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O método analítico-sintético de Julius Kaiser: um pioneirismo para o tratamento temático da informação

Julius Kaiser's analytic-synthetic method: Pioneering for the subject approach to information

Resumo

O desenvolvimento do método analítico-sintético, normalmente atribuído a S. R. Ranganathan, teve suas bases iniciais definidas na indexação sistemática elaborada por J. Kaiser em princípios do século XX, cerca de duas décadas antes do aparecimento da classificação facetada. O presente artigo busca sustentar a proposição de que, ao unir o princípio filosófico de categorização (para análise) com a lógica pragmática da indexação de assuntos (para síntese), quando da elaboração de sua forma de indexação, Kaiser concebeu as bases fundamentais do método analítico-sintético. O quadro teórico que subsidia o estudo é formado pela bibliografia pertinente ao tratamento temático da informação, notadamente no que se refere à classificação bibliográfica, à catalogação de assuntos e à indexação. Adotando como abordagem metodológica o pragmatismo de William James, investigou-se como a sistemática procedimental do método de indexação de Kaiser se configura como precursora do método analítico-sintético. Os elementos fundamentais da investigação foram os componentes da análise, a realização da análise, a realização da síntese e os produtos da síntese, contemplando, assim, as dimensões analítica e sintética dos trabalhos desenvolvidos por Kaiser e por Ranganathan.

Palavras-chave:
Classificação dos dois pontos; Classificação facetada; Método analítico-sintético; Tratamento temático da informação.

Abstract

The development of the analytic-synthetic method, normally attributed to S. R. Ranganathan, had its initial foundation defined in the systematic indexing developed by J. Kaiser at the beginning of the 20th century, some two decades prior to the appearance of the faceted classification. This study aims to support the proposition that by combining the philosophical principle of categorization (for analysis) with the pragmatic logic of indexing of subjects (for synthesis), as Kaiser elaborated his form of indexing, he conceived the underpinning bases for the analytic-synthetic method. The theoretical table which subsidized the study is comprised of the bibliography pertinent to the subject approach to information, particularly regarding bibliographic classifica tion, subject cataloguing and indexing. Using William James's pragmatism as our methodological approach, we investigated how the procedural systematics of Kaiser's indexing method emerges as a forerunner to the analytic-synthetic method. The fundamental elements of the investigation were the analysis of components, conduction of analysis, synthesis and products of the synthesis, thus including the analytic and synthetic dimensions of the works carried out by Kaiser and Ranganathan.

Keywords:
Classification of the two points; Faceted classification; Analytic-synthetic method; Subject tratament of Information.

Introdução

A forma de elaborar índices para assuntos especializados, desenvolvida pelo bibliotecário alemão naturalizado norte-americano Julius Otto Kaiser (1968-1927) em princípios do século XX, embora não tenha alcançado merecido destaque nos compêndios da Biblioteconomia e da Ciência da Informação, estabeleceu bases fundamentais para o quadro teórico e metodológico do tratamento temático da informação. O termo tratamento temático da informação se refere à denominação subject approach to information, empregada por Foskett (1973FOSKETT, A. C. A abordagem temática da informação. São Paulo: Polígono, 1973. ), ao abordar a dimensão temática da organização da informação.

O trabalho desenvolvido por Kaiser vem ganhando destaque nas últimas décadas, em estudos como os de Coates (1988COATES, E. J. Subject catagues: Headings and structure. London: The Library Association, 1988.), Dousa (2010aDOUSA, T. M. Julius Otto Kaiser's systematic indexing: A study of its theoretical content in its historical context. 2010. (Doctorate degree Philosophy in Library and Information Science) - University of Illinois, Urbana-Champaign, 2010b., 2010b), Sales (2012SALES, R. A presença de Kaiser no quadro teórico do tratamento temático da informação (TTI). 2012. 190f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação ) - Universidade Estadual Paulista, Marília, 2012. , 2014SALES, R. A organização da informação de Julius Kaiser: o nascimento do método analítico-sintético. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2014. ) e Svenonius (2000SVENONIUS, E. The intellectual foundation of information organization. Cambridge: MIT Press, 2000.). Duas foram as obras publicadas por Kaiser para divulgar seu sistema de indexação: "The Card System at the Office" (1908) e "Systematic Indexing" (1911). Segundo o próprio autor, o leitor deve entender ambos os livros como duas partes de uma mesma obra, em que a primeira contextualiza todos os aspectos que envolvem o tratamento de documentos de escritórios, e a segunda apresenta detalhadamente o sistema de indexação elaborado para ambientes especializados.

