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Entrevista: Jaime Breilh

Interview: Jaime Breilh

Resumos

Jaime Breilh é professor da Universidade Andina Simón Bolivar, no Equador. Entretanto, para a saúde coletiva, o nome desse pesquisador equatoriano se conecta diretamente com o pensamento crítico em epidemiologia, que não se resume a afirmar a saúde como uma produção social, mas investiga e adverte quanto aos modos pelos quais a sociedade capitalista consolida desigualdades profundamente vinculadas a uma ‘economia da morte’. Nesta entrevista,1 1 Entrevista concedida a Angélica Ferreira Fonseca, editora científica deTrabalho, Educação e Saúde e professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz, que contou com a colaboração de Larissa Jatobá, estudante de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina. Traduzida do espanhol por Andrea Moll. , 2 2 A versão da entrevista de Jaime Breilh em língua espanhola está disponível em: <http://scielo.br/tes>. concedida em março, quando ele esteve no Brasil para participar do V Seminário da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, Breilh faz uma análise crítica dos caminhos que a epidemiologia tem trilhado e propõe reposicioná-la como uma área de conhecimento comprometida com uma ‘economia da vida’. Para tanto, discute as relações que se estabelecem entre opções teóricas e uma ação política e ética direcionada ao enfrentamento das iniquidades sociais.


Jaime Breilh is a professor at Universidad Andina Simón Bolivar (Ecuador). However, for collective health, this Ecuadorian researcher's name is directly linked to the critical thought on epidemiology that is not limited to affirming health as social production, rather investigates and warns about the extent to which the way the capitalistic society consolidates inequalities that are deeply connected to an ‘economics of death.’ In this interview,1 1 Entrevista concedida a Angélica Ferreira Fonseca, editora científica deTrabalho, Educação e Saúde e professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz, que contou com a colaboração de Larissa Jatobá, estudante de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina. Traduzida do espanhol por Andrea Moll. , 2 2 A versão da entrevista de Jaime Breilh em língua espanhola está disponível em: <http://scielo.br/tes>. granted in March, when he was in Brazil to take part in the 5th Seminar of the National Front against the Privatization of Health, Breilh made a critical analysis of the paths epidemiology has followed and proposes to reposition it as an area of knowledge committed to an “economics of life.” To this end, he discusses the relationships that are established between theoretical options and political and ethical action directed towards facing social inequalities.


Jaime Breilh es profesor de la Universidad Andina Simón Bolívar (Ecuador). Sin embargo, en el caso de la salud pública, el nombre de este investigador se vincula directamente con el pensamiento crítico en epidemiología, es decir que no ve simplemente a la salud como una producción social, sino que investiga y advierte acerca de las maneras en que la sociedad capitalista consolida la desigualdad, profundamente ligada a una “economía de la muerte”. En esta entrevista,1 1 Entrevista concedida a Angélica Ferreira Fonseca, editora científica deTrabalho, Educação e Saúde y profesora e investigadora de la Escuela Politécnica de Salud Joaquim Venâncio, de la Fundación Oswaldo Cruz, que contó con el apoyo de Larissa Jatobá, estudiante de Medicina de la Universidad Federal de Río de Janeiro y miembro de la Dirección Ejecutiva Nacional de los Estudiantes de Medicina. concedida en el mes de marzo, cuando se encontraba en Brasil para participar en el V Seminario del Frente Nacional contra la Privatización de la Salud, Breilh hace un análisis crítico de los caminos que la epidemiología ha recorrido y propone reubicarla como un área de conocimiento comprometida con una “economía de vida”. Con esa finalidad, analiza las relaciones que se establecen entre las opciones teóricas y una acción política y ética dirigida al enfrentamiento de las inequidades sociales.



Revista

Admitindo-se que todo saber pode ser apropriado pelo poder hegemônico, de que forma você vê a epidemiologia fortalecendo concretamente as características do capitalismo do século XXI?

