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Competências gerenciais do enfermeiro nas perspectivas de um curso de graduação de enfermagem e do mercado de trabalho

Nurse managerial competencies from the perspectives of an undergraduate nursing course and of the work market

Resumos

A formação de competências gerenciais do enfermeiro e conteúdos de disciplinas de Administração em Enfermagem motivaram reflexões sobre as relações entre o projeto político-pedagógico de um curso de graduação e o perfil do egresso proposto nas Diretrizes Curriculares Nacionais com o mercado de trabalho de enfermeiros em Curitiba, no Paraná. Na pesquisa descritivo-exploratória e qualitativa, objetivou-se apontar convergências e divergências entre as expectativas identificadas no projeto político-pedagógico e as de gerentes que contratam enfermeiros. As políticas de educação e de saúde no Brasil foram apresentadas como determinantes de modelos de formação e de ensino de Administração, na área de enfermagem. A análise hermenêutico-dialética das competências gerenciais esperadas nos âmbitos do ensino e do mercado de trabalho norteou-se pelos eixos dos determinantes: da dimensão estrutural, que abrangem essas políticas; da dimensão particular, representada pelo mercado de trabalho local e pela instituição de ensino; e da dimensão singular, pertinentes ao âmbito do ensino de Administração em Enfermagem. Os resultados mostram a necessidade de o ensino estreitar relações com o mercado de trabalho, no sentido de ampliar a valorização de competências gerenciais do enfermeiro para além da dimensão técnica, contemplando as dimensões: comunicativas, ética, política e de desenvolvimento da cidadania.

enfermagem; educação; mercado de trabalho; administração em enfermagem; competência profissional


Developing nurse managerial competencies and Nursing Administration syllabuses led to reflections on the relationship between a political and pedagogical project for a graduate course and the profile of those who graduate from it, as proposed in the National Curricular Guidelines, and the nurse work market in Curitiba, in the Brazilian state of Paraná. The purpose of the descriptive-exploratory and qualitative survey was to identify convergences and divergences between the expectations identified in the political-pedagogical project and those of the managers who hire nurses. The Brazilian education and health policies were singled-out as determinant factors for qualification and teaching in Administration in the nursing area. The hermeneutic-dialectic analysis of the managerial competencies that are expected in the teaching and work market ambits was guided by the determinant axis, i.e., that of the structural dimension which covers these policies; of the particular dimension, represented by the local work market and by the teaching institution; and of the singular dimension, pertinent to the ambit of teaching Administration in Nursing. The results show the need for teaching to close the gap with the work market with regard to boosting the nurses' managerial competency beyond the technical dimension to include the communicational, ethical, political, and citizenship development realms.

nursing; education; work market; administration in nursing; professional competency


ARTIGOS

Competências gerenciais do enfermeiro nas perspectivas de um curso de graduação de enfermagem e do mercado de trabalho

Nurse managerial competencies from the perspectives of an undergraduate nursing course and of the work market

Aida Maris Peres1 1 Professor adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Brasil. Doutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo (USP). < amaris@ufpr.br> ; Maria Helena Trench Ciampone2 2 Professora titular da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil. Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. < mhciamp@usp.br> ; Lillian Daisy Gonçalves Wolff3 3 Professor adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Brasil. Doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). < ldgw@ufpr.br>

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Batista Pessine, 560 Curitiba, Paraná, Brasil, CEP 80820-000.

RESUMO

A formação de competências gerenciais do enfermeiro e conteúdos de disciplinas de Administração em Enfermagem motivaram reflexões sobre as relações entre o projeto político-pedagógico de um curso de graduação e o perfil do egresso proposto nas Diretrizes Curriculares Nacionais com o mercado de trabalho de enfermeiros em Curitiba, no Paraná. Na pesquisa descritivo-exploratória e qualitativa, objetivou-se apontar convergências e divergências entre as expectativas identificadas no projeto político-pedagógico e as de gerentes que contratam enfermeiros. As políticas de educação e de saúde no Brasil foram apresentadas como determinantes de modelos de formação e de ensino de Administração, na área de enfermagem. A análise hermenêutico-dialética das competências gerenciais esperadas nos âmbitos do ensino e do mercado de trabalho norteou-se pelos eixos dos determinantes: da dimensão estrutural, que abrangem essas políticas; da dimensão particular, representada pelo mercado de trabalho local e pela instituição de ensino; e da dimensão singular, pertinentes ao âmbito do ensino de Administração em Enfermagem. Os resultados mostram a necessidade de o ensino estreitar relações com o mercado de trabalho, no sentido de ampliar a valorização de competências gerenciais do enfermeiro para além da dimensão técnica, contemplando as dimensões: comunicativas, ética, política e de desenvolvimento da cidadania.

Palavras-chave: enfermagem; educação; mercado de trabalho; administração em enfermagem; competência profissional.

ABSTRACT

Developing nurse managerial competencies and Nursing Administration syllabuses led to reflections on the relationship between a political and pedagogical project for a graduate course and the profile of those who graduate from it, as proposed in the National Curricular Guidelines, and the nurse work market in Curitiba, in the Brazilian state of Paraná. The purpose of the descriptive-exploratory and qualitative survey was to identify convergences and divergences between the expectations identified in the political-pedagogical project and those of the managers who hire nurses. The Brazilian education and health policies were singled-out as determinant factors for qualification and teaching in Administration in the nursing area. The hermeneutic-dialectic analysis of the managerial competencies that are expected in the teaching and work market ambits was guided by the determinant axis, i.e., that of the structural dimension which covers these policies; of the particular dimension, represented by the local work market and by the teaching institution; and of the singular dimension, pertinent to the ambit of teaching Administration in Nursing. The results show the need for teaching to close the gap with the work market with regard to boosting the nurses' managerial competency beyond the technical dimension to include the communicational, ethical, political, and citizenship development realms.

Keywords: nursing; education; work market; administration in nursing; professional competency.

