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Como as aringas de Moçambique se transformaram em quilombos

How the aringas became maroon communities in Mozambique

Comment les aringas sont-ils devenus des communautés marrons au Mozambique

Resumos

Em Moçambique, os escravos fugidos reuniram-se em diversas comunidades, chamadas de aringas, localizadas em pontos estratégicos e seguros. As aringas transformaram-se em quilombos, onde escravos armados, os achicunda, passaram a ser os mais sérios oponentes das conquistas portuguesas desde final do século XIX até o início do século XX.

Moçambique; escravos; quilombos


Runaway slaves in Mozambique gathered in several communities located in stronghold points named aringas. These aringas became maroon communities where armed slaves called achicunda became the most serious opponents to the Portuguese conquests between the late 19th century and the early 20th century.

Mozambique; slaves; maroon communities


Au Mozambique, les esclaves en fuite se sont assemblés dans plusieurs communautés, connues comme aringas, organisées dans des lieux sûrs et stratégiques. Les aringa sont devenues des quilombos où des esclaves armés, les achicunda, constituèrent les plus dangereux opposants aux conquêtes portugaises de la fin du XIXème siècle au début du XXème siècle.

Mozambique; esclaves; communautés marrons


ÁFRICA

Como as aringas de Moçambique se transformaram em quilombos

How the aringas became maroon communities in Mozambique

Comment les aringas sont-ils devenus des communautés marrons au Mozambique

José Capela

Pesquisador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto

RESUMO

Em Moçambique, os escravos fugidos reuniram-se em diversas comunidades, chamadas de aringas, localizadas em pontos estratégicos e seguros. As aringas transformaram-se em quilombos, onde escravos armados, os achicunda, passaram a ser os mais sérios oponentes das conquistas portuguesas desde final do século XIX até o início do século XX.

Palavras-chave: Moçambique- escravos- quilombos

ABSTRACT

Runaway slaves in Mozambique gathered in several communities located in stronghold points named aringas. These aringas became maroon communities where armed slaves called achicunda became the most serious opponents to the Portuguese conquests between the late 19th century and the early 20th century.

Key words: Mozambique- slaves- maroon communities

RESUMÉ

Au Mozambique, les esclaves en fuite se sont assemblés dans plusieurs communautés, connues comme aringas, organisées dans des lieux sûrs et stratégiques. Les aringa sont devenues des quilombos où des esclaves armés, les achicunda, constituèrent les plus dangereux opposants aux conquêtes portugaises de la fin du XIXème siècle au début du XXème siècle.

Mots-clés: Mozambique – esclaves - communautés marrons

A debilidade – para não dizer a carência de investigação e de estudo do escravismo em Moçambique – é manifesta. Exemplo flagrante disto é a ausência de informação sobre a organização dos próprios escravos em situação de fuga ou de rebeldia. Todos os sistemas escravistas e escravocratas geraram da parte dos escravos recalcitrantes organizações próprias que, por sua vez, se instituíram em identidades sociais e políticas. Os casos mais flagrantes e porventura mais numerosos ficaram a dever-se a escravos fugitivos e a designação atribuída aos grupos organizados que formaram e aos locais onde se estabeleceram; no caso do Brasil, foi o de "Quilombos"1 1 Dicionário da Língua Portuguesa Contemporanea – Academia das Ciências de Lisboa - Quilombo [kilõbu] s.m. (Do quimb. Kilombo "povoação"). 1. Acampamento dos jagas, povo antropófago, que invadiu o Congo e Angola no último quartel do século XVI. 2. Brs. Local onde se refugiavam os escravos fugidos a seus donos. Pedro Paulo de Abreu Funari, A Arqueologia de Palmares, "Liberdade por um fio"; João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (organizadores), O kilombo era uma sociedade guerreira ovimbundo com rituais de iniciação muito precisos e com uma disciplina militar estrita. . A dimensão e a constância do fenômeno justifica plenamente que a designação consagrada no Brasil seja retomada para o caso de Moçambique, tal como tem sido adoptada para muitas outras situações idênticas.

A organização social e política

A colonização exercida por Portugal em grande parte do território do sudeste africano, que hoje constitui Moçambique, revestiu-se de alguma peculiaridade, peculiaridade esta sem cujo conhecimento se torna difícil abarcar a organização e a utilização da escravatura colonial por um lado, assim como a sua evolução, no sentido da autonomização e da identificação étnica final, por outro lado.

Com maior incidência no vale do Zambeze, mas não exclusivamente aí, o sistema dominante no que respeita à ocupação e à exploração da terra foi o da enfiteuse, transplantada da Europa, via estado da Índia, a cuja jurisdição as capitanias do sudeste africano estavam administrativamente subordinadas. Os portugueses, atraídos pelas perspectivas do ouro, ao longo dos séculos XVI e seguintes, foram se fixando a partir do mar para o interior, senhoreando terras e pessoas, para isto utilizando todos os meios disponíveis, desde a negociação à conquista por meios bélicos. Estavam a implantar um sistema dominial. De harmonia com a ordem jurídica expressa ou supostamente prevalecente, a posse efetiva das terras pelos súditos da Coroa implicava a soberania desta sobre as mesmas. Por sua vez, os novos senhores das terras careciam de uma autoridade que legitimasse a exploração e garantisse os direitos de transmissão. Esta nova situação despertou em Goa, a cujo vice-rei estavam subordinadas as capitanias do sudeste africano, o interesse pelos rendimentos que daí poderiam advir. Assim começou, no século XVII, o tombo do que, para Moçambique, ficou conhecido pela designação mais comum de Prazos da Coroa2 2 Para os Prazos da Coroa, Maria Eugénia Alves Rodrigues, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena - Os Prazos da Coroa nos Séculos XVII e XVIII, Dissertação para a obtenção do grau de doutoramento, Lisboa, 2002; José Capela, Donas, Senhores e Escravos, Porto, 1995. Narana Coissoró, O Regime das Terras em Moçambique; "Moçambique: Curso de extensão universitário, ano lectivo de 1964-1965", Lisboa; Allen Isaacman, The Africanization of a European Institution: The Zambezi Prazos, 1750-1902, Madison, 1972; Alexandre Lobato, A Colonização Senhorial da Zambézia e outros estudos, Lisboa, 1962, M. D. D. Newitt, Portuguese Settlement on the Zambezi:Exploration, Land Tenure and Colonial Rule in East Africa, London, 1973; Giuseppe Papagno, Colonialismo e Feudalesimo: La Questione del Prazos da Coroa nel Mozambico Alla Fine del Secolo XIX, Piccola Biblioteca Einaudi, 1972; Ernesto de Vilhena, Regime dos Prazos da Zambézia, Lisboa, 1916. . Terras emprazadas, normalmente por três vidas e passando de pais a filhos, dando-se para Moçambique, tal como para Goa, em alguns casos, a preferência da concessão a pessoas do sexo feminino, forma de atrair colonos pelo casamento com mulheres assim dotadas. Daqui surgiram as famigeradas "Donas da Zambézia". A recomendação destinava-se inicialmente a mulheres de origem européia, mas de todas as donas conhecidas nenhuma consta com origem na Europa. Tudo isto tendo como projeto o chamado "povoamento", ou seja, a ocupação das terras por europeus de origem e de ascendência. Mais do que ao cultivo, as terras destinavam-se ao acantonamento dos escravos e dos colonos3 3 Colonos - designação dada, em Moçambique, à população não escrava, residente nos Prazos da Coroa. . Os senhores dos prazos não tinham como fonte principal de rendimento o cultivo da terra, mas sim o comércio, o garimpo ou a mineração do ouro e os transportes no Zambeze. A principal mercadoria de exportação em quantidade e valor era o marfim. Os panos foram meio de troca de especial importância e a exportação de escravos constituiu, por igual, um importante segmento de negócio a longa distância a partir de finais do século XVIII. Os numerosos escravos adstritos a cada prazo empregavam-se nas diversas atividades desenvolvidas, entre as quais tomava particular importância o comércio pelo interior (os escravos dedicados a esta atividade eram designados por muçambazes) e a caça aos elefantes. Chicunda (pl. achicunda) era a designação destes caçadores e dos escravos armados em geral que faziam o policiamento do prazo, cobravam os impostos e formavam os exércitos privados destes senhores de prazos. Serão estes achicunda que virão a estar ao lado do que restava dos senhores de prazos quando, em finais do século XIX, uns e outros se levantaram contra a ocupação do território pelas companhias de plantação. De escravos guerreiros, isentos do pagamento de prestações e impostos e do trabalho servil, estas companhias capitalistas estavam a reduzi-los ao trabalho forçado. Também foram predominantemente achicunda os escravos fugitivos de prazo para prazo, que constituíram quilombos fortificados onde, durante décadas, resistiram à ocupação bélica da colonização portuguesa.

