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Perspectiva de familiares sobre o processo de morrer em unidade de terapia intensiva

Resumos

Este estudo objetivou conhecer a perspectiva de familiares sobre a terminalidade da vida na Unidade de Terapia Intensiva. Trata-se de um estudo exploratório descritivo com abordagem qualitativa. Foram realizadas entrevistas individuais semi-estruturadas com oito familiares de pacientes terminais internados em uma Unidade de Terapia Intensiva de um hospital público de Porto Alegre-RS. Para a análise dos dados, foi utilizado o método de análise de conteúdo. Durante o processo de morrer, evidenciou-se que os sentimentos vivenciados pelos familiares foram diversos, como angústia, insegurança, revolta, culpa e saudade. Também foi demonstrado pelos familiares a importância de estar junto da pessoa amada e o desejo de estabelecer um vínculo entre equipe-paciente-família.

Doente terminal; Morte; Família; Unidades de terapia intensiva


This study aimed to investigate the perspective of family members on end-of-life in the Intensive Care Unit. This is an exploratory descriptive study with a qualitative approach. Semi-structured individual interviews were held with eight family members of terminally-ill patients receiving inpatient treatment in an Intensive Care Unit in a public hospital in Porto Alegre, in the State of Rio Grande do Sul . The method of content analysis was used for data analysis. During the process of dying, it was evident that the feelings experienced by the family members were diverse, including distress, insecurity, anger, guilt and missing the loved one. Also demonstrated by the family members were the importance of being with the loved person, and the desire to establish a link between the team-patient-family

Terminally ill; Death; Family; Intensive care units


Este estudio tuvo como objetivo conocer la perspectiva de la familia sobre la terminalidad de la vida en la Unidad de Cuidados Intensivos. Se trata de un enfoque cualitativo exploratorio descriptivo. Se realizaron entrevistas individuales y semi-estructuradas con ocho miembros de la familia de los pacientes terminales ingresados en una Unidad de Cuidados Intensivos de un hospital público en Porto Alegre-RS. Para el análisis de datos, se utilizó la técnica de análisis de contenido. Durante el proceso de morir, se hizo evidente que los sentimientos experimentados por los miembros de la familia son diversos, incluyendo ansiedad, inseguridad, ira, culpa y el deseo de estar con la persona. También se demostró la importancia de estar junto a la persona amada y el deseo de establecer un enlace entre equipo de salud-paciente-familia.

Enfermo terminal; Muerte; Familia; Unidades de cuidados intensivos


INTRODUÇÃO

A morte é a única certeza absoluta no domínio da vida; sempre existiu e sempre existirá. Entretanto, saber-se mortal, e enfrentar a finitude da vida como algo concreto gera medo, inquietação e frustração.

Antigamente, o processo de morrer era assistido pelos familiares, que permaneciam ao lado do ente querido, proporcionando-lhe conforto. Hoje, o cenário, muitas vezes, não é mais o mesmo. Uma parcela considerável das mortes ocorre nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), locais destinados ao atendimento de pacientes graves, que necessitam de assistência contínua. Caracteriza-se por uma constante expectativa de situações de emergência, o que o torna um ambiente estressante, tanto para os trabalhadores, quanto para pacientes e familiares.1Urizzi F, Carvalho LM, Zampa HB, Ferreira GL, Grion CML, Cardoso LTQ. Vivência de familiares internados em unidades de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2008; 20(4):370-5.

Com o tempo, as UTIs passaram a receber pacientes portadores de doenças incuráveis e terminais, ou seja, independente das medidas terapêuticas adotadas, a doença evoluirá inevitavelmente para a morte. A irreversibilidade do quadro é definida de forma consensual pela equipe médica, e, estabelecido esse diagnóstico, os objetivos principais da assistência ao paciente são o bem estar e o conforto, possibilitando uma morte digna e sem sofrimento. A priorização desses cuidados e a identificação de medidas consideradas fúteis devem ser estabelecidas pela equipe multiprofissional em consonância com o paciente ou seus representantes.2Moritz RD, Lago PM, Souza RP, Silva NB, Meneses FA, Othero JCB, et al. Terminalidade e cuidados paliativos na unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2008; 20(4):422-8.