Introdução

Docentes de cursos de graduação em enfermagem compartilham uma inquietação em relação a como contribuir para a formação de um profissional que atue com competência no mercado de trabalho, mas criticamente em relação ao que acontece na sociedade, e que seja capaz de acessar e utilizar o conhecimento como um agente de mudanças, sem desanimar diante dos obstáculos, ou deformar-se pelo contexto encontrado.

Essas transformações no perfil do enfermeiro demandam, além de competências técnicas específicas, competências gerenciais para sua atuação nas organizações de saúde e que terminam por destacá-lo no concernente a sua empregabilidade. As próprias Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) (Brasil, 2001) corroboram essas afirmações, quando apontam as competências e habilidades essenciais à formação dos profissionais de saúde: atenção à saúde, tomada de decisão, liderança, trabalho em equipe, comunicação, educação permanente e administração e gerenciamento.

Entre as inúmeras possibilidades de contribuição das instituições de ensino superior (IES), destacamos que a formação de um enfermeiro inovador e transformador do seu espaço social requer a consolidação de projetos político-pedagógicos (PPP) relacionados com os diversos campos de conhecimento e de ação, amplamente discutidos e consensualmente acordados pelos diferentes atores, protagonistas interessados. Ademais, há que se considerar ainda as influências das políticas sociais na educação e na saúde, para que o estreitamento das relações entre o ensino e os serviços de saúde se concretize, apontando aspectos favoráveis ou não para alunos, profissionais e comunidade, relacionados a essa articulação.

Este estudo é parte integrante da tese de doutoramento de Peres (2006) e tem como objetivo apontar as convergências e divergências entre as expectativas identificadas em um PPP de um curso de graduação em enfermagem e as expectativas dos gerentes que contratam enfermeiros no mercado de trabalho em Curitiba (PR). O estudo vem a contribuir com a formação de competências essenciais ao enfermeiro, principalmente no tocante a competências gerenciais.

Foi analisado o PPP de um curso de enfermagem, com ênfase nos planos de ensino das disciplinas de Administração em Enfermagem, bem como os discursos dos enfermeiros gerentes de instituições de saúde sobre as expectativas do mercado local de Curitiba acerca das competências gerenciais do enfermeiro. Procedeu-se à problematização das convergências e divergências entre a pesquisa documental do PPP e a fala dos gerentes entrevistados, e foram assinalados os conflitos e as contradições que podem orientar intervenções no âmbito do ensino.

As competências no ensino e no mercado de trabalho

A sustentação teórica, apresentada a seguir, recuperou conceitos de competência no contexto da administração geral e da educação, desencadeando, a partir destes, uma discussão sobre as políticas de educação e as políticas de saúde no país, vistas como determinantes estruturais dos modelos de formação na área de enfermagem e do ensino de Administração em Enfermagem. Considerados como um dos eixos norteadores do estudo, os determinantes estruturais que se relacionam e comutam influências entre si, são compostos por essas políticas sociais, que interferem na formação do enfermeiro e no mundo do trabalho.

No tocante ao conceito de competência, que remonta à Idade Média, esse já veio atrelado ao mundo do trabalho, com características comportamentais e de desempenho laboral (Nisembaum, 2000). O ressurgimento desse conceito na administração veio pelas competências essenciais (core competences) e foi apresentado por Hamel e Prahalad (1990) para designar as competências estratégicas, únicas e distintivas de uma organização.

Conforme apresentam Fleury e Fleury (2001, p. 190), a noção de competência, que deve agregar valor econômico para a instituição e valor social para o indivíduo, está associada a "saber agir, mobilizar recursos, integrar saberes múltiplos e complexos, saber aprender, saber engajar-se, assumir responsabilidades, ter visão estratégica".

Em sua trajetória histórica, as escolas de enfermagem brasileiras mostram, quer pelos conteúdos e metodologia adotados, quer pelo perfil de seu egresso, que sempre tentaram ajustar-se s exigências do mercado, situação que atrelou o ensino e a prática profissional do enfermeiro aos ditames das políticas centrais de saúde ou educação, em uma postura de aceitação passiva (Rodrigues, 2000).

Rodrigues (2000) acrescenta e alerta que se, por um lado, o aparelho formador persegue o ajuste às necessidades do mercado, por outro o mercado apresenta-se sempre inatingível, mesmo com as alterações curriculares propostas para tal tarefa. Por conseqüência, a formação do enfermeiro termina por não encontrar aderência em sua atividade prático-profissional, devido à sua constante submissão ao mercado de trabalho.

A utilização do conceito de competência na educação surge com a esperança de uma educação emancipatória. Porém ressalta que a proposta do ensino por competências pode ser um modismo que serve aos valores do mercado capitalista (Moraes, 2003).

Nessa situação, compactuamos com a análise de Ramos (2002) de que a noção de 'competência' não substitui a noção de 'qualificação'. Quando a noção de competência se ocupa da dimensão ético-política do trabalho com foco predominantemente psicológico, em detrimento do enfoque social, abre espaço para uma nova categoria ordenadora da relação trabalho-educação no capitalismo tardio.

Vale lembrar que os processos de trabalho na 'era das competências' têm sido analisados, de modo geral, por concepções que flutuam entre as abordagens interacionistas e funcionalistas. Segundo Ramos (2002, p. 291-292), na abordagem interacionista, "a competência torna-se característica psicológico-subjetiva de adaptação do trabalhador à vida contemporânea".

Ramos (2002, p. 292) afirma ainda que "a abordagem funcionalista situa a competência como fator de consenso necessário à manutenção do equilíbrio da estrutura social", considerando, entretanto, os fenômenos sociais como não históricos. Segundo ela, a abordagem funcionalista está fundamentada pela epistemologia do racionalismo positivista, próxima do irracionalismo interacionista que captaria apenas as partes visíveis dos fenômenos.

Ao tentar fugir do rótulo comportamentalista, característico dos sistemas de competência que associam o sujeito ao seu desempenho nas situações de trabalho, existe ainda a tentativa de fazer uso de uma visão mais atualizada e coerente na área da educação, que busca a aproximação da noção de competências com o construtivismo.

