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O proeja e a proposta de integração curricular: dispositivos analisadores da educação

Proeja and the curriculum integration proposal: analyzer devices of education

El proeja y la propuesta de integración curricular: dispositivos analizadores de la educación

Resumos

O artigo desenvolve a ideia de que o currículo integrado e a educação de jovens e adultos, associados no Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos, funcionam como analisadores, evidenciando o modo como a educação se constitui e torna possível o surgimento de outras formas de organização do fazer pedagógico. A proposta de integração curricular contida nesse programa possibilita colocar em discussão o modo como a educação tem organizado suas relações, suas práticas, seus tempos e seus espaços. Permite, ainda, ultrapassar os discursos que reafirmam a necessidade de adaptação dos projetos pedagógicos da educação 'regular' às especificidades do aluno da educação de jovens e adultos, questionando outras modalidades da educação. Além de problematizar o potencial transformador do currículo integrado, o texto analisa as reações e os movimentos suscitados nos embates entre o instituído e o instituinte, os quais podem tanto intensificar quanto reduzir a propriedade crítica da proposta, procurando torná-la equivalente às formas sociais já existentes. Conclui destacando que a educação, ao mesmo tempo em que deve ao modo como a sociedade se estrutura as suas condições de possibilidade, contribui para a produção de subjetividades que circulam nessa mesma sociedade .

Proeja; currículo integrado; dispositivo analisador


This paper develops the idea that the integrated curriculum and the education of youth and adults, associated with the National Program for the Integration of Vocational Education with Basic Education in the Education of Youth and Adults Mode, act as analyzers, showing how education constitutes and enables the emergence of other forms of educational organization. The proposed curriculum integration contained in this program enables a discussion on how education has organized its relationships, practices, times, and spaces. It also allows discourses that reaffirm the need to adapt 'regular' education projects to the specificities of the education of youth and adults student to be surpassed, questioning other forms of education. Besides questioning the transformative potential of the integrated curriculum, the text examines the reactions and movements arising in clashes between instituted and the instituting, which can either intensify or reduce the critical property of the proposal, seeking to make it equivalent to the already existing social forms. It concludes by highlighting that education, while it owes to the way society is structured the conditions that make it possible, contributes to producing the subjectivities that circulate in this very same society.

Proeja; integrated curriculum; analyzer device


Este artículo desarrolla la idea de que el plan de estudios integrado y la educación de jóvenes y adultos, asociados al Programa Nacional de Integración de la Educación Profesional con la Educación Básica en la Modalidad de Educación para Jóvenes y Adultos, funcionan como analizadores, que colocan en evidencia cómo la educación constituye y hace posible el surgimiento de otras formas de organización de la práctica pedagógica. La propuesta de integración curricular contenida en este programa permite poner en discusión el modo como la educación ha organizado sus relaciones, sus prácticas, sus tiempos y sus espacios. Permite, también, superar los discursos que reafirman la necesidad de adecuar los proyectos pedagógicos de la educación 'regular' a las especificidades del alumno de la educación de adultos y jóvenes, cuestionando otras modalidades de educación. Además de cuestionar el potencial transformador del plan de estudios integrado, el texto analiza las reacciones y los movimientos suscitados en los enfrentamientos entre lo instituido y lo instituyente, que pueden tanto intensificar como reducir la propiedad crítica de la propuesta, al buscar convertirla en equivalente a las formas sociales ya existentes. Concluye destacando que la educación, al mismo tiempo que le debe sus condiciones de posibilidad al modo como la sociedad se estructura, también, por otro lado, contribuye en la producción de subjetividades que circulan en esa misma sociedad.

Proeja; currículo integrado; dispositivo analizador


Introdução

Durante muitos anos a educação de adultos no Brasil foi tratada como uma modalidade de ensino cuja função era, predominantemente, alfabetizar, sendo destinada a um público do qual pouco se esperava e, ao mesmo tempo, no qual pouco se investia. Diferentes governos se sucederam, mas as ações voltadas para essa parcela da população se restringiam, em geral, a compensar a reconhecida falta de oportunidades de acesso ao ensino regular.

Nesse sentido, foram criados diversos programas de alfabetização baseados em propostas pedagógicas que quase nada diferiam do ensino de crianças e adolescentes. Salvo iniciativas marginais - ou, como é o caso de Paulo Freire, marginalizadas -, os efeitos daquelas práticas pedagógicas, que ignoravam as especificidades da educação de jovens e adultos (EJA), eram, comumente, a infantilização, a produção do desinteresse e, finalmente, a evasão escolar.

Ao longo das últimas três décadas, contudo, boa parte dos programas voltados para a EJA assumiu a preocupação de oferecer ao aluno jovem ou adulto propostas pedagógicas que levassem em consideração sua condição particular e distinta dos demais alunos do ensino regular. Apesar de chamarem a atenção para as inegáveis diferenças existentes entre esses alunos, tais propostas tendem a reforçar a lógica de que a EJA está naturalmente fora das discussões que acontecem no âmbito mais amplo da educação.

