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Condições sociodemográficas e padrões de consumo de crack entre mulheres1 1 Extraído da dissertação - Vivências de mulheres que consomem crack em Pelotas-RS, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGEnf) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em 2012.

Resumos

O objetivo deste estudo foi caracterizar as condições sociodemográficas e os padrões de consumo de crack entre mulheres. Realizou-se um estudo exploratório-descritivo, de abordagem qualitativa, por meio de entrevista semiestruturada com 16 mulheres que consomem ou consumiam crack cadastradas na Estratégia de Redução de Danos de Pelotas-RS, no mês de janeiro de 2012. Para a análise dos resultados, utilizou-se a análise de conteúdo, na modalidade análise temática. Identificou-se um grupo de mulheres jovens, com baixa escolaridade e renda, exercendo atividades ocupacionais informais e com pelo menos um filho. O consumo de crack era do tipo "binge" e interferia nas atividades diárias preexistentes, caracterizando o grupo de mulheres como usuárias abusivas. A partir do padrão de consumo de crack entre as mulheres e sua relação com questões de gênero, constatou-se a produção de novas inserções e discursos, pondo em discussão os comportamentos predefinidos na sociedade.

Usuários de drogas; Crack; Mulheres; Identidade de gênero


The aim of this study was to characterize the sociodemographic conditions and patterns of crack use among women. A descriptive-exploratory study with a qualitative approach was performed in January 2012, using semi-structured interviews with 16 women who use or used crack, and were enrolled in the Damage Reduction Strategy of the municipality of Pelotas, in the state of Rio Grande do Sul, Brazil. Data were analyzed using the thematic content analysis. A group of young women was identified with low levels of education and income, which perform informal labor activities and have at least one child. The pattern of crack use among these women was identified as the "binge" type, interfering with daily activities, and characterizing the group of women as abusive users. The pattern of crack use among the women, and its relation to issues of gender, pointed to the production of new insertions and discourses, bringing into question pre-defined behaviors in society.

Drug users; Crack cocaine; Women; Gender identity


El objetivo de este estudio fue caracterizar las condiciones sociodemográficas y los patrones de consumo de crack entre mujeres. Se realizó un estudio exploratorio y descriptivo de abordaje cualitativo, por medio de una entrevista semiestructurada con 16 mujeres que consumían crack, registradas en la Estrategia de Reducción de Daños de Pelotas-RS, en el mes de enero de 2012. Para el análisis de los resultados se utilizó el análisis de contenido, en la modalidad análisis temático. Se identificó un grupo de mujeres jóvenes, con baja escolaridad y renta, ejerciendo actividades ocupacionales informales y con por lo menos 1 hijo. El consumo de crack era del tipo "binge" e interfería en las actividades diarias pre-existentes, caracterizando el grupo de mujeres como usuarias abusivas. El patrón de consumo de crack entre las mujeres y su relación con cuestiones de género constató la producción de nuevas inserciones y discursos poniendo en discusión los comportamientos predefinidos en la sociedad.

Consumidores de drogas; Cocaína crack; Mujeres; Identidad de Género


INTRODUÇÃO

Diante do crescente consumo de crack, tem-se observado no Brasil que a mídia, em suas propagandas e noticiários, associa o consumo de Substâncias Psicoativas (SPAs) a complexos problemas sociais, como, por exemplo, a violência e a criminalidade, influenciando, assim, o imaginário social e preocupando-se muito pouco em realmente compreender o fenômeno do consumo de drogas. A população influenciada pelo sensacionalismo das reportagens e de slogans como "o crack mata", clama ao Estado providências e acaba contribuindo para a consolidação de estereótipos frente aos consumidores de SPAs.11. Malheiro LSB. Rituais sociais e o acesso a atenção básica em saúde entre pessoas que usam crack no centro histórico de Salvador: uma pesquisa com fins a intervenção social em redução de danos [trabalho de conclusão de curso]. Salvador (BA): UFBA; 2010. - 22. Spricigo JS, Carraro TE, Cartana MHF, Reibnitz KS. Atenção ao usuário de drogas - Um espaço para o enfermeiro. Texto Contexto Enferm. 2004 Abr-Jun; 13(2):296-302.

A existência de padrões de consumo de SPAs é conhecido desde 198433. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984. e evidenciado em alguns trabalhos.11. Malheiro LSB. Rituais sociais e o acesso a atenção básica em saúde entre pessoas que usam crack no centro histórico de Salvador: uma pesquisa com fins a intervenção social em redução de danos [trabalho de conclusão de curso]. Salvador (BA): UFBA; 2010.

2. Spricigo JS, Carraro TE, Cartana MHF, Reibnitz KS. Atenção ao usuário de drogas - Um espaço para o enfermeiro. Texto Contexto Enferm. 2004 Abr-Jun; 13(2):296-302.

3. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984.
- 44. Oliveira LG, Nappo SA. Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Rev Saude Pública. 2008 Ago; 42(4):664-71. A primeira pesquisa referente a essa diferenciação de consumo, realizado com usuários de maconha, psicodélicos e opiáceos (heroína), revelou que uma parcela significativa de pessoas é capaz de manter equilíbrio entre consumo, cuidados mínimos de saúde e autonomia perante a substância.33. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984.