Considerando que, se a análise dos processos de trabalho da enfermagem ao serem particularizados nos subprocessos assistir, gerenciar, pesquisar e ensinar, segue o princípio de decompô-los em objeto, meios e instrumentos e atividades segundo a proposta marxista, a forma de apropriação das competências durante a formação do enfermeiro precisa aproximar-se da proposta construtivista.

Metodologia

Na intenção de seguir a metodologia proposta pela hermenêutica-dialética (Minayo, 2004), buscou-se interpretar, qualitativamente, os dados obtidos com base nas relações identificadas entre as competências gerenciais dos planos de ensino das disciplinas de Administração em Enfermagem do PPP de um curso de enfermagem, bem como nos discursos dos enfermeiros gerentes sobre as expectativas do mercado local de Curitiba. Para tal, procedeu-se à problematização das convergências e divergências entre a pesquisa documental e a fala dos entrevistados, e foram assinalados os conflitos e as contradições que, ao serem identificados, podem favorecer intervenções no âmbito do ensino.

Para justificar a metodologia utilizada no presente estudo, cabe destacar alguns dos seus aspectos fundamentais. A hermenêutica-dialética se pauta pela busca da compreensão de sentidos da hermenêutica, que esclarece as condições cotidianas, do contexto e as estruturas profundas da realidade; complementada pela dialética da razão que compreende, esclarece e reúne, mas também contesta e dissocia, ao analisar o mundo real marcado pelo caráter ideológico das relações de trabalho e poder (Minayo, 2004).

A interpretação dos dados com a utilização da hermenêutica-dialética aproxima-se da realidade, quando considera os aspectos extradiscursivos que constituem o espaço sociopolítico e econômico do contexto. A análise final deve dirigir-se para um trabalho que ofereça pistas e indicações de propostas de planejamento e avaliação de programas, revisão de conceitos, transformação de relações, mudanças institucionais, dentre outras possibilidades (Minayo, 2004).

Foram delineadas três fases para a elaboração do estudo. A primeira fase de coleta de dados foi baseada na análise documental do PPP da instituição de ensino superior em estudo, das DCNs e dos planos de ensino das disciplinas de Administração em Enfermagem. A pesquisa documental permitiu identificar e explorar impactos e tendências nas temáticas específicas. Nesta fase buscou-se levantar dados para identificar as competências gerenciais propostas nos planos de ensino das disciplinas que abarcam conteúdos de Administração em Enfermagem, bem como reconhecer a relação entre o PPP e o perfil do egresso proposto nas DCNs.

De acordo com a resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, foi obtida autorização dos sujeitos e das instituições envolvidas a partir das informações contidas nos documentos sob responsabilidade da coordenação do curso de enfermagem. Essa autorização foi formalizada pela coordenadora do curso em resposta a uma carta de apresentação do projeto de pesquisa, após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Entre os documentos analisados, constaram os planos de ensino das disciplinas de Administração em Enfermagem, a proposta atual do projeto político-pedagógico, as grades curriculares e as atas de reuniões do colegiado do curso de enfermagem.

Na segunda fase da coleta de dados, foram realizadas entrevistas com gerentes responsáveis pelos serviços de enfermagem das principais instituições de saúde que contratam enfermeiros em Curitiba. Nas entrevistas, pretendeu-se identificar as expectativas dos sujeitos em relação s competências gerenciais do enfermeiro ingressante no mercado de trabalho local.

Como critério de inclusão, primeiramente foram levantadas as instituições de saúde de Curitiba e selecionadas as que possuem maior número de enfermeiros em seu quadro de pessoal, por meio de consulta solicitada ao cadastro do Conselho Regional de Enfermagem do Paraná. Como nesta listagem constavam apenas instituições hospitalares e tendo constatado que duas instituições prestadoras de serviços de saúde coletiva abarcam em seu quadro de pessoal um contingente expressivo de enfermeiros, estas foram acrescentadas ao grupo selecionado.

Foram entrevistados 11 gerentes responsáveis por serviços de enfermagem. O tempo de entrevista variou de 20 a 75 minutos e todos os entrevistados concordaram com a gravação. A transcrição foi realizada logo após a entrevista. Para facilitar a análise dos dados, foi elaborada uma tabela com duas colunas. Na primeira coluna ficaram dispostas as falas dos entrevistados na íntegra, e na segunda eram selecionadas as unidades de significado emergentes, de acordo com os tópicos orientadores da pergunta. Posteriormente, essas unidades de significado foram agrupadas em temas que constituíram as categorias empíricas do estudo.

A técnica de análise de dados utilizada nas duas primeiras fases foi a análise de conteúdo que, segundo Moraes (1994), serve para descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos, bem como de material discursivo, auxiliando a reinterpretar as mensagens e a atingir a compreensão de significados para além da leitura do senso comum.

O tipo de análise de conteúdo utilizada nesse estudo seguiu as recomendações de Minayo (2004), que relaciona estruturas semânticas, consideradas como significantes, com estruturas sociológicas dos enunciados, consideradas significados. Significantes e significados são descritos e analisados pela articulação das seguintes variáveis: psicossociais, do contexto cultural, do contexto e do processo de produção da mensagem.

A análise temática foi escolhida como a técnica mais adequada para o trabalho em questão, por destacar o 'tema' como unidade de significação que permite descobrir os 'núcleos de sentido' que compõem uma comunicação, caracterizados pela importância das unidades de significação encontradas em Minayo (2004). Para a autora, as três etapas da análise de conteúdo são classificadas em: pré-análise, decomposta em leitura flutuante, constituição do corpus e formulação de hipóteses e objetivos; exploração do material, que consiste na operação de codificação; tratamento dos resultados obtidos e interpretação por meio de porcentagens ou análise fatorial para destacar as informações que propiciam inferências e interpretações em torno de dimensões teóricas sugeridas pelo material.

As categorias analíticas constituem pontos de referência gerais de uma análise dialética, mas "não necessitam estar presentes no discurso teórico que organiza o projeto de pesquisa. Dele devem constar definições que se fazem necessárias para surgir do 'caos inicial' o objeto específico com seus contornos gerais" (Minayo, 2004, p. 98). Nesse sentido, as categorias analíticas estão presentes no referencial teórico que fundamenta a análise das categorias empíricas identificadas a partir da análise documental e das entrevistas e surgidas dos discursos em função da pergunta norteadora da pesquisa. As categorias analíticas definidas no estudo foram: historicidade, totalidade, dinamicidade e práxis.