Jaime Breilh

A epidemiologia tem uma história muito variada em tendências, em momentos históricos. Mudou muito. Esse aspecto da vinculação da epidemiologia com o poder passou por etapas muito complicadas, inclusive teve o que eu chamo de uma história non santa. Por exemplo, em momentos de mudanças na América Latina, como foi o caso da Revolução Mexicana, há vários estudos sobre o papel da epidemiologia, no caso da febre amarela, no controle da situação política da revolução, para viabilizar a entrada de investimentos norte-americanos em um México que, durante a revolução, praticamente tinha rompido relações com os Estados Unidos. É um pequeno exemplo histórico de um momento em que as campanhas baseadas na epidemiologia tiveram um efeito político favorável ao poder imperialista, nesse caso os Estados Unidos. Durante os anos neoliberais, quando se tencionava diminuir ao máximo a presença do público e a saúde foi privatizada, os elementos do pacto social começaram a se fechar, as populações de trabalhadores e do exército informal, por assim dizer, foram ficando em uma situação cada vez pior. Naquela época, a epidemiologia também participou no cálculo daqueles mínimos, chamados de ‘pacotes de cobertura’. Infelizmente, esses pacotes foram baseados em muitos estudos epidemiológicos. E agora parece que a epidemiologia pode se utilizar do espaço cibernético e das informações nas redes sociais. Toda essa enorme informação sobre a nossa vida pessoal que está na internet, facebook, twitter etc., essa informação está sendo utilizada comercialmente, por um lado, e agora, comuma visão da epidemiologia convencional, essas informações são utilizadas para pesquisas sobre consumo de medicamentos, atitudes dos pacientes etc., que finalmente acabam tendo usos comerciais. Esses são três exemplos de uma vinculação direta aos interesses comerciais. Mas há também outra implicação. Uma epidemiologia, mesmo feita com boas intenções, mas a partir de um modelo convencional de fatores de risco, acaba escondendo as profundas razões pelas quais temos ou não problemas de saúde. Então, eu diria que, por um lado, há os usos diretos da epidemiologia como ferramenta lucrativa ou política. E, por outro, há esse modelo epidemiológico causalista, sustentado pela teoria dos fatores de risco, que gera diagnósticos de saúde não relacionados com as profundas condições estruturais e de vida da população, mas que falam desse mundo dos fenômenos que cercam a doença e justificam uma prática monopolista e uma ação de saúde funcionalista.

Revista

Pode-se então dizer que esse modelo epidemiológico (Teoria dos Fatores de Risco) enfraquece a ideia de determinação social? Ou seja, ao invés de contribuir para desvelar processos de determinação social, ele estaria contribuindo, por meio da fragmentação, para torná-los menos visíveis?

Jaime Breilh

Sim, exatamente. Eu acho que nós fragmentamos a realidade e assumimos uma conceitualização estatística, probabilística. Começamos perguntando se há uma lista de fatores de risco, qual explica uma maior proporção de variação da variável em estudo; e transformamos isso em uma política pública ou em uma política de saúde. Ou seja, esse fragmento. Portanto, é um recurso para focalizar em vez de transformar. Em vez de agir em um processo integral, agimos de acordo com fatores de risco específicos.

Revista

Hoje, um gestor da saúde, ao dizer que elabora políticas baseadas na produção de evidências científicas, acredita estar fazendo um discurso de compromisso social. Para ele, isto equivale a dizer que não está correndo riscos com os recursos públicos, ao optar por investir no que, comprovadamente, produz resultados. Mas sabe-se que a produção de evidência científica ocorre a partir de modelos de estudos que não são capazes de abordar problemas de diversas naturezas. Eles são limitados. Poderia falar um pouco sobre o tema?