Apontam-se três fatores determinantes para a definição do padrão de consumo de SPAs, são eles: a "substância" em si, isto é, a ação farmacológica, incluindo a dosagem e a maneira pela qual ela é utilizada (endovenosa, aspirada, fumada); o set, que corresponde ao estado da pessoa no momento do uso (a personalidade da pessoa, suas expectativas diante do uso); e o setting, que se trata da influência do ambiente físico e social no local onde ocorre o uso (companhias, lugar, significados culturais atribuídos ao uso).33. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984.

Com base nesses fatores, o padrão de uso de SPAs é caracterizado como controlado ou abusivo. O primeiro teria baixos custos para a sociedade e não causaria danos sociais à pessoa, sendo caracterizado por algumas regras informais, como definir a quantidade ideal da SPA a ser consumida, sem que esta interfira nas atividades diárias;44. Oliveira LG, Nappo SA. Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Rev Saude Pública. 2008 Ago; 42(4):664-71. limitar meios físicos e sociais que propiciem segurança; identificar os efeitos da substância, propondo padrões de comportamento e mantendo suas atividades sociais, afastando-se da marginalização.33. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984. Já o segundo se define por um uso descontrolado e disfuncional, em que a pessoa não consegue manter controle sobre o uso, seu pensamento é focado somente no consumo da próxima SPA, de forma que o sono, alimentação, afeto, senso de responsabilidade e sobrevivência perdem o significado.33. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984. - 44. Oliveira LG, Nappo SA. Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Rev Saude Pública. 2008 Ago; 42(4):664-71.

O consumo de SPAs é maior na população masculina, porém uma diminuição da proporção entre homens e mulheres, que usam essas substâncias, vem sendo registrada devido ao amplo acesso que hoje elas têm em conseguir tais drogas e, principalmente, às mudanças ocorridas no estilo de vida de mulheres no último século.55. Pardo LS. Género y drogas: guía informativa: drogas y género: Plan de Atención Integral a la Salud de la Mujer de Galicia. Galacia (TR): Subdirección Xeral de Saúde Mental e Drogodependencias; 2009. No Brasil, dados do I levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas, realizado com uma amostra de 41,3% da população total do país, sendo 57% mulheres, confirmam esse panorama, no qual o uso de benzodiazepínicos e anfetamínicos mostrou-se três vezes maior entre as pessoas do sexo feminino em comparação com os homens.66. Carlini EA, Galduróz JC, Noto AR, Nappo AS. I levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 107 maiores cidades do país. São Paulo (SP): UNIFESP; 2002.

A literatura científica dispõe de poucos dados acerca do consumo de crack e outras SPAs ilícitas entre as mulheres, dificultando a elaboração de estimativas exatas sobre o consumo e as implicações acerca desta questão. A dificuldade em identificar essas mulheres pode estar associado à vergonha, ao medo de julgamento/preconceito, ao estilo de vida e isolamento social que muitas se encontram, ou ainda, à falta de habilidades técnicas dos profissionais de saúde em identificar sinais e sintomas de uma mulher que usa SPAs.55. Pardo LS. Género y drogas: guía informativa: drogas y género: Plan de Atención Integral a la Salud de la Mujer de Galicia. Galacia (TR): Subdirección Xeral de Saúde Mental e Drogodependencias; 2009. , 77. Severine D. The specificities of female drug addiction. [online] 2004 Ago [acesso 2012 Dec 10]; [about 03 p.]. Disaponível em: http://www.drugtext.org/Gender-issues/the-specifities-of-female-drug-addiction.html
http://www.drugtext.org/Gender-issues/th...
- 88. Oliveira JF, McCallum CA, Costa HOlG. Social representations of community health agents regarding drug use. Rev Esc Enferm USP. 2010 Set; 44(3): 611-8.

Nas publicações que tratam sobre o consumo de crack e outras SPAs, percebe-se que homens e mulheres apresentam diferenciação no padrão de consumo. No que diz respeito à experimentação, as mulheres, geralmente, iniciam o uso por meio de um parceiro ou um membro de sua família, enquanto os homens iniciam por meio dos amigos. A possível influência de pessoas do sexo masculino sobre as mulheres para início e manutenção do consumo de SPAs é consenso na literatura especializada.55. Pardo LS. Género y drogas: guía informativa: drogas y género: Plan de Atención Integral a la Salud de la Mujer de Galicia. Galacia (TR): Subdirección Xeral de Saúde Mental e Drogodependencias; 2009. , 77. Severine D. The specificities of female drug addiction. [online] 2004 Ago [acesso 2012 Dec 10]; [about 03 p.]. Disaponível em: http://www.drugtext.org/Gender-issues/the-specifities-of-female-drug-addiction.html
http://www.drugtext.org/Gender-issues/th...
- 88. Oliveira JF, McCallum CA, Costa HOlG. Social representations of community health agents regarding drug use. Rev Esc Enferm USP. 2010 Set; 44(3): 611-8. Há registro de mulheres, que se tornam usuárias abusivas, pelo fato de consumirem a substância a fim de acompanhar os parceiros e por eles se tornarem seus principais fornecedores, evitando assim sua exposição aos pontos de tráfico e à comunidade.77. Severine D. The specificities of female drug addiction. [online] 2004 Ago [acesso 2012 Dec 10]; [about 03 p.]. Disaponível em: http://www.drugtext.org/Gender-issues/the-specifities-of-female-drug-addiction.html
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- 88. Oliveira JF, McCallum CA, Costa HOlG. Social representations of community health agents regarding drug use. Rev Esc Enferm USP. 2010 Set; 44(3): 611-8. Além disso, a motivação para o consumo de SPAs entre as mulheres tende a ocorrer devido à insatisfação humana, sintomas depressivos, sentimentos de isolamento social e falta de projetos de vida, enquanto os homens se referem, frequentemente, a problemas externos, como dificuldades profissionais, financeiras e criminais.77. Severine D. The specificities of female drug addiction. [online] 2004 Ago [acesso 2012 Dec 10]; [about 03 p.]. Disaponível em: http://www.drugtext.org/Gender-issues/the-specifities-of-female-drug-addiction.html
http://www.drugtext.org/Gender-issues/th...