Aqui a historicidade é entendida pela mobilidade constante da história, determinada continuamente pelas transformações sociais. Para Egry (1989), a historicidade pode ser expressa por meio da compreensão da superestrutura político-ideológica e das transformações do trabalho, emergindo constantemente das necessidades sociais. Desse modo, a historicidade foi resgatada, no sentido de apreensão da noção de competência na perspectiva das políticas de saúde e educacionais, em seu recorte histórico; e da formação de competências na perspectiva da administração geral, da Administração em Enfermagem e do ensino do gerenciamento em enfermagem.

O plano da totalidade é entendido por Minayo (2004) como um todo coerente que apresenta correlações entre a realidade objetiva e outras unidades ligadas entre si, direta ou indiretamente.

A contínua transformação da realidade social, modificada no seu tempo e espaço forma o conceito desejado de dinamicidade, no qual estão inclusos as instituições, sociedades e processos de trabalho diversos.

A práxis foi escolhida como categoria analítica neste estudo por permitir caminhar da teoria à sua aproximação com a realidade. Segundo Minayo (2004, p. 232), isso acontece quando "o ato humano que atravessa o meio social conserva as determinações, mas transforma o mundo sobre as condições dadas". Essa categoria analítica advém de saberes anteriores e exteriores ao material de análise, específica quanto ao objeto definido.

As categorias empíricas, construídas a partir do tratamento analítico dos documentos da primeira fase e definidas com os discursos da segunda, aumentam a visibilidade do objeto de estudo e norteiam o processo de análise, reflexão e síntese com a interligação dos dados na terceira fase. Assim, as análises das duas primeiras fases foram perpassadas pelo constante movimento de ir e vir entre os dados empíricos para a formulação das categorias empíricas e da revisão teórica para o fortalecimento das categorias analíticas. Foram também abordados os contextos, tanto dos documentos analisados quanto dos sujeitos entrevistados, respeitando sua historicidade e dinamicidade, situando as descobertas nos seus loci e momentos próprios.

Em uma terceira fase, com base nas relações identificadas entre as competências gerenciais dos planos de ensino das disciplinas de Administração em Enfermagem e o PPP do curso de enfermagem e também nos discursos dos enfermeiros gerentes sobre as expectativas do mercado local, foram realizadas leituras norteadas pelo referencial teórico, procedendo-se à problematização das convergências e divergências e assinalando conflitos e contradições que favoreçam intervenções no âmbito do ensino.

Minayo (2004) reflete sobre o desafio da análise qualitativa em superar os esquemas interpretativos formais ou o funcionalismo, apresentando o método hermenêutico-dialético como o mais adequado para a interpretação aproximada da realidade, já que esse método busca contemplar, com base dialética, os conteúdos conflitivos e antagônicos presentes em nossa realidade social.

A hermenêutica é utilizada para a compreensão de textos, ao colocar-se no lugar do outro, tendo no cerne de sua fundamentação a noção de 'compreender' a partir da inter-relação entre quem emite a mensagem e quem a capta e interpreta. Considera-se como campo de análise da hermenêutica o indivíduo como ser histórico interpenetrado por todos os lados pela sua liberdade e necessidades, o senso-comum, a vivência e o símbolo.

A dialética considera como parte da realidade o conflito e a contradição. Busca nessa crítica, que pode advir de produtos sociais como no caso deste trabalho; da organização ou não de indivíduos na sociedade, de documentos e de instituições, as diferenciações que possibilitarão o dinamismo e a apreensão da totalidade do fenômeno estudado de modo a possibilitar transformações no cenário do ensino.

Enfim, uma interpretação que segue os princípios da hermenêutica-dialética busca apreender a prática social em seus movimentos contraditórios, levando em conta que esses indivíduos vivem em situações e contextos diferentes, condicionados por determinado momento histórico e que podem ter ao mesmo tempo interesses coletivos que os unem e interesses específicos que os distinguem e os contrapõem.

Os passos da análise de conteúdo, segundo Minayo (2004), seguidos nas duas primeiras fases, culminaram na interpretação dos dados na terceira fase, de acordo com o referencial da hermenêutica-dialética.

Os eixos norteadores analisados foram determinantes das dimensões: estrutural, os quais conformam as políticas de saúde e as políticas de educação; particular, representados pelas condições locais do mercado de trabalho da enfermagem e pela instituição de ensino; e singular, relacionados no âmbito do ensino de Administração em Enfermagem na instituição de ensino em que foi realizado o estudo.

Determinantes da dimensão estrutural

A dimensão estrutural, que abarca as políticas de saúde e as políticas de educação, tem como determinantes fundamentais os valores e interesses sociais que regem tais políticas. De um lado, a historicidade e a dinamicidade dos diferentes momentos histórico-sociais que conformaram o sistema de saúde brasileiro, definindo a trajetória de discussões coletivas, redundando na participação de gestores e trabalhadores dos serviços públicos de saúde, intelectuais e movimentos populares na construção do SUS, voltados para a lógica da epidemiologia. De outro lado, a dinâmica da globalização, movida pelos interesses capitalistas, que na história da saúde brasileira são representados por uma grande parcela dos serviços de saúde privados, instituições privadas de ensino da área de saúde e por diferentes segmentos assistenciais e gerenciais que defendem os modelos hegemônicos voltados para a lógica do mercado.

Sobre a dimensão estrutural, Bonetti e Kruse (2004) mostram, pela interpretação dos relatórios referentes à formação de recursos humanos da 8ª, 9ª, 10ª, 11ª e 12ª conferências nacionais de saúde, em uma retrospectiva histórica do período de 1986 a 2003, quais foram as políticas construídas para formar os profissionais que trabalham no Sistema Único de Saúde (SUS) no panorama da situação de saúde brasileira.

