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Educação e trabalho em disputa no SUS: a política de formação dos agentes comunitários de saúde

RESENHAS REVIEWS

Educação e trabalho em disputa no SUS: a política de formação dos agentes comunitários de saúde. Márcia Valéria Morosini. Rio de Janeiro, EPSJV, 2010, 202 p.

Helena Maria Scherlowski Leal David

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Rio de Janeiro, Brasil <helena.david@uol.com.br>

O livro de Márcia Valéria Morosini apresenta-se como uma contribuição fundamental para fazer avançar uma análise ampliada e crítica sobre o processo de formação para o trabalho do agente comunitário de saúde (ACS). É sobretudo no desvelamento das forças que constituem a arena de disputa entre projetos diversos, tendo como premissa a indissociabilidade entre educação, trabalho e gestão do trabalho em saúde, que a autora desenvolve uma ampla análise do processo de formação do ACS no país, com foco nas formulações e processos mais recentes, ainda em curso.

O trabalho do agente comunitário de saúde tem se configurado como um campo privilegiado para analisar a dinâmica da gestão, formação e processos de trabalho em saúde, e os diversos interesses em jogo. O Brasil chega à primeira década do século XXI como, até onde se sabe, o único país a ter constituída, no plano normativo e legal, a profissão de agente comunitário de saúde. Trata-se de um processo de profissionalização intrincado, permeado por avanços, retrocessos e mudanças rápidas, em função dos contextos políticos nacional e locais, das novas regras jurídico-administrativas e da própria dinâmica dos territórios aos quais estão vinculados os ACS.

O fato de ter o território onde vive como o lócus e o objeto de seu trabalho confere singularidade ao ACS, e desdobra-se em contradições e questões que seguem desafiando as análises com foco neste ator profissional. Do território ao qual se vincula para o serviço de saúde, ou do serviço para o território, em que sentido se desenvolve a dinâmica da atuação do ACS como mediador? E em que direção caminham as políticas que se foram definindo em torno do trabalho deste ator social? É o ACS uma profissão de transição, de passagem? Contrato por prestação de serviço, concurso público, contrato de trabalho formal, qual a forma mais adequada de vinculação trabalhista? Muitas perguntas, que seguem sendo formuladas por gestores, pesquisadores, e pelos próprios ACS e suas representações.

Com base em uma perspectiva crítica e de defesa da saúde como direito, assume-se que a capacidade de estabelecer laços orgânicos no apoio às estratégias de enfrentamento e à organização política das pessoas que vivem no seu território/comunidade, aliada ao seu engajamento em práticas e movimentos sociais evidenciam a importância do ACS como ator fundamental para fazer avançar a mudança direcionada para um modelo assistencial que reafirme a equidade, a integralidade, a humanização e a participação popular. No entanto, do ponto de vista da gestão e da formação para o trabalho, quais avanços e questões se impõem como desafios a serem superados nesta direção?

No livro, a autora se apoia na perspectiva crítico-dialética, tanto no que se refere à forma de desenvolvimento do texto argumentativo como na problematização de alguns aspectos que se apresentam como chaves conceituais importantes para o debate sobre a formação do ACS. Na apresentação, são explicitadas as escolhas teórico-metodológicas, com destaque para os conceitos de sociedade civil, trabalho e qualificação, sustentados por produção filosófica e acadêmica de tradição marxista. Os dois primeiros situam o ACS no contexto da Política de Atenção Básica brasileira, sistematizando uma cronologia relativa aos processos de inserção dos ACS, desde o surgimento das primeiras propostas locais e nacionais. Trata-se de um texto de caráter descritivo, que vai progressivamente favorecendo a imersão da leitura na direção do núcleo de tensões produzidas em torno da formação e do trabalho do ACS. No entanto, em que pese o caráter descritivo destas partes do livro, alguns parênteses analíticos se abrem em torno de temas como as políticas de formação e educação permanente em saúde, e o processo de profissionalização do ACS, articulados ao processo político geral de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS).

O terceiro capítulo é onde se aprofunda a dimensão da disputa a partir dos diversos interesses colocados na arena da formação do profissional ACS. É neste momento que documentos legais, normativas, debates e produções acadêmicas que nortearam as propostas recentes são esmiuçados e reinterpretados, pela autora, à luz do referencial teórico crítico, para a explicitação de interesses políticos e perspectivas ideológicas e pedagógicas diversas. A memória destes processos, para além de conformar um importante estoque de informações históricas, é compreendida, para recuperar as palavras da autora, "como a capacidade que os atores têm de revisitar o vivido e construir novos sentidos a partir da reflexão e crítica sobre os fatos, emoções e sentimentos evocados no processo de retorno ao passado" (p. 62).

