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Negacionismo científico: do debate epistemológico à luta de classes

Resumo

O texto debate o negacionismo científico com base em duas referências principais. A primeira é de ordem epistemológica e remete ao discurso pós-moderno sobre a ciência, com sua relativização dos critérios de busca e definição da verdade. Compreende, no entanto, que, contemporaneamente, esse fenômeno ultrapassa os espaços de discussão científica, atingindo o conjunto da sociedade. Para dar conta dessa particularidade, tem, como segunda referência, discussões sobre o processo de formação de opiniões, concepções de mundo e convicções do que o filósofo italiano Antonio Gramsci chamou de ‘homem do povo’. São usados, para esse fim, o conceito de senso comum, do mesmo pensador e militante sardo, e a teorização de Agner Heller sobre como a adesão aos diferentes conhecimentos que atravessam o cotidiano das pessoas depende de sentimentos de identidade como a fé (não religiosa) e a confiança que, segundo a autora, têm motivações e efeitos distintos. Defende, por fim, que é preciso reafirmar a objetividade como um critério da ciência no debate epistemológico, mas que é igualmente necessário enfrentar esse problema no terreno da luta de classes, fortalecendo relações orgânicas de identidade e confiança como parte da disputa de hegemonia.

Palavras-chave:
negacionismo científico; verdade; hegemonia; organização popular

Abstract

This text debates scientific denialism based on two main references. The first is of an epistemological nature and refers to the postmodern discourse on science, with its relativization of the criteria for the search and definition of truth. It comprises, however, that, at the same time, this phenomenon goes beyond the spaces of scientific discussion, reaching the whole of society. To account for this particularity, it has, as a second reference, discussions about the process of formation of opinions, worldviews and convictions of what the Italian philosopher Antonio Gramsci called the ‘man of the people’. For this purpose, the concept of common sense, from the same Sardinian thinker and militant, and the theorization of Agner Heller on how adherence to the different knowledge that crosses people’s daily lives depends on feelings of identity such as faith (non-religious) and trust, which, according to the author, have different motivations and effects. Finally, it argues that it is necessary to reaffirm objectivity as a criterion of science in the epistemological debate, but that it is equally necessary to face this problem in the field of class struggle, strengthening organic relations of identity and trust as part of the dispute for hegemony.

Keywords:
scientific denialism; truth; hegemony; popular organization

Resumen

El texto debate el negacionismo científico a partir de dos referencias principales. La primera es de carácter epistemológico y remite al discurso posmoderno sobre la ciencia, con su relativización de los criterios de búsqueda y definición de la verdad. Entiende, sin embargo, que, actualmente, este fenómeno trasciende los espacios de discusión científica, alcanzando al conjunto de la sociedad. Para dar cuenta de esta particularidad, tiene, como segunda referencia, discusiones sobre el proceso de formación de opiniones, concepciones de mundo y convicciones de lo que el filósofo italiano Antonio Gramsci denominó el ‘hombre del pueblo’. Para ello, se utiliza el concepto de sentido común, del mismo pensador y militante sardo, y la teorización de Agner Heller sobre cómo la adhesión a los diferentes saberes que atraviesan la vida cotidiana de las personas depende de sentimientos de identidad como la fe (no religiosa) y la confianza, que, según la autora, tienen distintas motivaciones y efectos. Finalmente, argumenta que es necesario reafirmar la objetividad como un criterio de la ciencia en el debate epistemológico, pero que es igualmente necesario enfrentar este problema en el campo de la lucha de clases, fortaleciendo relaciones orgánicas de identidad y confianza como parte de la disputa por la hegemonía.