Do mussito e da aringa ao quilombo

Na documentação institucional e relativamente a Moçambique, são quase inexistentes as referências a quilombos. Curiosamente, a mais explícita de todas elas consta de um periódico4 4 Jornal de Moçambique, 31 de Dezembro de 1873, 5 de Dezembro de 1874 e 1 de Maio de 1875. e passa-se nos anos setenta do século XIX. Escravos fugidos da Ilha de Moçambique tinham se instalado em Ampapa, no continente fronteiro5 5 Continente Fronteiro e Terras Firmes – designações frequentes das terras frente às ilhas. , em povoação fortificada. As povoações fortificadas, em Moçambique, conforme o tempo e o lugar, foram designadas por mussito6 6 Eugénia Rodrigues, Senhores, Escravos e Colonos nos Prazos dos Rios de Sena no Século XVIII: Conflito e Resistência em Tambara, 1999. , mais comumente por aringa, pelo que esta era a Aringa de Ampapa. Segundo o jornal, os escravos refugiados tinham se constituído em bandos de salteadores. Com grande probabilidade, esta população rebelde integrava-se naquela que os portugueses, logo a seguir, designavam por namarrais. Veremos como os conquistadores coloniais justificaram sistematicamente a ocupação e a destruição das aringas, nomeadamente com o argumento de se tratar de "bandos de salteadores".

Uma outra aglomeração de escravos organizados, havia se concretizado no que ficou conhecido para os colonizadores portugueses como a República Militar da Maganja da Costa, assunto a que dediquei alguma investigação7 7 José Capela, A República Militar da Maganja da Costa, Maputo, 1988. . Neste caso, não se tratava de escravos fugitivos. Pelo contrário, eram escravos que, sob o comando do senhor respectivo, João Bonifácio Alves da Silva8 8 Não confundir este João Bonifácio Alves da Silva com o seu padrinho, de quem este herdou o nome. O primeiro, conquistador de Angoche, foi senhor do prazo Licungo, contíguo da Maganja da Costa. Este prazo fora concedido em 1756 a Félix Lamberte da Silva Bandeira e, em segunda vida, a D. Maria Leonor da Silva Bandeira, mulher de João Bonifácio Alves da Silva, que foi governador de Quelimane e se retirou para o Brasil em Dezembro de 1829. Antes do aforamento no João Bonifácio, afilhado, o prazo esteve na mão de vários foreiros. , haviam conquistado Angoche para o domínio português. Morto em combate o senhor e chefe, regressaram todos à base de onde tinham partido, na Maganja da Costa, onde se reinstalaram e onde se mantiveram durante décadas, organizados em república, conforme vários oficiais portugueses, nomeadamente João de Azevedo Coutinho9 9 Oficial de Marinha. Distinguiu-se em múltiplas ações militares que comandou em Moçambique, foi governador de Quelimane e governador-geral de Moçambique. Publicou várias obras onde está descrita a sua ação em Moçambique. , classificaram o sistema político interno por eles (os achicunda de Bonifácio) adotado. Não obstante e como era de tradição em circunstâncias similares, reconheciam a titularidade simbólica do senhorio à mãe de João Bonifácio. Embora esta "república" se comportasse da mesma forma que os redutos de escravos fugidos a seus senhores e apesar de, com toda a probabilidade, ser coito para escravos em fuga, não a incluiria entre os quilombos por esta diferenciação essencial (a de não ser nem inicial nem estruturalmente formada por escravos fugitivos) e por circunstâncias que ressaltam da especificidade das escravaturas adstritas aos senhores dos prazos. Quanto à designação de república, que, neste caso, se ficou a dever à organização interna com que os oficiais das forças armadas de ocupação se depararam, não é inédita. O termo inicialmente aplicado nas colônias americanas aos acampamentos de fugitivos foi república (do latim, respublica)10 10 P.P. de Abreu Funari, "Liberdade por um fio", op. cit., p. 28. .

Se, por um lado, a curiosidade da historiografia não encontrou motivo para se debruçar sobre os quilombos no Moçambique colonial, a verdade é que, por outro lado, a partir do século XVIII não escasseiam os testemunhos das autoridades relativos aos escravos fugitivos. É o caso nas proximidades de Sena, um dos poucos centros onde se pode referenciar a administração colonial e em cuja área se situava a mais densa formação do senhorio escravista: Defronte da Vila de Sena, está a terra chamada Marambala [Morrumbala?] do Regulo Massache onde habita e achão couto os escravos que fogem dos moradores de Sena, aproveitando-se também nas suas fugas das terras de Borongagem por serem os Regulos dela levantados11 11 Antonio Alberto de Andrade, "Relações de Moçambique Setecentista", Descripção da Capitania de Monsambique, Suas Povoações, e Produções, 1788, Lisboa, MCMLV, p. 398. . Aliás, era o próprio comandante militar de Sena12 12 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), Moçambique (Moç.), caixa (cxa.) 81, nº 31, do comandante militar de Sena para o governador (de Sena ?), 12 de Junho de 1798. que se queixava da impossibilidade em que estava de reaver os seus numerosos escravos foragidos, porque aqueles que os acolhiam não os restituíam aos proprietários. À sua conta o comandante dizia serem mais de 400.

Uma das causas da deserção eram as calamidades naturais frequentes e a fome que geravam. Uma delas foi a de 1794. A generalidade dos moradores de Tete atribuiu a esta fome a deserção dos colonos verificada então13 13 AHU, Moç., cxa. 129, Relação mandada fazer pelo governador de Tete, 1809. . Esta era uma declaração respeitante aos colonos, mas que se estendia aos escravos, na sua maioria uns e outros mantendo as povoações respectivas lado a lado. Era o que se passava no Prazo Cheringone, que, segundo o governador de Quelimane, só tinha escravos fugidos deste mesmo distrito. Os colonos, conluiados com os escravos, recusavam-se ao pagamento das pensões. Este prazo tornara-se assim um coito e o governador vira-se na necessidade de tomar medidas, caso contrário todos os escravos fugiriam para lá, podendo "fazer um insulto" à vila que não distava mais de seis léguas. Foi uma verdadeira expedição militar a que organizou para destruir aquele coito de escravos, um autêntico quilombo. Moradores de Quelimane com as suas escravaturas armadas, o governador e um alferes com 12 soldados foram por mar. Do Macuse, o coronel de milícias José Agostinho da Costa "com a sua gente" foi por terra. Cercaram e queimaram as povoações dos escravos refugiados, mataram 12, aprisionaram 82. Os restantes fugiram. Os escravos capturados foram entregues aos moradores14 14 Moradores – designação atribuída a todos os que não eram nem escravos nem colonos: todos os imigrantes que, na qualidade de funcionários, de soldados, ou outra tinham ido para a colônia e aí se haviam fixado. . Trinta e quatro anos depois, davam-se os prazos de Sena como desertos de colonos e de escravos pela fome, pela bexiga e pelas secas sucessivas15 15 AHU, Moç. cxa. 216, nº 95, do governador de Sena para o governador-geral, 29 de Outubro de 1828. . No entanto, um governador-geral, reconhecendo embora os efeitos nefastos das calamidades naturais, atribuía a causa das fugas à perseguição que os moradores exerciam sobre os colonos, escravizando-os: "esta perseguição e não a seca forçou a fugir e desertar os desgraçados negros que ainda restavam"16 16 Idem, cxa. 219, nº 2, do governador-geral para o governador da capitania dos Rios de Sena, 1 de Março de 1829. . É claro que o governador de Sena, Francisco H. Ferrão, não deixava de pôr o assento na rebeldia dos escravos, não obstante reconhecer que os que assolavam as terras vizinhas de Sena o faziam movidos pela fome, roubando e matando. Tinham como chefe "um régulo por nome Chidana que de criança passou da terra Báruè para o prazo Inhacaimbe, e dali empossou da terra Manga, incumbe do prazo Santa". De Sena os escravos não paravam de fugir para as terras de Luabo e de Quelimane e esta fuga era tal que o próprio Ferrão não tinha "meia dúzia de escravos, possuindo antes perto de três mil [ ] de Tambara, limítrofe às terras de Tete, até ao Rio Búzi, tudo está levantado". Por causa da fome, na Gorongosa, seis príncipes com seus séquitos roubavam e matavam17 17 Dr. Francisco Santana, Documentação Avulsa Moçambicana do Arquivo Histórico Ultramarino, I, 1964, p. 791, de Francisco H. Ferrão para o governador de Quelimane, Vasconcelos Cirne, 23 de Outubro de 1829. .