Jaime Breilh

Concordo com o que você acabou de dizer, mas também concordo que as evidências são importantes para o conhecimento e para a ação. Mas, como você disse: Quem constrói a evidência? E a partir de qual modelo? Porque, se as evidências são feitas por aqueles que detêm interesses econômicos, ou seja, se são evidências ligadas aos interesses, logo, essas evidências estarão naturalmente enviesadas, e serão adequadas a esses interesses e não à realidade. Portanto, devemos refletir sobre quem produziu as evidências e onde são publicadas. Há também agora uma consciência crescente sobre revistas, jornais, revistas de peer review, que sofrem influência e controle dos boards [diretores de empresas do ramo editorial], que são os que decidem os leitores, e o leitor, finalmente, decide qual trabalho vai para a revista e qual o trabalho que não se enquadra. Recentemente, vi um interessante trabalho de David Backet, que diz: “Eu confesso, quero tirar este peso da minha consciência, porque eu sei que essa questão do peer review tem se prestado para uma série de armadilhas e há definitivamente coisas que não entram na revista, e não é porque não tenham valor.” Então, se estamos vivendo em um mundo onde o interesse econômico e o interesse empresarial pressionam sobre os conteúdos e o que é admitido ou não nas revistas, se nós temos apenas essas evidências como evidências para a nossa reflexão, então estamos partindo de um ponto de vista errado.

Por outro lado, por mais bem intencionadas que sejam, se as evidências estão construídas a partir de uma epidemiologia convencional, que não integra processos nas múltiplas dimensões e não relaciona as questões com a estrutura socioeconômica, política, e com os grandes condicionamentos culturais, elas serão obviamente focalizantes, reducionistas e, evidentemente, as ações serão igualmente reducionistas. Essa é a sequência observada, e, consequentemente, é muito importante que na construção das evidências, a partir da epidemiologia crítica, elas se tornem evidências para serem usadas na reflexão sobre os programas.

Revista

Você diria que houve, por parte da epidemiologia hegemônica, um abandono do conceito de totalidade, um desinvestimento na compreensão dos fenômenos sociais em sua relação com os processos de adoecimento e de saúde?

Jaime Breilh

É um abandono do conceito de totalidade, mas acho também que é uma maneira errada de entender a totalidade. Porque a totalidade, na visão positivista, é o somatório dos fragmentos. A epidemiologia convencional diz: o centro lógico de tudo é um indivíduo afetado por fatores. Logo, este é o indivíduo e esses são os fatores de risco. Fator de risco um, fator de risco dois etc. Isto é: primeiro, o assunto é individualizado; segundo, os fatores externos são identificados, e tenho que agir sobre cada um deles para corrigir o problema. Essa visão pode ser bem intencionada. Nessa visão, essa seria a totalidade. A totalidade é a suma soma das relações deste indivíduo, desse outro e daquele outro. Eu faço a soma de toda a estatística e digo: eis a minha totalidade. Essa é uma visão cartesiana em que as partes são fundamentais, e as partes, quando somadas, oferecem uma ideia da generalidade. Acho que nós partimos de uma visão diferente, porque trabalhamos processos que combinam a estrutura, os modos de vida dos grupos e as condições individuais de vida, e também os efeitos finais nas pessoas, mas articulando sempre as três dimensões, compreendendo que essa unidade em movimento é a realizada, sem atomizá-la, mas mostrando os vínculos. E é por isso que o conceito de determinação social da doença é diferente do conceito de determinantes sociais da doença. Sobre esta questão, esta diferença, há três livros escritos na América Latina, e acredito que isso é importante.

Revista

A epidemiologia incorporou uma série de instrumentos modernos das tecnologias da informação para pensar a questão do espaço, a questão da distribuição espacial dos problemas do território. Mas parece que essa ação também não produziu ainda um salto para aprofundar uma reflexão sobre as relações sociais no espaço e as condições que definem o bem-viver ou o mal-viver, “uma economia da morte ou uma economia da vida”, como você diz.

Jaime Breilh

Bem, você sabe que quando um curso de epidemiologia convencional começa, normalmente afirma-se que há três categorias básicas: lugar, pessoa e tempo. A epidemiologia estuda o lugar, a pessoa e o tempo. Nesses três conceitos está um dos eixos da concepção convencional. Porque nós temos: individual, em vez de coletivo; lugar como lugar físico e não como uma geografia crítica do processo; e tempo como uma foto congelada e não como uma história das coisas. A crítica é para essa visão de lugar, tempo e pessoa. Acho que a epidemiologia crítica tem trabalhado para proporcionar uma visão diferente e isso significa repensar a noção de espaço. Acredito que aí temos muito que assimilar da geografia crítica, da história do pensamento crítico da geografia, onde estão os textos teóricos de Lefèbvre, David Harvey, Milton Santos, que são pilares da visão de uma geografia diferente, integral, uma geografia não física, não de localizações empíricas, mas uma geografia em movimento e ligada ao sistema social que a condiciona. São visões diferentes da geografia. A epidemiologia convencional utiliza a geografia e a estatística, e não podemos dizer que por terem sido mal utilizadas não servem ou têm de ser descartadas, não é? A estatística foi concebida a partir de uma epistemologia positivista.