Palabras clave:
negacionismo científico; verdad; hegemonía; organización popular

No momento em que este texto está sendo escrito, pesquisadores que se tornaram importantes fontes de informação sobre a pandemia de Covid-19 divergem, no espaço público dos jornais e das redes sociais, sobre a flexibilização do uso de máscaras em algumas cidades brasileiras.1 Financing Not applicable. E esse é apenas mais um entre os muitos momentos em que, diante das novidades trazidas pela crise sanitária, as ‘vozes da ciência’ discordam sobre ‘diagnósticos’ ou medidas de proteção coletiva e individual. Ainda que não se espere que o comportamento da maior parte da população seja um reflexo direto das prescrições de cientistas, é preciso reconhecer que a pandemia ampliou, pelo menos temporariamente, a penetração do debate científico no cotidiano das pessoas. E, embora, por definição, o conhecimento que se mobiliza para a vida cotidiana seja do tipo que dispensa provas (Heller, 2004 HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. ), é compreensível que, na miscelânia de referências, ideias e preocupações que compõem o senso comum, tal como Gramsci (2004GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2004.) nos ensinou, tenha se tornado inevitável a pergunta sobre, afinal, de que lado (das muitas incertezas e polêmicas) está a verdade.

Se quisermos, essa mesma questão pode tomar novas formas, tornando-se uma dúvida epistemológica, por exemplo, sobre qual verdade corresponderia ao correto método científico. Ou ainda, nas palavras de Jean-François Lyotard, no livro que é considerado por muitos como fundante do pensamento pós-moderno, poderia se traduzir na pergunta: “quem decide sobre o que é verdadeiro?” (Lyotard, 2009LYOTARD, Jean F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009., p. 54). Seja na forma de dúvida prática do senso comum, seja na formulação provocativa no espaço acadêmico, esse ambiente de incertezas não deve ser confundido com o que chamamos, nos últimos tempos, de ‘negacionismo científico’, que, numa espécie de combo conceitual, hoje se identifica como expressão de uma suposta era da ‘pós-verdade’, potencializada pela indústria de fake news. Por outro lado, a variedade de usos e interpretações sobre os limites da dúvida no discurso da ciência talvez nos forneça pistas que ajudem a compreender esse fenômeno.

Diríamos, primeiro, que um certo tipo de ancestral do que hoje chamamos de negacionismo remete aos anos 1960, quando, no âmbito de um debate que se pretendia científico, ganhou espaço o questionamento sobre a veracidade dos horrores provocados pelo nazismo (Calil, 2020CALIL, Gilberto. Brasil: o negacionismo da pandemia como estratégia de fascistização. Materialismo Storico: Rivista di Filosofia, Storia e Scienze Umane, Urbino, v. 9, n. 2, p. 70-122, 2020. https://doi.org/10.14276/2531-9582.2470. Disponível em: https://journals.uniurb.it/index.php/materialismostorico/article/view/2470. Acesso em: 10 abr. 2022.
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). Apresentando-se também como um esforço de ‘revisionismo histórico’, que aposta na revisão de literatura e na descoberta de novas fontes, entre outros mecanismos próprios da historiografia, esse processo logo foi desmascarado como um negacionismo explícito que, muitas vezes reivindicando a objetividade científica, sustentou, por exemplo, o argumento de que não havia provas da existência das câmaras de gás nos campos de concentração nazistas. Já no final da década de 1980, ganhou destaque no cenário mundial outra expressão de processo semelhante: quando não havia mais dúvidas científicas sobre os graves efeitos do aquecimento global e suas causas prioritariamente antropogênicas, ou seja, derivadas da ação humana, grandes conglomerados empresariais que seriam atingidos pela redução das emissões de carbono passaram a financiar instituições e pesquisadores cuja tarefa era negar o inegável.

Recorrer a essa breve trajetória sobre as origens do fenômeno contemporâneo, no entanto, requer um alerta metodológico que, neste texto, tem uma importância central. Afinal, negar consensos científicos em torno de temas como o Holocausto e o aquecimento global não é o mesmo que negar a ciência. Assim, identificar no negacionismo histórico e no negacionismo climático uma espécie de antecedentes do processo mais amplo que vivemos hoje nos parece um movimento promissor, mas que precisa ser feito com cautela, compreendendo-se que, nesse caso, o sentido do adjetivo usado para o termo ‘negacionismo’ se desloca. Vejamos mais de perto.

