configura de formas sempre diversas no horizonte de cada comunidade humana e de cada época histórica. Assim, a experiência de mundo, em sua forma mais originária, é atravessada por uma intrínseca multiplicidade e historicidade.11. Alves PM. Introdução à tradução portuguesa. In: Husserl E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Lisboa (PT): Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa; 2006.-22. Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Lisboa (PT): Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; 2008.

As estruturas de sentido do mundo da vida, como forma primária de nossa experiência de mundo, podem agrupar-se nos seguintes elementos:11. Alves PM. Introdução à tradução portuguesa. In: Husserl E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Lisboa (PT): Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa; 2006.-22. Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Lisboa (PT): Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; 2008.

  1. Uma captação perceptiva de coisas, em um mundo aberto sobre uma espacialidade e temporalidade baseadas no "aqui" e no "agora" da experiência;

  2. Uma captação intersubjetiva de outros sujeitos, em uma experiência já não perceptiva, relativa a simples corpos, mas empática, relativa à captação de outros "eus" na unidade de um "nós" comunitário;

  3. Uma inserção no horizonte de uma comunidade de vida comum, com sua historicidade própria e sua compreensão do mundo culturalmente construída, a que se contrapõem outras comunidades apercebidas com o sentido do "outro", do "alheio" ou mesmo do "estranho";

  4. Um tecido de valorações, pelas quais o mundo das coisas e dos sujeitos, em suas relações comunitárias, é sempre experienciado por meio de valores que dão um sentido para o "bom", o "bem", o "justo", e seus contrários;

  5. Uma inserção prática, ativa, no mundo, a partir de projetos de vida de teor pessoal e coletivo.

Assim, compreende-se que esta estrutura, se ela é a forma basilar a partir da qual se constrói uma experiência de mundo, permite formas diversas de sua concretização.

Nesse sentido, podemos falar do mundo da vida dos gregos antigos ou dos chineses, dos habitantes da Papuásia ou de quaisquer outras comunidades históricas de vida. No interior de uma grande comunidade de vida, como um país ou nação, formas particulares de unidade de vida comum, com seus sinais diferenciadores e sua forma diversa de doação de sentido. Todas elas contêm não só uma representação peculiar, mas também uma valoração do mundo que lhes é idiossincrática.11. Alves PM. Introdução à tradução portuguesa. In: Husserl E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Lisboa (PT): Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa; 2006.-22. Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Lisboa (PT): Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; 2008.

Daí que o mundo da vida, sendo por todo lado constituído pelas mesmas estruturas, é sempre relativo a uma comunidade particular de vida, estruturada sob formas diversas, e mantendo uma distinção capital entre aquilo que é visto como "nosso", como "próprio", e outras formas culturais que lhe são dadas como "estranhas" ou "alheias".22. Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Lisboa (PT): Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; 2008.

Partindo desta reflexão se lançou um olhar ao parto como experiência no mundo da vida.

Nessa perspectiva, o parto constitui-se como uma das mais importantes experiências no mundo da vida, ato originário da própria vida. O parto, como acontecimento do mundo da vida, representa o ápice dos fenômenos emocionais, psíquicos, sociais e existenciais para a mulher, recém-nascido e família. Fenômeno que foi, por muito tempo, vivenciado pelas mulheres e suas famílias em seu mundo circundante, sem a intervenção de técnicas e a presença de pessoas que não faziam parte do seu mundo comunitário.

As razões técnica e científica inerentes ao campo do parto e nascimento33. Leal MC, Pereira APE, Domingues RMSM, Theme Filha MM, Dias MAB, Nakamura-Pereira M, et al. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cad Saúde Pública [internet]. 2014 [cited 2015 mar 22]; 30(Suppl):S17-47. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-311X2014001300005&script=sci_arttext
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passaram a ocupar o espaço da objetivação dos fatos do mundo e, assim, essa racionalidade passou a predominar, fazendo com que o campo da subjetividade fosse negado no contexto da parturição, perdendo sua característica originária.

As mulheres deixaram de parir com a ajuda de outras mulheres, passando a ser assistidas em instituições de saúde, com a presença de outros sujeitos, os profissionais da saúde. Estes, com o respaldo das técnicas científicas, transformaram os valores e as práticas utilizadas no nascimento de forma tecnicista e rotineira do processo de parir. Assim, a parturiente perdeu a possibilidade de decisão na cena do parto, a sua família não se encontra neste espaço e as relações intersubjetivas foram afetadas.44. Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. The Lancet, 2011; 377(9780):1863-1876.-55. Frello AT, Carraro TE. Componentes do cuidado de enfermagem no processo de parto. Rev Eletr Enf [internet]. 2010 [cited 2015 mar 22]; 12(4). Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v12/n4/v12n4a10.htm

Dessa forma, a evolução científica influenciou de maneira significativa os hábitos e modos de vida dos seres humanos, recobrindo o mundo da vida com um estrato de sentido técnico-instrumental, instaurado pela construção sistemática de um mundo de artefatos tecnológicos que induziram não só uma forma nova de agir intersubjetivamente, como também um novo sentido técnico-científico para a experiência do mundo.