Revista

A crítica ao conhecimento de base positivista é bastante frequente, mas você sinaliza claramente alguns de seus desdobramentos na epidemiologia.

Jaime Breilh

Acho que devemos reconhecer a riqueza dos modelos estatísticos incubados no Positivismo, mas entendendo que uma coisa é a utilização da estatística, e outra é assumir, por exemplo, que o princípio básico da verdade é o experimento. Todos os modelos epidemiológicos transversais, casos e controles, longitudinais; todos os modelos da epidemiologia estão baseados na ideia de que o mais perfeito da ciência é o experimento. Isto é, quando posso controlar as variáveis e contrastar grupos randomizados. Ou seja, eu tenho grupo A, grupo B, grupo C; faço três tratamentos e obtenho efeitos, que observo e comparo. Se a realidade A for diferente da B, então eu tenho um efeito diferente. O experimento é o princípio básico do pensamento positivista. E é por isso que os textos clássicos de epidemiologia dizem que o estudo exploratório é transversal; que estudo caso-controle é interessante; mas que o longitudinal é o mais demonstrativo porque é o mais parecido com o experimento, porque é a visão experimental a que estabelece a pureza da observação empírico-analítica em um estudo. Essa estatística, gerada a partir dessas bases, não pode ser descartada, mas sim identificado o que é útil nela, quais os elementos, onde estou me apoiando, quais os aspectos que posso resgatar da estatística, que é uma ferramenta muito poderosa e importante. Agora, esse mesmo instrumento visto a partir de um paradigma diferente tem outros usos, tem implicações diferentes. A análise é conduzida de forma diferente, as variáveis são concebidas e trabalhadas de maneira diferente, ou seja, o paradigma é que determinará como é que eu vou usar a técnica. A estatística é uma técnica. O mesmo eu diria da geografia. Se a geografia é utilizada por um epidemiologista positivista, vai usá-la de uma forma. Se for trabalhada a partir de uma perspectiva crítica, será utilizada de outra maneira. E talvez acabemos usando o ArcGIS, um software de geografia, mas como é que vamos usá-lo? Eu uso SPSC e ArcGIS o tempo todo, mas o que faço com esse instrumento? O que procuro? Como articulo a minha construção explicativa? Que perguntas eu fiz à realidade? O que articulei na realidade? É diferente, e, portanto, a ferramenta me ajuda a fazer coisas diferentes daquelas que eu faria a partir de uma visão com outro paradigma.

Revista

A lógica de pensar a saúde coletiva de forma vinculada aos requisitos do sistema capitalista e, consequentemente, à mercantilização da vida tem impactos diretos sobre a formação. Aqui me refiro especificamente à formação do trabalhador da saúde. Sobre esse tema, o que você observa de resultado mais imediato quanto à formação de sujeitos que poderiam aderir a uma perspectiva mais crítica do campo da saúde?

Jaime Breilh

Bem, eu fui um dos que insistiu muito em que uma ciência crítica não pode ser feita com uma ferramenta tradicional. Isto é, não é pelo fato de ter boas intenções e clareza política que vou usar a velha epidemiologia, porque posso domesticá-la com base nas minhas ideias. Porque não há coerência entre o modelo teórico epidemiológico e uma visão crítica da realidade. É por isso que começamos o movimento da epidemiologia crítica. Porque muitas pessoas pensavam que era suficiente ter boas ideias. Por que mudar a epidemiologia se com a epidemiologia tradicional se poderia trabalhar?