Ao intervir no campo do consumo de SPAs, é imprescindível levar em consideração elementos estruturadores das relações de gênero que permeiam nossa sociedade, tais como papéis e funções determinados para homens e mulheres. Adotar a perspectiva de gênero permitirá entender o padrão de consumo de crack entre as mulheres e como ocorre sua socialização, na qual a população estimula ou condena determinadas práticas sociais, como consumir o crack às escondidas e não procurar tratamento por medo de serem identificadas.99. Moraes M. Gênero e usos de drogas: porque é importante articular esses temas? In: Moraes M, Castro R, Petuco D. Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral a saúde. Recife (PE): Instituto PAPAI/Gema/UFPE; 2011.

Assim, foram utilizados como referenciais teórico-metodológicos as relações de gênero1010. Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1990; 16(2):5-22. e a teoria sobre os padrões de consumo de drogas.33. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984. Desde a pré-história, diferentes SPAs vêm sendo utilizadas para um leque de finalidades que se estendem desde fins lúdicos, místicos e religiosos até para obtenção prazer. Diante disso, percebeu-se que dependendo da finalidade do consumo se dão os efeitos das drogas, ou seja, há outro caminho para se pensar e discutir que não se detém somente no fármaco como responsável pelos comportamentos dos indivíduos, mas, sim, na pessoa inserida no seu contexto social sob a perspectiva de fatores psicológicos, sociológicos e culturais que moldam motivações, experiências e comportamentos e são capazes de caracterizar a pessoa que usa drogas como controlada ou abusiva.33. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984.

Nesse sentido, o padrão de consumo de crack está relacionado com as vivências das mulheres em seu contexto social, sendo influenciado por elementos estruturadores de relações de poder, entre eles, as relações de gênero. A perspectiva de gênero vem sendo reconhecida como uma poderosa abordagem a fim de reconhecer o impacto do consumo de drogas na sociedade, seja ela em grupo ou individual, sendo compreendida por meio dos sistemas de signos e símbolos que destacam as relações de poder entre os sexos e influenciam o padrão de consumo de SPAs.99. Moraes M. Gênero e usos de drogas: porque é importante articular esses temas? In: Moraes M, Castro R, Petuco D. Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral a saúde. Recife (PE): Instituto PAPAI/Gema/UFPE; 2011.

Diante das considerações apresentadas, o presente artigo teve por objetivo caracterizar as condições sociodemográficas e os padrões de consumo de crack entre as mulheres. Este estudo justifica-se pela necessidade de conhecer os padrões de consumo de crack, a partir da perspectiva de gênero, entendendo esse fenômeno como uma construção que produz significados sociais e que devem ser inseridos nas pesquisas e nas práticas cotidianas dos profissionais de saúde, contribuindo para uma assistência integral e adequada às especificidades das mulheres que consomem crack.99. Moraes M. Gênero e usos de drogas: porque é importante articular esses temas? In: Moraes M, Castro R, Petuco D. Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral a saúde. Recife (PE): Instituto PAPAI/Gema/UFPE; 2011. Assim, focalizou-se a construção de estilos de consumo de crack entre as mulheres, caracterizando as participantes como "abusivas" e "controladas"33. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984. e relacionando com a perspectiva de gênero.1010. Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1990; 16(2):5-22.

METODOLOGIA

Os dados apresentados foram resultantes de uma pesquisa qualitativa com um caráter exploratório-descritivo,1111. Cruz VD. Vivências de mulheres que consomem crack em Pelotas-RS [dissertação]. Pelotas (RS): Universidade Federal de Pelotas. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; 2012. vinculada ao projeto de pesquisa intitulado "Perfil dos usuários de crack e padrão de uso", financiado pelo CNPq, através do Edital MCT/CNPq 41/2010.

Participaram do estudo 16 mulheres que consomem/consumiam crack, cadastradas na Estratégia Redução de Danos (ERD) e indicadas pela equipe de Agentes Redutores de Danos (ARDs), sendo determinados os seguintes critérios de inclusão: ser mulher, maior de 18 anos, consumir ou já ter consumido crack por um período mínimo de um ano e ser cadastrada na ERD de Pelotas-RS.

A coleta de dados ocorreu por meio da ERD de Pelotas-RS, que atualmente faz parte do organograma da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) e está vinculada à Gerência do Programa de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), sendo entendida e organizada dentro da perspectiva do Programa de Redução de Danos (PRD). A ERD localiza-se na SMS da Prefeitura Municipal de Pelotas-RS, sendo composta por uma coordenadora, uma enfermeira e seis ARDs, que buscam realizar um trabalho voltado à atenção direta aos usuários nas cinco grandes áreas do município: Areal, Fragata, Zona Norte, Centro e São Gonçalo.