Claro que a gravidade do tema e a percepção da sua instrumentalização política nos autorizam a tratá-lo como uma falsificação da ciência, mas, ainda assim, o fato é que as ‘versões alternativas’ que marcam os discursos negacionistas são ‘vendidas’ como se ciência fossem. Afinal, o que explicaria a emergência de ‘gurus’ da extrema-direita política senão a necessidade de legitimar, mundialmente, uma espécie de ‘espaço acadêmico do B’? Pode parecer contraditório, mas é importante atentar que o movimento pelo qual se questionam e deslegitimam consensos científicos não defende que as pessoas joguem a ciência na lata de lixo da história. Trata-se de provocar a dúvida e a desconfiança sobre uma certa ciência, restrita a certos grupos de pesquisadores, em certas instituições que, de forma proposital, passam a ser associadas a certos ‘interesses escusos’.

Vejamos alguns exemplos. Claro que exercícios discursivos diversos já tentaram substituir a palavra ‘ditadura’ por expressões mais leves, mas, em geral, não se nega que a América Latina viveu regimes políticos de exceção, com recurso excepcional ao uso da força. A estratégia mais comum tem sido não negar, mas amenizar os crimes da ditadura e, principalmente, justificar, com dados (descontextualizados) e fontes (interessadas), sua necessidade histórica - o argumento mais usado, com variações mais ou menos ‘documentadas’, é que os golpes foram respostas, desejadas pelas populações, à iminência de uma invasão comunista nesses países. Da mesma forma, fora dos espaços religiosos, não se questiona mais o consenso em torno das descobertas de Darwin contrapondo-as ao criacionismo de Adão e Eva, mas reivindicando a ‘teoria’ do Design Inteligente, que se reveste de um verniz científico para defender que a vida não pode ser resultado do acaso, como diria a teoria da evolução, e sim de uma ação inteligente e intencional - chame você isso de Deus ou não. Que quase ninguém conheça essa ‘teoria’, pouco importa: para os efeitos políticos esperados, essa estratégia é eficaz, abalando as certezas e a legitimidade dos consensos estabelecidos com a mera introdução de uma outra possibilidade de verdade, apresentada como tão científica quanto as demais. Uma espécie de verdade ‘a la carte’.

Se como estratégia de mobilização política de massas esse é um fenômeno novo, no debate interno ao campo científico, essa elasticidade da concepção de verdade e, ainda mais, a compreensão da ciência como um espaço de disputa em que o critério de veracidade são as relações de poder e não a realidade objetiva, já são nossas velhas conhecidas. O mesmo Lyotard, citado (não por acaso) no início deste texto, desde 1979 vocalizava a dúvida epistemológica que marcaria o pensamento pós-moderno com a pergunta: “(...) o que eu digo é verdadeiro porque o provo; mas o que prova que a minha prova é verdadeira?” (Lyotard, 2009LYOTARD, Jean F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009., p. 54).