Atuando profissionalmente em bibliotecas, arquivos e escritórios de instituições especializadas no Reino Unido e nos Estados Unidos, Kaiser esteve envolvido com a especificidade de documentos empresariais e de escritórios. Dada a particularidade de tais documentos, Kaiser desenvolveu uma forma sistemática de indexação, denominada systematic indexing, baseada no princípio teórico da categorização, que serviria tanto para a análise quanto para a síntese dos assuntos especializados.

Para o universo do tratamento temático da informação, a noção de categoria tem importância capital, seja na categorização de grandes assuntos organizados pelas tabelas de classificação, seja na categorização de discursos que expressam assuntos, tratados pela indexação. No tocante à classificação e à indexação, as categorias foram fundamentais nos sistemas desenvolvidos por Kaiser e também por Ranganathan. Nesse sentido, as categorias aristotélicas, bem como as categorias de Kaiser e de Ranganathan, serão abordadas aqui de modo a evidenciar o resgate da noção de categorização realizada por Kaiser e sua posterior utilização no universo do tratamento temático da informação. Esse resgate se fez imperativo para o desenvolvimento da parte analítica dos sistemas de Kaiser e também de Ranganathan, fato que os aproxima no que se refere à dimensão analítica de seus respectivos métodos.

Para explicitar Kaiser como pioneiro do método analítico-sintético no universo do tratamento temático da informação, torna-se necessário relacionar também a elaboração da síntese na indexação de Kaiser com a síntese desenvolvida por Ranganathan em seu esquema facetado. Desse modo, relacionando os caminhos (métodos) percorridos por ambos, poder-se-á, numa abordagem pragmatista, sustentar o argumento de que Kaiser, lançando mão da análise por categorias e definindo regras de síntese para a construção de enunciados de assuntos, foi quem primeiro estabeleceu as bases de um método considerado analítico-sintético. Dito de outra maneira, o objetivo deste artigo é demonstrar que Kaiser foi o pioneiro do método analítico-sintético para o universo do tratamento temático da informação.

Nesse contexto, se a categorização está presente nas atividades atinentes ao tratamento temático da informação, não é descabido associar o sistema preconizado por Aristóteles com os métodos desenvolvidos por Kaiser e Ranganathan. Porém, há que ressaltar que, de forma nenhuma, pretende-se ligar diretamente o sistema aristotélico aos sistemas desenvolvidos pela Biblioteconomia dos séculos XIX e XX, ignorando, assim, descabidamente, os inúmeros trabalhos desenvolvidos por filósofos, pensadores e classificacionistas das Idades Média e Moderna. O que se pontua é tão somente o resgate do pensamento de 'categorias' realizado por Kaiser no século XX quando da elaboração de seu sistema de indexação.

Quando Aristóteles (384-322 a.C.) tornou público seu tratado das categorias, concedeu ao pensamento ocidental um meio de organizar o conhecimento, ou o conhecimento que se tinha das coisas existentes. Porém, não é proposta desta investigação aprofundar a discussão de qual seria a abordagem de Aristóteles ao definir suas categorias, muito menos buscar esclarecer questões filosóficas de ordem metafísica no pensamento aristotélico. Limita-se, por ora, ao entendimento a respeito da noção de categorização preconizada pelo filósofo grego.