A coleta dos dados foi realizada no mês de janeiro de 2012, por meio de entrevista semiestruturada, que continha questões referentes às condições sociodemográficas das mulheres que consomem crack, vivências relacionadas ao consumo de crack e caracterização de uma cena típica de consumo de crack. Para maior fidedignidade do conteúdo das entrevistas, foram utilizados gravadores de voz. O anonimato das participantes foi garantido, usando para a identificação das mesmas a letra E (entrevistada) e pelo número de ordem da entrevista. As entrevistas foram realizadas durante o trabalho de campo dos ARDs, nos diferentes bairros de Pelotas-RS, prevendo a coleta de dados no contexto da pessoa, ou seja, 13 mulheres foram entrevistadas em suas residências, duas em uma casa destinada ao consumo de crack e uma no local de trabalho (guardadora de carro), no centro da cidade, tendo duração média de 45 minutos.

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, foram respeitados os preceitos da Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos). O projeto recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas sob o parecer n. 301/2011.

O conteúdo das entrevistas foi transcrito na íntegra e submetido a repetidas leituras, seguindo as etapas da análise de conteúdo, na modalidade análise temática1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo (SP): Hucitec, 2010. sob a ótica da teoria de gênero.10 10. Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1990; 16(2):5-22.Assim, os dados foram analisados em três fases distintas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados obtidos e interpretação.

Durante a pré-análise, houve a ordenação dos dados obtidos nas entrevistas, incluindo: transcrição, leitura, organização do material e retomada das hipóteses e dos objetivos iniciais da pesquisa. Na exploração do material, foi desenvolvida a classificação por meio da leitura exaustiva dos dados oriundos das entrevistas, identificando as ideias centrais e as categorias empíricas, retomada da revisão de literatura sobre as mulheres que consomem crack e a constituição de um 'corpus' que foi reagrupado de acordo com as categorias: "Caracterização sociodemográfica de mulheres que consomem crack" e "Caracterização do padrão de consumo de crack"; o tratamento dos resultados obtidos e a interpretação foram marcados pelo momento em que os pesquisadores propuseram as inferências e realizarem interpretações de acordo com as relações de gênero e os padrões de consumo de SPAs.1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo (SP): Hucitec, 2010.

RESULTADOS

Caracterização sociodemográfica de mulheres que consomem crack

No que se refere aos aspectos sociodemográficos do grupo estudado (n=16), o quadro 1 demonstra as características das participantes segundo idade, cor da pele, escolaridade, situação conjugal, ocupação, número de filhos e renda nominal mensal.

Quadro 1
Características sociodemográficas de mulheres que consomem crack. Pelotas-RS, 2012

Em relação às características ocupacionais, segundo as falas das participantes, 13 praticavam atividades informais. Dentre as ocupações, as mais citadas pelas mulheres foram trabalhos domésticos, como faxineira, cuidadora de crianças e acompanhante de idosos, seguidos de envolvimento com a prostituição.

Sou babá, cozinheira e faxineira, tudo no mesmo lugar [...] (E3); Sou garota de programa (E7); Faxineira. Me aposentei da profissão do sexo há muito tempo (E9); Faxina e programa eu me viro depende do dia, da hora e do lugar (E11); Doméstica, cuido de uma senhora (E14).

Do total das participantes, apenas uma informou não ter filhos. Do restante com filhos, 13 declararam não morar com os mesmos.

Tenho seis filhos e comigo moram três. Porque eu dei por causa da dependência química eu não tinha condições de cuidar deles, eu dei para um familiar, o outro o Conselho me tirou [...] (E3); [...] para não abandonar eles e para eles não terem aquele contato comigo muito louca, eu preferi entregar eles quatro para mãe do meu ex-marido [...] aquele abandono que era para proteção se tornou uma coisa contra mim [...]. Ela está drogada, ela está se prostituindo, então não pode cuidar dos filhos, então preferi deixar eles quietinhos e não incomodar na volta para não dar briga [...] (E6); [...] Eu tenho 4 [...] por causa de pedra eles moram com meus parentes (E12).

Caracterização do padrão de consumo de crack

A presente categoria foi subdividida em: contexto físico e social de consumo; gestão do consumo de crack: dosagens e aprendizagens; e motivações e expectativas para o consumo. Todos esses fatores interferem e são responsáveis por definir o padrão de consumo de crack controlado ou abusivo entre as pessoas.

Contexto físico e social de consumo

As participantes do estudo afirmaram consumir o crack em lugares reservados e distantes de olhares externos, optando por manter seu consumo em sigilo ou com a presença de poucas pessoas, propiciando assim experiências positivas e seguras.

Eu só fumava na casa de usuários meus conhecidos, pessoas da minha confiança [...] (E5); Onde não tem ninguém me olhando eu fumo [...] eu tento me esconder, se me enxergam eu não sei (E7); Eu gosto de fumar em casa sozinha [...] é muito raro fumar na rua (E11).

Sensações de perseguição, medo de violência e angústia são alguns dos motivos que levam as usuárias a limitar suas companhias no momento do consumo, usufruindo do crack sozinhas ou com pessoas de sua confiança, como, por exemplo, o companheiro.

Para me furar, eu gostava de me furar sozinha, para fumar a minha pedra também, porque eu tinha umas nóia, via bichinho, me escondia, via a polícia. Então, eu não gostava de usar droga com ninguém, eu gostava de usar sozinha, eu não confiava em ninguém, sempre com medo que alguém fosse me pegar, me judiar ou me roubar (E3); Com o pai da minha filha e com amigos (E5); Eu uso com ele [companheiro] (E11); Direto era só eu e o meu marido, era raro ter algum amigo e era só um, por que eu pensava assim: 'Nem todos os usuários de crack agem do mesmo jeito', ai eu tinha medo porque a gente muda, não tem como dizer que não. Vai que entra uma pessoa aqui para usar drogas e seja violenta, eu pensava (E14).