Nosso desafio contemporâneo passa por afirmar que, um século antes, Marx não teria dúvidas em responder essa questão e, meio século depois, os marxistas de hoje também não devem ter: quem ‘prova a prova’ é a realidade objetiva, aquela que existe independentemente do sujeito do conhecimento. Como explica a bela síntese que Netto nos oferece, para Marx a teoria é a “reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa” (Netto, 2011NETTO, José P. (org.). Introdução ao estudo do método em Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 21), o que significa que as verdades que a ciência busca têm um referente externo, uma “instância de verificação”. Defender isso não é ignorar que a vida social (inclusive o fazer científico) é atravessada por relações de poder (e de classe). Logo, Marx sabe, por exemplo, que nas ciências sociais, diferente das teorias da natureza, o sujeito, como parte da sociedade que é, está sempre implicado no objeto, mas isso nem de longe elimina a objetividade que caracteriza (e diferencia) o conhecimento que se pretende científico. Nas ciências sociais, como nos explica Netto (2011NETTO, José P. (org.). Introdução ao estudo do método em Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 23), a “instância de verificação” é a prática social e histórica - o que significa que a dúvida que abre este texto, sobre de que lado está a verdade na polêmica dos pesquisadores a respeito da flexibilização ou não do uso de máscara em meio à pandemia, vai se esclarecer quando os dados epidemiológicos mostrarem objetivamente, no tempo, quais foram os resultados concretos dessa medida. Claro que, nessa ‘conferência’, surgirão outras questões, que serão objeto de novas dúvidas e polêmicas, num processo que acompanha o movimento da História. De todo modo, continua valendo o exemplo de Eagleton, com seu conhecido senso de humor: “Todas as verdades são estabelecidas a partir de pontos de vista específicos; mas não faz sentido dizer que há um tigre no banheiro do meu ponto de vista, mas não do seu” (Eagleton, 2016 EAGLETON, Terry. Depois da teoria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 150).

Sabemos, no entanto, que afirmações como essas - que nenhum dos muitos atores que hoje repassam fake news negacionistas cotidianamente recusaria - passaram a ser contestadas por uma geração de intelectuais a partir dos anos 1960. No esforço de mapear as filiações da ‘era da pós-verdade’ - da qual o negacionismo científico é uma das expressões -, Oliveira (2018 OLIVEIRA, Marcos B. Pós-verdade: filha do relativismo científico? In: Blog. Outras Palavras. São Paulo, 15 jan. 2018. Atualizado em 21 dez. 2018. Disponível em: https://outraspalavras. net/tecnologiaemdisputa/pos-verdade-uma-filha-do-relativismo-cientifico/. Acesso em: 10 abr. 2022.
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) associa essa compreensão sobre o processo de produção do conhecimento não apenas ao pensamento pós-moderno, mas, mais especificamente, à ‘corrente’ ‘Ciência, Tecnologia e Sociedade’, uma espécie de vertente epistemológica da pós-modernidade, que, no seu Programa Forte, construído em 1976, se apresenta como uma “ciência da ciência” ou “um estudo empírico da ciência” (Bazzo; von Linsingen e Pereira, 2003 BAZZO, Walter A.; VON LISINGEN, Irlan; PEREIRA, Luiz. T. V. Introdução aos estudos CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade). Cadernos de Ibero-América. Madri: Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), 2003. Disponível em: https://bityli.com/wAMKsy. Acesso em: 10 abr. 2022.
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, p. 23). Desdobra-se daí o discurso de uma espécie de ‘construtivismo social’ que, com muitas variações entre países e autores, defende, em última instância, que o conhecimento e a ciência são uma construção social. Wood (1999WOOD, Ellen. O que é a agenda “pós-moderna?”. In: WOOD, Ellen; FOSTER, John B. Em defesa da história: Marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 7-22.) nos ajuda a caracterizar:

À primeira vista, essa insistência na construção social do conhecimento talvez pareça irrepreensível e mesmo convencional, e não menos para os marxistas, que sempre reconheceram que nenhum conhecimento humano nos chega sem mediação, que todo conhecimento é absorvido através da língua e da prática social. Os pós-modernistas, no entanto, parecem ter em mente algo mais extremo que essa proposição razoável. (...) os pós-modernistas têm o hábito de fundir as formas de conhecimento com seus objetos: é como se dissessem não apenas que, por exemplo, a ciência da física é um constructo histórico, que variou no tempo e em contextos sociais diferentes, mas que as próprias leis da natureza são “socialmente construídas” e historicamente variáveis. (Wood, 1999WOOD, Ellen. O que é a agenda “pós-moderna?”. In: WOOD, Ellen; FOSTER, John B. Em defesa da história: Marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 7-22., p. 11-12)