É aqui também que a perspectiva dialética da análise permite a leitura dos cenários em torno da formação do ACS como realidade fetichizada, que acaba por assumir um aspecto independente dos diversos interesses políticos que se constituem como pano de fundo deste debate. Destacamos, à guisa de exemplos, os temas 'qualificação profissional' e 'currículo por competências', temas recorrentes em todo o livro, que neste capítulo são debatidos com base nos textos da legislação voltada para a formação de trabalhadores de saúde e dos ACS. Ainda como exemplo sobre a clareza que a abordagem dialética confere à forma analítica e argumentativa do livro, trazemos um parágrafo que problematiza a questão da definição das competências profissionais do ACS e que, ao mesmo tempo, aponta para a desconstrução de uma aparente 'simplicidade' no trato de questões relativas à formação do ACS como mediador social:

Pode-se notar que a maior parte das competências então atribuídas aos ACS poderiam ser destinadas a todos os trabalhadores da equipe de saúde da família, o que dificulta a apreensão da especificidade do trabalho do agente comunitário de saúde e acaba compondo um par com a origem comunitária deste trabalhador. É como dizer que o ACS fará isso tudo de um modo próprio, em função de sua origem comum àqueles a quem seu trabalho visa (p. 80).

No quarto capítulo, aprofundam-se as bases teóricas do texto, mediante os resultados trazidos pela análise dos documentos e registros que compõem o material empírico que deu origem ao livro. Aqui, também a discussão sobre a definição das competências profissionais e curriculares nos processos formativos de agentes comunitários de saúde é radicalizada, valendo-se de eixos político-filosóficos como relação entre teoria e prática no trabalho, e naturalização do trabalho do ACS como trabalho simples.

O quinto capítulo destaca a questão do perfil social do agente, em decorrência do seu decantado papel de mediador social entre os serviços de saúde e os territórios. Esta é uma discussão que vem interessando a um crescente contingente de pesquisadores, pelo desafio da sua difícil apreensão como objeto de análise acadêmica. Embora haja consenso quanto a se constituir como característica essencial do ACS, este papel de mediador social difere - e muito - no que tange às diversas interpretações sobre o que efetivamente se entende e se quer dizer ao utilizarmos o termo 'elo de ligação'.

Márcia Valéria Morosini aborda a espinhosa discussão, que se desdobra em outras questões que estão a exigir atualização e debate, levantando perguntas como: quais os significados e sentidos do termo 'comunitário' que nomeia o ACS? Por que e para que temos, e continuamos a ter (se é que o queremos), agentes comunitários de saúde no Brasil?

O filósofo Karel Kosik nos descreve o mundo da pseudoconcreticidade da vida cotidiana como "claro-escuro de verdade e engano" (p. 11), e, nesta perspectiva dialética, o texto do livro de Morosini nos avisa que o mundo da formação e do trabalho do ACS não se oferece apenas como campo de discussões técnicas ou pedagógicas, apontando para uma arena na qual se apresentam, ou estão escamoteadas, disputas e lutas sociais e políticas.

No momento atual, em que os debates sobre a política pública de saúde estão sendo reconduzidos às arenas coletivas,1 1 O texto foi escrito em janeiro de 2011, nos primeiros dias do governo da presidente Dilma Rousseff, em meio a diversos debates públicos sobre os perfis dos quadros a serem definidos para os cargos no Ministério da Saúde, nos quais também o escopo e os objetivos das políticas de saúde têm sido trazidos. faz-se relevante travar novas discussões sobre o trabalho do agente comunitário de saúde, priorizando a participação ampliada dos sujeitos ACS, repolitizando o debate a partir da questão da formação. Stotz, em análise sobre as lutas dos trabalhadores e a relação com a saúde, nos lembra que:

O desafio maior do movimento organizado dos trabalhadores consiste em transformar movimentos e lutas locais ou mesmo regionais em movimentos políticos, sob os termos mais amplos da seguridade (ou proteção) social. Em última análise, é o próprio perfil das políticas públicas e sua relação com o regime político democrático que está em pauta nesta perspectiva (Stotz, 2003, p. 33).

Neste sentido, é mais que oportuna a discussão trazida por este livro. A dimensão da historicidade dos processos formativos de trabalhadores de nível médio e as contradições que o atravessam podem ser pelo leitor analisadas, num texto que recupera e sistematiza um conjunto de informações detalhadas relativas aos contextos políticos e aos interesses em jogo no tabuleiro das políticas de educação e gestão do trabalho no SUS.

Nota

  • KOSIK, Karel. Dialética do concreto 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, 230 p.
  • MOROSINI, Márcia Valéria. Educação e trabalho em disputa no SUS: a política de formação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2010, 201 p.
  • STOTZ, Eduardo Navarro. Trabalhadores, direito à saúde e ordem social no Brasil. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 25-33, 2003.
  • 1
    O texto foi escrito em janeiro de 2011, nos primeiros dias do governo da presidente Dilma Rousseff, em meio a diversos debates públicos sobre os perfis dos quadros a serem definidos para os cargos no Ministério da Saúde, nos quais também o escopo e os objetivos das políticas de saúde têm sido trazidos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
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