Gestão do consumo de crack: dosagens e aprendizagens

As mulheres relataram fumar o crack de forma intensa, contínua e repetitiva, seguida de uma parada abrupta em seu consumo por alguns dias.

Uma pedra é R$ 5,00. Um grama deve dar umas oito pedras, eu devo usar umas 15 pedras por dia, todos os dias, uso praticamente o dia inteiro, a noite inteira, depende quanto tem [...] mas a gente controla, não sai matando ninguém, tu faz a tua administração [...] (E6); Eu uso três, quatro, cinco pedras, tem dias que eu não uso, mas se der vontade dia e noite eu fumo [...] enquanto eu estiver trabalhando [formal] eu não uso nada, só no domingo para tomar uma cerveja e olhe lá [...] eu já parei por quatro anos [...] Se tu roubar tu vai preso, então eu tenho que fazer isso [prostituir] [...] e para dar o meu corpo preciso fumar (E7); Uso todos os dias, umas cinco ou seis pedras por dia [...] paro um dia, dois, mas é o máximo (E8).

O consumo de crack utilizado apenas para a promoção da sociabilidade e divertimento, também foi relatado.

Uso duas no máximo, ontem usei e hoje não dormi, então, hoje eu não quero [...] os amigos dele [companheiro] que trazem a droga, muitas vezes, eles chegam e eu saio [...] não uso todos os dias, só se me bate a vontade [...] é só uma curtição [...] eu já fiquei 2 meses sem fumar, mas voltei para me divertir [...] não vou ficar gastando o meu dinheiro nisso, só uso se meus amigos me dão (E13).

Ainda, no decorrer desta pesquisa, houve mulheres que afirmaram não estar consumindo o crack há mais de seis meses: [...] faz muito tempo, acho que uns dois anos [...] (E1); [...] vai fazer um ano e três meses que eu não fumo mais (E2); [...] eu estou limpa há seis meses e três dias (E3); [...] faz dois anos que eu não fumo mais [...] (E15).

As participantes informaram que o consumo do crack nem sempre se dá de forma isolada, ou seja, na maioria das vezes está associado com outras SPAs, que possibilitam intensificar e/ou amenizar os efeitos desejados no organismo. Essa situação revelou aprendizados na cultura do crack e alguns padrões de comportamento a serem seguidos.

Tomo cachaça e uso cigarro junto (E10); [...] Eu usava o crack com bebida, por que eu não gosto de maconha. Eu tinha que tomar era cachaça pura [...] quando não tinha cachaça eu tomava álcool puro, senão não passava aquela sensação horrível de medo, de perseguição [...] (E14); [...] depois que não tem mais o corre do crack, para relaxar e para comer, fumo maconha (E16).

Motivações e expectativas para o consumo

As participantes relataram ter começado o consumo do crack a partir da influência de uma pessoa do seu ciclo social, geralmente alguém do sexo masculino.

Tinha 34 anos. Uns três colegas meus me ofereceram. Ele disse: experimenta pra ti ver, vai ser bom, vai aliviar teus problemas [...] tive um [parceiro] que me estimulava, e a gente usava compulsivamente. Mas este [companheiro] como não usa, ele às vezes me recrimina, me oprimi, mas me dá dinheiro pra comprar [...] (E4).

Diversas foram as motivações, citadas pelas participantes, para o início e manutenção do consumo de crack, dentre elas, as mais citadas foram: problemas afetivos, de saúde e familiares, situações de perda, parceria com companheiro usuário de crack, distração, para suportar momentos de tristeza ou para comemorar momentos de felicidade e, ainda, simplesmente por gostar de usar.

O que me levou a usar droga foi a prostituição, isso eu tenho certeza, e depois o fator de eu ser soro positivo e, também, por que eu tive que entregar o meu filho, naquele momento que eu entreguei ele [Conselho Tutelar] eu entreguei um pouco de mim. Era muito difícil e eu tinha um marido que era usuário e traficante (E3); Depende, às vezes uso porque eu estou feliz demais, às vezes porque eu estou triste demais, é tudo uma desculpa para usar. Eu uso porque eu quero, eu gosto da droga que eu uso, sinceramente, não abro mão (E11); De ver ele [companheiro] fumando aí dá vontade, é só uma curtição, uma nóia, eu fumo, converso, arrumo as coisas (E13).

DISCUSSÃO

As mulheres entrevistadas se autodeclararam negras ou pardas (9), possuíam entre 19 e 48 anos de idade (15), apresentavam ensino fundamental incompleto (13), renda abaixo de um salário mínimo nacional, ou seja, R$ 678,00 (14), trabalhavam de maneira informal (13) ou estavam desempregadas (3), possuíam companheiro (7) e tinham pelo menos um filho (15). Esses achados corroboram alguns resultados de outro1313. Elbreder MF, Laranjeira R, Siqueira MM, Barbosa DA. Perfil de mulheres usuárias de álcool em ambulatório especializado em dependência química. J Bras Psiquiatr. 2008 Jan; 57(1):9-15. estudo em relação à escolaridade e atividade profissional, no entanto, houve discordância na cor da pele e situação conjugal, em que naquele predominou branca e solteira.