As informações obtidas, a partir desses relatórios, alertam para o descompasso existente entre a formação acadêmica e a realidade social do país e criticam a maneira desarticulada com que o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação conduziram as questões que envolvem as políticas de recursos humanos em saúde (Bonetti e Kruse, 2004).

Quanto à configuração política do setor saúde em relação aos recursos humanos na década de 1990, todas as modalidades de prestação de serviços - pública, privada e do terceiro setor - foram redefinidas pela regulação do Estado e seu financiamento nas formas de subvenções, incentivos fiscais, convênios, planejamento e gestão, ditada por uma coesão política que exige negociação permanente com as instituições e corporações profissionais. Nesse contexto, o desenvolvimento de recursos humanos para o SUS precisa abarcar um escopo maior que o tradicional cenário dos funcionários públicos da área de saúde e ampliar a sua abrangência para os recursos humanos vinculados s outras modalidades de prestação de serviços presentes no cenário nacional. O planejamento, implementação e avaliação dessas ações necessitam ainda do estabelecimento de ações conjuntas com os setores de educação e trabalho (Nogueira, 2002).

Nesse âmbito apreende-se que existem dois paradoxos: o primeiro, que tenta harmonizar os interesses do público e do privado em um mesmo sistema de saúde; e o segundo, que busca a articulação entre os responsáveis pela formação e pelo trabalho em saúde, norteada pelas necessidades da população adscrita em cenários locais.

Os gestores e trabalhadores dos serviços públicos de saúde, ao serem fortalecidos por competências construídas nas dimensões técnica, comunicativa, ética, política e de desenvolvimento da cidadania, poderão compartilhar poder e responsabilidades, até então retidas nas ações típicas e exclusivas da dimensão técnica da competência, expandindo-as às suas equipes de trabalho e à comunidade.

Aliar o fazer gerencial voltado essencialmente à racionalidade instrumental que enfatiza a dimensão técnica, à racionalidade possível diante do paradigma da complexidade e incorporar ao processo de trabalho em saúde as outras dimensões que permitem aos sujeitos sociais atuarem em seu papel relevante de transformação é essencial para construir um modelo de assistência à saúde alicerçado no SUS (Mishima et al., 1997).

No que se refere ao segundo paradoxo, este se expressa pelas dificuldades de comunicação entre os formuladores e os executores, nos diversos níveis das políticas de educação e das políticas de saúde e destes entre si, confirmado pelas expectativas conflitantes na prática assistencial de saúde, em que o mercado de trabalho aponta as lacunas dos profissionais no que diz respeito à autonomia e ao seu poder decisório. A análise do PPP sinaliza o distanciamento entre o projeto de autonomia e tomada de decisão e a formação que não facilita a aquisição de competências nas diversas dimensões almejadas.

Na dimensão estrutural, em que são demarcadas as DCNs que conduzem o planejamento e propiciadas as condições e os recursos para a sua implementação, também são realizadas avaliações quanto ao processo de formação profissional em saúde. No entanto, as dicotomias existentes entre educação e saúde, formação e prática assistencial se acentuam cada vez mais pela falta de diálogo entre os dois setores.

A divisão formal desses setores deveria otimizar o potencial de ação de cada um e o aprofundamento dos seus saberes específicos. Mas, ao invés de facilitar a gestão das questões da educação e da saúde, os determinantes que influenciam as duas instâncias fazem com que elas definam políticas que respondem a projetos distintos, que não se cruzam, tampouco se aproximam ou se articulam, no sentido de ouvir e atender s necessidades da população.

Determinantes da dimensão particular

A dimensão particular pode ser apreendida no âmbito da dinâmica das instituições concretas: universidade e serviço de saúde. Enquanto a instituição de ensino superior, analisada no presente estudo, por meio de seu PPP, pretende formar o enfermeiro prioritariamente para a dimensão política, comunicativa e de desenvolvimento da cidadania, o mercado de trabalho de enfermagem, representado pelos discursos dos gerentes de serviços de enfermagem, almeja absorver profissionais com ênfase na competência técnica.

Estão postos, a seguir, um trecho transcrito do PPP e outro da fala de um gerente, que ilustram a situação descrita:

"A natureza da organização do processo de trabalho emancipador deve ter como fundamento a interdisciplinaridade e a intersetorialidade" (UFPR, 2003, p. 20).

"As habilidades do enfermeiro devem permear as ações assistenciais, gerenciais e educativas aos usuários e funcionários" (Enfermeiro 10).

Ao demandar o desempenho da escola no que diz respeito s lacunas que se identificam na dimensão técnica do egresso, os porta-vozes do mercado trazem pontos que precisam ser melhorados no ensino, que não contradizem, necessariamente, os interesses da escola.

A intencionalidade de ambas as partes converge para a busca da formação de profissionais tecnicamente capazes e competentes. Entretanto, a ênfase pretendida pelo empregador na construção dessa competência técnica, que ocupa o lugar de sobreposição às demais dimensões, diverge do foco central do ensino proposto no PPP sub judice.

Na visão da instituição formadora, os conteúdos técnicos também são importantes. Entretanto, com a utilização de metodologias ativas no ensino de enfermagem, como a prática da problematização, os esforços estão voltados para o fortalecimento de outras dimensões das competências: ética, política, comunicativa e de desenvolvimento da cidadania. "O curso de enfermagem da UFPR busca favorecer o desenvolvimento das dimensões técnica, científica, ética, política, social, gerencial e educativa, com vistas à autonomia" (UFPR, 2003, p. 4).

Ao focar a realidade do mercado de trabalho local, a posição almejada pela escola encontra respaldo no argumento de que as informações que subsidiam o desenvolvimento de competências da dimensão técnica, per si, têm sido as mais enfatizadas e continuam sendo, em função do contexto dinâmico e complexo, imposto pela globalização na era da Informação.

A necessidade de atualizações constantes gera outros tipos de dificuldades que surgem, quando o profissional, formado a partir de referenciais pedagógicos 'conteudistas' com características voltadas a suprir necessidades imediatas do mercado, se torna rapidamente obsoleto, sendo descartado por ele. "O enfermeiro vem sem conhecimento básico, não sabe unir o técnico com o operacional e o administrativo. Na faculdade, não sabe atuar. Depois não se adapta ao dia-a-dia porque não tem tempo para pesquisar como fazia" (Enfermeiro 3).