Mas há uma contradição entre o modelo epidemiológico tradicional e uma construção teórico-política diferente. Daí a necessidade. Agora, o que você está dizendo é a grande tragédia da América Latina, porque há muitas universidades onde a maioria utiliza um modelo antigo de saúde pública. Tudo é positivismo. Então, como construir um ponto de vista diferente dos profissionais nesse tipo de cenário?

Revista

Embora as universidades tenham mudado bastante, pouco tem sido acrescentado para posicioná-la como espaço de contestação.

Jaime Breilh

Sim, é isso do que se está falando agora. Inclusive há quem defenda que a universidade se transformou no que é chamado de ‘universidade pós-acadêmica’. Ou seja, a universidade baseada nos clássicos princípios de Merton, da ciência dos valores, da ciência independente, da ciência universal, que procurava grandes princípios explicativos, tornou-se uma universidade onde se utiliza uma ciência pós-acadêmica, que definitivamente é uma ciência burocratizada, instrumental para o poder. São universidades que perguntam: qual a produção, como apoiar a produção, como resolver as questões do poder institucional. É uma ciência por contrato, a la carte. É uma ciência por demanda institucional do poder. No campo da saúde pública isso é uma tragédia. Eu disse isso anteriormente em um congresso de epidemiologia no Brasil. Eu me preocupei muito porque há um grande contingente de pessoas que está fazendo epidemiologia nesse modelo, o velho modelo, e ainda convencidas de que estão na fronteira da ciência!

Revista

O que a epidemiologia ganha por aderir? Alguma coisa ganha, não?

Jaime Breilh

É claro que ganha, porque se os cursos acadêmicos aderem a um modelo convencional, quando você publica, se você agir direito, consegue publicar, e os seus artigos são acolhidos. E se você acumular artigos compeer review você ganha pontos, tem prestígio, vai a congressos, obtém projetos de pesquisa, ou seja, você está na reprodução social dessa linha.

Revista

São benefícios individuais, compatíveis com uma sociedade profundamente individualista.

Jaime Breilh

É um modelo academicista, funcional, muito competitivo, muito individualista. Não é um modelo de uma ciência comprometida, contra-hegemônica. Esta não vai ser publicada ou, pelo menos, terá maiores dificuldades para ser publicada no que é o mainstream da ciência.

Revista

Na sua produção teórica, você tem tratado dos 4S (sustentabilidade, solidariedade, soberania e seguridade integral) compreendidos como princípios para a sociedade da vida e de sua relação com cinco dimensões da saúde. Poderia retomar essa articulação (entre os 4S e as cinco dimensões da saúde)?

Jaime Breilh

De uma forma resumida, eu diria que a saúde individual está ligada à saúde coletiva, e saúde coletiva depende da validade desses princípios. Se a vida não é sustentável, se a sociedade não é solidária, se não há soberania, controle sobre a vida, e finalmente, se não há segurança, biossegurança na natureza e no ser humano, não podemos ter modos de vida saudáveis.

E esses princípios precisam ser expressos em tudo o que é modo de vida. No meu trabalho, argumento que o modo de vida ocorre em vários espaços, em vários momentos de reprodução social. Um deles é o espaço do trabalho, onde a gente desenvolve a atividade produtiva. Outro é o espaço de consumo, doméstico, da mobilidade, onde se dá a reprodução da condição de sujeito social. Uma terceira dimensão seria o espaço organizacional, político, os suportes comunitários e familiares que existem, que é toda a vida política, de vinculação ao redor de interesses e projetos históricos que um grupo possa ter. Um quarto espaço seria o da cultura, onde a identidade, a subjetividade e as visões de mundo são construídas. E, finalmente, o espaço ecológico, o espaço ecossistêmico onde nos movimentamos. Essas são as cinco dimensões, cada uma das quais deve cumprir com os 4S.

Revista

Um termo que não aparece na sua fala é ‘avaliação’, que, do meu ponto de vista, pode ser entendida como uma tecnologia de gestão amplamente difundida. O que poderia nos dizer para ajudar a refletir sobre o lugar dos indicadores e sobre o cenário no qual a avaliação aparece não como uma possibilidade de reflexão, mas como um modelo de resposta aos encaminhamentos que são dados à política, em particular na saúde?