Algumas das participantes se encontravam em situação social e econômica desfavorecida, embora 13 delas trabalhem, a baixa escolaridade aliada à baixa qualificação profissional resulta no exercício de atividades informais, tais como: faxineira, diarista, cuidadora de idosos e crianças, e profissional do sexo. Estas atividades, por não exigirem qualificação técnica, oferecem baixa remuneração, mas que para os padrões sociais dessas mulheres são suficientes para manter o seu consumo.

Entre as mulheres estudadas, 15 delas têm pelo menos um filho, porém, observa-se pelos relatos que os mesmos, frequentemente, não moram com a mãe. Devido aos efeitos que o uso abusivo do crack produz nas pessoas, por vezes o cuidado às crianças é negligenciado pela necessidade de usar a droga. Nesse processo, algumas perderam seus filhos para o conselho tutelar, outras por compreenderem os riscos e consequências que o consumo do crack pode ocasionar aos seus filhos, preferiram entregá-los para parentes, na intenção de protegê-los.

Na cultura brasileira, de um modo geral, somente as mulheres engajam-se sobre o cuidado com o filho, sendo o pai considerado apenas um elemento da rede de apoio, quando participa de alguma maneira desse processo. Essa construção cultural é reforçada pela maneira como os serviços de saúde se organizam e direcionam suas práticas, centrando a gestação e os cuidados com a criança como uma responsabilidade exclusiva das mulheres, o que contribui para a submissão feminina e o retorno de antigos valores atribuídos à mulher.1414. Cabral FB, Oliveira DLLC. Women's vulnerability in the puerperium from the view of Family Health Teams: emphasis on generational aspects and adolescence. Rev Esc Enferm USP. 2010 Jun; 44(2): 368-75. Nesse sentido, alguns símbolos acerca do papel feminino construídos historicamente e explicados e interpretados pelas doutrinas religiosas, educativas e culturais, como, por exemplo, cuidar dos filhos, permanecem intactos até os dias atuais, como se essas configurações fizessem parte do destino natural de ser mulher.1010. Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1990; 16(2):5-22.

Contrapondo esse pensamento, algumas mulheres entrevistadas acreditavam que o ato de entregar o(a) filho(a) para algum familiar, constitui uma ação de proteção e de cuidado. Tendo conhecimento dos riscos e das consequências negativas que esse consumo pode acarretar na vida das crianças, uma vez que as alucinações causados pela droga pode afetar o poder de decisão dessas mães e, consequentemente, o cuidado eficaz dessa criança, elas preferiram manter seus filhos distantes.

Em relação ao contexto físico e social de consumo, as participantes relataram consumir o crack com um grupo de amigos restritos ou com pessoas de confiança, em ambientes fechados, revelando a preocupação com sua segurança e, também, com a ocultação da prática de consumo. Situação similar foi encontrada em pesquisa realizada com 30 usuários de crack na cidade de São Paulo, na qual os participantes afirmaram preferir consumir o crack sozinho, por causa das frequentes brigas nos grupos e aumento da agressividade provocado pela fissura, geralmente em locais fechados, a exemplo da própria casa.1515. Ribeiro LA, Sanchez ZM, Nappo SA. Estratégias desenvolvidas por usuários de crack para lidar com os riscos decorrentes do consumo da droga. J Bras Psiquiatr. 2010 Ago; 59(3):210-8.

Mulheres que usam SPAs sofrem estigma social, por apresentarem um comportamento tipicamente masculino, sendo julgadas como promíscuas, imorais e incapazes de cuidar da família e dos filhos. Em razão disso, muitas fazem o uso às escondidas, tornando-se mais vulneráveis a vivenciar situações de risco sociais e de saúde, como violência, prostituição, problemas com gestação, responsabilização com os filhos e tratamento pelo uso das SPAs.77. Severine D. The specificities of female drug addiction. [online] 2004 Ago [acesso 2012 Dec 10]; [about 03 p.]. Disaponível em: http://www.drugtext.org/Gender-issues/the-specifities-of-female-drug-addiction.html
http://www.drugtext.org/Gender-issues/th...
, 1616. Oliveira JF, Paiva MS. Vulnerabilidade de mulheres usuárias de drogas ao hiv/aids em uma perspectiva de gênero. Esc Anna Nery. 2007 Dez; 11(4):625-31.

As participantes do estudo consumiam o crack tipo "binge", caracterizado por dias contínuos de consumo, seguido por alguns dias de pausa, geralmente devido ao fim da substância ou esgotamento físico.1717. Raupp L, Adorno RCF. Jovens em situação de rua e usos de crack: um estudo etnográfico em duas cidades. RBAC. 2011; (4):52-67. Elas tendem a manifestar alterações de suas necessidades básicas, tais como: não comer e não dormir durante o episódio de consumo e sintomas de mal-estar geral, exaustão, tremores, vômitos e tonturas.1717. Raupp L, Adorno RCF. Jovens em situação de rua e usos de crack: um estudo etnográfico em duas cidades. RBAC. 2011; (4):52-67. Além disso, outro fator contribuinte para que a mulher se torne uma usuária abusiva de crack é o fato de adquirir a droga com mais facilidade do que os homens, pois geralmente seus parceiros tornam-se seus principais fornecedores.1616. Oliveira JF, Paiva MS. Vulnerabilidade de mulheres usuárias de drogas ao hiv/aids em uma perspectiva de gênero. Esc Anna Nery. 2007 Dez; 11(4):625-31.