Na abordagem da terminalidade, o envolvimento da família é primordial, pois esta exerce um papel fundamental, tanto na tomada de decisões - quando o paciente não é capaz - quanto na manutenção do bem estar e conforto,3Ferreira NMLA, Souza CLB, Stuchi Z. Cuidados paliativos e família. Rev Ciênc Méd. 2008; 17(1):33-42. pois sua presença constante proporciona ao paciente maior segurança e tranquilidade.

Quando o diagnóstico de que uma doença está fora de possibilidades terapêuticas é recebido, a família sofre com o paciente e o impacto é sempre muito doloroso.3Ferreira NMLA, Souza CLB, Stuchi Z. Cuidados paliativos e família. Rev Ciênc Méd. 2008; 17(1):33-42. A situação de tensão vivida pelos familiares pode ser evidenciada frequentemente pela desorganização das relações interpessoais, devido à distância física do paciente, problemas financeiros e/ou medo da perda do ente querido.1Urizzi F, Carvalho LM, Zampa HB, Ferreira GL, Grion CML, Cardoso LTQ. Vivência de familiares internados em unidades de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2008; 20(4):370-5.

Diante desse cenário, muitas dúvidas emergem por parte dos familiares, principalmente envolvendo a certeza da proximidade da morte. Por isso, a equipe multiprofissional necessita estar atenta e mostrar-se sensível às necessidades da família neste momento, buscando maneiras efetivas de atendê-las.1Urizzi F, Carvalho LM, Zampa HB, Ferreira GL, Grion CML, Cardoso LTQ. Vivência de familiares internados em unidades de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2008; 20(4):370-5.

Na prática vivenciada nas UTIs, observa-se que nem sempre o cuidado pode ser voltado aos anseios e receios do paciente e seus familiares e à maneira como percebem e vivenciam o processo saúde-doença. Devido às rotinas e normas, muitas vezes rígidas e inflexíveis, nem sempre é oferecida aos familiares a possibilidade de participação plena no processo de terminalidade, tal como poderia ocorrer.4Moritz RD, organizador. Cuidados paliativos nas unidades de terapia intensiva. São Paulo (SP): Atheneu; 2012.

Diante desta realidade, o profissional deve preparar-se para cuidar do paciente terminal não somente de forma técnica - a fim de atender às demandas da tecnologia - mas também deve estender essa atividade à família, promovendo cuidados de modo responsável e comprometido com os valores humanísticos.5Silva CF, Souza DM, Pedreira LC, Santos MR, Faustino TN. Concepções da equipe multiprofissional sobre a implementação dos cuidados paliativos na unidade de terapia intensiva. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(9):2597-604. - 6Komessu JH. Assistir familiares de pacientes fora de possibilidades terapêuticas: competência do enfermeiro [tese]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2009.

O convívio com a terminalidade despertou o desejo de refletir sobre o cuidado ao paciente em fase final de vida e sua família. Além disso, ainda há espaço para que a terminalidade sob a perspectiva dos familiares seja discutida, visto que a maior parte dos estudos traz considerações relacionadas à equipe multiprofissional responsável pela assistência a esses pacientes.

Um maior entendimento dos aspectos envolvidos na terminalidade instrumentaliza os profissionais a desenvolver uma assistência mais qualificada, fornecendo um maior suporte àqueles que vivenciam o fenômeno do morrer.

OBJETIVO

Descrever a perspectiva dos familiares de doentes terminais sobre o processo de morrer na UTI.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Trata-se de um estudo exploratório descritivo com abordagem qualitativa, realizado na UTI do Hospital Nossa Senhora Conceição, pertencente ao Grupo Hospitalar Conceição e localizado em Porto Alegre-RS. A UTI possui 59 leitos, complexidade nível III e atende pacientes adultos da rede pública.

Foram entrevistados oito familiares de pacientes em fase final de vida, internados na UTI. A amostragem foi determinada por saturação. Os sujeitos, maiores de 18 anos, possuíam vínculo por consanguinidade conjugal e/ou afinidade com o paciente. Previamente à entrevista, foram comunicados pela equipe médica da UTI sobre a fase final de vida de seu familiar. Todos aceitaram participar voluntariamente do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para manter o anonimato dos entrevistados, utilizou-se o código F (F1 a F8).