Aristóteles criou um sistema de pensamento baseado em categorias que atravessou os séculos e que até hoje, não isento de questionamentos ao longo da história da Filosofia, é tido como eficiente ao universo do conhecimento e, por conseguinte, ao universo da organização do conhecimento. Neste estudo, foi intencionalmente desconsiderado o juízo desfavorável às categorias aristotélicas, mesmo quando advindo de respeitáveis pensadores. Nessa perspectiva, "o trabalho obstinado dos comentadores terminou afastando como insustentável a opinião [contrária] sobre o tema [categorização] de grandes nomes da filosofia, como, por exemplo, Kant, Hegel e Stuart Mill" (MATA, 2010MATA, J. V. T. Introdução às categorias. In: ARISTÓTELES . Categorias . 2. ed. São Paulo: Martim Claret , 2010, p. 11-66. (Coleção A obra prima de cada autor, 305)., p.65).

Uma das pretensões deste artigo é mostrar como o tratamento temático da informação, valendo-se da noção aristotélica de categorização, desenvolveu o método analítico-sintético. Mais que isso, objetiva-se evidenciar Kaiser como o responsável, no universo do tratamento temático da informação, pela introdução da análise e da síntese de assuntos por meio de categorias.

Procedimentos metodológicos

Adotando como abordagem metodológica o pragmatismo de William James, cujo foco recai nos caminhos percorridos e nas possibilidades de realizações teóricas, investigou-se como a sistemática procedimental do método de indexação de Kaiser pode se configurar como precursora do método analítico-sintético. Desse modo, a relevância do método de Julius Kaiser é aqui apresentada tendo em conta a união, por ele proporcionada, do princípio filosófico de categorização com o pragmatismo exigido pela indexação sistemática.

Adotou-se, para o propósito do presente estudo, a abordagem de James, para quem "o método pragmático é, primariamente, um método de assentar disputas metafísicas que, de outro modo, se estenderiam interminavelmente [...] O método pragmático nesses casos é tentar interpretar cada noção traçando as suas consequências práticas respectivas" (JAMES, 2006JAMES, W. Pragmatismo. São Paulo: Martin Claret, 2006., p.44). Nesses termos, James (2006)JAMES, W. Pragmatismo. São Paulo: Martin Claret, 2006. 'coloca uma pedra' em qualquer pretensão de resultados especiais ou de verdades absolutas e define o pragmatismo não como uma teoria, mas sim como um método.

Citando o pragmatista Papini, James (2006JAMES, W. Pragmatismo. São Paulo: Martin Claret, 2006.) explica o método pragmático por meio de uma analogia que pode ser parafraseada da seguinte maneira: imagine-se o corredor de um hotel que liga inúmeros quartos, sendo o corredor o método pragmático e os quartos as teorias. Nos quartos, teóricos definem e desenvolvem suas teorias. Na medida em que eles desejarem um meio prático de sair e retornar aos seus respectivos aposentos, para efetivamente obterem contato com o mundo concreto, é necessário percorrer o corredor do hotel. Nesse sentido, é possível visualizar que o pragmatismo está no meio das teorias, configurando-se como uma ligação das teorias com o mundo externo, caracterizando-se, assim, como "possibilidade de realização", como caminho possível para acessar os conhecimentos.

É sob essa perspectiva de pragmatismo enquanto método, enquanto caminho, enquanto "corredor de hotel", que a presente pesquisa lançou olhar sobre os métodos desenvolvidos por Kaiser e por Ranganathan. Melhor dizendo, foram os caminhos percorridos por ambos, ao tecerem suas respectivas formas de tratamento temático da informação, que delimitaram os focos da presente investigação.

Uma vez que a abordagem pragmatista de James (2006JAMES, W. Pragmatismo. São Paulo: Martin Claret, 2006.) sugere e orienta que, para compreender os fenômenos e objetos de estudo, deve-se focalizar no 'como' as coisas acontecem e não em 'o quê' as coisas são, a presente pesquisa buscou, do ponto de vista metodológico, relacionar de forma comparativa a 'realização da análise' e a 'realização da síntese', tanto na indexação de Kaiser quanto na classificação de Ranganathan.