O ato de consumir o crack apenas para maior sociabilidade e por divertimento, limitando quantidades e momentos de consumo, foi identificado neste estudo, sendo a entrevistada considerada uma usuária controlada de crack, pois a SPA não é uma prioridade em sua vida. O setting 33. Zinberg N. Drug, set and setting, New Haven (US): Yale University Press, 1984. se apresenta no relato de E13, no momento em que a participante afirmou somente usar crack quando o marido lhe fornece, constatando que a disponibilidade da SPA favorece o consumo. Dessa forma, há pessoas que continuam a usar uma droga, porque não têm experiências negativas advindas desse uso e devido ao fato dessa prática ser natural no contexto onde vivem.1717. Raupp L, Adorno RCF. Jovens em situação de rua e usos de crack: um estudo etnográfico em duas cidades. RBAC. 2011; (4):52-67.

Além disso, no momento da entrevista, algumas mulheres se autodefiniram como ex-usuárias de crack por estarem há mais de 6 meses sem consumir a SPA em questão. A decisão pela interrupção do uso do crack sofre influência de diversos fatores, entre eles: a fissura pela droga, o estado emocional da pessoa, a realização de tratamento e alguns estímulos ambientais. Há estudos que retratam a tendência dos indivíduos de empregarem estratégias para regular seu consumo e, até mesmo, pararem de usar o crack, como o afastamento do contexto social que consumiam; estruturação de atividades diárias e de lazer; desvio de atenção e pensamentos para outras práticas e moderação do consumo de outras substâncias, que servem de "gatilhos" para o uso do crack,44. Oliveira LG, Nappo SA. Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Rev Saude Pública. 2008 Ago; 42(4):664-71. , 1818. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo SA. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saúde Pública. 2011 Dez; 45(6):1168-75. demonstrando, assim, poder e controle sobre suas vidas.

A capacidade de uma pessoa que usa crack poder controlar sua própria vida, muitas vezes, é negada pelos profissionais de saúde e pela sociedade. Estes, influenciados pela mídia, que em seus artigos jornalísticos utiliza termos pejorativos e ênfase emocional ao tratar acerca do consumo de SPAs, como expressões "trata-se de um abismo", acreditam que toda pessoa que consome crack é um dependente potencial da droga.11. Malheiro LSB. Rituais sociais e o acesso a atenção básica em saúde entre pessoas que usam crack no centro histórico de Salvador: uma pesquisa com fins a intervenção social em redução de danos [trabalho de conclusão de curso]. Salvador (BA): UFBA; 2010.

A fim de amenizar os sintomas da abstinência do crack e os efeitos do seu consumo, algumas estratégias, por exemplo, a associação do crack com o álcool, a maconha e/ou o tabaco foram identificadas no presente estudo. O consumo do álcool, após o uso do crack é utilizado como um método para inibir ou diminuir a paranoia, efeito resultante do consumo do crack. A maconha, além de diminuir os efeitos indesejáveis do consumo do crack, contribui na diminuição da fissura, o que possibilitaria, em longo prazo, a reintegração sociolaboral do usuário.44. Oliveira LG, Nappo SA. Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Rev Saude Pública. 2008 Ago; 42(4):664-71. A relação crack-tabaco pode ser justificada, principalmente, pela possibilidade de utilização em vias públicas e pela necessidade do uso de suas cinzas para a combustão da pedra.1919. Zeni TC, Araújo RB. Relação entre o craving por tabaco e o craving por crack em pacientes internados para desintoxicação. J Bras Psiquiatr. 2011 Jan; 60(1):28-33.

Contrariando as crenças do senso comum, os usuários de crack, em geral, desenvolvem um saber sobre a substância, que se difunde entre eles, como regras e controles informais de autorregulação, como, por exemplo, a quantidade e as associações das SPAs a serem consumidas.11. Malheiro LSB. Rituais sociais e o acesso a atenção básica em saúde entre pessoas que usam crack no centro histórico de Salvador: uma pesquisa com fins a intervenção social em redução de danos [trabalho de conclusão de curso]. Salvador (BA): UFBA; 2010. Nesse contexto, as mulheres, no momento que adquirem conhecimento para amenizar os efeitos do crack, ganham poder e espaço no grupo, recebendo um lugar de prestígio e tornando-se modelos a serem seguidos pelo restante dos(as) usuários(as) que ainda não apresentam tal poder ou habilidade.11. Malheiro LSB. Rituais sociais e o acesso a atenção básica em saúde entre pessoas que usam crack no centro histórico de Salvador: uma pesquisa com fins a intervenção social em redução de danos [trabalho de conclusão de curso]. Salvador (BA): UFBA; 2010. Assim, o poder de controlar os efeitos do crack pode ser compreendido, neste estudo, como um mecanismo capaz de reforçar, transformar e inverter posições e situações no cenário das drogas.99. Moraes M. Gênero e usos de drogas: porque é importante articular esses temas? In: Moraes M, Castro R, Petuco D. Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral a saúde. Recife (PE): Instituto PAPAI/Gema/UFPE; 2011.