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob parecer 09-242, em 01/09/2010, sendo respeitados os aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, de acordo com o estabelecido pela Resolução 196/96.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas individuais semiestruturadas entre setembro e novembro de 2010, em um ambiente que assegurava a privacidade dos sujeitos. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente, respeitando a coloquialidade dos discursos.

Os dados foram interpretados por meio de análise de conteúdo.7Bardin L. Análise de conteúdo. 6ª ed. Lisboa (PT): Edições 70; 2012. Os temas que emergiram dos depoimentos foram identificados e analisados com subsídio da literatura e experiência dos autores sobre o objeto do estudo, com o intuito de atingir as propostas de investigação.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os familiares entrevistados tinham entre 30 e 70 anos, a maior parte era do sexo feminino (seis), todos eram casados e procedentes de Porto Alegre e região metropolitana. A maioria possuía ensino fundamental incompleto. Quanto às crenças religiosas, seis declararam-se católicos, e dois, espíritas.

Da análise dos dados obtidos, emergiram as seguintes categorias: o significado da terminalidade da vida na UTI e o processo de morrer em UTI para os familiares.

O significado da terminalidade da vida na UTI

Os sentimentos da família no processo de morrer de um de seus membros são os mais diversos possíveis. Quando os familiares tomam ciência da terminalidade, são invadidos por uma dor profunda: [...] é uma dor que não tem como explicar... é o pior momento, uma dor tão horrível que só a gente sente (F4).

Qualquer estresse que ameace o senso de completude, de inclusão, de segurança e de controle da pessoa pode causar ansiedade. Portanto, a admissão na UTI e o sofrimento do enfermo tendem a abalar a segurança dos familiares e do paciente, gerando estresse e ansiedade.8Bizek KS. A experiência do paciente com doença crítica. In: Morton, PG. Cuidados críticos de enfermagem: uma abordagem holística. 9ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Guanabara Koogan; 2011. p.12-36. Logo, a angústia também transparece nas falas dos familiares ao vivenciarem o sofrimento da pessoa amada: tem dias que não aguento mais ver ele sofrendo, eu queria que os médicos dissessem se vão curar ele ou não... se tem possibilidade, o médico disse que não. Por que ele precisa sofrer? (F6).

Percebemos ainda uma grande insegurança diante da possibilidade da perda, pelo fato de a morte não ser esperada: [...] fica sem chão (F4); [...] eu não esperava isso tão cedo [...] (F7).

Situações inesperadas deixam as pessoas desconfortáveis, pois revelam a face incerta e insegura de suas vidas - que costuma ser negada - colocando o homem frente ao seu horizonte de possibilidades.1Urizzi F, Carvalho LM, Zampa HB, Ferreira GL, Grion CML, Cardoso LTQ. Vivência de familiares internados em unidades de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 2008; 20(4):370-5.Assim, os familiares terão que vivenciar o luto, enfrentar o medo, superar a dor e recomeçar.

Ao vivenciar a proximidade da morte de um familiar a pessoa se angustia, não somente pela morte em si, mas principalmente pela bagagem de dor e sofrimento envolvidos em tal situação.9Santos EM, Sales CA. Familiares enlutados: compreensão fenomenológica existencial de suas vivências. Texto Contexto Enferm. 2011; 20(esp):214-22. A enfermidade pode gerar alto nível de estresse em um núcleo familiar, estabelecendo uma crise. Nesse momento, alguns familiares vivenciam a fase de revolta e, após, de barganha, etapas de elaboração do luto,1010 Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 9ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2008. isto é, comportamentos estabelecidos para o enfrentamento da dor, na tentativa de amenizar o sofrimento e superar o momento difícil: [...] fiquei muito revoltada... e muito triste (F5); se eu pudesse dar um pouquinho da minha vida, um pouquinho só pra ele, pra mim ia ser tudo... (F8).

Aprender a reconhecer e aceitar a realidade da morte próxima é importante tanto para quem recebe o cuidado quanto para a equipe de saúde que o fornece. Diante do fato de morte iminente, os familiares, conscientes de sua impotência, acabam conformando-se: a morte é certa... mais cedo ou mais tarde, a gente tem que se conformar porque é assim [...] (F2); me deu uma coisa assim no coração, uma coisa ruim... mas se não tem outro jeito, tem que encarar porque pode ser a qualquer momento, tenho que aceitar, é duro pra gente mas tem que aceitar (F6).