Dito isso, voltamos ao nosso ponto: é igualmente importante identificar as diferenças entre essa crise epistemológica que vem do passado e o fenômeno social, popularizado, que vivenciamos no presente. Com todas as mediações necessárias, supomos que o grande diferencial do que se experimenta hoje é o fato de esse processo ter ultrapassado os espaços acadêmicos e político-institucionais e chegado a um conjunto mais amplo da sociedade, abalando e disputando o senso comum. Nessa passagem, aliás, o negacionismo muitas vezes ganha formas populares de comunicação - como os memes e vídeos alarmantes ou pretensamente engraçados que circulam nas redes sociais -, o que, de certa forma, dificulta a percepção do quanto, para além dessa aparência grotesca, esse movimento reivindica também elementos e metodologias próprias do discurso científico.

Mas por que será que, nos nossos tempos, esse processo ultrapassa os muros acadêmicos, se dissemina, convence e mobiliza? Entre as múltiplas determinações desse salto qualitativo e quantitativo, há certamente ‘razões’ econômicas relacionadas às mudanças na forma de acumulação do capital e na sua dimensão política, além de outros aspectos que, no entanto, ultrapassam os limites deste texto. Resta-nos aqui sugerir que, na expressão atual, esse fenômeno denota uma crise, que atinge em cheio a ciência e a concepção de verdade, mas que é, sobretudo, uma crise de legitimidade e credibilidade das instituições que mediavam essa relação da sociedade com o conhecimento formal - seja ele científico, legal ou de outra ordem. Trata-se, nas palavras de Cesarino (2021CESARINO, Letícia. Pós-verdade e a crise do sistema de peritos: uma explicação cibernética. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 73-96, 2021. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75630. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/75630/45501. Acesso em: 10 abr. 2022.
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) - referindo-se à ‘era da pós-verdade’-, de uma “crise do sistema de peritos” da Modernidade, uma espécie de quebra no pacto social que tinha como principais fiadores a “ciência, a imprensa profissional e as instituições do estado democrático de direito” (Cesarino, 2021CESARINO, Letícia. Pós-verdade e a crise do sistema de peritos: uma explicação cibernética. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 73-96, 2021. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75630. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/75630/45501. Acesso em: 10 abr. 2022.
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, p. 79).

Completa essa análise a percepção de que as ‘verdades alternativas’ que expressam essa crise encontram espaço de disseminação nos novos meios digitais que, mais do que canais de transmissão, representam uma outra lógica de produção e distribuição de informações e conteúdos - além, claro, de se desenvolverem como um modelo de negócios inovador. Como se sabe, o surgimento da internet foi responsável por uma forte expectativa libertária: acreditava-se que, finalmente, uma comunicação que funcionava em rede, com múltiplos polos produtores, conseguiria furar os bloqueios centralizadores da comunicação de massa. Hoje, como denuncia Seto (2019SETO, Kenzo S. A economia política das mídias algorítmicas. 2019. 148f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019., p. 11), a internet quase se reduziu às plataformas privadas de redes sociais, controladas por grandes conglomerados empresariais, que organizam a comunicação e a interação em bolhas de interesse mapeados e incentivados por algoritmos digitais. Do ponto de vista tecnológico, esse ambiente facilita a circulação de mensagens sem a credibilidade antes atribuída pelas instituições que compunham o sistema de peritos de que nos fala Cesarino (2021CESARINO, Letícia. Pós-verdade e a crise do sistema de peritos: uma explicação cibernética. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 73-96, 2021. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75630. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/75630/45501. Acesso em: 10 abr. 2022.
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) e, ao mesmo tempo, promove a ilusão de uma participação efetiva, como se a possibilidade de cada um produzir a sua própria mensagem (seu post) tivesse efeito quantitativo e qualitativo, traduzindo-se numa maior horizontalidade das trocas sociais. Apesar de as expectativas democratizantes terem se mostrado ilusórias, as redes sociais e seus algoritmos tornaram-se capazes de simular um ambiente de ‘confiança mútua’ marcado tanto pela identidade de interesses e visões de mundo quanto pela oposição a tudo que se encontra fora das bolhas artificialmente construídas. Aliás, para sermos mais precisos, talvez seja prudente nos referirmos a um ambiente de “fé” (não religiosa), que Agnes Heller define como um sentimento que mobiliza a adesão das pessoas a opiniões e concepções de mundo mesmo quando elas estão em contradição com o saber, ou seja, quando resistem a evidências (Heller, 2004 HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. , p. 47-48).