Jaime Breilh

O problema não é a avaliação. O problema está no modelo de avaliação. Posso avaliar um povo, em um momento histórico. Por exemplo, posso dizer qual a condição da saúde no Brasil no novo milênio. Mas como é que eu vou avaliar? Quais os critérios? Critérios clássicos, por exemplo, são: eficácia, eficiência e efetividade, ok?

A construção da eficácia, da eficiência e da efetividade depende do modelo conceitual, do modelo teórico que foi utilizado para entender essa realidade. Para alguns, pode ser eficaz um modelo que simplesmente se reduza a níveis mínimos de cobertura. Ou um modelo que atinja uma meta de uma redução percentual de morbidade ou mortalidade etc. Esse é um modelo de avaliação, mas se eu pretendo, por exemplo, avaliar o grau de desenvolvimento da sustentabilidade, da soberania, da solidariedade e da condição de biossegurança ecossistêmica integral, vou precisar construir outro tipo de relações e outros indicadores. Agora estamos fazendo no Equador um estudo comparativo de três cenários na zona de produção de banana.

Revista

Na zona de produção de banana…

Jaime Breilh

O Equador é o maior produtor de banana do mundo. Temos muitos anos de trabalho com as organizações de agricultores que lutam para desenvolver uma produção agroecológica de banana. Eles trabalham sem produtos químicos, ou seja, são sustentáveis, são solidários, protegem a biodiversidade, protegem os ecossistemas e têm um nível de suporte organizacional. Ou seja, estão atendendo melhor os 4S, mas dizem que são 20% menos produtivos do que a empresa bananeira de agroexportação, que usa produtos químicos, que opera de forma convencional. Então, debatendo com os colegas, chegamos à seguinte conclusão: as organizações de agricultores produzem 20% menos caixas de bananas por semana do que a empresa bananeira de agroexportação, mas para produzir 20% mais caixas de banana por semana, esta empresa usa produtos químicos, utiliza sistemas de produção perigosos, contamina a água, prejudica a saúde de trabalhadores desprotegidos etc. Quanto custa isso? Não custa nada? Essas externalidades não têm custo? Têm, sim. Então, vamos ver quanto custam, incorporar esse dado na contabilidade e ver se ela ainda é 20% mais eficiente, mais efetiva. Estamos criando o indicador produtividade líquida e efetividade real e desempenho real para confrontar essa visão.

Essa é a base sobre a qual espero, algum dia, começar uma negociação de políticas públicas de apoio aos trabalhadores. É uma visão diferente de construir a avaliação.

Revista

(Pergunta de Larissa Jatobá) O que nós, como estudantes, podemos falar para um professor de epidemiologia quando nos deparamos com esse modelo tradicional que está presente mesmo na universidade pública? Como abordar esse professor e colocar em questão essa forma de pensar a epidemiologia?

Jaime Breilh

É terrível, porque o professor tem o poder de dar a nota e tem controle sobre a disciplina. Portanto, você está em desvantagem. É complicado. É uma pergunta muito difícil porque implica que, se há um ensinamento baseado em um modelo antigo, enquanto não receber as suas notas, eu não sei… Eu vou dar um conselho, um pouco cínico talvez, mas se há uma chance de conversar e a pessoa tem uma abertura científica mínima, você pode dizer: O que o senhor acha? Eu tenho essas ideias, essas perguntas, essas dúvidas. Eu não acho que isso explica isto ou aquilo, o que o senhor acha? O senhor concordaria se no meu trabalho, no meu ensaio ou no meu projeto, eu abordasse essas questões? Se ele disser que sim, você trabalha em uma linha diferente. O importante é que você compreenda onde estão os equívocos do professor. Em uma situação de doutorado, por exemplo, quando você tiver que apresentar suas ideias, vai ser mais fácil negociar e não poderão prejudicá-la. Entretanto, é preciso elaborar uma estratégia e, principalmente, entender que essa solução nunca será pessoal. Você sozinha não vai resolver nada. Ou a instituição muda porque as pessoas se organizam e reclamam mudanças nessa disciplina ou você sozinha só terá a perder.

