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Qualificação profissional: uma tarefa de Sísifo

RESENHAS REVIEWS

Qualificação profissional: uma tarefa de Sísifo. Cláudia Mattos Kober Campinas/SP: Autores Associados, 2004, 172 pp.

Lúcia Maria Wanderley Neves

Universidade Federal Fluminense <lucianeves@globo.com>

Eis mais uma contribuição para o entendimento da relação entre trabalho e educação, tema de estudo que vem mobilizando um grande número de educadores brasileiros, especialmente a partir das duas últimas décadas do século passado. Cláudia Kober, com este livro, fruto de sua experiência como estudante de mestrado do Programa Educação: História, Política, Sociedade, na PUC-SP, empregando uma abordagem original, acrescenta elementos significativos para o debate.

A autora se propõe a responder a duas questões: "De que modo se forma a qualificação profissional, do ponto de vista do trabalhador que realiza suas funções nas linhas de produção da indústria? Como este trabalhador articula suas histórias de vida, educação, trabalho e mercado de trabalho nas decisões e iniciativas quanto à qualificação e requalificação?" (p. 5).

Para responder a essas perguntas, são entrevistados quinze trabalhadores de linha de produção da indústria paulista, que buscavam qualificação através da realização de cursos supletivos, subdividindo-os em dois grupos: "o primeiro formado por sete trabalhadores que cursavam o supletivo do ensino fundamental em uma escola municipal e trabalhavam em diversas empresas, nenhuma das quais havia passado por um processo de reestruturação produtiva; o segundo grupo, formado por oito entrevistados que cursavam o supletivo do ensino médio dentro de uma indústria em que trabalhavam, esta, sim, reestruturada" (p. 6).

Os resultados desta pesquisa são apresentados em três capítulos. No primeiro, caracterizam-se, de forma sucinta e teoricamente consistente, os novos requisitos técnicos e ético-políticos da formação do trabalhador demandados pela produção capitalista, em face das mudanças no conteúdo e na organização do trabalho e da produção nos anos finais do século XX. Descrevem-se, também, as principais mudanças na natureza e nas práticas do Estado capitalista em nível mundial e nacional, realçando o papel político-ideológico da educação escolar entre as estratégias de legitimação desse Estado, em especial a força da ideologia que une linearmente educação, emprego e desenvolvimento junto ao conjunto da população brasileira na atualidade.

Para ilustrar a força dessa ideologia junto a segmentos de trabalhadores brasileiros, a autora recorre, entre outros argumentos, aos expressivos resultados de pesquisa realizada pela Fundação Unitrabalho, em 1997, na qual 84,5% dos trabalhadores alunos desempregados e 89,7% dos trabalhadores alunos empregados atribuem o desemprego à falta de qualificação profissional.

Após discutir as mudanças objetivas na sociedade brasileira na atualidade, apresentam-se as noções de espaço social e de habitus de Pierre Bourdieu, como ferramentas teóricas para melhor compreender a percepção dos trabalhadores entrevistados e suas opções sobre qualificação profissional.

No capítulo 2, faz-se um relato claro, simples e profundamente humano da trajetória de vida, de escolarização e de trabalho desses estudantes que realizam o trabalho simples na indústria paulista, tarefa que vem demandando historicamente, entre nós, um baixo nível de escolarização, embora nos últimos anos, após a reestruturação produtiva, venha sendo ampliado o patamar mínimo de escolarização da classe trabalhadora, conforme atestam os dados governamentais. Em 1985, 51,9% dos assalariados do setor privado (todos os setores de atividades) com carteira assinada não tinham completado o ensino fundamental, percentual reduzido a 27,2% em 2002.

No capítulo 3, procura-se verificar, a partir das entrevistas semi-estruturadas, "de que modo se forma a qualificação profissional do ponto de vista do trabalhador" e como "ele articula sua história de vida e escolar, trabalho e mercado de trabalho nas decisões que toma quanto à sua qualificação/requalificação profissional" (p. 81). Aqui a autora destaca a importância atribuída à escola no meio urbano e no meio rural, o sentido do trabalho na infância desses trabalhadores, a importância dada à escolarização para os seus descendentes; o sentido da retomada dos estudos; a relação existente entre o trabalho que realizam na atualidade e as experiências vividas na escola; o valor atribuído à aprendizagem no trabalho; o valor atribuído pelo empregador à experiência profissional e à qualificação profissional; a percepção do trabalhador quanto aos requisitos comportamentais exigidos pelas novas formas de organização do trabalho e da produção e suas iniciativas de busca de qualificação profissional.