A culpa é um componente que pode ser vivenciado nesta etapa de final de vida. Freqüentemente, os familiares sentem-se responsáveis pelas desgraças de sua família. Essas fantasias são geradas pelo estresse experenciado.1111 Cassorla RMS. Negação e outras defesas frente à morte. In: Santos FS, organizador. Cuidados paliativos: discutindo a vida, a morte e o morrer. São Paulo (SP): Atheneu; 2009. p.59-76. O sentimento de culpa por não ter passado mais tempo com a pessoa amada é enfatizado: aconteceu muita coisa, e de repente porque eu errei, porque eu não soube lidar com a situação perdi muito tempo, nunca mais vou recuperar tudo que eu perdi com ele (F2).

Ao esperar a morte, os sujeitos vivenciam emoções relacionadas à ausência de seu ente querido, como a saudade. Neste caso, as memórias possuem um papel importante na elaboração do luto e os profissionais podem auxiliar, facilitando rituais e promovendo lembranças.1212 Souza JL, Costa SMM, Salcedo EAC, Camy LFS, Carvalho FL, Duarte CAM, et al. A família, a morte e a equipe: acolhimento no cuidado com a criança. In: Santos FS, organizador. Cuidados paliativos: discutindo a vida, a morte e o morrer. São Paulo (SP): Atheneu; 2009. p.145-64. Os familiares descrevem momentos vividos e enfatizam a relevância do ente querido em suas vidas: eu acho que já estou aqui com saudades sabe, aí tem todos aqueles momentos que a gente viveu junto (F1); [...] mas a saudade, as lembranças ficam [...] (F4).

Durante o processo de morrer, os valores religiosos se apresentam intimamente relacionados aos aspectos do cuidado em situações de sofrimento humano.1313 Penha RM, Silva MJP. Significado de espiritualidade para a enfermagem em cuidados intesivos. Texto Contexto Enferm. 2012; 21(2):260-8. Neste sentido, as crenças religiosas e espirituais são mecanismos acessados para amenizar os sentimentos que permeiam esse momento.

Estudos mostram que 95% dos americanos crêem em alguma força superior1414 Hinshaw DB. Spiritual issues in surgical palliative care. Surg Clin North America. 2005; 85(2):257-72. - 1515 Spirituality in Cancer Care [Internet]. Bethesda (MD): National Cancer Institute (US); 2010 [acesso 2010 Jul 10]. Disponível em: http://cancer.gov/cancertopics/pdq/supportivecare/spirituality/HealthProfessional
http://cancer.gov/cancertopics/pdq/suppo...
e que 93% gostariam que seus médicos abordassem essas questões se ficassem gravemente enfermos.1616 Ehman J, Ott BB, Short TH, Ciampa RC, Hansen-Flaschen J. Do patients want physicians to inquire about their spiritual or religious beliefs if they become gravely ill? Arch Intern Med. 1999; 159(15):1803-6. - 1717 Steinhauser KE, Voils CI, Clipp EC, Bosworth HB, Christakis NA, Tulsky JA. "Are you at peace?": one item to probe spiritual concerns at the end of life. Arch Intern Med. 2006; 166(1):101-5. Pacientes internados (77%) desejam que seus valores espirituais sejam considerados pelos seus médicos e 48% gostariam, inclusive, que seus médicos rezassem com eles. Contraditoriamente, a maioria dos pacientes disse que jamais seus médicos abordaram o tema.1818 King D, Bushwick B. Beliefs and attitudes of hospital inpatients about faith healing and prayer. J Fam Pract. 1994; 39(4):349-52.

A espiritualidade é uma característica humana que possibilita ao indivíduo encontrar significado e propósito para a vida. As situações que antecedem e envolvem o processo de morte e morrer estão entre aquelas em que a espiritualidade e a necessidade de conforto espiritual estão mais evidentes:1313 Penha RM, Silva MJP. Significado de espiritualidade para a enfermagem em cuidados intesivos. Texto Contexto Enferm. 2012; 21(2):260-8. [...] acredito que seja a mão de Deus sobre aquela pessoa (F4); se não for pra ter uma chance, então que Deus leve, mas que não faça ele sofrer, sabe, eu estou cansada, eu não quero mais ver ele daquele jeito [...] (F8).