Outra divergência fundamentada na interpretação dos dados obtidos na revisão teórica do presente estudo aponta que as instituições de ensino, orientadas pelas DCNs, de maneira geral pretendem contribuir para uma visão mais politizada do mundo do trabalho. Mas essa não é uma situação desejável para o mercado, pois desestabiliza o status quo, quando a instituição forma profissionais críticos e reflexivos que interrogam a realidade.

A dinâmica produzida pela cultura da globalização não permite questionamentos e exige profissionais aptos a atuar nesta 'roda' que gira permanentemente e prioritariamente no mesmo sentido. Uma parada para refletir e mudar os rumos poderia significar o descompasso da linearidade produtiva almejada pelos empregadores. A citação de um gerente de que as lacunas da formação necessitam ser supridas conforme o interesse institucional está presente na fala: "O hospital tem programa trainee para suprir as lacunas da formação com 400 horas de administração" (Enfermeiro 4).

As peculiaridades percebidas no âmbito da Academia, durante a pesquisa documental, apresentam divergências em diversas instâncias com os discursos dos gerentes enfermeiros entrevistados. Esta análise mostrou que as diferenças são marcadas inicialmente pelo foco para o qual cada um está voltado, seus valores e interesses e, posteriormente, pelo distanciamento advindo da falta de articulação e má comunicação entre a academia e os serviços.

Um exemplo de dificuldade para a articulação entre ensino e serviço aconteceu no período de 2002 a 2004, durante a discussão do PPP. As relações entre a escola e os enfermeiros do serviço foram estreitadas em alguns momentos, em função de convites aos enfermeiros e gerentes de serviços de saúde para compor o grupo de planejamento participativo e para definir os rumos da formação do enfermeiro à luz das DCNs.

Nesse momento, o objetivo era elaborar o PPP do curso de enfermagem. Mas, provavelmente, devido s diversas reuniões exigidas para o detalhamento na fase de elaboração e em função das demandas advindas, concomitantemente, do próprio ambiente de trabalho, os enfermeiros do serviço tiveram dificuldades em dar continuidade a essa participação e foram espontaneamente afastando-se e excluindo-se do processo. Isso comprova que os tempos de elaboração, na academia e nos serviços, são diferentes.

Quanto à representação dos usuários dos serviços de saúde no processo de elaboração do PPP, no sentido de atender ao discurso da participação coletiva, merecem ser realizadas algumas reflexões sobre o papel da universidade. Na relação ensino-serviço-comunidade na área de saúde, os profissionais dos próprios serviços atuam como interlocutores dos usuários dos serviços de saúde junto à universidade.

Já na relação direta da universidade com a comunidade, sua finalidade principal é o ensino e, mesmo considerando o trinômio ensino-pesquisa- extensão, o usuário direto da universidade é o aluno. Na nossa concepção de educação, é responsabilidade da universidade voltar-se para a formação do aluno como cidadão-profissional que atenderá s necessidades de saúde do usuário-cidadão, e não para a formação profissional restrita ao mercado de trabalho.

Na relação com os usuários de saúde, a universidade precisa construir, implementar e avaliar os projetos de extensão em parceria com os serviços e em conjunto com a comunidade. A articulação permite fundamentar propostas que respondam às necessidades detectadas; identificar e considerar os interesses que mobilizam os serviços para a consolidação dos projetos.

As transformações possíveis do espaço social, em que se dá a prática de saúde, advêm da efetiva comunicação entre universidade, comunidade e serviço. O papel dos serviços de saúde, neste contexto, é o de dar continuidade ao trabalho, visto que as ações consideradas positivas precisam ser incorporadas à prática assistencial.

Uma das possibilidades vislumbradas para mudar a perspectiva atual de distanciamento entre ensino e serviço, buscando uma transformação nessas relações, está na aproximação da instituição formadora com os enfermeiros dos serviços de saúde e com os usuários. Tal movimento se compõe de um ir e vir constante, mas é papel da universidade facilitar a articulação entre um e outro, engajando-se nos serviços para que ambas as instituições se qualifiquem e encontrem os caminhos alternativos para suprir suas dificuldades.

Para solidificar a parceria com os serviços de saúde, a universidade precisa cumprir seu papel social de levar conhecimentos e facilitar a apreensão do saber. Compor em conjunto o planejamento das disciplinas é outra estratégia a ser adotada.

É preciso que o serviço compreenda que o saber técnico sozinho não é suficiente, e isso exige reforço com o desenvolvimento de outras competências. O mercado quer uma prontidão do profissional em relação s competências técnicas. Observa-se nos discursos dos gerentes entrevistados que estes não evidenciam a importância da problematização na formação do enfermeiro.

"Conhecimento gerencial específico que falta: fazer escala, conhecer leis, CLT, código de ética, convenção dos hospitais, situação do SUS, códigos de procedimentos, pacotes. Materiais, economia, calcular indicadores (nunca trabalhou para entender) taxa de ocupação, saída, óbitos, transferências tem que explicar tudo" (Enfermeira 3).

Na dimensão particular, especificamente no PPP, em que se encontram expressas as propostas da universidade para formar o perfil do enfermeiro, chama a atenção o interesse desta, pela formação em pesquisa, com a intenção de que seu egresso tenha competência para "desenvolver, participar, aplicar e socializar a pesquisa e/ou outras formas de produção de conhecimentos que objetivem o desenvolvimento e a qualificação da prática profissional" (UFPR, 2003, p. 18).

Sem dúvida, a pesquisa representa avanço na formação do enfermeiro. Porém, desenvolvê-la e aplicá-la pode ser interpretado como desvio do papel do generalista no âmbito da graduação, existindo aí uma possível contradição com o preconizado nas DCNs.

Nas entrevistas com os gerentes dos serviços de enfermagem, também pôde ser identificado que, na opinião da maioria, não interessa ao mercado o perfil do enfermeiro pesquisador. A produção de conhecimentos é vista como um fator que consome tempo do profissional e recursos da instituição.