Por fim, é inevitável nos perguntarmos sobre o que fazer. A má notícia é que essa resposta está sendo construída ‘a quente’, ao mesmo tempo como parte do debate epistemológico e das lutas sociais concretas. Afinal, como lembra Morel (2021MOREL, Ana P. M. Negacionismo da Covid-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.19, 2021, e00315147. https://doi.org/10.1590/1981-7746- sol00315. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/pnVbDRJBcdHy5K6NSc4X65f/?lang=pt. Acesso em: 10 abr. 2022
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), “o fundo dessa guerra” denota mais um “‘déficit de prática comum’” do que um “‘déficit de conhecimento’”. “Mais do que corrigir uma falha de pensamento, seria preciso, portanto, partilhar desafios comuns, vislumbrando um panorama a ser explorado conjuntamente” (Morel, 2021MOREL, Ana P. M. Negacionismo da Covid-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.19, 2021, e00315147. https://doi.org/10.1590/1981-7746- sol00315. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/pnVbDRJBcdHy5K6NSc4X65f/?lang=pt. Acesso em: 10 abr. 2022
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, p. 7). Logo, o desfecho desse cenário dependerá não apenas dos debates travados na academia, mas principalmente da correlação de forças que atuam (ou se omitem) na disputa de hegemonia em vigor. A ‘boa nova’ é que existem desafios, mas também há acúmulo de teoria e prática: ainda no início do século passado, Gramsci (2004GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2004.) nos alertou que homens e mulheres comuns, do povo, não constroem suas opiniões e concepções de mundo prioritariamente mediante argumentos racionais, mas sim através de relações de identidade e confiança ‘nos seus’ (Gramsci, 2004GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2004., p. 109). É urgente, portanto, que atores, instituições, organizações e projetos de mundo comprometidos com a transformação social mobilizem-se, não para uma mera disputa de narrativas que busque adesão pela , mas para ocupar um lugar orgânico de confiança dos trabalhadores no cenário da luta de classes atual. E, com isso, quem sabe, incluir definitivamente na pauta das lutas sociais a máxima que Gramsci um dia elegeu como epígrafe do jornal do Partido Comunista Italiano: “a verdade é revolucionária”.

Referências

  • BAZZO, Walter A.; VON LISINGEN, Irlan; PEREIRA, Luiz. T. V. Introdução aos estudos CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade). Cadernos de Ibero-América Madri: Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), 2003. Disponível em: https://bityli.com/wAMKsy Acesso em: 10 abr. 2022.
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  • CALIL, Gilberto. Brasil: o negacionismo da pandemia como estratégia de fascistização. Materialismo Storico: Rivista di Filosofia, Storia e Scienze Umane, Urbino, v. 9, n. 2, p. 70-122, 2020. https://doi.org/10.14276/2531-9582.2470. Disponível em: https://journals.uniurb.it/index.php/materialismostorico/article/view/2470 Acesso em: 10 abr. 2022.
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  • CESARINO, Letícia. Pós-verdade e a crise do sistema de peritos: uma explicação cibernética. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 73-96, 2021. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75630. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/75630/45501 Acesso em: 10 abr. 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2022
  • Aceito
    27 Abr 2022
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