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Medida provisória n. 905/2019 Programa Verde Amarelo: a reforma dentro da reforma trabalhista

No dia 12 de novembro de 2019, o Presidente Jair Bolsonaro editou a medida provisória (MP) n. 905/2019, que institui o “contrato de trabalho verde e amarelo” e promove outras alterações na legislação trabalhista brasileira (Brasil, 2019BRASIL. Medida Provisória n. 905, de 11 de novembro de 2019. Institui o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, altera a legislação trabalhista, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 nov. 2019. Edição 219, Seção 1, p. 5. Disponível em: < www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-905-de-11-de-novembro-de-2019-227385273 >. Acesso em: 2 dez. 2019.
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).

A MP teve por finalidade, declarada na explicação da ementa, a geração de empregos para trabalhadores que tenham entre 18 e 29 anos de idade. Essa finalidade, supostamente, seria alcançada mediante uma figura contratual mais precária, estabelecida por prazo determinado e com severas restrições de direitos, com possibilidade de abarcar contratos criados até 2022.

No ensejo da MP 905/2019, o Poder Executivo, para além da situação específica dos alcançados pela nova modalidade contratual, também promoveu uma série de alterações na legislação trabalhista e previdenciária. Tais alterações se qualificam como uma nova etapa da reforma trabalhista iniciada em 2017, em que se destacaram, notadamente, não só a incidência de contribuição previdenciária sobre o seguro-desemprego, mas também a liberação do trabalho aos sábados para a categoria bancária e aos domingos para todas as categorias, assim como limitações objetivas e procedimentais à atuação da fiscalização do trabalho e do Ministério Público do Trabalho.

A reforma trabalhista e seus desdobramentos

É importante situar a MP 905/2019 dentro de um contexto mais amplo de recrudescimento do neoliberalismo no Brasil, que envolveu, desde 2016, o congelamento dos gastos públicos por vinte anos (emenda constitucional n. 95/2016); as leis n. 13.429/2017 e 13.467/2017 (respectivamente leis de Terceirização e da Reforma Trabalhista); e, após a ascensão ao poder do Presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro, a extinção do Ministério do Trabalho e Emprego; a edição da medida provisória da liberdade econômica (convertida na lei n. 13.874/2019); a edição da medida provisória n. 873/2019 (que dificultava o procedimento para arrecadação da contribuição sindical e que, ao fim do seu prazo de vigência, caducou sem ser convertida em lei); e a aprovação da Reforma da Previdência (EC n. 103/2019), com regressão de benefícios previdenciários e ampliação dos requisitos para a aposentadoria por idade.

As diretrizes contidas na reforma trabalhista de 2017, que projetava uma perspectiva neoliberal, são radicalizadas a partir de 2019, com o novo governo, quando se concretiza, simbólica e materialmente, o desmonte da tela pública de proteção ao trabalho delineada pela Constituição de 1988, por meio da extinção do Ministério do Trabalho e de uma política ofensiva aos sindicatos e à participação da sociedade civil nas decisões políticas, assim como por um discurso público, compartilhado pelo Presidente da República, seus Ministros e parlamentares da base de apoio do governo, em favor da desconstrução dos ‘excessos paternalistas’ supostamente presentes, segundo os citados, na legislação trabalhista brasileira.

O governo editou, ainda no primeiro semestre de 2018, a MP da Liberdade Econômica (posteriormente convertida na lei n. 13.874/2019), que aprofunda o conteúdo da reforma trabalhista, estipulando, entre outras medidas, a possibilidade de controle de ponto por exceção, criando a carteira de trabalho eletrônica e modificando os procedimento de registro e anotações, em detrimento do simbólico instrumento que vigia desde a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Entretanto, diversas medidas sobre jornada e repousos que haviam constado da medida provisória não foram chanceladas pelo Congresso Nacional (a exemplo da autorização irrestrita para trabalho aos domingos, citada a seguir).

A despeito da derrota parcial e do acirramento da conjuntura política na América Latina em relação às políticas neoliberais, o governo Jair Bolsonaro deu continuidade a duas de suas plataformas de campanha: a reforma previdenciária e a carteira de trabalho verde e amarela.

A segunda veio a ser implementada por meio da medida provisória 905, que, além de trazer a lume a tão prometida figura contratual ‘verde e amarela’, amparando-se novamente na premissa de que menos direitos assegurarão mais empregos, dobra a aposta em relação ao desmonte da legislação trabalhista. Essa MP recupera, inclusive, modificações constantes da MP da Liberdade Econômica, que já haviam sido refutadas pelo parlamento quando da sua conversão na lei n. 13.874/2019. É o caso da vigência atual de previsão legal que libera o trabalho aos domingos e feriados sem restrições (artigo 68, parágrafos 1º e 2º, da CLT, com a redação dada pela MP 905): o poder executivo já havia proposto MP nesse sentido, que foi rejeitada nessa parte, mas reeditou o referido conteúdo via MP 905.

A MP 905/2019

O cerne da MP – o contrato de trabalho verde e amarelo – nada mais é do que a criação de figura contratual precária como forma de geração de empregos, tal como ocorrera na década de 1990 com o contrato provisório do trabalho (lei n. 9.601). A promessa é de que os jovens em primeiro emprego possam ser absorvidos pelos empregadores por meio desses contratos, desde que, ao fazê-lo, fique demonstrado que os contratantes excederam o número de empregados verificados entre janeiro e outubro de 2019.