Parir e nascer, historicamente considerados naturais, privados, íntimos e femininos, a partir da institucionalização do parto, na década de 1940 do século XX, passam a ser caracterizados como evento técnico especializado no quadro das ciências da saúde. Em consequência, o fenômeno do parto tende a ser reduzido à sua dimensão puramente biológica, para a qual crescem os dispositivos técnicos de assistência, descurando-se, por outro lado, toda a sua dimensão vivencial e cultural.

Nesse contexto, a visão puramente biologicista e tecnocrática mostra-se como elemento fundante da desumanização no campo do parto e nascimento, em especial pela ausência do vínculo, perpetuando uma assistência "fria e indiferente, distante da atenção que elas idealizavam receber na vigência do parto".6:225

Nesta esteira a mulher deixa de ser a protagonista do evento. O ato de parir que deixa de existir é aquele que constitui uma vivência única para cada mulher.

Recuando até as origens da tecnicização da prática do cuidado ao parto

A reflexão que agora encetamos sobre a redução do parto a um processo clínico, centrado sobre sua pura dimensão biológica, tem como base inspiradora o parágrafo 9º do livro A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica, de Husserl".11. Alves PM. Introdução à tradução portuguesa. In: Husserl E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Lisboa (PT): Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa; 2006.-22. Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Lisboa (PT): Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; 2008. Essa obra, no referido parágrafo, trata da matematização galilaica da natureza e da tecnicização de nossa relação com o mundo, que se ergue sobre ela. Refletir a respeito é ir ao encontro da indagação inicial desse autor: qual o sentido desta matematização da natureza e como reconstruímos o curso do pensamento que a motiva? 5:37

Com isso, Husserl pretende questionar o que está presente na atualidade: o fazer das ciências como procedimento metódico organizado que não lança, porém, um olhar ao pré-científico indutivo do mundo da vida, de onde a atividade científica retira, ela própria, sua condição de possibilidade e seu objetivo final de ir às "coisas mesmas", superando a relatividade e subjetividade da experiência originária do mundo. Assim, em linha com esta direção reflexiva de uma genealogia fenomenológica da própria atividade científica, nosso desiderato será perceber as instituições de sentido que norteiam o processo de construção do pensar científico que envolve uma ciência do cuidado em saúde, ciência essa cuja essência mais originária deve ser procurada no mundo da vida.

A tese de Husserl22. Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Lisboa (PT): Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; 2008. acerca de uma crise das ciências europeias leva a refletir, aqui, acerca de uma correspondente crise das ciências da saúde, em especial a ciência do parto e nascimento. O mundo da vida, que se apresenta como núcleo de sentido originário, como uma evidência primordial, necessita ser explicitado em suas dimensões de sentido para serem compreendidos os conceitos e teoremas da prática do cuidado ao parto e nascimento, explicitando o estrato originário de onde emerge o saber científico no campo da parturição, a fim de identificar o sentido que, desde o mundo pré-científico e pré-técnico, condiciona e envolve todo aparato técnico-científico em torno do parto e do nascimento. O regresso ao mundo da vida possibilita olhar para os núcleos originais de sentido e, a partir deles, pôr em questão aquilo que passa como uma evidência indiscutível para o pensar e fazer científicos.

A primeira evidência no agir técnico-científico é a de que parto e nascimento são acontecimentos fisiológicos e biológicos, que devem receber sob este aspecto o seu enquadramento hospitalar.77. Dias VF, Schneck CA, Riesco MLG. Intervenções obstétricas no trabalho de parto em mulheres submetidas à cesariana. Cogitare Enferm [internet]. 2007 [cited 2015 out 01]; 12(3). Available from: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/cogitare/article/viewFile/10023/6884
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A segunda evidência é a de que os aspectos vivenciais são do foro simplesmente psicológico e, como tal, meramente subjetivo, sem relevância para o processo de parturição e nascimento (a não ser quando interferem negativamente nesse processo). 8

A terceita evidência é a de que o dispositivo clínico, estando montado e estruturado para lidar com a base biológica do nascimento e do parto, está, por isso, livre para usar à descrição meios não naturais de precipitação do parto ou de produção do nascimento (cesariana). 9

A estas "evidências" contrapomos que:

  • 1º - O parto é um acontecimento humano, que envolve e intensifica as dimensões fundamentais da vida subjetiva, social e comunitária;

  • 2º - O parto e o nascimento têm uma base biológica, mas não são fenômenos biológicos: são acontecimentos do mundo humano, e como tal devem ser abordados.