O discurso a seguir mostra que o aumento da competitividade no mercado de trabalho do enfermeiro faz com que aumente a procura de qualificação por parte dos profissionais, mas sem comprometimento institucional com esta qualificação.

"Os enfermeiros têm buscado mais conhecimentos e cursos repercutindo na gerência" (Enfermeiro 10).

O mercado de trabalho prefere adquirir o conhecimento acabado e profissionais que já venham com o conhecimento aplicável, a ser consumido no momento da sua produção, sem que se façam investimentos institucionais no processo de capacitação. Em geral, não se compromete com a educação permanente, prefere receber o conhecimento e repassá-lo adaptado para o 'fazer', sem maiores reflexões.

Determinantes da dimensão singular

Os determinantes da dimensão singular, considerados nesse estudo como aqueles que interferem no ensino de Administração em Enfermagem, estão representados pelo discurso dos sujeitos gerentes de enfermagem e nos documentos do PPP pelos planos de ensino das disciplinas que abarcam conteúdos daquela área de conhecimento.

Ao analisar três disciplinas da área de Administração de um curso de enfermagem do estado do Ceará, Forte e Pagliuca (2001) relacionaram conteúdos dessas disciplinas com o padrão cultural dominante das linhas filosóficas presentes na vertente tradicional da Administração. Chegaram à conclusão de que a ancoragem do conhecimento nessas disciplinas era realizada de forma conservadora, negando a necessidade de mudanças, provavelmente por preconceito ou medo de exposição à inovação.

Cabe aí assinalar que a mudança no ensino dessas disciplinas é necessária, mas estas devem ser identificadas e analisadas à luz dos determinantes e das conseqüências dessas mudanças no cotidiano da escola, de professores e alunos. É preciso estar atento aos padrões culturais norteadores da vida e missão social das categorias de enfermagem como política de vivência vitoriosa no mercado de trabalho em constante mudança, buscando a dimensão mental do fazer para ser significativo nesse mesmo mercado (Forte e Pagliuca, 2001).

O reconhecimento dos padrões culturais presentes no ensino atual permite diagnosticar as lacunas da formação, tanto no contexto interno organizacional quanto em relação s pressões externas que possam desprestigiar os interesses da categoria profissional dos enfermeiros nas relações com o mercado e as políticas sociais.

Forte e Pagliuca (2001) recomendam que o processo ensino-aprendizagem da Administração em Enfermagem ofereça 'tecnologia afetiva' e de sobrevivência para o novo mercado de trabalho do enfermeiro, mantendo o desenvolvimento da cidadania entre usuário e profissional como valor que governa o comportamento da categoria. Propõem ainda que os conteúdos das disciplinas sigam uma seqüência lógica, do simples para o complexo, evitando sua repetição, aumentando a inserção de aulas práticas para favorecer a práxis, agregando diferentes pensamentos filosófico-científicos.

Como os conteúdos administrativos permeiam todas as disciplinas do currículo, sua inserção deve acontecer em toda a grade curricular. Conteúdos relacionados a temas como ética também constituem eixos horizontais e devem ser discutidos com todos os docentes do curso, já que docentes das diversas áreas precisam buscar fundamentação epistemológica para fomentar o ensino da ética, integrá-lo com a realidade nos diversos níveis de ensino. A pedra angular desses conteúdos precisa ser os direitos humanos universais (Ferreira, 2004).

O curso de graduação em enfermagem é o curso da área de saúde que mais trabalha com temas relacionados à gestão e um grande número de enfermeiros ocupa cargos de chefia. No entanto, questionam-se os modelos de gestão que esses enfermeiros desenvolvem e se mantêm a dicotomia entre o que o mercado de trabalho solicita e os conceitos de saúde defendidos atualmente (Bonetti e Kruse, 2004).

No tocante à dimensão singular na área do ensino, as propostas tradicionais, que estão representadas pelos currículos anteriores ao aprovado pela resolução 12/96, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (UFPR, 2003), mostram que o ensino de Administração em Enfermagem da IES em estudo estava desarticulado com as demais disciplinas do curso e com as mudanças que ocorriam no mundo do trabalho, em especial na área de saúde, com a implantação do SUS.

A proposta atual dos planos de ensino das disciplinas de Administração em Enfermagem enfatizam a "instrumentalização do enfermeiro para o gerenciamento da assistência de enfermagem nas instituições prestadoras de assistência saúde, relacionando-o ao sistema político, econômico e social, s teorias administrativas e ao processo de trabalho de saúde e de enfermagem" (UFPR, 2003, p. 34).

A discussão sobre os modelos inovadores está presente na proposta elaborada no PPP atual, mas já apresentava indícios de surgir no currículo anterior, em andamento desde 1997, quando o ensino de Administração em Enfermagem foi desmembrado para fazer-se presente em três momentos do curso. A proposta que foi aprovada em 1996 estava em consonância com o contexto histórico da nova LDB e já trazia princípios pedagógicos discutidos nacionalmente e que culminaram na construção das DCNs.

O estudo documental mostrou pontos de convergência entre o PPP e as DCNs nos seguintes aspectos: em âmbito geral, nas competências gerais do curso, definidas para serem desenvolvidas durante a formação do enfermeiro; especificamente, nas competências gerenciais, identificadas a partir dos planos de ensino das disciplinas de Administração em Enfermagem, que se relacionam com os quatro pilares da educação e contemplam as competências gerais do enfermeiro apontadas nas DCNs; nos conteúdos programáticos propostos que ampliam os horizontes anteriores do enfoque tradicional da Administração e abrangem questões e conceitos voltados à gerência do cuidado como componente do processo de trabalho em enfermagem; nas interfaces propostas entre as disciplinas que abarcam os conteúdos de Administração em Enfermagem e conteúdos programáticos das outras disciplinas, fortalecendo a interdisciplinaridade.