Este tipo de situação não era apanágio da Zambézia. Além do caso dos namarrais, vamos encontrar outros, no sul. Em 1813, o régulo Mutumana tinha nas suas terras cerca de 150 escravos de moradores de Inhambane. O governador considerava este "um asilo continuado aos nossos escravos que fugiam". O irmão do régulo, que lhe sucedeu por morte, prometeu a entrega dos fugitivos ao governador. Propunha-se entregar 29 escravos que estavam em seu poder, mas outro filho do Mutumana, alegando que tinham sido herdados de seu pai, foi com eles formar uma povoação18 18 AHU, Moç., cxa. 143, nº 54, do governador de Inhambane para o governador-geral, 22 de Março de 1813. .

Que esta situação se manteve em Inhambane como no restante território de Moçambique, atesta-o o que aí se passava décadas mais tarde. Um grande número de moradores da vila requereu ao governador que providenciasse no sentido de os seus escravos refugiados nas terras do régulo Manuja e Chibi "e que continuadamente para ali fugiam lhes fossem entregues, pagando o competente resgate aos ditos Régulos, na forma do costume". O certo é que o comandante das Terras Firmes negociou o resgate com os régulos, vários foram devolvidos e satisfeitos os resgates. O mais estranho era que, dos últimos 28 regressados, havia 18 que ninguém aparecera a procurar. O régulo estava à espera e o governador considerava a situação "pouco airosa". Por sua vez, os escravos eram abandonados "pela sua maior parte sem alimento"19 19 Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), códice 11-764, fls. 22, circular do governador de Inhambane, Jacinto Henriques de Oliveira, 27 de Junho de 1855. . O que evidencia como o carácter escravista destas sociedades – a colonial e a colonizada – era perfeitamente aceito por ambas as partes.

Além dos casos de Inhambane e de Ampapa, assinala-se um outro, tal como este último, nas imediações de Moçambique. O de "uma povoação de negros uns escravos, outros forros, chamada Missanga, que vive somente de prostituição, e de roubos, e que é a causa da mortandade horrível que todos os anos se dá nos europeus"20 20 AHU, Moç., pasta 7, nº 1, do Governador-Geral Pereira Marinho para o Conde do Bonfim, 21 de Março de 1841. . Isto em 1841. Mais tarde, era a referência ao "régulo do Namarral", de nome Selimo, que, além do mais, se dedicava à venda de pessoas. Em 1884, apresentaram-se ao capitão-mor das Terras Firmes 25 pessoas (homens, mulheres e crianças), fugidas ao Selimo, porque as queria vender21 21 AHM, Governo-Geral, Cxa. 147, maço 2, nº 301, do capitão-mor das Terras Firmes para o secretário-geral, 7 de Novembro de 1884. . Cinco anos mais tarde, o mesmo "régulo do Namarral" era considerado "um verdadeiro salteador, com mando sobre numerosas hordas de cafres em que se refugiam os maiores malfeitores escapados às justiças". O Namarral estava no caminho do comércio mais rico do sertão e submetia este comércio a pesadas contribuições22 22 Idem, códice 11-29, fls. 43 e segs., do governador-geral para o ministro, 26 de Abril de 1886. .

Por outro lado, os arrolamentos de escravos dos prazos da Zambézia, elaborados conforme o decreto de 14 de Dezembro de 1854, denunciam, para a generalidade dos casos, que a sua origem geográfica se situava no mesmo vale do Zambeze. Isto é, que os escravos transitavam de uns prazos para os outros pelas mais diversas razões, sendo inevitavelmente uma delas a fuga23 23 Idem, códice 1804. . Quando chegou a hora da ocupação colonial, em finais do século XIX e primeiros anos do século seguinte, os conquistadores foram encontrar, sobretudo ao longo dos afluentes da margem direita do Rio Zambeze, dezenas de povoações fortificadas, as aringas, onde grupos de homens armados em grande parte com armas de fogo lhes ofereceram uma resistência pertinaz. Só em um ou outro caso, comandados por antigos senhores ou por arrendatários de prazos ou por capitães-mores, tinham agora, mais comumente, chefes de guerra também eles provenientes das antigas ensacas (grupos) de achicunda, que haviam feito os exércitos e os contingentes de caçadores dos senhorios antigos. A situação era, no entanto, confusa e para a desordem estabelecida contribuíam todos: prazeiros, arrendatários e administradores24 24 Como a legislação que, a partir de 1854, repetidamente decretou a extinção dos Prazos da Coroa não tinha tido execução, a cobrança do imposto nos prazos em 1890 e 1891 passou a ser concedida em hasta pública. O contrato enfitêutico foi substituído pelo de arrendamento. Há prazos com administração direta do estado e prazos sob regime de arrendamento. Os arrendatários inicialmente são indivíduos e, em finais do século, companhias de capital orgânico. Os arrendatários e administradores de prazos mantiveram o status e o comportamento dos senhores que os haviam precedido. de prazos que recebiam e davam asilo aos escravos, assim como os próprios escravos fugidos aos seus senhores, soldados desertores e criminosos. O governador interino de Quelimane e Rios de Sena, em 1857, mandava cumprir o disposto na bando de 22 de Janeiro de 1841, que proibia o acolhimento de refugiados em prazos ou em propriedade particular. Mas alguns daqueles que exerciam senhorio não se coibiam de se arvorarem em proprietários absolutos dos colonos "a quem por vezes têm tirado a vida, a liberdade e a fazenda", faziam guerras, "conservavam armados grande número de escravos seus e alheios e quantos criminosos se lhes juntam constituindo-se em chefes de salteadores, à testa de guerrilhas que assaltam as propriedades". O governador estabelecia candidamente que nenhum senhor de prazo poderia ter mais de 100 escravos armados para se defender25 25 AHM, códice 11-1530, fls. 110 vs., bando de João de Souza Machado, governador interino de Quelimane e Rios de Sena, 10 de Outubro de 1857. . Esta determinação será confirmada nos anos seguintes pelo governador-geral que, repetidas vezes, invoca o fato de alguns senhores de escravos se terem tornado chefes de salteadores nas estradas, assaltando andarilho26 26 Idem, códice 11-275, fls. 22, portaria do governador-geral Tavares de Almeida para Quelimane, Sena e Tete, 21 de Dezembro de 1858. .

As invasões dos nguni27 27 Os nguni ou angunes (também zulus, vátuas e landins) são povos do sudoeste africano que se expandiram para sudeste e para norte, tendo ultrapassado o Zambeze e o Rovuma. As invasões provocaram grande desordem no vale do Zambeze, onde se localizava a maioria dos prazos da Coroa. , a partir de 1826, terão sido uma das causas da decadência dos Prazos da Coroa. Consequência destas invasões foi a fuga dos colonos e dos achicunda, que, abandonados à sua sorte, se terão aglutinado nos prazos do sul, onde alguns senhores mais decididos resistiram aos invasores e outros fugiram para os prazos de Quelimane e do delta do Zambeze28 28 René Pélissier, Naissance du Mozambique, Orgeval, France, 1984, p. 60, e Biblioteca Municipal do Porto, códice 1317; Delfim José de Oliveira, Diário da Viagem de Lisboa a Tete (1859-1860); e AHM, Governo do Distrito de Quelimane, cxa. 17, maço 1, nº 25, do governador do distrito de Tete para o governador interino do distrito de Quelimane, 17 de Julho de 1861. . Aquelas que Pélissier29 29 Idem, p. 378. designa como chefferies shona, entre o Mazoe ao norte e a oeste, e Manica a sudeste, serviram, segundo o autor, no início dos anos 80, de refúgio a exilados que escaparam aos achicunda de Manuel António de Sousa30 30 Manuel António de Sousa, oriundo de Goa, foi capitão-mor de Manica e Quiteve. Estiveram sob o seu domínio a Gorongosa e o Báruè. Foi aprisionado em Mutara pela polícia da British South Africa Company, em 1890, por ocasião da disputa das fronteiras entre portugueses e ingleses. Os seus capitães aproveitaram a prisão para se assenhorearem das aringas. Uma vez posto em liberdade, intentou a reconquista das terras, tendo sido morto no ataque a Missongue, em Dezembro de 1891 . As aringas deste, situadas dentro do território da Companhia de Moçambique, criada em 1892, de fato mantiveram-se nas mãos dos capitães respectivos31 31 René Pélissier, op. cit., p. 454 .