A partir de 2005, com a publicação do decreto n. 5.478, e de 2006, com o decreto n. 5.840, que instituem o Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), configura-se outro campo de possibilidades. De acordo com Silva (2010)SILVA, Vânia do C. N. Da EJA ao Proeja:a transição da educação de jovens e adultos na rede federal. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL de PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED), 33. Anais... Caxambu, 17 a 20 de outubro de 2010. Disponível em: <http://33reuniao.anped.org.br/33encontro/ app/webroot/files/file/Trabalhos%20em% 20PDF/GT186874Res.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2014.
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, o programa tem por objetivo criar oportunidades para que jovens e adultos que foram obrigados a interromper seu processo de escolarização possam ser inseridos novamente no sistema, garantindo-lhes a elevação da escolaridade - mediante a conclusão do ensino fundamental e do ensino médio - articulada à formação profissional.

Essa nova configuração do campo de possibilidades, no entanto, traduz-se também no potencial transformador demonstrado pela proposta de integração curricular, aliada à inserção contundente2 da EJA nas redes de ensino. É evidente que a EJA - seu público, suas especificidades etc. - provoca a educação a sair do lugar instituído no qual tem se mantido há tanto tempo. Todavia, no âmbito das experiências oficiais de educação de adultos, até hoje não havia surgido alguma proposta que fosse capaz de desafiar a educação a pensar mais intensamente seus processos, desestabilizando práticas e relações cristalizadas ao longo dos anos. Ao orientar a organização do fazer pedagógico dos cursos destinados aos adultos sob as bases do currículo integrado, o Proeja consegue reverberar em outras direções, lançando o debate para além da fronteira da educação de jovens e adultos. Quando o programa deflagra discussões acerca do currículo construído com base nas disciplinas, é toda a educação que é questionada - as formas de organização das relações, das práticas, dos tempos e dos espaços -, e não apenas uma de suas modalidades. Assim fazendo, a educação é desafiada a problematizar as práticas pedagógicas naturalizadas e, portanto, supostamente imunes às críticas e aos questionamentos.

A proposta de integração curricular contida no Proeja confere a esse programa a capacidade de colocar em discussão o modo como a educação tem se organizado, permitindo ir além dos discursos que afirmam a necessidade de adaptação dos projetos pedagógicos da educação 'regular' à realidade e às especificidades do aluno da EJA.

O referencial teórico que orienta as reflexões presentes neste trabalho é o da análise institucional. Sendo assim, a educação é encarada como uma instituição social, ou seja, como forma geral das relações sociais. Ampliando um pouco mais o conceito, a instituição tem um sentido ativo, pois comporta a dialética entre o instituído - as forças que tendem à conservação - e o instituinte - as forças que buscam a transformação.

Tenho por objetivo, portanto, discutir o potencial transformador do currículo integrado, assim como as reações e os movimentos suscitados nos embates entre o instituído e o instituinte, os quais podem ampliar, mas também reduzir, a propriedade crítica da proposta de integração, procurando torná-la equivalente a formas já existentes.

Assim, se antes a EJA era considerada um apêndice da educação - ora sendo desenvolvida segundo práticas e discursos que a comportavam precariamente, ora recebendo atenção adequada, porém reforçando, no campo pedagógico, o movimento mais geral de especialização e segmentação dos saberes -, agora, potencializada pela integração curricular, passa à condição de analisador,3 no sentido de que dá visibilidade ao modo como a educação se constitui e tornando possível o surgimento de outras formas de organização do fazer pedagógico.

Quais os efeitos desse dispositivo analisador sobre a educação e, não menos importante, sobre os processos de subjetivação de seus atores? Como evitar que as forças desencadeadas nesse processo sejam capturadas ou esvaziadas do seu potencial crítico e transformador?

Essas são perguntas que serviram de fio condutor para o desenvolvimento deste ensaio, além das reflexões e análises resultantes do trabalho que vem sendo desenvolvido numa escola pública federal que oferece a educação de jovens e adultos e, mais recentemente, o Proeja. Ao longo dos últimos quatro anos, na condição de professor-pesquisador visitante, venho atuando junto com o grupo de educadores que assumiu a EJA dessa escola no sentido de construir essa modalidade de educação, que, até então, apenas ocupava o espaço cedido pela referida instituição.

O dispositivo pedagógico currículo integrado e seus efeitos

A perspectiva da educação baseada no currículo integrado vem se materializando nos últimos anos por meio de inúmeras ações e programas. No caso do Proeja, há interesse em vincular a educação profissional à educação básica, tendo como princípio a integração. Explicita-se, ainda, a intenção de superar a dualidade histórica entre cultura geral e cultura técnica presente na educação brasileira, conforme consta no documento base do Proeja (Brasil, 2006bBRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Proeja - Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Documento base. Brasília: Setec/MEC, 2006b.).

Entretanto, não é apenas como possibilidade de rompimento com a lógica que distingue a formação humana de maneira ampla da educação para o trabalho que a integração curricular se apresenta. Como pode ser visto nos documentos da educação básica4 que orientam as discussões das diversas áreas de conhecimento para a construção de seus respectivos currículos, a proposta de organização curricular integrada busca reunir aquilo que as disciplinas compartimentaram ao longo de vários anos obedecendo à lógica fragmentar, própria da racionalidade produzida nas sociedades capitalistas.