Esta investigação, respaldada pelo pragmatismo de William James, entende e assume a posição de que método não é, sobretudo nas Ciências Humanas e sociais, um conjunto de etapas a serem cumpridas para se alcançar um objetivo específico, pois tal configuração se aproximaria muito mais de técnicas utilizadas para coletar, analisar e apresentar resultados, do que de uma perspectiva capaz de subsidiar uma reflexão ou uma argumentação teórica. O método consiste, na perspectiva de James (2006), em um olhar que serve a uma abordagem.

Nesse sentido, e em respeito ao pragmatismo de William James, o que se apresenta a seguir não são resultados de procedimentos metodológicos, mas, sim, o fruto de uma abordagem metodológica. Foi com a orientação pragmatista que se buscou sustentar a proposição (ou o pressuposto) de que Kaiser foi o precursor do movimento analítico-sintético.

Para tanto, a trajetória investigativa passou primeiramente pela compreensão das dimensões analíticas desenvolvidas por Kaiser e Ranganathan, o que pressupõe um olhar na noção aristotélica de categorização e, posteriormente, pelas dimensões sintéticas definidas por ambos os bibliotecários. Assim, conforme apresentado a seguir, tornou-se possível abordar comparativamente ambos os sistemas (a indexação de Kaiser e a classificação de Ranganathan) com base em seus respectivos métodos, suas respectivas realizações.

Resultados e Discussão

Considera-se que em pesquisas desta natureza, cuja essência é a reflexão que fundamenta a argumentação, os resultados e as discussões fazem parte de um movimento inverso. Diferentemente do que de praxe se encontra na estruturação dos artigos científicos da área, em que primeiramente se apresentam os resultados de pesquisa para depois discuti-los, em uma pesquisa que trabalha para construir um argumento que busca sustentar uma proposição os resultados são frutos da própria discussão. Tal fato tornaria incoerente querer discutir os resultados após a apresentação dos mesmos, uma vez que o resultado é o produto da própria discussão.

Desse modo, apresentam-se os resultados da investigação em conformidade com a trajetória da reflexão e da argumentação construídas neste estudo, ou seja, primeiro se discute, depois se chega a algum tipo de resultado.

O resgate da categorização

O termo categoria, traduzido em português também por predicado ou atributo, foi pioneiramente definido por Aristóteles, no século IV a.C., em seu tratado intitulado Categorias, primeiro livro que compõe o Órganon - obra fundamental que reúne os principais livros de lógica do filósofo. O livro Categorias é considerado pelos historiadores da filosofia como uma espécie de tratado, no qual Aristóteles mais se preocupou em dar por conhecidas as categorias do que em explicá-las. A explicação aprofundada das mesmas, ainda que não a contento geral, viria à tona somente na sua obra Metafísica. É como se Aristóteles primeiro criasse seus instrumentos ontológicos para depois desenvolver sua lógica, ou, como prefere Mata (2010MATA, J. V. T. Introdução às categorias. In: ARISTÓTELES . Categorias . 2. ed. São Paulo: Martim Claret , 2010, p. 11-66. (Coleção A obra prima de cada autor, 305).), criasse os elementos fundamentais para a sua teoria da linguagem.

A polêmica, ou melhor, o embate filosófico em torno das categorias aristotélicas começava já pelo escopo do termo 'categoria'. Havia uma tendência em distinguir atributo de predicado, pois, enquanto o primeiro dizia respeito às coisas, o segundo se referia às expressões. Porfírio parecia, ao menos momentaneamente, resolver a discussão, afirmando que "Porque como as coisas são, assim são as expressões que primeiro as exprimem" (MATA, 2010MATA, J. V. T. Introdução às categorias. In: ARISTÓTELES . Categorias . 2. ed. São Paulo: Martim Claret , 2010, p. 11-66. (Coleção A obra prima de cada autor, 305)., p.15). O fato é que o termo categoria parecia, ou parece, cobrir adequadamente os termos definidos por Aristóteles em seu tratado das Categorias, a saber: Substância, Quantidade, Relação, Qualidade, Quando, Onde, Estar--em-uma-posição, Ter, Fazer e Sofrer, sendo que as nove últimas se caracterizavam como predicados da primeira, que é o fulcro da proposição - sujeito a que se dirige a predicação.