Se as invasões dos nguni tinham introduzido um novo fator de desordem no sistema senhorial vigente na Zambézia, a verdade é que tanto os colonos como os escravos tinham criado e desenvolvido, ao longo de séculos, identidades próprias, que lhes permitiam, em finais do século XIX, uma afirmação social e, por vezes, política surpreendentes para o lugar e para a época em que emergiam. Não era sem espanto que o arrendatário do prazo Boror se queixava de que "os colonos daquele prazo são muito atrevidos e bravos, não são como os de outros prazos que logo obedecem às ordens do arrendatário"32 32 AHM, Governo do Distrito de Quelimane, cxa. 43, maço 5 (1), nº 1, de Francisco Manuel Correia para o governador do Distrito de Quelimane, 15 de Agosto de 1875. . Logo a seguir, era a sublevação organizada:

[ ] este colono é um daqueles rebeldes que andam com 60 a 70 homens armados e não obedecem aos arrendatários e nem têm pago o tributo desde que tenho arrendado este prazo, e no ano passado quando o meu administrador queria fazer a correcção reuniram todos e fizeram-o correr, dizendo que aqueles distritos pertencia deles assim com estes exemplos maior parte dos colonos que habitavam nas margens dos rios e pagavam o tributo sem custo vão fugindo para o interior afim de praticarem o mesmo [ ]33 33 Idem, ibidem, 28 de Outubro de 1877. .

A cobrança do imposto de palhota e outros fatores provocaram revoltas constantes na Zambézia nas últimas décadas dos oitocentos34 34 José Capela, Conflitos sociais na Zambézia, 1878-1892 - A Transição do Senhorio para a Plantação, "Africana Studia", nº 1, 1999. . Escravos e colonos organizaram-se em bandos que assolavam o território. O caso da Maganja d'Além Chire é paradigmático:

Este prazo possui ainda um grupo de salteadores que se arrogam o nome de cipais35 35 Sipais ou cipais – nome com que passaram a ser designados os antigos achicunda após a abolição da escravatura, conforme adiante se desenvolve. Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa _ sipais, soldados indígenas da Índia, ao serviço dos ingleses. Soldados ao serviço da Companhia de Moçambique. F. pars. Sipahi. , capitaneados pelo preto Marenga e que representa a rebeldia, herança do bem conhecido rebelde Mariano Vaz dos Anjos36 36 Mariano Vaz dos Anjos, "O Mataquenha", herdou o senhorio das terras de Massingir do padrasto, Gualdino Faustino de Souza, terras de que foi feito capitão-mor em 1856. , hoje falecido. Esse Marenga com os seus cipais, foi a cabeça da revolta de 1884 e causa do massacre do então comandante militar e do destacamento que guarnecia o comando. A povoação destes rebeldes é situada mesmo ao lado do antigo comando militar. A acção dos arrendatários nessa região é nenhuma, porque o Marenga a neutraliza insuflando no espírito dos colonos o sentimento da desobediência37 37 AHM, Governo do Distrito de Quelimane, cxa. 46, maço 1 (1), dos arrendatários dos prazos Capingire e Maganja d'Além Chire (Pereira & Dulio) para o governador do distrito da Zambézia, 16 de Abril de 1896. .

Aqui está clara a formação de um grupo de escravos e de colonos, com chefia e espaço próprios: a configuração perfeita do quilombo.

Uma releitura de João de Azevedo Coutinho

Foi na última das frequentes leituras de J. de A. Coutinho38 38 João de Azevedo Coutinho, Memórias de Um Velho Marinheiro e Soldado de África, Lisboa, 1941. que me dei conta de as muitas aringas atacadas militarmente por este conquistador da Zambézia serem necessariamente redutos de antigos escravos. Nem sempre, nem exclusivamente, de escravos foragidos. Isto só transparece dos seus relatórios e memórias a partir do momento que levamos em conta as mutações morfológicas e semânticas na linguagem utilizada. O primeiro enigma com que me deparava na leitura das descrições de combates era o que emergia do poderio de fogo e de capacidade de resistência oferecida pelos ocupantes destas povoações fortificadas. Depois, o seu número. Não tanto a gratuidade aparente do belicismo de Coutinho, que partia à conquista sem que, muitas vezes, dos seus próprios escritos conste qualquer razão próxima para o fazer.

Relativamente à população dos prazos, na fase em que estes estavam a ser extintos e a passar para a administração do Estado (o que Coutinho39 39 Idem, p. 423. situa em 1880-1886), observa o mesmo Coutinho que

(...) o indígena que desconhecia a mecânica e alcance do novo sistema passou a considerar os novos arrematantes da cobrança do mussoco40 40 Mussoco – Tributo pago pelos colonos ao senhor. Quando surgiu o "imposto de palhota", na Zambézia, manteve-se a designação de "mussoco" para o novo imposto. como sucessores dos antigos donatários e senhores, com as mesmas faculdades, poderes e regalias e até os mesmos direitos à prática de abusos.

Não obstante as abolições legais, de facto os senhores continuaram senhores e os escravos continuaram escravos: "[ ] condição servil em que ainda hoje jazem [ ]" (os habitantes do país). No entanto aqueles que até então sempre haviam sido designados por "escravos" passaram a "sipais" (ou "cipais"). Esta evolução não deve ser desprezada. Já em 1863 o jornal oficial refere os "sipais ou escravos armados". É assim que Ayres d'Ornellas41 41 Raças e Línguas Indígenas de Moçambique, Lisboa, 1901, p. 58. descreve a transição: "[ ] vimos já a constituição de uma guarda especial do chefe, constituída por escravos; formavam assim um núcleo de exército permanente. Conservando esta tradição, formaram os primeiros enfiteutas dos prazos as suas ensacas de sipais". De alguma maneira, esta era a oficialização de um estatuto que tentava legitimar a adoção pelo novo regime liberal da situação antiga dos achicunda. Por outro lado, a fuga dos escravos é um fato reconhecido e documentado. Tão cedo como em 1807, um censo de escravos contempla os presentes e os ausentes. Estes últimos fugiam aos "maus tratos". Presentes e ausentes equivaliam-se em número: 21.920 os primeiros e 21.827 os segundos. Isto representando a soma obtida nos distritos de Tete, Zumbo, Sena, Manica e Quelimane42 42 AHU, Moç., cxa. 121, nº 61, do governador-geral para o rei, 22 de Outubro de 1807, relatório sobre o estado da capitania. . Um bando do governador de Quelimane e de Rios de Sena, quase meio século mais tarde, proibia que fosse dado abrigo em prazos ou em propriedades particulares a escravos fugidos. Senhores, rendeiros e administradores de prazos estavam a dar guarida a tais foragidos, que se transformavam em chefes de salteadores, à testa de guerrilhas que assaltavam propriedades43 43 AHM, códice 11-1530, fls. 110 vs. e 111, bandos do governador interino de Quelimane e Sena. . Estes são achicunda que transformam os locais onde se acoitam em quilombos.

João de Azevedo Coutinho comandou várias expedições militares no vale do Zambeze. Vamos ver que todas elas se desencadeiam contra aringas perfeitamente localizadas e afrontam homens organizados e armados com armas de fogo sob um comando identificado. Eis como descreve as aringas do Báruè:

As povoações são sempre cercadas por uma paliçada muito espessa, forte e resistente quando constitui aringa, a que chamam 'guta', para nela se defenderem em caso de guerra. Neste caso a paliçada é formada por duas ordens de troncos enterrados ao alto e afastados uns dos outros, na mesma ordem, cerca de um metro. Estes troncos, cuja parte acima do nível do solo é muito mais alta do que um homem, rebentam quase sempre, transformando-se em árvores. O intervalo entre as duas ordens de estacas, que varia conforme a resistência desejada, é preenchido por troncos horizontais muito bem unidos e apertados, usando-se para se conseguir este fim, ligar fortemente de espaço a espaço com varas flexíveis de trepadeiras, ou cordas de entrecasca de árvore, os troncos verticais. De espaço a espaço reservam-se umas aberturas por onde se introduzem os canos das armas. O traçado das aringas adapta-se muitas vezes ao terreno e obedece quase sempre aos princípios da fortificação, havendo geralmente reintrantes sobre os caminhos, e junto às portas, para os bater e as defender com fogos cruzados; e salientes sobre as elevações, a fim de atingirem a crista militar, diminuindo portanto os ângulos mortos. Algumas têm torres de flanqueamento. Verdadeiros baluartes com fogo em andares44 44 João de Azevedo Coutinho, op. cit., pp. 556 e 557. .

