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Sonho ou pesadelo americano? Mortes por desespero e o futuro do capitalismo

CASE, Anne; DEATON, Angus. . Deaths of Despair and the Future of Capitalism. Princeton University Press: Princeton, NJ, 2020. 312p.

Na última década, houve um crescimento da evidência sobre a relação entre a insegurança econômica e um aumento de suicídios, doença hepática crônica e intoxicação por drogas e álcool, a cujo grupo foi dado o nome de “mortes por desespero” (Knapp et al., 2019KNAPP, Emily A. et al. Economic insecurity and deaths of despair in US counties. American Journal of Epidemiology, v. 188, n. 12, p. 2.131-2.139, 2019. DOI: 10.1093/aje/kwz103.
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). Nos últimos cinco anos, alguns estudos americanos descreveram aumentos nas taxas de mortalidade por essas causas, principalmente entre homens brancos de meia-idade e baixa escolaridade. O mais famoso deles é o estudo de Case e Deaton (2015) CASE, Anne ; DEATON, Angus. Rising morbidity and mortality in midlife among white non-Hispanic Americans in the 21st century. PNAS, v. 112, n. 49, p. 15.078-15.083, 2015. DOI: 10.1073/pnas.1518393112. Disponível em: https://www.pnas.org/content/pnas/112/49/15078.full.pdf . Acesso em: 10 jan. 2021.
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, que recebeu grande cobertura da mídia americana, e induziu pesquisas colaterais que discutiram a situação dos brancos pobres na economia americana, cujo auge foi o lançamento da obra Deaths of Despair and the Future of Capitalism (Case; Deaton, 2020CASE, Anne ; DEATON, Angus. Deaths of despair, and the future of capitalism. Princeton University Press: Princeton, Nova Jersey, EUA, 2020. 312 p.).

Economistas renomados, Anne Case é uma das maiores especialistas nas ligações entre situação econômica e de saúde; enquanto Angus Deaton ganhou um Nobel em 2015 por seu trabalho sobre pobreza familiar e bem-estar. Os professores de Princeton trazem nesta obra uma forte base empírica para argumentar (e concluir) de forma duramente crítica a fragilidade da democracia americana. Com uma linguagem acessível a não economistas, os autores procuram fazer a conexão entre o fenômeno das mortes por desespero e o contexto de desigualdade social e econômica.

O que Anne Case e Angus Deaton observaram foi que, ao longo do século XX, as taxas de mortalidade diminuíram continuamente nos Estados Unidos (EUA). Contudo, nos últimos 20 anos, houve uma mudança dramática: entre 1999 e 2017, contrariando a tendência, as taxas de mortalidade entre homens e mulheres americanos de meia-idade em pessoas brancas não hispânicas e com idades entre 45-54 anos cresceram. Consequentemente, a expectativa de vida nos EUA, que vinha aumentando de forma sistemática, estagnou e, em seguida, caiu nos últimos anos (queda de 78,9 anos para 78,6 anos entre 2014 e 2016) (Woolf; Schoomaker, 2019WOOLF, Steven H.; SCHOOMAKER, Heide. Life expectancy and mortality rates in the United States, 1959-2017. JAMA, v. 322, n. 20, p. 1.996-2.016, 2019. DOI: 10.1001/jama.2019.16932. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7146991 /. Acesso em: 10 jan. 2021.
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). Isto significa dizer que o aumento da mortalidade na meia-idade, liderado por essas “mortes por desespero”, foi grande o suficiente para compensar os ganhos de mortalidade de crianças e idosos. Particularmente, as causas associadas a este aumento foram as intoxicações, em grande parte por opioides; suicídios; e mortes relacionadas ao álcool.

O que aconteceu e por que para esse subgrupo específico nos EUA é o tema de Deaths of Despair. Os autores destacam que, se a tendência de progresso do século XX tivesse se mantido de forma equitativa para a população americana, os EUA teriam sido poupados de aproximadamente 600 mil mortes - o equivalente às mortes por AIDS desde o início da epidemia, nos anos 1980. As mortes por desespero refletem a perda de um modo de vida a longo prazo e que se desenvolve lentamente. Neste aspecto, o aumento da mortalidade na meia-idade é o resultado de desvantagens cumulativas que ocorreram ao longo de décadas. A América sobre a qual Case e Deaton escrevem é um lugar intensamente ligado à classe, onde os menos educados experimentam taxas mais altas de doenças mentais graves, têm mais problemas com as “atividades instrumentais da vida diária” (p. 79, tradução nossa), como caminhar, e relatam mais dor. Em contrapartida, os americanos com diploma vivem mais, têm famílias mais estáveis, relatam vidas mais felizes e abusam de opioides e álcool com menos frequência. Mortes por desespero e o futuro do capitalismo retrata, neste sentido, a queda do sonho americano, o fracasso do capitalismo americano em proporcionar bem-estar a muitos.