Embora a distinção entre atributo e predicado seja uma discussão alheia e posterior ao tratado, vale ressaltar que, mesmo diante do fato de muitos afirmarem que a substância não é predicado de nada, e sim sujeito dos demais predicados, Mata (2010MATA, J. V. T. Introdução às categorias. In: ARISTÓTELES . Categorias . 2. ed. São Paulo: Martim Claret , 2010, p. 11-66. (Coleção A obra prima de cada autor, 305).) afirmava ser a substância um predicado da própria matéria (ente). Talvez, por esse motivo, seja plausível, ou sustentável, o fato de as categorias aristotélicas também serem conhecidas por atributos ou predicados. O uso do termo predicado, ou predicamento, é também justificado etimologicamente, pois o termo katêgoria, oriundo da linguagem judicial para designar a acusação (incriminação), advém do verbo kategorein, que foi traduzido para o latim como predicare (HÖFFE, 2008HÖFFE, O. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008. ). A discussão a respeito do fio condutor que levou à obtenção (por dedução ou por indução) das categorias, o grau de fluidez e de permanência de cada categoria, os aspectos ontológicos, lógicos, metafísicos e linguísticos que permeiam a tábua categorial de Aristóteles, conduzidos por polilógicos debates de influentes pensadores, parece ser de fato papel dos estudos filosóficos. Concentra-se, por ora, na contribuição do sistema categorizado de Aristóteles ao universo do tratamento temático da informação.

As categorias de Aristóteles

Antes de definir as categorias, Aristóteles (2010ARISTÓTELES. Categorias. 2. ed. São Paulo: Martim Claret, 2010. (Coleção A Obra Prima de Cada Autor, 305). , p.69) afirmou: "Das coisas que são ditas, umas são ditas segundo complexão; outras sem complexão". O filósofo exemplificou as coisas ditas com complexão (vínculo entre sujeito e predicado) com as sentenças 'o homem corre' e 'o homem vence', e as coisas ditas sem complexão (sem vínculo entre os elementos) com as expressões 'homem', 'corre', 'vence'. Assim, Aristóteles distinguiu as coisas que são ditas de maneira conectada daquelas que não o são. As categorias são as coisas ditas sem complexão, ou seja, são membros da proposição que devem ser considerados antes mesmo da ligação com outros componentes. Cabe lembrar que nem todos os componentes de uma proposição são categorias, como, por exemplo, "as expressões lógicas (todos, alguns, um)" ou "os juntores (não, e, ou, se, então)" (HÖFFE, 2008HÖFFE, O. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008. , p.150). Isoladas, as categorias não podem ser afirmadas ou negadas, não são verdadeiras nem falsas, elas simplesmente existem, segundo o sistema aristotélico, e servem para a compreensão das proposições, ou seja, por meio da identificação das categorias se tornam possíveis uma análise e uma compreensão mais aprofundada do conhecimento que se tem do mundo e das coisas do mundo.

Importante, agora, é procurar entender quais são os elementos isolados por Aristóteles (as categorias) e como esses elementos se articulam nas proposições. O filósofo apresenta e exemplifica suas categorias no Quarto Capítulo de seu livro, da seguinte forma (ARISTÓTELES, 2010ARISTÓTELES. Categorias. 2. ed. São Paulo: Martim Claret, 2010. (Coleção A Obra Prima de Cada Autor, 305). ): Substância (homem, cavalo); Quantidade (dois côncavos, três côncavos); Qualidade (branco e gramatical); Relação (metade, maior); Onde (no Liceu, na ágora); Quando (ontem, antes); Estar--em-uma-posição (está deitado, está sentado); Ter (está calçado, está armado); Fazer (cortar, queimar); Sofrer (ser cortado, ser queimado).