Em 1890, no vale do Rio Chire, contra os macololo, é desencadeada a campanha que provocaria o Ultimatum da Inglaterra a Portugal45 45 A 11 de Janeiro de 1890, a Inglaterra impôs a Portugal o abandono das terras que Serpa Pinto e Coutinho estavam a submeter à soberania portuguesa no vale do Chire. . Como macololo eram designados povos a montante do Rio Ruo e que se dizia serem descendentes dos acompanhantes de Livingstone aí fixados em meados do século. Envolvidos na disputa de soberania da área entre portugueses e ingleses, foram objeto de uma campanha comandada por Serpa Pinto, que, naquela data, delegou a chefia da mesma a Coutinho, encarregando-o de ocupar as duas margens do rio. Em consequência do Ultimatum, a expedição portuguesa viu-se obrigada a abandonar a margem direita e a transferir-se para a esquerda. O governador-geral havia recomendado a Coutinho que "abrisse o caminho" de Chilomo (nova povoação na margem esquerda, em substituição da que, com o mesmo nome, fora abandonada na margem direita) para as serranias de Chiperone, Milange e Lómuè, assegurando a comunicação do Zambeze e do Chire para o Niassa. Mais concretamente, o governador-geral insistira na afirmação de soberania ao longo da margem esquerda do Ruo e na abertura de caminhos seguros que cortassem os antigos caminhos do Massingire, do Derre (Marral) e mesmo do Boror para Milange e para a parte da região dos Lagos. De Chilomo seguiu a coluna de Coutinho pela margem do Ruo. Após o percurso que calcula de 90 a 100 Kms. voltou a sul para "submeter" o "régulo" M'lolo, que tinha várias povoações, entre as quais uma, famosa por estar colocada no alto da serra. Arrasou-lhe cinco povoações, duas das quais fortificadas. Houve combate com mortos e feridos de ambas as partes, tendo as forças de Coutinho feito cem prisioneiros. No cimo da serra, onde foi destruída uma outra povoação, homens armados ofereceram resistência.

Em local tão isolado e inacessível, onde jamais chegara a presença de europeus, fora e distante do domínio efetivo dos Prazos da Coroa, quem podiam ser estes homens armados que enfrentavam a coluna militar e militarizada de ocupação? Só podiam ser achicunda, aí foragidos e integrados em butacas46 46 Butaca – termo que designa a propriedade, o senhorio, o poder e a herança. "Subir a butaca", o mesmo que subir ao trono. Butaca – cadeira ou banco que entre os negros de Angola serve de trono (Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa). de chefias tradicionais ou de novas butacas, constituídas por novas chefias. Já em 1667 o padre jesuíta António Barreto chamava a atenção para o fato de os dois fumos47 47 Fumo ou mfumo – nas fontes portuguesas, identificado com "senhores e titulares cafres" à frente de um mogamo (Ana Cristina Roque, Terras de Sofala: Persistência e Mudança. Dissertação para a obtenção do grau de Doutor. Lisboa, 2003). Mogamo – Todo este trato de terras se reparte em varios territorios ou districtos com os seus proprios nomes e demarcações (a que chamam mogamos) – Informação do estado e Conquista dos Rios de Cuama, vulgar e verdadeiramente chamados Rios do Ouro, S. Paulo de Goa, 11 de Dezembro de 1667, George Theal, Records of South Eastern Africa, Cape Town, 1964, vol III, p. 439. Di, que então dominavam a serra e suas fraldas, se apoderarem dos "nossos cativos que para lá fugiam, vendendo-os depois a nós mesmos como seus. Uma peça destas me fizeram sendo eu Superior em Sena"48 48 Informaçaõ do Estado e Conquista dos Rios de Cuama, op. cit. . O marfim e os escravos eram os artigos de exportação que alimentavam a prosperidade e o poder destas chefias e que explicam a proliferação de armas de fogo em terras tão distantes do litoral. Aliás, Coutinho descreve de seguida como foi alertado para o fato de para as terras Macua-Lómuè, não muito para além do Milange, andarem mujojos a queimar povoações e a comprar negros para a escravatura. Mujojos49 49 Mujojo – comerciante suahili oriundo nomeadamente das ilhas Madagáscar e Comores, que frequentava os portos de Moçambique. que ele acabou por atacar e desbaratar.

Após a acima referida prisão do capitão-mor do Báruè, Manuel António, "o Gouveia", pelos polícias da South Africa Company, os que Coutinho chama "capitães", isto é, os seus chefes de guerra, apoderaram-se das terras, dos haveres e até das mulheres que aquele muzungo50 50 Muzungo – senhor. dominara até então. Foi nesta mesma data que Atónio Ennes, então Alto Comissário, achou por bem dar um golpe na Macanga, ao norte de Tete, território considerado rebelde desde 1888. Para comandar a ação, foi convidado Coutinho. Quando procurou "sipais"51 51 René Pélissier, Naissance du Mozambique, Orgeval, 1984, p. 413, nota: En fait, la création des entrepôts des achikunda le long du Zambèze, au-delà du Kafuè, précède l'arrivée de Kaniemba. Ce seront les achikunda qui seront les grands fournisseurs d'armes dans ces parages. junto dos capitães-mores do distrito, Coutinho foi surpreendido com o fato de ser geral a rebelião, pelo que ninguém dispunha de homens para lhe fornecer. Ora, estas guerras ou eram contendas entre os próprios capitães-mores, ou das povoações constituídas pelos colonos e pelos achicunda contra os abusos dos senhores. Uma das guerras era a do capitão-mor de Tete, que fora com mil (?) homens enfrentar um régulo, uma vez que este atacara e roubara o marfim de uma caravana de caçadores seus. Coutinho deveria invadir a Macanga e a Marávia. O estado de rebelião que Coutinho considera ativa ou latente de toda a Zambézia, a Oeste e ao Sul de Sena e a Oeste e ao Norte de Tete, impedia o recrutamento que só seria possível na Baixa Zambézia. Coutinho considerou ainda que deveria reunir os seus aos esforços que Manuel António prosseguia, no sentido de restabelecer o seu império. Planeou seguir o curso do Muira (afluente na margem direita do Zambeze) atacando as numerosas aringas aí existentes. Iriam depois destruí-las no vale do Luenha (outro afluente na margem direita do Zambeze), após o que se tornaria fácil seduzir a gente de Manuel António para a campanha da Macanga.

Deixando de parte o desfecho deste plano, há que atentarmos na fixação de Coutinho relativamente às aringas do Muira e do Luenha. Ao longo dos seus escritos, agora e logo, estas aringas e os seus chefes surgem e ressurgem como redutos de inimigos quase lendários. Logo a primeira que atacou, onde foi derrotado e esteve à morte, deparou-se com fogo nutrido, inclusive de uma metralhadora que havia sido capturada aos portugueses. Era a Mafunda:

[...] a aringa era fortíssima e nova, as paliçadas interior e exterior de uns três metros de alto, e por detrás delas havia ainda, além de muitos pontos uma espécie de pára-balas, formada de duríssima palmeira brava. Na paliçada exterior, como sempre, existiam pequenas seteiras por onde faziam fogo, em vários andares.