A educação, seguindo a definição de Delors (2001), deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais para a vida das pessoas: aprender a conhecer, que busca o domínio dos próprios instrumentos para a construção do conhecimento; aprender a fazer, que se relaciona com o colocar em prática os conhecimentos da formação profissional e transformá-los com inovações constantes; aprender a conviver, em que não basta agrupar os diferentes, é preciso trabalhar em contextos igualitários, com projetos comuns que favoreçam a renovação; e aprender a ser, aprendizagem que busca a realização completa do ser humano, começando do conhecimento de si mesmo para se abrir à relação com o outro.

Todavia, estudiosos que seguem a linha filosófico-dialética como Ramos (2002) questionam os rumos que podem ser dados à aplicação dos quatro pilares da educação, já que esta abordagem tem sido utilizada pelo Banco Mundial para definir metas educacionais aos países sob a sua dependência.

Uma análise dialética das entrevistas, visualizada em sua dimensão singular, é capaz de situar em que divergem das DCNs as expectativas das competências gerenciais do enfermeiro, apontadas pelos gerentes de enfermagem entrevistados: 1) nas dificuldades em fornecer suporte institucional à aprendizagem e educação permanente do enfermeiro e equipe, com exceção dos treinamentos em serviço oferecidos para adaptar o funcionário à cultura organizacional; 2) na ênfase ao 'saber fazer' que prioriza a dimensão técnica no trabalho gerencial do enfermeiro em detrimento do 'saber ser' e 'saber conviver', o que dificulta o exercício das competências gerenciais nas dimensões ética, comunicativa, política e do desenvolvimento da cidadania; 3) nas limitações percebidas como dificultadoras da atuação do enfermeiro como mero cumpridor das exigências do mercado de trabalho.

A expectativa dos dirigentes do mercado de trabalho em enfermagem, de que o enfermeiro, contratado pela instituição de saúde, atenda s suas necessidades, contradiz a proposta da dimensão singular do ensino, respaldada pelo PPP na dimensão particular e pelo texto das DCNs, na dimensão estrutural, em que a formação deve estar voltada para o desenvolvimento de competências profissionais capazes de transformar o mercado, seja ele privado ou público. O agente de mudança com formação crítico-reflexiva precisa desenvolver, essencialmente, as competências gerenciais para a tomada de decisão, de liderança, de comunicação, de trabalho em equipe e educação permanente.

A gerência não foi relacionada por alguns dos entrevistados como saber a ser conquistado via processo ensino-aprendizagem. A resistência em aceitar que as competências gerenciais advêm da formação, seja ela formal ou informal, dificulta a reflexão ampliada sobre as diferenças entre o que é necessário aprender e o que é ditado como interessante para o 'fazer'. Para esse tipo de gerente, segundo Mishima et al. (1997), a gerência é um processo-fim e não um meio. Assim, a gerência é determinada e determinante do processo de organização do atendimento à saúde.

Os docentes das disciplinas da área de Administração em Enfermagem são co-responsáveis, assim como os demais docentes do curso, pela aproximação do enfermeiro do serviço com a escola. Na formação para o sistema de saúde brasileiro, as experiências do campo da prática na formação permitem fazer parcerias no ensino da gestão que redirecionem os processos de capacitação do aluno e a educação permanente do enfermeiro para atuarem no contexto do SUS.

Considerações finais

As estratégias utilizadas para desvelar e analisar o objeto deste estudo partiram do macrocontexto das políticas sociais, consideradas determinantes estruturais, percorreram os caminhos para a compreensão de como se dá a participação da dimensão particular em função das determinações do mercado de trabalho e da instituição formadora, e do reconhecimento dos determinantes da dimensão singular. Na dimensão singular, ao analisar os planos de ensino das disciplinas com conteúdos de Administração em Enfermagem, constatou-se que o foco é o desenvolvimento de competências gerenciais, convergindo com o proposto na dimensão particular da escola pelo PPP e com o perfil do egresso sugerido nas DCNs. A dimensão estrutural, representada pelas políticas de saúde, no que diz respeito ao SUS, corrobora a dimensão singular ao apontar em seu discurso a necessidade de formar profissionais de saúde com perfil transformador no seu espaço social.

As divergências surgem em face das necessidades de atendimento à demanda e produtividade das instituições de saúde, que representam o mercado de trabalho em enfermagem. Ao enfatizar a dimensão técnica do 'fazer', contradizem a ação crítico-reflexiva do enfermeiro, pretendida pelas várias dimensões do ensino e pelas políticas de saúde.

Uma das recomendações que advêm dos resultados deste estudo está relacionada com as divergências que emergiram da análise hermenêutica-dialética, no que se refere às diferentes intencionalidades da formação e do mercado de trabalho em relação s competências gerenciais esperadas do enfermeiro. A partir do diagnóstico que surge deste confronto, cabe buscar, para além da formação, a inserção do enfermeiro-cidadão no mundo do trabalho, vinculada s possibilidades de transformação da realidade.

Rodrigues (2000) considera que existem alternativas possíveis para superar os limites dos dois lados, ensino e mercado de trabalho. Afirma ainda que tal superação acontecerá quando o ensino deixar a sua postura de neutralidade e assumir-se ao lado do profissional que forma.

Uma das alternativas para ampliar a visão dos profissionais do mercado de trabalho seria aproximá-los do ensino por meio de parcerias que abrissem as portas para sua atualização e incluíssem outros componentes das equipes. Uma programação de educação permanente poderá ser elaborada com o propósito de superar o domínio teórico-prático solicitado pelo mercado de trabalho, transformando os sujeitos em agentes inovadores e transformadores de sua realidade, inseridos e valorizados no mundo do trabalho.

A discussão sobre o trabalho do enfermeiro e da equipe de enfermagem deve ser promovida constantemente entre ensino e serviço com o objetivo de redesenhar os processos de trabalho.

Notas

Recebido em 19/04/2007

Aprovado em 05/10/2007

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  • 1
    Professor adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Brasil. Doutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo (USP). <
  • 2
    Professora titular da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil. Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. <
  • 3
    Professor adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Brasil. Doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). <
  • Endereço para correspondência:
    Rua Batista Pessine, 560
    Curitiba, Paraná, Brasil, CEP 80820-000.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Nov 2007

    Histórico

    • Recebido
      19 Abr 2007
    • Aceito
      05 Out 2007
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