Nossa história é principalmente sobre as forças externas que destruíram as bases que caracterizavam a vida da classe trabalhadora como era há meio século (...). É a perda de sentido, de dignidade, de orgulho e de respeito próprio que vem com a perda do casamento e da comunidade que traz desespero, não apenas ou principalmente a perda de dinheiro (p. 8, tradução nossa).

A obra reforça a teoria de que os comportamentos de saúde autodestrutivos podem estar associados a fatores sociais e econômicos subjacentes ao contexto de vida. De fato, é provável que as circunstâncias sociais e econômicas sejam os principais contribuintes para o aumento das mortes por desespero observado. Case e Deaton miram especificamente em homens e mulheres brancos sem nível superior. De fato, para a classe trabalhadora branca, os EUA se tornaram uma terra de famílias desfeitas e com poucas perspectivas de sobrevivência. Os autores vinculam a crise ao enfraquecimento dos vínculos de trabalho e dos movimentos organizados - como os sindicatos - e ao poder crescente das corporações.

O papel da determinação social da saúde é destacado pela observação de um gradiente social nas mortes por desespero: quanto menos anos de estudo, maior o risco de morte. Case e Deaton têm, no entanto, uma visão sobre a desigualdade de renda interessante e reforçada pela obra, argumentando que não há uma relação causal entre desigualdade de renda e mortes por desespero. Em vez disso,

são as forças mais profundas do poder, da política e da mudança social que estão causando a epidemia e a extrema desigualdade. Desigualdade e morte são consequências conjuntas das forças que estão destruindo a classe trabalhadora branca (p. 134, tradução nossa).

A distorção da riqueza e da renda em relação aos americanos mais ricos e às elites educadas ao longo do último meio século, com o auxílio de políticas e legislações governamentais, lentamente corroeu, ponderam Case e Deaton, os alicerces da vida da classe trabalhadora. A resposta, apontam os autores, requer refazer o sistema. Com isso, argumentam que as mudanças profundas neste sistema não estão apenas na taxação de fortunas e aumento de impostos das classes mais privilegiadas, mas também na garantia de medidas duras que impeçam a corrupção.

Além disso, Case e Deaton fazem especial análise sobre o sistema de saúde dos EUA, caracterizando-o como uma indústria de saúde. Os autores denunciam de forma explícita o sistema de saúde americano como uma perversão do capitalismo, possibilitada por uma aliança de lobistas e legisladores. Descrevem seus custos extraordinários e inadequados e classificam o sistema de saúde como parcialmente responsável pelas demissões ocorridas entre trabalhadores. Isto ocorre por redução das folhas de funcionários, desonerando das contas dos empregadores o seguro saúde dos empregados. Trata-se de um lucro politicamente protegido. Como exemplo, citam a relativamente recente epidemia de opioides na população americana e afirmam que as corporações lucraram explicitamente com a morte. Desta forma, não são apenas os opioides que estão invadindo a vida dos americanos da classe trabalhadora: é o sistema político que os prejudica.

É tentador tirar conclusões rápidas dessas descobertas. No entanto, esta análise exige um modelo teórico mais complexo, exatamente por ter como elemento central este efeito contextual (Diez-Roux, 2017ROUX, Ana V. D. Despair as a cause of death: more complex than it first appears. American Journal of Public Health, v. 107, n. 10, p. 1.566-1.567, out. 2017. DOI: 10.2105/AJPH.2017.304041. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5607706 /. Acesso em: 9 jan. 2021.
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). Por exemplo, Anne Case e Angus Deaton propõem que o aumento da mortalidade na meia-idade é o resultado de desvantagens cumulativas que ocorreram ao longo de décadas. Este efeito se tornou mais notável nos últimos anos porque tem ocorrido, geralmente, na população com baixa escolaridade, porém branca. Contudo, um padrão bem marcado na mortalidade nos EUA é o de que, apesar dos aumentos em brancos e declínios em negros, em 2015, as taxas de mortalidade em brancos é substancialmente menor do que em negros em todas as categorias e estratos sociais (incluindo renda, escolaridade e classe social).