O documento base do Proeja incentiva as mudanças, enfatizando o espa ço que abre para a superação dos modelos curriculares baseados em separações estanques entre disciplinas. Essas mudanças, por sua vez, são facilitadas pelo fato de que não existe um modelo de integração predefinido. Ao contrário, cria-se um campo propício para a experimentação. De acordo com o documento:

A organização curricular não está dada a priori. Essa é uma construção contínua, processual e coletiva que envolve todos os sujeitos que participam do programa. A respeito da organização curricular, considera-se que a EJA abre possibilidades de superação de modelos curriculares tradicionais, disciplinares e rígidos. A des-construção e construção de modelos curriculares e metodológicos, observando as necessidades de contextualização frente à realidade do educando, promovem a ressignificação de seu cotidiano. Essa concepção permite a abordagem de conteúdos e práticas inter e transdisciplinares, a utilização de metodologias dinâmicas, promovendo a valorização dos saberes adquiridos em espaços de educação não formal, além do respeito à diversidade (2006b, p. 48).

É importante que a possibilidade de superação de modelos curriculares tradicionais proporcionada pela EJA não seja entendida como exclusiva dessa modalidade de ensino. A desconstrução dos currículos tradicionais - rigidamente atrelados às disciplinas - e a reconstrução sobre outras bases - integrados por interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade - pode capilarizar-se pela educação em todas as suas modalidades.

No entanto, em que pesem as possibilidades abertas pela integração no sentido de superar formas instituídas no campo da educação, há efeitos pouco explorados nesse processo. A necessidade de construir coletivamente os projetos político-pedagógicos das instituições que abrigarão o Proeja, incluindo a redefinição dos currículos, obriga os educadores reunidos em grupos de discussão, planejamento etc. a repensarem o seu processo de trabalho, mesmo que não seja esse o objetivo principal do programa. Como é possível observar a partir da participação nos fóruns e encontros induzidos pelo Ministério da Educação (MEC),5 ou durante as discussões sobre as práticas e fazeres pedagógicos, os sujeitos acabam por empreender o que Elizabeth Barros (2003)BARROS, Maria Elizabeth B. de. Por uma outra política das práticas pedagógicas. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL de PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED), 26. Anais... Poços de Caldas, 5 a 8 de outubro de 2003. Disponível em: <http://26reuniao.anped. org.br/trabalhos/06tmareb.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2014.
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chama 'análise coletiva do trabalho'. Segundo a autora, ao discutirem o processo de trabalho, os educadores falam dos sentimentos provocados e das viv ências mobilizadas pelas circunstâncias do trabalho pedagógico, deixando à mostra a dimensão do que enfraquece e causa sofrimento, mas também permitindo a construção de novas e mais potentes análises. A autora afirma que:

Nessa direção, coloca-se a urgência de se pensar as práticas educacionais a partir da análise das questões ligadas ao trabalho real dos educadores, à história e à política, visando a potência de instituir novas normas e produzir outras formas de subjetividade, próprias do processo vital (Barros, 2003, p. 10).

O currículo integrado pode ser encarado, então, como um dispositivo pedagógico cuja inserção nos espaços institucionais da educação permite colocar em discussão as relações e as práticas instituídas, favorecendo o surgimento de estratégias educacionais implicadas com movimentos de criação de outros modos de funcionamento. Além disso, a análise dos dispositivos pedagógicos - os discursos que eles sustentam, seus efeitos etc. - ajuda a problematizar a produção de subjetividades na sociedade atual. Quando, então, a proposta de integração curricular é combinada com a educação de jovens e adultos, conforme se observa nas experiências de implantação do Proeja na rede federal de ensino, o seu potencial analisador sobre a educação se amplia e seus efeitos ganham contornos mais nítidos.

Porém, a exemplo do que ocorre com a maioria das propostas que tendem a modificar os modos de funcionamento instituídos, sua efetivação não acontece sem o aparecimento de resistências. A manifestação dessas resis-tências traz, certamente, dificuldades para a implantação de qualquer programa, política ou inovação pedagógica nos espaços educacionais, mas, por sua vez, permite observar o modo como as práticas e as relações são constituídas. Além disso, reconhecendo seus efeitos num campo mais amplo, percebe-se que evidenciam o não dito de uma instituição social como a educação, chamando a atenção para o que, embora esteja presente, não chega a ser problematizado.

O duplo papel da resistência: obstáculo e fonte para a transformação

Os inúmeros relatos produzidos nos grupos de discussão, fóruns etc. induzidos pelo MEC com vistas a acompanhar a implantação do Proeja indicam, por um lado, a motivação de alguns educadores ante a proposta desafiadora de proporcionar ao público adulto um ensino livre da tradicional relação de submissão ao mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, um ensino que não reedite o modelo assistencialista de políticas anteriores. Por outro lado, esses relatos expõem também as dificuldades e as relutâncias, geradas por iniciativas que conduzem à alteração das práticas cotidianas dos profissio-nais envolvidos com a educação.

Na pesquisa que desenvolveu sobre a passagem da EJA para o Proeja, Vânia Silva (2010) investigou a gestão do programa em quatro instituições da rede federal, concluindo que a implantação do Proeja requer interação e negociação contínuas, e que a gestão dos cursos necessita levar em consideração as condições materiais da escola e as especificidades de educandos e educadores. Para empreender suas análises, definiu algumas categorias, entre as quais implantação dos cursos, acessibilidade e permanência, capa-citação dos profissionais, evasão escolar e integração curricular.