Coutinho não refere nenhum muzungo, isto é, nenhum senhor a presidir ou a comandar esta aringa mais do que o Muanambua-ua-cuva (cão esperto). Ao contrário de outros chefes de achicunda, a vários níveis que Coutinho repetidamente invoca, este apresenta-se como dos mais discretos nos seus escritos. O simples fato de estar a comandar os homens de uma aringa que abrigava milhares de pessoas e as mesmas referências de Coutinho levam-nos a crer que se tratava de uma chefia emergente da organização militarizada daquele aglomerado, o que se repetia nos muitos outros casos invocados pelo mesmo autor. Podemos, pois, concluir que, mesmo admitindo a tradicional legitimação linhageira ou outra para alguns ou mesmo para todos os casos, a chefia destas comunidades é normalmente de caráter prevalecentemente militar. "República" ou não, como no caso da Maganja da Costa, estas são sociedades em que todo o poder está nas mãos dos achicunda, a quem os novos colonizadores pós-escravismo designam por sipais52 52 Pélissier, p. 446: "[ ] achicunda appelés pompeusement cipayes dès cette époque (1891) [ ]". . Aí mesmo, a 19 de Novembro de 1891, se gorou a missão à Macanga, que Coutinho iniciava.

Foram estes sipais (os Achicunda de Manuel António), após a sua (do Manuel António) prisão pela polícia da South Africa Company e morte (um pouco mais tarde) que viriam a estabelecer a rede impenetrável de aringas, obstáculo insuperável para os temidos vátuas e landins de Muzila e do Gungunhana e que determinaram o seu retrocesso para terras de Manjacaze53 53 João de Azevedo Coutinho, Memórias , op. cit., p. 237. .

Eram estes mesmos que estavam agora revoltados. Haviam impedido antes a invasão e o avanço para o norte aos nguni do sul e impediam agora a ocupação colonial. Na margem esquerda do Zambeze, por igual havia aringas na posse de gente dos antigos prazos e mesmo de "alguns antigos homens de D. Luiza da Cruz"54 54 Idem, p. 242. . Isto é, sem tirar nem pôr, antigos escravos. Coutinho enumera onze aringas à volta de Sena, identificando os capitães de cada uma delas. Homens armados, militarmente organizados e entrincheirados, só podiam ser achicunda. Não havia mais ninguém naquela parte do Sudeste Africano nesta situação.

Após o desastre da Mafunda e quando Coutinho estava em recuperação no Guenge, na margem esquerda do Zambeze, apresentou-se-lhe o Cambuemba,

[...] célebre e antigo capitão grande de Manuel António, que em 1888 por qualquer incidente no ataque à aringa de Massangano, decaíra da sua confiança, seguindo depois para os prazos de Tete ou para a Macanga onde segundo constava tinha uma aringa. Espertíssimo e valentíssimo sabia-o eu por tradição. Vinha apresentar-se para o serviço do Rei visto que o capitão-mor tinha morrido e o Camba também, e as terras do Rei não tinham capitão grande55 55 Idem, p. 279. .

Cá está como um chicunda, depreciado pelo senhor, se vai entregar a outro senhor. Exatamente o fenómeno do corpo vendido56 56 Corpo vendido – designação dada em Moçambique ao fenômeno da entrega voluntária de uma pessoa, como escrava, a um senhor. . Não podendo aceitar a oferta, Coutinho tomou a que hoje se nos afigura espantosa decisão de o aconselhar a tomar conta das aringas do seu antigo senhor, então morto. Cambuemba não se fez rogado. Uma vez titulada a Companhia de Moçambique na soberania deste mesmo território, o Cambuemba não a autorizou a proceder à cobrança do imposto de palhota.

Relativamente a 1896, no primeiro consulado de Mousinho de Albuquerque como governador-geral de Moçambique, assinala Coutinho o fato de

[...] a Zambézia e o Báruè continuarem cheias de Aringas e insolência [e] o continente fronteiro à ilha em que assenta a então capital da Província sob o jugo do Marave e dos Namarrais que à mão armada impediam que a seis quilómetros (!) dos palácios da Cabaceira e do Mossuril, antigas residências de campo do governador-geral, os representantes da nossa soberania exercessem a sua autoridade!

Coutinho está a referir-se ao quilombo de Ampapa57 57 João de Azevedo Coutinho, op. cit., pp. 341 e 343. – assinalado no início deste artigo – cujos ocupantes, ao atacarem os portugueses, se faziam anunciar como a "guerra de Ampapa"58 58 Mousinho de Albuquerque, Livro das Campanhas, Vol. I, Agência Geral das Colónias, 1935, p. 123. .

Ainda a propósito da situação no Báruè, escreve Coutinho: "e com respeito aos prazos bongas59 59 Bonga – Codinome de um dos Cruz, senhores do prazo Massangano, também capitães-mores. Geralmente designados os bongas . , dizia-se poderem os revoltosos contar com o seu abrigo e benevolência, caso neles se refugiassem, como na realidade sucedeu"60 60 João de Azevedo Coutinho, op. cit., p. 563. . Diz ainda Coutinho que "os irregulares que fiz reunir em Sena eram os do antigo capitão-mor Anselmo Ferrão", isto é, antigos Achicunda daquele celebrado Muzungo, assim como os que se lhe juntaram e que "haviam sido cipais da célebre D. Ana Cativa". Também que do Goma e do Mugovo, antigos prazos, "vieram uns 400 homens de guerra". Assim mesmo, "homens de guerra" sem tirar nem pôr.

Persistia sempre na intenção e firme propósito de voltar à Zambézia para subjugar o coio de rebeldes que ali ficara, e que até 1897 foi alastrando rio abaixo e para o interior. Nesse ano depois da campanha dos Namarrais, nomeado Governador da Zambézia por Mousinho, liquidámos com um sólido núcleo de boa tropa e milhares de cipais a rebeldia dos chamados prazos de Sena até à Chiramba: em 1902 nomeado pelo governo para bater o Báruè, com as forças da marinha e do exército do reino e colonial, que tive a honra de comandar, e com cipais, subjugava toda aquela vasta região até ao Luenha e ao Mazoe; os régulos bongas e bitongas, tomando 72 aringas entre as quais Inhachirondo e as do Muira, Inhacafura e a Mafunda!61 61 Idem, ibidem, op. cit., p. 281. .

Todas estas aringas, povoações fortificadas, não eram mais do que quilombos, onde se haviam refugiado e concentrado as povoações dos antigos prazos, povoações estas feitas dos escravos e dos colonos a que estava reduzido o comum das populações. Aí se tinham acantonado pelas razões explicitadas. Os antigos achicunda, agora sipais, emprestavam a estas novas formações sociais a chefia e a organização militarizada herdada dos velhos senhorios. Foi esta a resistência que a chamada ocupação militar do território, tão bem personificada por Azevedo Coutinho, foi encontrar na área que lhe coube a ele conquistar. Coutinho teve a seu lado o melhor dos antigos achicunda e ficou a dever-lhes em grande parte os êxitos militares com que se pavoneou. Não sem reconhecer – honra lhe seja! – os méritos bélicos e organizacionais, o brio e a valentia naqueles mesmos achicunda que se opuseram à ocupação.

Conclusão

Tal e qual como em qualquer sistema escravista moderno, também em Moçambique os colonos foragidos aos senhores formaram comunidades geralmente remetidas a povoações fortificadas, cuja designação mais comum era a de aringas. Preferimos a esta a de quilombos como a designação mais apropriada, porque aringa assume o significado da povoação fortificada sem qualquer referência à escravatura. No caso de Moçambique, quilombo será especificamente uma aringa de escravos. Como os corpos de escravos estavam organizados dentro dos contornos de uma linhagem – a butaca – é natural que levassem das terras dos senhorios para os quilombos que formavam organização idêntica. O ambiente bélico e a disponibilidade de armas de fogo nestes quilombos é mais uma prova de que estas formações sociais tinham como membros estruturantes aqueles escravos que eram os achicunda dos senhores dos prazos da coroa: caçadores, executores do policiamento das terras, homens de guerra, em uma palavra, homens armados e organizados em disciplina de caráter militar. Quando, em finais do século XIX, se fez mister a ocupação efetiva por parte da potência colonial, que reclamava a soberania do território, foi dos numerosos quilombos no vale do Zambeze que emergiu a maior resistência a esta ocupação. Quem estava a oferecer esta resistência eram antigos escravos, cujas comunidades continuavam a apresentar-se a si mesmas e a ser reconhecidas por outrem como achicunda, então e nomeadamente nos relatórios oficiais designados por cipais.

Artigo recebido em outubro de 2005 e aprovado para publicação em dezembro de 2005.