Nas conclusões, Cláudia Kober ressalta que "não se podem generalizar as percepções que os trabalhadores entrevistados têm em relação à qualificação para o restante dos trabalhadores brasileiros, ainda que se tratassem daqueles que realizam suas funções nas linhas de produção"(p. 145). Isto porque "os entrevistados representam um recorte arbitrário, parte de uma realidade mais extensa e complexa, que tem tempos, ritmos e características diferentes"(p. 145), ou seja, são parte dos 44,4 milhões de brasileiros, com mais de 15 anos, que não terminaram o ensino fundamental, segundo o censo demográfico de 2000 (p. 47).

A autora observa que, entre os trabalhadores entrevistados, está presente o poder simbólico da idéia de que é preciso estudar para conseguir uma posição melhor no espaço social, melhor renda e tornar-se empregável (que é a ideologia da burguesia mundial e a brasileira hoje), mobilizando esforço, tempo e recursos financeiros em busca de uma escolaridade atrasada . Observa, ainda, que a escola está presente no habitus formado nas relações familiares e continuamente atualizado na relação desses indivíduos com as estruturas sociais, em especial nas relações de trabalho.

A conclusão mais interessante deste estudo refere-se à afirmação de que, para esses trabalhadores, a educação escolar é vista como importante para a qualificação profissional, mas não se constitui em fator principal. Ela fornece as credenciais necessárias para a permanência no mercado de trabalho, mas é na aprendizagem que se dá no ambiente de trabalho que se constrói a qualificação. Enfim, a qualificação profissional não depende apenas da escola nem do trabalhador.

Estas conclusões suscitam algumas inquietações. A primeira refere-se à possibilidade concreta de construção de uma idéia contra-hegemônica sobre a relação entre trabalho e educação. Que instâncias sociais poderiam contribuir para redimensionar essa percepção dos trabalhadores entrevistados? Qual o papel do sindicato, em especial, e dos movimentos sociais, na construção dessa possibilidade?

A segunda diz respeito à constatação de que a qualificação profissional não depende apenas da escola nem do trabalhador, o que remete a uma discussão de natureza mais abrangente, no que tange ao conceito de qualificação profissional, se esta é entendida de uma forma ampla ou de uma forma restrita. Se entendida em sentido amplo, ou seja, como conformação técnica e ético-política da classe trabalhadora aos requisitos da cultura urbano-industrial, confunde-se com educação. Assim, poder-se-ia afirmar, substituindo a afirmação anterior, que a educação não depende apenas da escola nem do trabalhador, mas do conjunto das relações sociais vividas. Se qualificação profissional é entendida em um sentido estrito, como um conjunto de habilidades imprescindíveis para a obtenção ou conservação do emprego na produção, confundindo-se com treinamento, pode-se afirmar que, para exercer tarefas simples na produção fordista, a aprendizagem no local de trabalho ainda tem um peso considerável. O treinamento vai se tornando imprescindível à medida que as empresas sofrem um processo de reestruturação produtiva. Essa dupla acepção perpassa as análises e conclusões da autora.

Esta questão remete, ainda, a uma outra, relativa à formação dos dois grupos de entrevistados. Estariam as diferenças encontradas nos dois grupos quanto às suas percepções da formação profissional mais ligadas ao tipo de organização da produção - fordista ou toyotista - ou mesmo ao nível de ensino - fundamental ou médio? Ou estariam ligadas ao tipo de relação que viviam com a escola e o trabalho? No primeiro caso, os alunos estavam passando por uma experiência de escolarização, havendo um maior distanciamento entre a atividade escolar e a atividade profissional. No segundo, mesmo que formalmente passassem por uma experiência de escolarização regular, de caráter supletivo, esta mais claramente se inseria em um processo de requalificação profissional, no que se refere à aquisição de habilidades gerais para o exercício profissional, tornando mais estreita a relação entre a atividade educacional e a atividade profissional.

Pela riqueza de informações, pela originalidade da abordagem, e pela natureza instigante de suas observações e análises, este livro se constitui em importante contribuição para o debate atual não só em torno das relações entre trabalho e educação escolar, mas também entre educação e legitimação social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Set 2004
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