Nas palavras da autora, essa última categoria teria sido utilizada "para verificar como as escolas construíram o currículo do curso" (Silva, 2010, p. 3SILVA, Vânia do C. N. Da EJA ao Proeja:a transição da educação de jovens e adultos na rede federal. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL de PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED), 33. Anais... Caxambu, 17 a 20 de outubro de 2010. Disponível em: <http://33reuniao.anped.org.br/33encontro/ app/webroot/files/file/Trabalhos%20em% 20PDF/GT186874Res.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2014.
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). Segundo observa, a construção da integração curricular é algo complexo: requer a criação de espaços institucionalizados de planejamento e discussão. Contudo, apesar dos avanços de algumas experiências, percebe-se facilmente que ainda há muitos educadores que não se sentem seguros quanto às formas de proceder à integração.

Trata-se, portanto, de um processo em construção, cuja característica principal é "repensar a organização de pessoal, de infraestrutura, materiais e pedagógicas, das condições de trabalho dos profissionais" (Silva, 2010, p. 10SILVA, Vânia do C. N. Da EJA ao Proeja:a transição da educação de jovens e adultos na rede federal. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL de PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED), 33. Anais... Caxambu, 17 a 20 de outubro de 2010. Disponível em: <http://33reuniao.anped.org.br/33encontro/ app/webroot/files/file/Trabalhos%20em% 20PDF/GT186874Res.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2014.
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). As análises de Silva corroboram outros estudos e relatos de experiências (Zorzi, 2009ZORZI, Fernanda; PEREIRA, Vilmar A. (Orgs.). Diálogos Proeja: pluralidade, diferenças e vivências no sul do país. Bento Gonçalves: Evangraf Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, 2009.; Silva e Baracho, 2007SILVA, Amélia C. R.; BARACHO, Maria das G. (Orgs.). Formação de educadores para o Proeja: intervir para integrar. Natal: Cefet/RN/BSF, 2007. p. 9-15.; Guimarães e Valdez, 2009GUIMARÃES, Cristina; VALDEZ, Guiomar. Dialogando Proeja: algumas contribuições. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2009.]) na perspectiva do Proeja, mas também na da EJA.

Todavia, a insegurança é apenas uma das reações que surgem com a construção do currículo integrado. De acordo com a autora, outro aspecto que precisa ser levado em consideração é a resistência dos educadores quando se deparam com a iminência de construírem novos métodos educacionais. Acrescento, ainda, que a resistência pode se manifestar de formas variadas, porém seus efeitos precisam ser mais bem explorados, a fim de compreendermos com maior abrangência o modo como a educação engendra e organiza as relações e as práticas que instrumentaliza.

Nesse sentido, reproduzo as falas destacadas por Silva (2010)SILVA, Vânia do C. N. Da EJA ao Proeja:a transição da educação de jovens e adultos na rede federal. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL de PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED), 33. Anais... Caxambu, 17 a 20 de outubro de 2010. Disponível em: <http://33reuniao.anped.org.br/33encontro/ app/webroot/files/file/Trabalhos%20em% 20PDF/GT186874Res.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2014.
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em sua pesquisa, contendo a análise de dois gestores de diferentes instituições sobre as resist ências dos educadores, expressas durante as discussões acerca da construção do currículo integrado. A primeira ilustra as várias interpretações que costumam ser feitas sobre o fenômeno das resistências, caminhando desde aspectos pessoais at é sociopolíticos:

Eu vejo que é a resistência do próprio professor. A mudança (...) causa um impacto muito grande, o que é novo é diferente (...) a resistência não é pelo currículo, mas pelos educadores que atuam no currículo que, muitas vezes, o integrado é trabalhar uma parte e a outra e não é isso: você tem que fazer a interação entre... a junção disso tudo (...) o que a gente não pode colocar 'goela abaixo' um currículo e que daí ele não trabalhou no currículo e que ele não aceita. Aí [é] que vai ser uma catástrofe maior (...). A integração dos cursos ainda está bastante aquém (G8/SC) (Silva, 2010, p. 9).

A segunda aborda diretamente a formação do docente como elemento problemático:

[isso vem] lá das origens do processo de formação do professor, desde o tempo que ele estava nos bancos da escola, nós sempre aprendemos em caixinhas e hoje você chegar pro professor: ah, teu trabalho não é mais em caixinhas (...). Esta é uma batalha diária e constante (...). Nós temos um embrião, começa, mas nós temos um grande percurso a fazer (G2/RR) (Silva, 2010, p. 9).

As falas destacadas acima dizem respeito à resistência, porém apontam para diferentes condições de emergência dessa manifestação. Enquanto a primeira se refere às relações de poder e hierarquia instituídas no campo profissional, a segunda parece indicar as implicações que os educadores têm com os saberes constitutivos da sua formação profissional e acadêmica. Entender essas manifestações a partir de suas diferenças, das forças que as mobilizam, das instituições sociais que evidenciam é de fundamental importância para continuarmos nos conduzindo em direção às transformações. O problema surge quando a resistência é interpretada como resultado de tendências individuais, ou seja, originadas nas características pessoais dos professores, contribuindo para configurar um perigoso processo de psicologização e, consequentemente, de esvaziamento do potencial crítico-transformador que a situação enseja.