Essas categorias designam 'cada uma das coisas ditas sem nenhuma complexão'. Porém, como dito anteriormente, as categorias, por si só, nada afirmam. Embora possam e devam ser consideradas antes de serem conectadas aos demais componentes de uma proposição, é mediante a complexão delas entre si que ocorre a afirmação (ARISTÓTELES, 2010ARISTÓTELES. Categorias. 2. ed. São Paulo: Martim Claret, 2010. (Coleção A Obra Prima de Cada Autor, 305). ), como, por exemplo, o cavalo branco - complexão entre a substância cavalo e a qualidade branco. Embora não sejam nem verdadeiras nem falsas por si sós (pois, isoladas, as categorias nada afirmam), elas consistem em elementos fundamentais que compõem as proposições - tronco do pensamento lógico de Aristóteles.

Analisar proposições com base nas categorias que as compõem é uma herança definitivamente marcante para o sistema do pensamento ocidental. No que se refere à organização e à compreensão de discursos e de assuntos, a noção de categorização pode ser considerada um marco inicial para a concepção de qualquer procedimento analítico.

A substância é a categoria fundamental do tratado aristotélico, e todas as demais categorias são coisas relativas à substância. É necessário ressaltar que a substância tratada por Aristóteles nas categorias é a substância sensível e corruptível, é aquela admitida por todos, como as plantas e os animais. Talvez seja esse o ponto que mais distanciou Aristóteles de seu mestre, pois, enquanto Platão defendia que um conhecimento aprofundado sobre os seres sensíveis era algo não realizável, ou melhor, o mundo perceptível não poderia ser objeto do conhecimento, Aristóteles 'arriscou' uma teoria que descrevesse o mundo sensível. No tratado aristotélico, a substância figura no interior da proposição como categoria mais resistente e mais permanente que as demais categorias que formam o predicado. Para esclarecimentos a respeito da divisão entre primeira e segunda substâncias, propriedades acidentais e essenciais ou, ainda, proposições canônicas e atípicas, Sales (2014SALES, R. A organização da informação de Julius Kaiser: o nascimento do método analítico-sintético. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2014. ).

Quando Aristóteles fundamentou ontologicamente as proposições por meio de categorias, trouxe ao universo do conhecimento (sobretudo ocidental) uma forma própria de conhecer; trouxe uma "forma sistemática de pensamento" - a noção de categorização. É dessa noção de categorização que Kaiser se valeu para resolver seu sistema de indexação.

A análise para Kaiser: concretos e processos

Para investigar a dimensão analítica em Kaiser, é necessário retomar a noção exata do universo que o bibliotecário se propôs a analisar. Conforme apresentado anteriormente, o universo analisado por Kaiser era a literatura especializada, mais especificamente a business literature - literatura veiculada no curso de qualquer negócio (comercial, técnico ou profissional). Kaiser entendia por literatura o registro descritivo do que se observava e se raciocinava a respeito de algo. Era o resultado da observação das coisas e da tradução dessa observação em uma dada língua (KAISER, 1908KAISER, J. O. The card system at the office. London: Vacher & Sons, 1908. (The Card System Series, 1)., 1911MATA, J. V. T. Introdução às categorias. In: ARISTÓTELES . Categorias . 2. ed. São Paulo: Martim Claret , 2010, p. 11-66. (Coleção A obra prima de cada autor, 305).). Portanto, a literatura, enquanto materialização da observação humana, era constituída por registros que funcionavam como representantes de conhecimentos e como fornecedores de informações. Tais registros estariam materializados nos documentos e, quando fixados pela literatura especializada, eram representantes de conhecimentos especializados.