  • 3º - O parto e o nascimento são, como fenômenos humanos, acontecimentos extraordinários, do mesmo quilate que a morte: se esta última marca o termo de uma vida e o fecho do futuro, aqueles, ao invés, são a abertura originária do futuro e a continuação de um mundo da vida social e comunitário.

  • 4º - O cuidado com o parto se ergue sob um contexto de presença no nascimento de toda a comunidade de vida (pai, irmãos, familiares), em ambiente de expectativa festiva, e os aspectos biológicos da parturição, tradicionalmente associados à presença de uma "parteira", são dimensões menores e meramente laterais dos fenômenos humano, social e comunitário.

  • 5º - O parto em ambiente hospitalar e clínico hipertrofiou a dimensão do coadjutor e tecnicizou-a, a ponto de excluir qualquer outra, confinando-o, assim, ao seu elemento menos essencial.

  • 6º - O cuidado no parto assenta na vida em comum e na assistência mútua, que tem como fundo de sentido a comum pertença dos sujeitos a uma comunidade.

Ora, a abordagem científico-naturalista dos fenômenos intersubjetivos e comunitários não só não reconhece as experiências subjetivas da vida cotidiana em sua origineidade, como também as denega, como base para a construção do conhecimento. Contudo, este mundo circundante da vida (Umwelt), que é um dos aspectos do mundo da vida como tal (Lebenswelt), experienciado em nosso cotidiano, está patente para cada um de nós como um mundo pré-científico, subjetivo, com aparições que valem efetivamente para cada um de nós como a forma primordial de experiência de um mundo.11. Alves PM. Introdução à tradução portuguesa. In: Husserl E. A crise da humanidade européia e a filosofia. Lisboa (PT): Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa; 2006.-22. Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Lisboa (PT): Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; 2008.

É por retorno a esse mundo da vida pré-científico e às suas formações de sentido que se poderá aclarar o eidos-mundo na sua estrutura mais originária. Nesse sentido, o dado subjetivo da aparição, na prática, possibilita fundamentações empíricas que fomentam o conhecimento científico. Para Husserl,2 "despertada a busca de um conhecimento 'filosófico' determinador do ser 'verdadeiro' objetivo do mundo, a arte da mediação empírica, com a sua função objetivadora empírico-prática, foi idealizada e converteu-se então no procedimento do pensar".2:24

A ciência orientada por uma prática científica que busca pesquisar as coisas do mundo, norteadas pela materialidade e causalidade, não levando em consideração o mundo da vida como um valor em si mesmo, só reconhece o pensamento na forma da razão objetivante, matematizadora, e compreende toda prática, incluindo a do cuidado, como procedimento técnico-científico especializado. Ao negar o mundo apreendido pela experiência, acaba concentrando-se exclusivamente num em um objeto de investigação constituído como uma entidade simplesmente física e biológica, sem atender as suas dimensões subjetivas e intersubjetivas, sociais e culturais.

Pensar as ciências da saúde e a enfermagem a partir das contribuições da Fenomenologia é uma necessidade real, a fim de ampliar o olhar para além das técnicas em saúde e compreender os conceitos e teoremas da saúde. Esse é um processo que se faz urgente e tem ocupado as reflexões da enfermagem.1010. Guevara B, Evies A, Rengifo J, Salas B, Manrique D, Palacio C. El cuidado de enfermería: una visión integradora en tiempos de crisis. Enferm Glob [internet]. 2014 [cited 2015 mar 22]; 13(33). Available from: http://scielo.isciii.es/pdf/eg/v13n33/ensayo2.pdf
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Nessa perspectiva, o humano será reconhecido com capacidade de refletir diante dos novos acontecimentos, em que dará sentido e significado à experiência vivida e mediada pelo mundo para, então, decidir sobre as situações que experiencia.

A cientificação estreita e unilateral, que capacita e autoriza as técnicas assistenciais1111. Malheiros PA, Alves VH, Rangel TSA, Angel TSA, Vargens OMC. Labor and birth: knowledge and humanized practices. Texto Contexto Enferm [internet]. 2012 [cited 2015 mar 22]; 21(2). Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072012000200010&script=sci_arttext
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-1212. Prata JA, Progianti JM, David HSL. Productive restructuring in the area of health and obstetric nursing. Texto Contexto Enferm. [Internet]. 2014 [cited 2015 Oct 05]; 23(4). Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072014000401123&lng=en&nrm=iso&tlng=en
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ao parto e nascimento, é pautada pelo uso excessivo de tecnologias especializadas no campo da razão patológica. Nela, o fato é entendido e estudado à luz da fisiologia, alcandorada a ciência soberana, e os valores e núcleos essenciais de sentido da experiência da mulher em processo de parturição são considerados meros epifenômenos. Assim, a ciência naturaliza o subjetivo no campo da pesquisa ao reduzir, quantificar e não reconhecer a subjetividade como caminho para a investigação no campo do parto e nascimento.