Por exemplo, do ponto de vista das relações hierárquicas que a situação comporta, não podemos ignorar a forma como algumas políticas e alguns programas no campo da educação foram implantados. Santos (2010)SANTOS, Simone V. dos. Sete lições sobre o Proeja. In: MOLL, Jaqueline (Org.). Educação profissional e tecnológica no Brasil contemporâneo: desafios, tensões e possibilidades. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 120-130., ao discutir as potências e os limites do Proeja, reconhece que o programa foi recebido inicialmente com resistências pela rede federal de educação profissional. A implantação do Proeja, segundo ela, foi imposta a parceiros tradicionais e, consequentemente, "tal situação trouxe considerável desconforto para as escolas da rede federal de educação profissional" (2010, p. 121).

Ainda como exemplo de resistências no campo das relações hierárquicas e de poder estabelecidas na rede federal de educação, temos as falas de educadores presentes nos diversos eventos, como no Diálogos Proeja, realizado em Bento Gonçalves em 2008, afirmando que "se não fosse por decreto, o Proeja, provavelmente, não seria oferta das escolas federais da rede de educação profissional e tecnológica" (Santos, 2010, p. 122SANTOS, Simone V. dos. Sete lições sobre o Proeja. In: MOLL, Jaqueline (Org.). Educação profissional e tecnológica no Brasil contemporâneo: desafios, tensões e possibilidades. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 120-130.). Ou como no I Fórum Regional de Pesquisas e Experiências em Proeja da Região Sudeste RJ/ES, ocorrido em 2010 no Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, no qual, nos diversos espaços de discussão proporcionados aos educadores, ouviram-se críticas à forma apressada como o programa foi implantado, à falta de formação inicial e continuada para os docentes, e à contratação de professores substitutos para suprir as necessidades das turmas de Proeja.

Quanto às implicações dos educadores com a formação acadêmica, o problema não se reduz à precariedade da formação oferecida pela maioria dos cursos de pedagogia ou das licenciaturas. Embora esse seja um fator de grande importância, a lógica que impera nesses cursos, traduzida em inú-meras práticas discursivas (enunciados teóricos, relatos de experiências etc.) e não discursivas (relações estabelecidas, estratégias pedagógicas de con-trole do espaço, do tempo e da produção dos alunos etc.), produz as subjetividades docentes, legitimando e naturalizando um determinado modo de organizar os currículos, cujos efeitos incluem a redução da capacidade de problematização e a disposição a reagir a qualquer ameaça de mudança na forma como desenvolvem seu trabalho.

Por fim, os inúmeros textos que vêm sendo escritos desde as primeiras experiências com o Proeja na rede federal constituem também fontes importantes de informação sobre os efeitos produzidos no cotidiano institucional com a implantação do programa. Destaco, nesse sentido, o 'relato reflexivo' de um grupo de docentes do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), localizado em Vitória, Espírito Santo (ES) (Moura et al., 2010MOURA, Bruno dos S. P. et al. O movimento de construção dos projetos pedagógicos dos cursos do Proeja no Ifes - Vitória/ES: avanços, tensões e desafios de um processo político. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO (ENDIPE), 15. Anais... Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2010. Disponível em: <hhttp://www.senept.cefetmg.br/ galerias/Anais_2010/Artigos/GT7/O_ MOVIMENTO_DE_CONSTRUCAO.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2014.
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), baseado na experiência de construção do projeto pedagógico do Proeja naquela instituição. A vivência proporcionada pelas discussões acerca do currículo integrado e da situação própria da EJA - a educação de alunos trabalhadores - permite identificar avanços, tensões e desafios durante o processo. No entanto, de acordo com a avaliação feita pelos autores, a entrada da EJA na rede federal de educação e particularmente no Ifes/ES produziu ranhuras:

Os avanços mencionados não ocorreram sem as tensões manifestadas ao longo dos debates em torno da reformulação dos projetos pedagógicos dos cursos do Proeja. A mais evidente delas se manifesta na própria presença da modalidade na instituição (Moura et al., 2010, p. 8).

Cumpre dizer que, no caso específico dos cursos da EJA integrada à educação profissionalizante, o fato de as escolas que sempre trabalharam com o público infantil ou adolescente terem de trabalhar compulsoriamente com o público adulto é motivo, também, para manifestações de insatisfação por parte dos educadores.

Por essa razão, Santos (2010)SANTOS, Simone V. dos. Sete lições sobre o Proeja. In: MOLL, Jaqueline (Org.). Educação profissional e tecnológica no Brasil contemporâneo: desafios, tensões e possibilidades. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 120-130. critica o modo como a educação, tradicionalmente, tem encarado o aluno da EJA: uma figura de desordem. Na visão da autora, isso acontece porque esse aluno provoca a ruptura da ordem exis-tente, segundo a qual a escola está dividida em séries, em etapas, ordem essa que considera o aluno como uma tábula rasa, despossuído de saber e, portanto, repositório do conhecimento científico transmitido pela escola. Vale lembrar que nenhuma dessas etapas ou séries comporta o público adulto.