Ao se deparar com a morte de um ente querido, o indivíduo passa a perceber a vida de modo diferente, identificando-a como algo frágil, efêmero e perecível, repensando seus valores e crenças.9Santos EM, Sales CA. Familiares enlutados: compreensão fenomenológica existencial de suas vivências. Texto Contexto Enferm. 2011; 20(esp):214-22. Ao vivenciar esse processo, algumas pessoas se reconfortam ao realizarem ritos religiosos, acrescentando paz e tranqüilidade ao ambiente de pesar: [...] o padre veio, maravilhoso, uma pessoa excelente, a mãe já ficou mais tranquila (F1).

A relevância da fé e da esperança como mecanismo de compreensão multidimensional do ser humano se torna imprescindível para o entendimento do processo que envolve saúde e doença e o enfrentamento saudável de todas as suas particularidades.1313 Penha RM, Silva MJP. Significado de espiritualidade para a enfermagem em cuidados intesivos. Texto Contexto Enferm. 2012; 21(2):260-8. Manifestações de fé neste momento são comuns; representam uma forma de encontrar forças para seguir adiante: [...] eu tenho fé que ele, sei lá, acontece tanta coisa, eu acredito em milagre, vai que tem um milagre...o médico falou: 'não adianta fazer mais nada'. Mas se Deus quer, é Deus que vai fazer (F8).

A morte no cotidiano caracteriza-se como uma possibilidade distante, e sob esse prisma a segurança no futuro e nas realizações dos sonhos se mantêm, porém uma simples premonição de sua chegada aviva no ser humano sentimentos de agonia.9Santos EM, Sales CA. Familiares enlutados: compreensão fenomenológica existencial de suas vivências. Texto Contexto Enferm. 2011; 20(esp):214-22. Os familiares que passam por esse momento necessitam elaborar a possibilidade e, por vezes, a concretização da perda de seu familiar, a fim de seguir o curso normal de suas vidas.

O processo de morrer em UTI para os familiares

Até pouco tempo, o homem enfrentava a morte em casa, ao lado da família e dos amigos. Atualmente, o hospital é o novo local para a morte e modifica o sentido do morrer. Em geral, o homem morre sozinho, na solidão de um leito hospitalar.1919 Ariés P. História da morte no ocidente. São Paulo (SP): Saraiva de Bolso, 2012.

A maioria das mortes intra-hospitalares ocorre nas UTIs, onde a participação da família acaba sendo muito restrita, pois se limita aos horários de visita. Geralmente é neste momento que o familiar é informado sobre a terminalidade da vida do seu ente querido: no horário de visita, a médica foi falando aos poucos. No meu entendimento, eu achei que era o fim da vida. Hoje foi confirmado que o rim parou, que o pulmão parou (F4).

Na UTI, o principal emissor da comunicação sobre o paciente é o médico, que deve fornecer informações claras e realistas, mas compassivas e solidárias. É fundamental falar sobre o real prognóstico e informar claramente sobre a evolução da doença sem esquecer o envolvimento emocional que cerca o morrer.2020 Wallau RA, Guimarães HP, Falcão LFR, Lopes RD, Leal PHR, Senna APR, et al. Qualidade e humanização do atendimento em Medicina Intensiva. Qual a visão dos familiares? Rev Bras Ter Intensiva. 2006; 18(1):45-51.

Ao mesmo tempo em que a comunicação assume o papel de instrumento do cuidado no processo de morrer, comunicar más notícias é uma das tarefas mais difíceis do profissional de saúde, talvez porque aprendem na academia a salvar vidas e não a lidar com situações de perdas de saúde, vitalidade, esperança e morte.

Seja informação demandada pelos familiares, seja atributo essencial do relacionamento interpessoal, a comunicação empática é um instrumento que fornece suporte e sustento frente à terminalidade. Por isso, não se trata apenas de transmitir informações, mas sim do modo como são transmitidas: o médico da semana foi mais delicado, cauteloso no falar com a gente. O do fim de semana foi assim: 'vai morrer, só queria te comunicar que o paciente vai falecer' (F8).

Além disso, o final de vida de um doente terminal configura um terreno propício para o florescer de questionamentos: eu tenho dúvidas em saber quando vão desligar os aparelhos... Quando é o último fio de vida dele? Se ele está em coma ou ele está só sedado? (F4); [...] é a máquina que está respirando por ele? (F6).