As mulheres entrevistadas relataram que iniciaram o consumo de crack pelo fato de algum amigo ou conhecido ter oferecido. Quando considerado a diferença entre homens e mulheres para a obtenção de drogas, um estudo sobre os comportamentos de risco de mulheres usuárias de crack constatou que 90% das mulheres, quando experimentaram o crack pela primeira vez, ganharam a droga de um "amigo" e apenas 69% dos homens obtiveram-na dessa mesma maneira.1919. Zeni TC, Araújo RB. Relação entre o craving por tabaco e o craving por crack em pacientes internados para desintoxicação. J Bras Psiquiatr. 2011 Jan; 60(1):28-33. Confrontando esses achados, outros estudos identificaram que o consumo inicial de drogas por mulheres jovens e adultas é frequentemente associado à presença de relações amorosas com parceiros também usuários ou pessoas da família.55. Pardo LS. Género y drogas: guía informativa: drogas y género: Plan de Atención Integral a la Salud de la Mujer de Galicia. Galacia (TR): Subdirección Xeral de Saúde Mental e Drogodependencias; 2009. , 77. Severine D. The specificities of female drug addiction. [online] 2004 Ago [acesso 2012 Dec 10]; [about 03 p.]. Disaponível em: http://www.drugtext.org/Gender-issues/the-specifities-of-female-drug-addiction.html
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As participantes referiram diversos motivos para a manutenção do consumo de crack. Percebeu-se, a partir dos relatos, que o uso de crack por algumas mulheres é uma opção, um estilo de vida, não sendo considerado um problema, ao contrário, seria a solução para o enfrentamento dos obstáculos da vida, como a prostituição. No entanto, outras afirmaram consumir o crack na tentativa de fugir da solidão, de seus problemas e perdas. Esses resultados corrobora um estudo realizado com jovens que consomem álcool e outras drogas em uma moradia estudantil do conjunto residencial da Universidade de São Paulo, no qual todos os participantes informaram que consomem drogas para conseguir suportar as dificuldades, esquecer problemas e situações mal resolvidas.2020. Zalaf MRR, Fonseca RMGS. Abusing alcohol and other drugs in students' dormitories: knowing it in order to face it. Rev Esc Enferm USP. 2009 Mar; 43(1):132-8.

Ainda apareceu, nos relatos, certa influência do companheiro, também usuário de crack, na manutenção do consumo das mulheres, devido ao fato da mulher acompanhar seu parceiro no consumo, por receber dinheiro dele para comprar a droga ou por não precisar se expor a situações de risco para a aquisição do crack, pois o companheiro se responsabiliza por esse processo. A motivação de mulheres, para iniciar e manter o consumo de SPAs ilícitas com frequência, é relacionada a ter um relacionamento amoroso com um parceiro(a) também usuário(a).77. Severine D. The specificities of female drug addiction. [online] 2004 Ago [acesso 2012 Dec 10]; [about 03 p.]. Disaponível em: http://www.drugtext.org/Gender-issues/the-specifities-of-female-drug-addiction.html
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A dependência afetiva e a necessidade de se sentir aceita pelo parceiro levam algumas mulheres a "acompanhar" o consumo de seu parceiro dando, assim, o primeiro passo para o uso abusivo da droga.55. Pardo LS. Género y drogas: guía informativa: drogas y género: Plan de Atención Integral a la Salud de la Mujer de Galicia. Galacia (TR): Subdirección Xeral de Saúde Mental e Drogodependencias; 2009.

CONCLUSÃO

O presente estudo permitiu identificar as características sociodemográficas e os padrões de consumo de crack das mulheres estudadas, revelando a influência das relações de gênero nos comportamentos vivenciados pelas mulheres e as estratégias de redução de danos, utilizadas para amenizar os efeitos negativos do consumo de crack, que merecem ser consideradas para a assistência de saúde.

O padrão de consumo de crack entre as mulheres, e sua relação com questões de gênero, constatou a produção de novas inserções e discursos entre as pessoas, pondo em discussão os limites predefinidos na sociedade como masculinidade/feminilidade e mostrando que esses valores atualmente estão em crise e em processo de mudança.

A perspectiva de gênero entre as mulheres que consomem crack permitiu compreender a existência de hierarquias, desigualdade e desobediência, nas quais estão presentes múltiplas tensões de negociação, de cooperação, de conflitos e alianças, capazes de inverter a posição de usuárias dentro do grupo.

Diante do exposto, é perceptível a necessidade de se preocupar não somente com o uso abusivo de crack, mas, sim, incluir fatores de risco para a qualidade de vida e tratar as pessoas de forma singular, pois homens e mulheres que consomem crack apresentam necessidades e consequências distintas, sendo assim imprescindível construir um quadro referencial para a ação que inclua ao mesmo tempo o individual e o social.

Os limites da análise do estudo fizeram alusão ao próprio desenho metodológico da pesquisa qualitativa: a impossibilidade de uma generalização dos resultados devido ao número restrito de participantes e a valorização de determinados aspectos em detrimento de outros pela escolha de um referencial teórico de orientação do estudo.

A contribuição para a enfermagem e área da saúde consiste na construção de políticas públicas referentes ao uso abusivo de drogas. Há que se considerar, ainda, o fato de analisar estratégias da redução de danos no cotidiano do trabalho em saúde. O enfermeiro precisa conhecer os diferentes grupos sociais, e suas necessidades específicas, para se aproximar efetivamente de práticas que favoreçam a promoção da saúde das pessoas.

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    Extraído da dissertação - Vivências de mulheres que consomem crack em Pelotas-RS, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGEnf) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2013
  • Aceito
    19 Ago 2013
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