Entretanto, conforme a autora faz questão de destacar, a desordem não pode ser entendida como bagunça, e sim como oportunidade de se apartar das permanências, das estruturas; como o imprevisível, o aleatório, privilegiando-se os dinamismos, os movimentos, os processos. Visto por esse prisma, o Proeja proporcionaria alternativas, embora nem sempre os educadores envolvidos consigam perceber a situação dessa maneira. Santos chama a atenção para os efeitos causados pela inserção do aluno da EJA na escola, destacando o conflito gerado pelo confronto com o aluno modelar, cons-truído pelos discursos psicologizados da educação e pelo conjunto de normas e práticas a ele associados. A autora afirma que o Proeja

traz tensões e possibilidades para a instituição que, muitas vezes, não são bem-vindas, causam constrangimento, desacomodam. O aluno idealizado, que está na idade certa, possui uma família que lhe cuida, estuda para se preparar para o trabalho, é substituído por uma figura de desordem que questiona os horários, a disposição dos serviços, o currículo da escola, desvela a desordem que estava sublimada em uma ordem escolar, que talvez existisse concretamente apenas no campo da idealização (Santos, 2010, p. 127).

Explorando um pouco mais a afirmação da autora, podemos entender a desacomodação provocada pelo Proeja como resultado tanto da inserção de um aluno que não se enquadra nas descrições e manuais da psicologia e da pedagogia tradicionais quanto da necessidade de se indagar acerca da legitimidade de discursos e estratégias que naturalizam os processos peda-gógicos quando se busca implantar o currículo integrado. Nesse sentido, o Proeja, ou mais explicitamente o aluno da EJA, e a integração curricular produzem a ruptura da organização disciplinar do currículo e, consequentemente, provocam a desconstrução das práticas instituídas.

Integração curricular: desintegração da escola ou possibilidade de transformação?

A experiência tem nos mostrado o grande desafio de organizar o fazer pedagógico na perspectiva do currículo integrado, exigindo um esforço muito grande por parte dos que se propõem a construir essa prática. No entanto, de acordo com os discursos oficiais presentes nos documentos, decretos etc., a integra ção curricular é a perspectiva que deve orientar os espaços educacionais atualmente.

O exemplo do Proeja é esclarecedor, pois é do conhecimento de todos que há diferenças significativas entre as instituições chamadas a colocar em execução essa política educacional, o que pode significar que nem todas terão condições de oferecer a forma integrada. Portanto, quando se fizer necessário, será possível oferecer a formaconcomitante de educação profissional t écnica de nível médio e o ensino médio. Ainda assim, não se pode perder de vista os pressupostos da integração curricular. Por isso, de acordo com o art. 1 º, § 4º do decreto n. 5.840, de 13 de julho de 2006:

Os cursos e programas do Proeja deverão ser oferecidos, em qualquer caso, a partir da construção prévia de projeto pedagógico integrado único, inclusive quando envolver articulações interinstitucionais ou intergovernamentais (Brasil, 2006a).

A rigor, busca-se religar o que foi desligado - e continua sendo - por meio da fragmentação do conhecimento. Todavia, o processo de desligamento não é alvo de análises. Como resultado, a fragmentação não é entendida como produzida, mas naturalmente constituinte dos conhecimentos organizados segundo a lógica disciplinar.

Outra possibilidade de entendimento sobre as disciplinas, mas, sobretudo, de alternativas de trabalho a partir delas, é fornecido por Alice Lopes (2008)LOPES, Alice C. Políticas de integração curricular. Rio de Janeiro: Eduerj, 2008.. A autora afirma que as disciplinas são construções sócio-históricas produzidas na escola e destinadas a ela. Porém, se pensarmos a disciplinaridade de uma forma mais ampla, considerando as disciplinas científicas e acadêmicas, perceberemos que a definição dos objetos de estudo, a produção de práticas de conhecimento e o conhecimento do mundo são viabilizados, enfim, pelas disciplinas. Compreende-se, então,

que a despeito de um acentuado discurso de valorização do currículo integrado, a disciplinarização permaneça como direcionadora da seleção e da organização do conhecimento nas políticas, convivendo com propostas de integração curricular e submetendo-se aos interesses e às relações de poder das disciplinas escolares (Lopes, 2008, p. 87).

Quando se pensa na integração dos saberes disciplinares, deve-se ter em mente principalmente a necessidade de alterar a visão de mundo e as relações de poder, assim como repensar os valores, as práticas e os objetos de estudo, e menos medidas que, necessariamente, resultem na eliminação das disciplinas. Conforme destacamLopes e Macedo (2011)LOPES, Alice C.; MACEDO, Elizabeth. Teorias do currículo. São Paulo: Cortez, 2011., apoiadas no pensamento de Veiga-Neto, é preciso entender as relações entre o currículo e as transformações do espaço e do tempo, de modo a questionarmos as perspectivas que organizam e planejam o curr ículo de forma a atender às demandas contemporâneas. Entender os efeitos da distribuição dos saberes por intermédio das disciplinas é, na verdade, aproximarmo-nos dos efeitos e disposições produzidos por esse modo de organização curricular. Por isso, afirmam as autoras:

A organização disciplinar para ele [Veiga-Neto] é então uma estrutura discipli-nadora, sendo produto e ao mesmo tempo produtora de uma nova ordem e de uma nova representação (atribuição de significado) na modernidade. Por ela, saberes são hierarquizados e classificados, fronteiras são ordenadas, somos subjetivados. O currículo assim organizado, diz Veiga-Neto, institui uma nova ordem para as coisas e torna-se um artefato aberto para o mundo (Lopes e Macedo, 2011, p. 136).