Na terminalidade, os encontros podem ser complexos quando não há relação prévia entre profissionais e familiares. Seria ideal que o responsável por fornecer as notícias fosse sempre o mesmo e, além disso, possuísse experiência, tanto técnica quanto ética. É necessário entender que, quando os familiares são informados sobre a proximidade da morte de seu ente, geralmente experienciam muitos sentimentos: uma combinação de choque, incerteza, tristeza, confusão, estresse, ansiedade e desconforto.2121 Heyland DK, Rocker GM, O'Callaghan CJ, Dodek PM, Cook DJ. Dying in the ICU: perspectives of family members. Chest. 2003; 124(1):392-7. Cabe então ao profissional assumir uma postura acolhedora e desenvolver habilidades de comunicação, pois é por meio dela que o familiar desenvolve confiança e segurança.

A forma de comunicação influencia na satisfação pelos serviços prestados. A maioria dos familiares de pacientes críticos considera a adequada comunicação, a correta tomada de decisão, o respeito e a compaixão pelo paciente e seus familiares determinantes da satisfação familiar:2121 Heyland DK, Rocker GM, O'Callaghan CJ, Dodek PM, Cook DJ. Dying in the ICU: perspectives of family members. Chest. 2003; 124(1):392-7. [...] a disponibilidade de te explicar, te ouvir, te responder, eu estou muito contente (F5); [...] fui a pessoa que mais conversou com os médicos; só o fato de eles irem me orientando... me senti acolhida (F7).

Uma busca de apoio e confiança, tanto através da assistência prestada como de uma atenção diferenciada no momento de fornecer informações aos familiares é de extrema relevância na relação estabelecida entre equipe-família-paciente.2222 Silva RS, Campos AER, Pereira A. Cuidando do paciente no processo de morte na unidade de terapia intensiva. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):738-44. A comunicação efetiva e afetiva minimiza dificuldades, incertezas e fortalece o sentimento de segurança, facilitando o bom relacionamento, vital para a qualidade da assistência: o médico falou comigo, o enfermeiro também... falaram que não iriam mais fazer exames, que iriam tentar ventilar, medicar, nada de dor, para um final mais tranquilo possível [...] (F6).

Um estudo realizado no Brasil,2323 Freitas KS, Kimura M, Ferreira KASL. Family members' needs at intensive care units: comparative analysis between a public and a private hospital. Rev Latino-Am Enferm. 2007; 15(1):84-92. que utilizou o Critical Care Family Needs Inventory (Levantamento de Necessidades da Família nos Cuidados Críticos), identificou a informação como um dos aspectos prioritários nas necessidades dos familiares. É por meio das informações dadas pela equipe multiprofissional que os responsáveis pelo paciente se tornam conscientes do quadro clínico e, desta forma, sentem-se seguros para tomar decisões.

Um desafio diário é estabelecido ao lidar com o estado de piora do paciente fora de possibilidade de cura, mas não fora de possibilidade de cuidados.2222 Silva RS, Campos AER, Pereira A. Cuidando do paciente no processo de morte na unidade de terapia intensiva. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):738-44. Muitas vezes, a esperança não é pela vida, e sim por uma morte digna: eu queria que ele parasse de sofrer (F3); [...] o que mais preocupa é o bem-estar dele... que ele não sinta dor (F4).

É fundamental,, não só, mas principalmente, dentro da UTI, compreender a família como extensão do doente. Os familiares precisam compreender o processo de morrer, minimizando suas angústias e preocupação com a dor associadas à morte.2222 Silva RS, Campos AER, Pereira A. Cuidando do paciente no processo de morte na unidade de terapia intensiva. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):738-44. Assim, a equipe de saúde tem o dever de proporcionar ao paciente uma morte digna e garantir à família um processo humanizado.

No contexto dos cuidados no final da vida, os familiares geralmente sentem-se frustrados e culpados por não estarem com o ente querido. Para eles, estar ao lado de quem amam é a principal forma de participarem desse momento tão singular: [...] fazendo carinho um pouquinho que seja, mesmo que ela não sinta nada... e dizer um adeus, eu acho isso importante, poder estar ali (F1); converso sobre quando a gente era pequeno, coisas que a gente fazia, quando a minha mãe e meu pai eram vivos... eu acho que ele estava me ouvindo porque ele estava olhando pra mim e estava me escutando (F2); [...] perdi muito tempo, fiquei mais de cinco anos sem ver ele, então, pra mim, cada pouquinho que eu fico ali, pra mim parece uma hora [...] (F8).