Se, numa concepção aristotélica, analisar consistia em decompor uma proposição em seus elementos mais simples (isoladamente) e, numa perspectiva cartesiana, consistia em decompor um todo em suas partes, analisar a literatura especializada (indexável), para Kaiser, era tratá-la com base em seus elementos constituintes, ou seja, com base nos representantes dos conhecimentos ali registrados. Analisar sob essa perspectiva é, em última instância, decompor a literatura especializada em seus elementos (registros) fundamentais, fornecedores de conhecimento e/ou informação.

Para nortear a identificação dos elementos informativos presentes na literatura, Kaiser propôs a categorização dos discursos e a categorização dos assuntos veiculados pelos documentos. Assim, para Kaiser (1908, 1911MATA, J. V. T. Introdução às categorias. In: ARISTÓTELES . Categorias . 2. ed. São Paulo: Martim Claret , 2010, p. 11-66. (Coleção A obra prima de cada autor, 305).), as categorias eram as partes de um discurso registrado que revelavam os elementos de conhecimento de um assunto em sua dimensão estática (concreto) e dinâmica (processo). Ao analisar um assunto de um documento seria necessário identificar em seu conteúdo os registros de conhecimento que correspondessem aos concretos e os registros que diziam respeito às condições inerentes aos concretos, isto é, aos processos. Cabia, assim, ao indexador identificar no conteúdo dos documentos quais eram os possíveis concretos e processos, inerentes ao assunto que estava sendo indexado, que poderiam servir pertinentemente à indexação.

A análise dos assuntos era realizada com base nos nomes das coisas (entes) e com base naquilo que é dito sobre as coisas, semelhante à análise das proposições definidas por Aristóteles. Porém, diferentemente de Aristóteles, cujo objetivo se assentava na descrição do mundo dos seres sensíveis por meio de dez categorias fundamentais, das quais nove serviriam como predicados da categoria principal (a substância), Kaiser trabalhou com apenas uma categoria (processo) para dar conta de identificar os aspectos que diziam respeito à sua categoria fundamental (concreto). Desse modo, todo o predicamento do concreto era realizado pelo(s) processo(s). Desse modo, o bibliotecário alemão, no anseio de desenvolver uma análise de assuntos mais eficiente aos objetivos da indexação, baseada nas partes informativas dos assuntos, resgatou a noção de categorias preconizada filosoficamente por Aristóteles e introduziu no universo do tratamento temático da informação a forma de análise que, segundo Svenonius (2000SVENONIUS, E. The intellectual foundation of information organization. Cambridge: MIT Press, 2000.), configuraria o curso da indexação do século XX.

De forma nenhuma se ignora o fato de que a noção de categorização tenha, ao longo de séculos, exercido forte influência nas classificações filosóficas desenvolvidas por inúmeros pensadores (tanto da Idade Média quanto da Modernidade, especialmente entre os séculos XVI e XVIII) e nas classificações bibliográficas surgidas a partir do século XIX, como as de Harris, Cutter e Dewey. Porém, tudo indica que o emprego de categorias como princípios gerais para mais bem compreender discursos foi, no contexto do tratamento temático da informação, iniciado por Kaiser. Embora pareçam claras as semelhanças existentes entre a categoria concreto de Kaiser e a categoria substância de Aristóteles, bem como o processo de Kaiser e o fazer e o sofrer de Aristóteles, prefere-se não esboçar uma relação direta entre tais categorias, pois Kaiser imprimiu suas categorias ao se voltar aos aspectos que envolvem o mundo dos negócios, seu verdadeiro campo de abrangência, muito diferente daquele refletido pelo filósofo grego. Desse modo, e sob esse escopo técnico e especializado, Kaiser definiu suas categorias como:

Concretos: são os terms commodities, as coisas, os produtos, que, em termos mais teóricos, podem ser entendidos como os entes principais tratados em um discurso;

Processos - são os terms of action, as ações, as atividades relativas às coisas, que, teoricamente, podem ser vistos como aquilo que incide sobre o concreto, aquilo que é proferido a respeito do concreto (SALES, 2012SALES, R. A presença de Kaiser no quadro teórico do tratamento temático da informação (TTI). 2012. 190f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação ) - Universidade Estadual Paulista, Marília, 2012. , 2014SALES, R. A organização da informação de Julius Kaiser: o nascimento do método analítico-sintético. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2014. ).