Os questionamentos dirigidos aos diversos dispositivos pedagógicos (currículo, horários, regras), associados à entrada na escola de cursos na modalidade de EJA e à proposta de integração curricular a eles vinculada, estão, portanto, diretamente ligados à transformação das práticas. Favorecem, igualmente, a produção de modos de subjetivação que não estejam atrelados aos princípios da lógica instrumental, nem da meritocracia e nem da competitividade.

Essa mudança no âmbito dos espaços escolares deve ser capaz, também, de criar condições para que a escola não reproduza a demanda social que chega a ela na forma de solicitação de certificados, de formação para o mercado etc. É preciso estar atento quanto a isso, pois a integração curricular pressupõe não atender a tais demandas. Assim, aponta Alice Lopes:

Particularmente no contexto escolar, pensar em formas de integração implica mudar os territórios formados, a identidade dos atores sociais envolvidos, suas práticas, além de modificar o atendimento às demandas sociais da escolarização - diplomas, concursos, expectativas dos pais, do mundo produtivo, da sociedade como um todo - e as relações de poder próprias da escola (Lopes e Macedo, 2011, p. 87).

Não atender a tal demanda, por sua vez, significa não a produzir ativamente. Significa aproveitar os movimentos instituintes, sua vitalidade e seu potencial, questionando os sistemas das formas sociais existentes, o que já é dado e que procura se manter. O currículo integrado, como dispositivo pedagógico, é composto por práticas discursivas e não discursivas; induz comportamentos, produz saberes e faz circular poderes. Os efeitos que provoca animam movimentos em favor de mudanças, mas também movimentos que lhe são antagônicos.

A construção de alternativas à organização escolar e curricular não é algo trivial. Ao contrário, questionamentos acerca do que é dado como na-tural costumam provocar resistências, uma vez que a vivência da mudança não é algo aceito tranquilamente por todos. Essas resistências, como apontado anteriormente, podem ser interpretadas como resultantes da formação acadêmica a que os educadores foram submetidos, cuja orientação seguiu, provavelmente, a mesma lógica disciplinar que agora são obrigados a questionar. O embate entre as práticas educacionais baseadas no currículo disciplinar e as propostas de construção da integração curricular tende a produzir nos professores conflitos, resultando em dificuldades para aceitar ou, até mesmo, entender o significado dessas propostas. As resistências poderiam estar sendo expressas, por exemplo, pela insistência em adaptar as propostas inovadoras aos modelos existentes.

Em certos casos, no processo de discussão que precede, ou que acompanha a implantação do programa nas escolas da rede federal, surgem situações de tensão, como a descrita pelo grupo do Ifes/ES. Essa tensão pode ter origem no confronto de ideias ou de concepções de educação, mas quase sempre dificulta o diálogo ou até inviabiliza a construção de alternativas:

De fato, essa tensão mostrou-se evidente nos debates dos grupos das comissões quando da necessidade de reconhecer o Proeja como um curso diferenciado dos demais até então ofertado pelas coordenadorias. Foi preciso uma postura vigilante por parte de alguns dos membros das comissões perante tentativas de equalizar as propostas em discussão a outras realidades educativas existentes na instituição e diferentes da modalidade EJA. A ideia subjacente a tais tentativas era de que os alunos seriam todos iguais, não sendo consideradas assim as especificidades dos sujeitos da EJA, desmerecendo a necessidade de um tratamento didático-pedagógico diferenciado (Moura et al., 2010, p. 8).

É importante afirmar a crítica necessária à tentativa de se aplainar as diferenças entre a EJA e as outras modalidades, com o objetivo de converter os discursos sobre o curr ículo integrado em algo assimilável pelos modelos conhecidos. A situação descrita pelos educadores do Ifes/ES parece ilustrar o funcionamento do princípio de equivalência, ou seja, a aceitação do instituinte por parte do instituído somente quando esse é capaz de tornar o primeiro equivalente às formas já existentes (Hess, 2007HESS, Remi. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 148-163, 2007.).

No entanto, a crítica ao aplainamento das diferenças não pode se enrijecer na defesa da especificidade da educa ção de jovens e adultos, ofuscando, desse modo, a oportunidade de se colocar em discussão a educação de maneira geral. Embora reconheça a necessidade de trabalharmos com o aluno adulto a partir das características peculiares que ele apresenta, é preciso alertar para o fato de que um dos efeitos mais importantes da discussão acerca do currículo integrado é o de desafiar os educadores a questionarem todas as modalidades da educação, e não apenas a EJA, lançando luz sobre a rede intrincada de práticas e relações que eles instrumentalizam, de modo a evidenciá-las como elementos comuns aos processos pedagógicos das diversas modalidades de ensino. Porém pouca atenção tem sido dada a essa perspectiva aberta pelo Proeja.

De fato, não há relação linear e direta entre a discussão suscitada pelo Proeja e a análise da educação de maneira geral. As condições que viabilizam tal processo, e, consequentemente, possibilitam as transformações, não estão disponíveis todo o tempo. Portanto, quando surgem precisam ser identificadas e aproveitadas.

Considerações finais

Os efeitos provocados pelo Proeja vão além da simples reorganização dos projetos político-pedagógicos das instituições, a fim de se adaptarem à educação de jovens e adultos. Ao serem obrigados a discutir a implantação do programa nas suas respectivas instituições, os professores são desafiados a pensar a maneira como se organizam os tempos e os espaços, as relações e as práticas, e o que desejam alcançar com o modo como estruturam seu processo de trabalho, o fazer pedagógico. São levados, enfim, a discutir os objetivos da formação do sujeito.