Anexos

  • 1
    1Dicionário da Língua Portuguesa ContemporaneaAcademia das Ciências de Lisboa -
  • Quilombo [kilõbu] s.m. (Do quimb. Kilombo "povoação"). 1. Acampamento dos jagas, povo antropófago, que invadiu o Congo e Angola no último quartel do século XVI. 2. Brs. Local onde se refugiavam os escravos fugidos a seus donos. Pedro Paulo de Abreu Funari, A Arqueologia de Palmares, "Liberdade por um fio";
  • 2 Para os Prazos da Coroa, Maria Eugénia Alves Rodrigues, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena - Os Prazos da Coroa nos Séculos XVII e XVIII, Dissertação para a obtenção do grau de doutoramento, Lisboa, 2002;
  • José Capela, Donas, Senhores e Escravos, Porto, 1995.
  • Narana Coissoró, O Regime das Terras em Moçambique; "Moçambique: Curso de extensão universitário, ano lectivo de 1964-1965", Lisboa;
  • Allen Isaacman, The Africanization of a European Institution: The Zambezi Prazos, 1750-1902, Madison, 1972;
  • Alexandre Lobato, A Colonização Senhorial da Zambézia e outros estudos, Lisboa, 1962,
  • M. D. D. Newitt, Portuguese Settlement on the Zambezi:Exploration, Land Tenure and Colonial Rule in East Africa, London, 1973;
  • Giuseppe Papagno, Colonialismo e Feudalesimo: La Questione del Prazos da Coroa nel Mozambico Alla Fine del Secolo XIX, Piccola Biblioteca Einaudi, 1972;
  • Ernesto de Vilhena, Regime dos Prazos da Zambézia, Lisboa, 1916.
  • 4Jornal de Moçambique, 31 de Dezembro de 1873, 5 de Dezembro de 1874 e 1 de Maio de 1875.
  • 6 Eugénia Rodrigues, Senhores, Escravos e Colonos nos Prazos dos Rios de Sena no Século XVIII: Conflito e Resistência em Tambara, 1999.
  • 7 José Capela, A República Militar da Maganja da Costa, Maputo, 1988.
  • 11 Antonio Alberto de Andrade, "Relações de Moçambique Setecentista", Descripção da Capitania de Monsambique, Suas Povoações, e Produções, 1788, Lisboa, MCMLV, p. 398.
  • 17 Dr. Francisco Santana, Documentação Avulsa Moçambicana do Arquivo Histórico Ultramarino, I, 1964, p. 791,
  • 28 René Pélissier, Naissance du Mozambique, Orgeval, France, 1984, p. 60,
  • e Biblioteca Municipal do Porto, códice 1317; Delfim José de Oliveira, Diário da Viagem de Lisboa a Tete (1859-1860);
  • 34 José Capela, Conflitos sociais na Zambézia, 1878-1892 - A Transição do Senhorio para a Plantação, "Africana Studia", nş 1, 1999.
  • 38 João de Azevedo Coutinho, Memórias de Um Velho Marinheiro e Soldado de África, Lisboa, 1941.
  • 41Raças e Línguas Indígenas de Moçambique, Lisboa, 1901, p. 58.
  • 47 Fumo ou mfumo nas fontes portuguesas, identificado com "senhores e titulares cafres" à frente de um mogamo (Ana Cristina Roque, Terras de Sofala: Persistência e Mudança. Dissertação para a obtenção do grau de Doutor. Lisboa, 2003).
  • Mogamo – Todo este trato de terras se reparte em varios territorios ou districtos com os seus proprios nomes e demarcações (a que chamam mogamos) – Informação do estado e Conquista dos Rios de Cuama, vulgar e verdadeiramente chamados Rios do Ouro, S. Paulo de Goa, 11 de Dezembro de 1667,
  • George Theal, Records of South Eastern Africa, Cape Town, 1964, vol III, p. 439.
  • 51 René Pélissier, Naissance du Mozambique, Orgeval, 1984, p. 413,
  • 58 Mousinho de Albuquerque, Livro das Campanhas, Vol. I, Agência Geral das Colónias, 1935, p. 123.
  • 1
    Dicionário da Língua Portuguesa Contemporanea –
    Academia das Ciências de Lisboa - Quilombo [kilõbu] s.m. (Do quimb.
    Kilombo "povoação"). 1. Acampamento dos jagas, povo antropófago, que invadiu o Congo e Angola no último quartel do século XVI. 2.
    Brs. Local onde se refugiavam os escravos fugidos a seus donos. Pedro Paulo de Abreu Funari,
    A Arqueologia de Palmares, "Liberdade por um fio"; João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (organizadores),
    O kilombo era uma sociedade guerreira ovimbundo com rituais de iniciação muito precisos e com uma disciplina militar estrita.
  • 2
    Para os Prazos da Coroa, Maria Eugénia Alves Rodrigues,
    Portugueses e Africanos nos Rios de Sena - Os Prazos da Coroa nos Séculos XVII e XVIII, Dissertação para a obtenção do grau de doutoramento, Lisboa, 2002; José Capela,
    Donas, Senhores e Escravos, Porto, 1995. Narana Coissoró,
    O Regime das Terras em Moçambique; "Moçambique: Curso de extensão universitário, ano lectivo de 1964-1965", Lisboa; Allen Isaacman,
    The Africanization of a European Institution: The Zambezi Prazos, 1750-1902, Madison, 1972; Alexandre Lobato,
    A Colonização Senhorial da Zambézia e outros estudos, Lisboa, 1962, M. D. D. Newitt,
    Portuguese Settlement on the Zambezi:Exploration, Land Tenure and Colonial Rule in East Africa, London, 1973; Giuseppe Papagno,
    Colonialismo e Feudalesimo: La Questione del Prazos da Coroa nel Mozambico Alla Fine del Secolo XIX, Piccola Biblioteca Einaudi, 1972; Ernesto de Vilhena,
    Regime dos Prazos da Zambézia, Lisboa, 1916.
  • 3
    Colonos - designação dada, em Moçambique, à população não escrava, residente nos Prazos da Coroa.
  • 4
    Jornal de Moçambique, 31 de Dezembro de 1873, 5 de Dezembro de 1874 e 1 de Maio de 1875.
  • 5
    Continente Fronteiro e
    Terras Firmes – designações frequentes das terras frente às ilhas.
  • 6
    Eugénia Rodrigues,
    Senhores, Escravos e Colonos nos Prazos dos Rios de Sena no Século XVIII: Conflito e Resistência em Tambara, 1999.
  • 7
    José Capela,
    A República Militar da Maganja da Costa, Maputo, 1988.
  • 8
    Não confundir este João Bonifácio Alves da Silva com o seu padrinho, de quem este herdou o nome. O primeiro, conquistador de Angoche, foi senhor do prazo Licungo, contíguo da Maganja da Costa. Este prazo fora concedido em 1756 a Félix Lamberte da Silva Bandeira e, em segunda vida, a D. Maria Leonor da Silva Bandeira, mulher de João Bonifácio Alves da Silva, que foi governador de Quelimane e se retirou para o Brasil em Dezembro de 1829. Antes do aforamento no João Bonifácio, afilhado, o prazo esteve na mão de vários foreiros.
  • 9
    Oficial de Marinha. Distinguiu-se em múltiplas ações militares que comandou em Moçambique, foi governador de Quelimane e governador-geral de Moçambique. Publicou várias obras onde está descrita a sua ação em Moçambique.
  • 10
    P.P. de Abreu Funari, "Liberdade por um fio",
    op. cit., p. 28.
  • 11
    Antonio Alberto de Andrade, "Relações de Moçambique Setecentista",
    Descripção da Capitania de Monsambique, Suas Povoações, e Produções, 1788, Lisboa, MCMLV, p. 398.
  • 12
    Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), Moçambique (Moç.), caixa (cxa.) 81, nº 31, do comandante militar de Sena para o governador (de Sena ?), 12 de Junho de 1798.
  • 13
    AHU, Moç., cxa. 129, Relação mandada fazer pelo governador de Tete, 1809.
  • 14
    Moradores – designação atribuída a todos os que não eram nem escravos nem colonos: todos os imigrantes que, na qualidade de funcionários, de soldados, ou outra tinham ido para a colônia e aí se haviam fixado.
  • 15
    AHU, Moç. cxa. 216, nº 95, do governador de Sena para o governador-geral, 29 de Outubro de 1828.
  • 16
    Idem, cxa. 219, nº 2, do governador-geral para o governador da capitania dos Rios de Sena, 1 de Março de 1829.
  • 17
    Dr. Francisco Santana,