É preciso atenção para esse olhar reduzido no campo da objetivação das coisas, aqui a prática do cuidado ao parto e nascimento, porque o saber fazer não é constituído só no campo objetivo; ele perpassa pela subjetividade do ato da parturição que envolve atores neste contexto do mundo da vida, que hoje foi desmantelado pela tecnicização científico-naturalística do parir.

Em suma, a forma de agir e pensar nas ciências da prática do cuidado ao parto e nascimento renega a subjetividade como lugar originário de constituição do sentido, construindo conceitos operantes do mundo da objetividade, que não vão ao encontro do mundo da vida das mulheres no processo de parir. Husserl o define como objetivismo das ciências e reafirma ter como resultado "uma tecnicização de todos os métodos próprios das ciências da natureza [que] em consequência se mecanizam".2:63

Assim, "ir às coisas mesmas", buscar ver a essência do processo científico que sustenta a prática, é questionar o sentido originário do cuidado ao parto e nascimento. Essa prática hoje é entendida como uma visão desumanizada e mecanizada, adotada acriticamente na academia, e os profissionais a incorporam ainda durante a sua formação, uma vez que um dos mais tradicionais livros-texto1313. Rezende J. Obstetrícia. 6.ed. Rio de Janeiro (RJ): Guanabara Koogan; 1992. de obstetrícia utiliza a metáfora "motor-objeto-trajeto" para explicar os mecanismos do parto: o útero seria o motor, o feto seria o objeto e o canal vaginal se constituiria em trajeto.1414. Rattner D. Humanização na atenção a nascimentos e partos: breve referencial teórico. Interface (Botucatu) [internet], 2009 [cited 2015 mar 22]; 13(suppl.1). Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832009000500011
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As ciências que sustentam as tecnologias em saúde devem garantir uma adequada qualidade deste cuidado, resultando positivamente para indivíduos e coletividades. Nesse sentido, no campo do parto e nascimento, esperam-se os melhores resultados e a satisfação das usuárias deste serviço; e, para a saúde, resulta na diminuição das iatrogenias maternas e perinatais. Estudos atuais1515. Leal MC, Silva AAM, Dias MAB, Gama SGN, Rattner D, Moreira ME, et al. Birth in Brazil: national survey into labour and birth. Reproductive Health. 2012; 9:15

16. Santos IS, Matijasevich A, Silveira MF, Sclowitz IK, Barros AJ, Victora CG, et al. Associated factors and consequences of late preterm birth: results from the 2004 Pelotas birth cohort. Pediat Perinat Epidemiol, 2008; 22(4):350-9.
-1717. Aquino EML. Para reinventar o parto e o nascimento no Brasil: de volta ao futuro. Cad Saúde Pública [internet]. 2014 [cited 2014 Set 11]; 30(Suppl 1):S8-10. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2014001300002&lng=pt
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realizados no Brasil revelam o aumento de intervenções obstétricas, que repercutem diretamente no aumento de morbidade e mortalidade materna e neonatal.

Pensar na Fenomenologia de Husserl e nas suas interfaces com os dias atuais revela que vivemos na necessidade da "elucidação do sentido da origem da ciência moderna da natureza [...] deslocamento de sentido [...] numa espécie de círculo [...] a compreensão do início só se pode alcançar por inteiro a partir das ciências dadas na sua figura hodierna, no olhar retrospectivo para o seu desenvolvimento".2:73 Assim, a crise que Husserl destaca deve chamar a atenção para uma análise crítica e reflexiva, porque está nos campos da vida, da filosofia, da ciência e da ética humana.

Husserl22. Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Lisboa (PT): Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; 2008. reforça que não se deve negar a razão, mas olhar para as ciências, no caso presente, o parto e nascimento, a partir do mundo da vida, das experiências sensíveis e da subjetividade, que são sentidos originários fundadores das ciências modernas, portanto, sentidos que possibilitam uma reflexão crítica e humana no campo da saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar as ciências da saúde e a enfermagem a partir das contribuições da Fenomenologia é, pois, uma necessidade real, a fim de ampliar o olhar para além das técnicas em saúde e compreender a intersubjetividade. A aplicação na prática significa resgatar a dignidade humana, levando em consideração o projeto de vida pessoal e coletivo, validado no mundo da vida das pessoas na situação de cuidado. Esse é um processo que se faz urgente.

Agradecimentos

Os autores agradecem o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2015
  • Aceito
    13 Nov 2015
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