A hipótese de Case e Deaton é a de que os negros nos EUA sempre sofreram desproporcionalmente com essas e outras ameaças à vida da classe trabalhadora, fornecendo uma explicação pronta para as taxas de mortalidade mais altas de negros do que de brancos nos EUA ao longo do século XX e ainda atualmente. Sobre este ponto, é importante notar que, quando os brancos da classe trabalhadora dos EUA tinham empregos estáveis, apoiados por sindicatos e relativamente bem pagos na indústria, e vida familiar e social estável, eles dispunham de condições consideravelmente melhores para uma vida saudável do que os negros. Estas vantagens foram sendo deterioradas, mas não completamente desfeitas; daí a redução, mas não a eliminação, da vantagem da população branca nos indicadores de mortalidade. Fato é que a comunidade negra foi a primeira a sofrer com as mudanças no sistema econômico, quando houve deslocamento de emprego em fábricas para população branca de menor escolaridade, ou quando os processos de gentrificação fecharam as portas dos pequenos negócios de família da população de renda média em grandes cidades (Marmot, 2020MARMOT, Michael G. Despair, democracy, and the failures of American capitalism. The Lancet, v. 395, n. 10.229, p. 1.027-1.028, 2020. DOI: 10.1016/S0140-6736(20)30640-1.
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). Não é coincidência que a população negra também foi o grupo mais atingido pelo custo social da primeira grande epidemia de overdose de drogas, causada pelo consumo de crack, no final da década de 1970. Quase 40 anos se passaram até que este padrão de adoecimento e adicção atingisse a população branca. A mensagem aqui, citando a escritora Lucy Nicholas, é que “Quando você está acostumado com o privilégio, a igualdade parece opressão” (Nicholas, 2017 NICHOLAS, Lucy. Beyond quiet tolerance to diversity perspectives: when you’re accustomed to privilege, equality feels like oppression. Ethos, v. 25, n. 4, p. 9-11, 2017. Disponível em: https://search.informit.org/doi/10.3316/informit.325212638376085 . Acesso em: 24 ago. 2021.
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, p. 9, tradução nossa). O resto, literalmente, é História.

Uma outra questão que precisa ser ponderada na obra é que, apesar de todas as suas críticas, os autores escreveram sobre o futuro do capitalismo, não apenas sobre seu fracasso. Ao olhar para as evidências de vários estados americanos, eles mostram que “a pobreza não é a fonte do aumento de mortes por desespero” (p. 137, tradução nossa). Por outro lado, a crise financeira é apontada como uma das responsáveis por esta instabilidade econômica.

Se não é a pobreza a grande responsável pelo cenário das mortes por desespero, a ideia de desigualdade atrelada ao achatamento das condições de vida da população de maior vulnerabilidade socioeconômica ao longo do tempo certamente o é. Uma vez que a desigualdade e a formação de classes são fundamentos do capitalismo, que saída é possível dentro desta bolha?

Superficialmente, os autores defendem pautas como seguro saúde universal, reformas na governança corporativa e o uso de tratamentos alternativos não opioides para dor crônica. No entanto, a dimensão dada a estas soluções não parece corresponder à escala e à complexidade dos problemas descritos pelos autores. Dito isso, é importante contextualizar a posição dos autores. Case e Deaton são simpáticos às perspectivas progressistas, mas são reticentes ao atribuir ao sistema econômico causa, mesmo que parcial, para este fenômeno. Assim, na visão compartilhada pelos autores, o capitalismo pode ser “melhor monitorado e regulado” e não deve “ser substituído por alguma utopia socialista fantástica em que o estado assume o controle da indústria, pois a democracia pode enfrentar o desafio” (p. 162, tradução nossa).

Por definição, o socialismo é uma visão sobre a democracia. É desinteressante, na melhor das hipóteses, concluir que qualquer alternativa ao capitalismo trazida pelo socialismo seja utópica ou fantástica. Os autores assumem como certa a ideia de ‘democracia’ com a qual se sentem confortáveis, fortemente amarrada ao capitalismo. E, com isso, de forma despretensiosa (mas não ingênua), desconsideram qualquer forma de prática social isonômica e fora da propriedade privada que fosse possível para o mundo atual.

Ao fim e ao cabo, as evidências apresentadas pela obra ajudam cientistas e políticos a reconhecer que a saúde é afetada por muito mais do que cuidados médicos, e que mesmo os comportamentos são condicionados pelo contexto social e econômico. Contudo, é importante perceber que há um contexto bastante específico que legitima esta observação. Os autores, economistas, sucintamente apresentam a questão da saúde pública da perspectiva do sistema de saúde e não avançam na determinação social do processo saúde-doença - embora não pretendessem explorar esta dimensão, já que não são analistas sociais. Este aspecto é bem marcado com a notável discrepância entre a robustez diagnóstica traçada ao longo da obra e as proposições em seus comentários finais. A análise deste fenômeno em outras realidades deve considerar distintas visões de mundo, estrutura social, contexto de sistema de saúde e organização político-econômica.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2021
  • Aceito
    19 Ago 2021
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