Sabe-se que a dinâmica das UTIs geralmente não permite a presença do familiar no momento da morte. Talvez por isso morrer seja triste demais sob vários aspectos: solitário, mecânico e desumano; morrer se torna um ato impessoal.1010 Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 9ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2008. Para a família, o fato de o paciente vivenciá-la sem estar com quem ama é muito angustiante: [...] vai ficar sozinha coitadinha, pensando se vai morrer aqui, não tem nenhum familiar (F1); ele não pode ir para o quarto para a gente ficar junto para desencarnar, por causa da parte do respirador, talvez ele tenha que desencarnar aqui dentro (F5).

A presença da família no processo de morte e morrer não é só um ato de solidariedade, mas também uma estratégia fundamentada cientificamente. Há evidências de que os doentes que tinham seus entes queridos próximos nesta fase necessitaram de menores quantidades de sedação e analgesia.2424 Fridh I, Forsberg A, Bergbom I. Family presence and environmental factors at the time of a patient's death in an ICU. Acta Anaesthesiol Scand. 2007; 51(4):395-401.

Deve-se garantir que a inclusão dos familiares no processo de terminalidade se dê em uma perspectiva de participação, considerando seu papel fundamental. No momento em que o paciente compreende a chegada da morte e compartilha com a família e a equipe, diminui os sentimentos de solidão e de derrota, dando lugar à tranquilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de morrer na UTI ainda é pouco conhecido pelas famílias, ocasionando um ambiente favorável para o surgimento de dúvidas, as quais devem ser sanadas pela equipe multiprofissional dando lugar à segurança e minimizando a ansiedade. Tal perspectiva conduz os familiares a pensarem que a UTI é um "local para morrer" de modo solitário, sofrido e triste.

A morte sempre será um tema difícil, contudo deixar de pensar sobre ela não a retarda ou a evita. Sendo assim, a reflexão ajuda a aceitação e a percepção de que é uma experiência tão importante quanto qualquer outra, embora dolorosa.

Tal como foi visto neste estudo, a espiritualidade mostra-se relevante no enfrentamento ao processo de final de vida, pois proporciona a aceitação da dor e do sofrimento dos familiares. Além disso, outro aspecto relevante para amenizar a angústia é a comunicação, caracterizada como disparador para a satisfação da família quanto à assistência prestada pela equipe multiprofissional.

Os familiares entrevistados consideram importante permanecer um maior tempo junto ao ente; angustiam-se em saber que a morte pode ser solitária; resgatam a importância do carinho, das lembranças, de estar ao lado e da despedida. Da mesma forma, a necessidade do alívio da dor do paciente é enfatizada pelos sujeitos e o anseio por uma morte digna e com menos sofrimento aparece nas falas. Evidencia-se que o medo não é da morte, e sim do processo de morrer.

Contudo, as UTIs e seus profissionais ainda encontram-se despreparados para assistir as famílias junto aos pacientes. Talvez tal realidade seja responsabilidade, também, das formações acadêmicas dos cursos na área da saúde que pouco abordam temas tão relevantes como: o processo de morrer, família e cuidados paliativos. É fundamental que os estudantes e profissionais se aproximem dessas temáticas não de forma marginal, mas sim como protagonistas da ciência e da compaixão.

Este estudo tem a intenção de ser um gatilho para que novas práticas em relação aos familiares sejam uma realidade dentro da UTI ou, pelo menos, que seja discutida a inclusão desses no cuidado intensivo. Quando se fala em mudança, imagina-se integrar as famílias dos pacientes na assistência e nas discussões, sempre respeitando seus medos, angústias e limites.

É tempo de compreender o cuidado enquanto oportunidade de aprendizado a partir da troca, da sensibilidade e da intenção consciente de estar junto ao outro. Entender o processo de morrer e seus significados para os familiares fornece elementos importantes para uma assistência integral, humanizada e acolhedora, respeitando a autonomia do indivíduo e garantindo-lhe uma morte digna.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2013
  • Aceito
    24 Jan 2014
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