A proposta de integração curricular presente no programa tem demons-trado possuir um potencial transformador das práticas pedagógicas que não pode ser negligenciado. Não se trata, apenas, de discutir quais conteúdos devem ser trabalhados ou em que profundidade, sob o argumento de que há diferenças entre o público da EJA e os alunos do ensino 'regular', mas de redefinir o projeto de sociedade que sustenta e orienta as práticas. Isso requer o entendimento de que existe uma estreita relação entre a organização curricular e a influência exercida pela instituição educação no modo como se constituem as subjetividades dos alunos, sejam eles crianças, jovens ou adultos.

Sem ignorar o caráter normativo que marca as experiências educacionais dos mais variados matizes, ampliando sua influência para além dos limites dos conhecimentos 'transmitidos' e incidindo na produção de sentidos e modelos para a formação humana, é necessário algo mais do que análises críticas, com base nas ciências ou em outros componentes da racionalidade. Não se trata de negar a importância desses elementos. Porém, para que a educação permita ao sujeito escapar dos processos tradicionais de naturalização/modelização que sustentam a ordem social vigente, faz-se necessária a construção de espaços em que outras experiências possam ser vivenciadas, a fim de que novos sentidos possam emergir no âmbito das relações, da produção de conhecimento e da vida em sociedade.

Deve-se assumir o compromisso de legitimar os conteúdos resultantes das diversas experiências - por exemplo, as de impantação do Proeja - originadas das estratégias criadas em cada estabelecimento, como os grupos de discussão internos, as reuniões de professores ou os espaços de discussão mais amplos. Alguns dos conteúdos gerados a partir dessas estratégias costumam revelar resist ências das mais variadas ordens. Muito comuns quando se está diante da possibilidade de mudanças efetivas das práticas instituídas, as reações de oposição podem apontar menos para tendências pessoais dos educadores do que para a necessária análise do poder circulante, das relações e das práticas instrumentalizadas pela instituição educação. Além disso, é preciso estar atento para identificar as estratégias de esvaziamento ou de recuperação do potencial instituinte que a proposta pedagógica da integração curricular comporta, visando torná-la equivalente às formas já conhecidas e, consequentemente, reduzindo seu potencial crítico.

Os discursos sobre a EJA estão repletos de alertas para que não se repitam as condições que, um dia, levaram esses alunos a abandonarem a escola. Isso é importante. Todavia, repensar a escola para que possa atender adequadamente à EJA é pouco. Não seria o caso de nos preocuparmos, talvez até de forma mais sistematizada, em evitar a repetição dessas condições no exato momento em que os 'futuros' alunos da EJA estão sendo produzidos?

De acordo com Elizabeth Barros, a educação deve ser pensada como potencializadora das estratégias instituintes, "forjando práticas alternativas às propostas hegemônicas no âmbito do fazer pedagógico" (2003, p. 13). Não devemos nos esquecer que a educação mantém relação com a sociedade numa via de mão dupla: ao mesmo tempo que deve ao modo como a sociedade se estrutura as suas condições de possibilidade, contribui para a produção de subjetividades que circulam nessa mesma sociedade.

O resultado da dinâmica entre o instituído e os movimentos instituintes dependerá, entre outros fatores, do modo como os agentes envolvidos com a educação aproveitem os conteúdos que daí emerjam: se negligenciando-os - ou seja, evitando trazer à tona os conflitos e os problemas vividos no cotidiano da educação - ou problematizando-os - quer dizer, explorando, desse modo, sua capacidade analítica e transformadora.

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  • 2
    Inicialmente com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - lei n. 9.394/1996) e, posteriormente, com a emenda constitucional n. 59, a educação básica, obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade passa a ter garantida a sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria.
  • 3
    Com base nas referências conceituais da análise institucional (Lapassade, 1989; Lourau, 1993), entendese que qualquer acontecimento, prática ou dispositivo capaz de revelar a partir do seu funcionamento o impensado de uma estrutura social (seja a não conformidade com o instituído, seja a natureza desse mesmo instituído) pode ser considerado um dispositivo analisador.
  • 4
    No caso específico do ensino médio, por exemplo, embora a lei n. 9.394/1996, no seu artigo 35, afirme o compromisso dessa etapa formativa com 'a preparação para o mundo do trabalho', não se descuida de atribuirlhe outras finalidades, tais como o aprimoramento do educando como ser humano, a formação ética, o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico e o desenvolvimento de competências para continuar o aprendizado. Em função disso, tem sido reforçado o discurso contrário à organização curricular com base em disciplinas delimitadas e, ao mesmo tempo, a favor da interdisciplinaridade e da contextualização como formas de articular e integrar conhecimentos.
  • 5
    Com o início do programa, o MEC desenvolveu diversas ações, como o projeto de Inserção Contributiva, os Diálogos Proeja e cursos de formação e pósgraduação, com o objetivo de contribuir para o surgimento de novos cursos e o aprimoramento dos que se encontram em funcionamento, além de produzir conhecimento com base nas experiências acumuladas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2013
  • Aceito
    13 Nov 2013
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