Os trabalhadores submetidos a esse regime não poderão corresponder a mais de 20% do quadro de empregados de cada empresa e terão contratos de 24 meses (independentemente da finalidade da contratação), com recolhimentos de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) em alíquotas inferiores (2%, e não 8%), multa por rescisão contratual equivalente à metade da devida aos demais empregados (20% dos depósitos de FGTS, e não 40%), e esvaziamento da importância social do direito de férias e 13º salário, cujas remunerações serão feitas de forma parcelada, a cada mês trabalhado.

A MP prevê ainda a possibilidade de contratação de seguro em favor desses empregados, hipótese em que o adicional de periculosidade, se incidente, seria pago na fração de 5% do salário-base, limitando tal incidência àquelas situações em que o trabalhador fique exposto ao risco por mais de 50% da sua jornada, o que não ocorre em relação aos demais trabalhadores. Mais grave, os empregadores que contratem nessa modalidade terão plena isenção em relação às contribuições previdenciárias, o que é completamente contraditório com o suposto cenário de crise de arrecadação previdenciária sustentado pelo governo.

Importa registrar por fim que, encerrado o prazo regimental para apresentação de emendas pelos parlamentares, foram apresentadas 1.930 emendas à MP 905/2019, que foi objeto de mandado de segurança por parlamentares do partido pela Rede Sustentabilidade. Os parlamentares do referido partido reputaram que a medida fere o devido processo legislativo, visto que avança sobre temas a serem, a rigor, tratados por meio de lei complementar. A MP foi ainda objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada pelo partido Solidariedade, questionando a constitucionalidade de diversos dispositivos do instrumento legal.

Algumas notas sobre neoliberalismo, crise democrática e a institucionalização da precarização

Conforme referido anteriormente, a MP 905/2019 é uma das expressões do recrudescimento do neoliberalismo no Brasil, que, na sua fase atual, tem buscado esvaziar a democracia do seu conteúdo político e social. Assim, as políticas neoliberais são orientadas por uma estratégia de ‘desdemocratização’, cujo resultado tem sido o questionamento da soberania popular em benefício do mercado, tal como abordam Dardot e Laval (2016b)DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. O neoliberalismo, um sistema fora da democracia. Revista Fevereiro: Política, Cultura e Teoria, São Paulo, n. 9, 2016b. Disponível em: < https://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=09&t=18 >. Acesso em: 6 dez. 2019.
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Neste cenário, observa-se que as inovações legislativas trabalhistas, como a MP em tela, são indicativas de uma nova política de Estado que, sob a égide do neoliberalismo, institui, por um lado, o desmantelamento do sistema de proteção social e, por outro lado, promove a edição de normas legais e de conduta que disseminam a concorrência e transferem para os trabalhadores os riscos inerentes ao trabalho. Há nesse processo um esvaziamento das concepções tradicionais de cidadania; os trabalhadores passam a ser tratados como empreendedores e provedores dos meios necessários para maximizar seus resultados (Dardot e Laval, 2016aDARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016a.).

Registra-se, ainda, que a MP 905/2019 aprofunda e institucionaliza a precarização do trabalho para um segmento que, tradicionalmente, vivencia o desemprego ou a inserção precária no mercado de trabalho de forma mais vulnerável. A título de exemplo, no caso do desemprego, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Contínua informa que, no segundo trimestre de 2019, a taxa do desemprego foi de 12%. Entre o segmento de 18 a 24 anos, essa taxa atingiu o patamar de 31,6%. Ou seja, o desemprego nesse segmento é mais do que o dobro da taxa da população em geral, atingindo 4,1 milhões de jovens de 18 a 24 anos de idade (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Indicadores IBGE: pesquisa nacional por amostra de domicílio contínua: segundo trimestre de 2019: abr./jun. 2019. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2421/pnact_2019_2tri.pdf >. Acesso em: 7 dez. 2019.
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).

Por fim, questionamos: a criação de uma figura contratual mais precária (por prazo determinado e com severas restrições de direitos) será, de fato, capaz de alavancar o emprego entre os jovens? A experiência brasileira recente com a reforma trabalhista de 2017 (lei 13.467/2017) nos leva a desconfiar deste tipo de iniciativa. A retirada de direitos e a institucionalização da precarização promovida pela referida reforma não gerou a quantidade de empregos esperados ou prometidos. Um ano após a aprovação da referida lei, o país ainda contava com um contingente expressivo de 12 milhões de desempregados (Druck, Dutra e Silva, 2019DRUCK, Graça; DUTRA, Renata; SILVA, Selma Cristina. A contrarreforma neoliberal e a terceirização: a precarização como regra. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 289-305, maio/ago. 2019.).

Referências

  • BRASIL. Medida Provisória n. 905, de 11 de novembro de 2019. Institui o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, altera a legislação trabalhista, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 nov. 2019. Edição 219, Seção 1, p. 5. Disponível em: < www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-905-de-11-de-novembro-de-2019-227385273 >. Acesso em: 2 dez. 2019.
    » www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-905-de-11-de-novembro-de-2019-227385273
  • DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016a.
  • DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. O neoliberalismo, um sistema fora da democracia. Revista Fevereiro: Política, Cultura e Teoria, São Paulo, n. 9, 2016b. Disponível em: < https://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=09&t=18 >. Acesso em: 6 dez. 2019.
    » https://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=09&t=18
  • DRUCK, Graça; DUTRA, Renata; SILVA, Selma Cristina. A contrarreforma neoliberal e a terceirização: a precarização como regra. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 289-305, maio/ago. 2019.
  • Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Indicadores IBGE: pesquisa nacional por amostra de domicílio contínua: segundo trimestre de 2019: abr./jun. 2019. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2421/pnact_2019_2tri.pdf >. Acesso em: 7 dez. 2019.
    » https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2421/pnact_2019_2tri.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2019
  • Aceito
    16 Dez 2019
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