    Documentação Avulsa Moçambicana do Arquivo Histórico Ultramarino, I, 1964, p. 791, de Francisco H. Ferrão para o governador de Quelimane, Vasconcelos Cirne, 23 de Outubro de 1829.
  • 18
    AHU, Moç., cxa. 143, nº 54, do governador de Inhambane para o governador-geral, 22 de Março de 1813.
  • 19
    Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), códice 11-764, fls. 22, circular do governador de Inhambane, Jacinto Henriques de Oliveira, 27 de Junho de 1855.
  • 20
    AHU, Moç., pasta 7, nº 1, do Governador-Geral Pereira Marinho para o Conde do Bonfim, 21 de Março de 1841.
  • 21
    AHM, Governo-Geral, Cxa. 147, maço 2, nº 301, do capitão-mor das Terras Firmes para o secretário-geral, 7 de Novembro de 1884.
  • 22
    Idem, códice 11-29, fls. 43 e segs., do governador-geral para o ministro, 26 de Abril de 1886.
  • 23
    Idem, códice 1804.
  • 24
    Como a legislação que, a partir de 1854, repetidamente decretou a extinção dos Prazos da Coroa não tinha tido execução, a cobrança do imposto nos prazos em 1890 e 1891 passou a ser concedida em hasta pública. O contrato enfitêutico foi substituído pelo de arrendamento. Há prazos com administração direta do estado e prazos sob regime de arrendamento. Os arrendatários inicialmente são indivíduos e, em finais do século, companhias de capital orgânico. Os arrendatários e administradores de prazos mantiveram o
    status e o comportamento dos senhores que os haviam precedido.
  • 25
    AHM, códice 11-1530, fls. 110 vs., bando de João de Souza Machado, governador interino de Quelimane e Rios de Sena, 10 de Outubro de 1857.
  • 26
    Idem, códice 11-275, fls. 22, portaria do governador-geral Tavares de Almeida para Quelimane, Sena e Tete, 21 de Dezembro de 1858.
  • 27
    Os nguni ou angunes (também zulus, vátuas e landins) são povos do sudoeste africano que se expandiram para sudeste e para norte, tendo ultrapassado o Zambeze e o Rovuma. As invasões provocaram grande desordem no vale do Zambeze, onde se localizava a maioria dos prazos da Coroa.
  • 28
    René Pélissier,
    Naissance du Mozambique, Orgeval, France, 1984, p. 60, e Biblioteca Municipal do Porto, códice 1317; Delfim José de Oliveira,
    Diário da Viagem de Lisboa a Tete (1859-1860); e AHM, Governo do Distrito de Quelimane, cxa. 17, maço 1, nº 25, do governador do distrito de Tete para o governador interino do distrito de Quelimane, 17 de Julho de 1861.
  • 29
    Idem, p. 378.
  • 30
    Manuel António de Sousa, oriundo de Goa, foi capitão-mor de Manica e Quiteve. Estiveram sob o seu domínio a Gorongosa e o Báruè. Foi aprisionado em Mutara pela polícia da British South Africa Company, em 1890, por ocasião da disputa das fronteiras entre portugueses e ingleses. Os seus capitães aproveitaram a prisão para se assenhorearem das aringas. Uma vez posto em liberdade, intentou a reconquista das terras, tendo sido morto no ataque a Missongue, em Dezembro de 1891
  • 31
    René Pélissier,
    op. cit., p. 454
  • 32
    AHM, Governo do Distrito de Quelimane, cxa. 43, maço 5 (1), nº 1, de Francisco Manuel Correia para o governador do Distrito de Quelimane, 15 de Agosto de 1875.
  • 33
    Idem, ibidem, 28 de Outubro de 1877.
  • 34
    José Capela,
    Conflitos sociais na Zambézia, 1878-1892 - A Transição do Senhorio para a Plantação, "Africana Studia", nº 1, 1999.
  • 35
    Sipais ou cipais – nome com que passaram a ser designados os antigos achicunda após a abolição da escravatura, conforme adiante se desenvolve. Aulete,
    Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa _ sipais, soldados indígenas da Índia, ao serviço dos ingleses. Soldados ao serviço da Companhia de Moçambique. F. pars.
    Sipahi.
  • 36
    Mariano Vaz dos Anjos, "O Mataquenha", herdou o senhorio das terras de Massingir do padrasto, Gualdino Faustino de Souza, terras de que foi feito capitão-mor em 1856.
  • 37
    AHM, Governo do Distrito de Quelimane, cxa. 46, maço 1 (1), dos arrendatários dos prazos Capingire e Maganja d'Além Chire (Pereira & Dulio) para o governador do distrito da Zambézia, 16 de Abril de 1896.
  • 38
    João de Azevedo Coutinho,
    Memórias de Um Velho Marinheiro e Soldado de África, Lisboa, 1941.
  • 39
    Idem, p. 423.
  • 40
    Mussoco – Tributo pago pelos colonos ao senhor. Quando surgiu o "imposto de palhota", na Zambézia, manteve-se a designação de "mussoco" para o novo imposto.
  • 41
    Raças e Línguas Indígenas de Moçambique, Lisboa, 1901, p. 58.
  • 42
    AHU, Moç., cxa. 121, nº 61, do governador-geral para o rei, 22 de Outubro de 1807, relatório sobre o estado da capitania.
  • 43
    AHM, códice 11-1530, fls. 110 vs. e 111, bandos do governador interino de Quelimane e Sena.
  • 44
    João de Azevedo Coutinho,
    op. cit., pp. 556 e 557.
  • 45
    A 11 de Janeiro de 1890, a Inglaterra impôs a Portugal o abandono das terras que Serpa Pinto e Coutinho estavam a submeter à soberania portuguesa no vale do Chire.
  • 46
    Butaca – termo que designa a propriedade, o senhorio, o poder e a herança. "Subir a butaca", o mesmo que subir ao trono. Butaca –
    cadeira ou banco que entre os negros de Angola serve de trono (Aulete,
    Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa).
  • 47
    Fumo ou mfumo – nas fontes portuguesas, identificado com "senhores e titulares cafres" à frente de um mogamo (Ana Cristina Roque,
    Terras de Sofala: Persistência e Mudança. Dissertação para a obtenção do grau de Doutor. Lisboa, 2003). Mogamo – Todo este trato de terras se reparte em varios territorios ou districtos com os seus proprios nomes e demarcações (a que chamam mogamos) –
    Informação do estado e Conquista dos Rios de Cuama, vulgar e verdadeiramente chamados Rios do Ouro, S. Paulo de Goa, 11 de Dezembro de 1667, George Theal,
    Records of South Eastern Africa, Cape Town, 1964, vol III, p. 439.
  • 48
    Informaçaõ do Estado e Conquista dos Rios de Cuama, op. cit.
  • 49
    Mujojo – comerciante
    suahili oriundo nomeadamente das ilhas Madagáscar e Comores, que frequentava os portos de Moçambique.
  • 50
    Muzungo – senhor.
  • 51
    René Pélissier,
    Naissance du Mozambique, Orgeval, 1984, p. 413, nota:
    En fait, la création des entrepôts des achikunda
    le long du Zambèze, au-delà du Kafuè, précède l'arrivée de Kaniemba. Ce seront les achikunda
    qui seront les grands fournisseurs d'armes dans ces parages.
  • 52
    Pélissier, p. 446: "[ ]
    achicunda appelés pompeusement cipayes dès cette époque (1891) [ ]".
  • 53
    João de Azevedo Coutinho,
    Memórias ,
    op. cit., p. 237.
  • 54
    Idem, p. 242.
  • 55
    Idem, p. 279.
  • 56
    Corpo vendido – designação dada em Moçambique ao fenômeno da entrega voluntária de uma pessoa, como escrava, a um senhor.
  • 57
    João de Azevedo Coutinho,
    op. cit., pp. 341 e 343.
  • 58
    Mousinho de Albuquerque,
    Livro das Campanhas, Vol. I, Agência Geral das Colónias, 1935, p. 123.
  • 59
    Bonga – Codinome de um dos Cruz, senhores do prazo Massangano, também capitães-mores. Geralmente designados os bongas
    .
  • 60
    João de Azevedo Coutinho,
    op. cit., p. 563.
  • 61
    Idem,
    ibidem,
    op. cit., p. 281.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Jan 2006

    Histórico

    • Recebido
      Out 2005
    • Aceito
      Dez 2005
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