Revista

Aproveitando seu comentário, gostaria de discutir o processo de conversão da participação popular em representação individual. Na saúde, movimentos sociais das décadas de 1970 e 1980 possibilitaram a criação dos conselhos de saúde, que deveriam ser espaços para promover a participação popular. Mas parece que, em vários contextos, tem se dado mais no modelo de representação individual do que no de efetiva participação popular.

Jaime Breilh

Bem, eu não sei o suficiente sobre a realidade do Brasil. Sempre tive a ideia de que os conselhos do SUS eram um avanço, e acho que de alguma forma eles são, embora haja muita variação de uma cidade para outra, de um estado para outro. Mas, por exemplo, na área de Porto Alegre, o orçamento participativo e as experiências de decisão coletivas das políticas dos orçamentos têm sido importantes. Não conheço o suficiente para dizer se há uma burocratização desses conselhos ou não. Talvez a realidade seja muito heterogênea e haja áreas onde eles estejam burocratizados, instrumentalizados por algum partido político, e outras áreas onde sejam mais independentes, mais críticos. Não sei. Em outras realidades, no entanto, percebe-se que é muito claro. No Equador, a mudança foi feita para, em vez de ter uma representação natural orgânica, formar um poder de pessoas mediante um concurso de méritos. O concurso de méritos é para o conselho de participação. Cada pessoa apresenta o seu expediente, o seu currículo, e aqueles com a melhor pontuação fazem um teste, daí saem os conselheiros. Pode tratar-se de gente de valor inestimável, pessoas muito inteligentes, mas o problema é que são pessoas. Então, a quem eles devem? Porque, além disso, o Governo lhes paga um salário, e um bom salário. Se você é uma pessoa e tem um salário, tende a fazer o que é preciso para mantê-lo.

Revista

Existem determinados modos de atuar que podem futuramente ser apresentados como modelos a seguir. É possível que, sob uma bandeira de ‘qualificação’, se esvazie a mobilização social mais autêntica?

Jaime Breilh

A participação popular tem que ser nos conselhos, mas também tem que ser forte, independente, autônoma e soberana, do lado de fora. Em outras palavras, somos parte do Estado, mas não do sistema público. O Estado é o conjunto, mas a participação não pode ser instrumentalizada e burocratizada. Mas, obviamente, você vai ter que conversar e discutir as políticas com os ministros, governadores e prefeitos. Em algum momento você tem que falar, não pode dizer: não falo com ninguém do Governo para não me contaminar. Você precisa debater. Mas se você tem força, se tem uma organização independente, a discussão transforma isso no que chamo de ‘condução pública-social’, uma vez que essa burocratização, no fundo, interpreta erradamente que tudo deve ser regido pelo Estado. Então, o Estado é o reitor e nada fora do Estado. É um erro, porque a sociedade civil organizada fora do Estado tem que entrar no debate da condução pública-social da gestão.

Revista

Já há um conjunto interessante de discussões nesta entrevista, mas gostaria de encerrar abrindo espaço para que você fale livremente sobre algo que possa complementar o que já foi dito.

Jaime Breilh

Toda vez que eu venho ao Brasil fico emocionado, fico motivado porque é um país grande, maravilhoso, cheio de gente fazendo coisas num turbilhão de ideias, de debates. Isso me faz sentir bem e a gente pensa que este país, como eu dizia outro dia, é um país-continente e o que acontece no Brasil é muito importante, não só para o Brasil, mas para o resto da América do Sul. O Brasil enfrenta um dilema: ou se torna um dos grandes irmãos do Sul da América ou se torna uma nova opção imperial. E da solução desse dilema vai depender tudo, a saúde brasileira especialmente. Então, tomara que o povo tenha a sabedoria para se organizar e manter um Brasil do Sul e não um projeto de Norte no Brasil.

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    Entrevista concedida a Angélica Ferreira Fonseca, editora científica deTrabalho, Educação e Saúde e professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz, que contou com a colaboração de Larissa Jatobá, estudante de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina. Traduzida do espanhol por Andrea Moll.
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    A versão da entrevista de Jaime Breilh em língua espanhola está disponível em: <http://scielo.br/tes>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015
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