Uma categoria complementar foi definida por Kaiser para melhor especificar os concretos dos assuntos: a categoria países, ou lugares. Segundo o criador do systematc indexing, normalmente os assuntos especializados se referiam a algum commoditie (coisa, substância), que por sua vez podia ser dividido em móveis (como equipamentos, mobílias, pessoas), imóveis (como rio, montanha, terreno) e abstratos (como trabalho, inteligência, sentimento) (KAISER, 1911KAISER, J. O. Systematic indexing. London: Isaac Pitman & Sons, 1911. (The Card System Series, 2).). Dentre as coisas imóveis, Kaiser deu especial atenção aos países, no sentido político e legislativo, ou seja, naqueles aspectos que diziam respeito aos habitantes, idiomas, costumes e leis.

Assim, Kaiser estabeleceu outra classe de coisas expressas na literatura - os países. O bibliotecário alemão definiu, portanto, o universo das coisas em concretos (móveis, imóveis e abstratos) e países (KAISER, 1911KAISER, J. O. Systematic indexing. London: Isaac Pitman & Sons, 1911. (The Card System Series, 2).). Definido o universo das coisas, era necessário dar conta daquilo que serviria de predicado para essas mesmas coisas, ou seja, era necessário estabelecer uma categoria que fixasse aquilo que é dito a respeito das coisas. Kaiser adotou, então, o termo processo para denotar as ações, que, numa orientação de cunho prático, pressuporia a localização do verbo no discurso. Diante disso, definiram-se as categorias concreto - país - processo, e a análise de assuntos, pela primeira vez no quadro teórico da indexação, passou a ser realizada por meio de categorias ontológicas previamente estabelecidas.

A análise de assunto de um documento que tratasse, por exemplo, das taxas tributárias de exportação dos produtos agrícolas brasileiros poderia, a partir desse momento, ser realizada com base na identificação das categorias:

Concreto - Produto agrícola

Lugar - Brasil

Processo - Exportação

Um documento que abordasse questões relativas à oscilação do dólar nos Estados Unidos da América, poderia ser tratado em termos de:

Concreto - Dólar

Lugar - Estados Unidos da América

Processo - Oscilação

Por se tratar de categorias preestabelecidas, obviamente alguns questionamentos poderiam emergir. Por exemplo, os termos educação, comércio e produção são tratados por Kaiser como processos, como ações, numa perspectiva procedimental, e não fenomenal ou 'coisificada'. Então, em um assunto que tratasse a respeito do comércio de petróleo na Venezuela, seriam extraídas as categorias:

Concreto - Petróleo

Lugar - Venezuela

Processo - Comércio.

Ou, então, no assunto Lei para educação superior em Cuba, poderiam ser identificadas as seguintes categorias:

Concreto - Lei

Lugar - Cuba

Processo - Educação superior.

Muitos poderiam alegar que os termos comércio e educação superior, descritos acima, seriam concretos, visto que parecem ser de fato a 'coisa' principal de que se fala. Porém, Kaiser preferiu privilegiar a dimensão dinâmica que termos como esses cumpriam nos assuntos especializados, na medida em que refletiam a substancialização de verbos que lhes dão origem (comercializar, educar). A análise categorizada de Kaiser, que combinou uma análise pautada em componentes informativos com o modo aristotélico de analisar proposições, foi o marco inicial da concepção 'analítica' do método analítico-sintético retrabalhado, posteriormente, por Ranganathan.

A análise para Ranganathan: facetas e PMEST

A dimensão analítica desenvolvida por Ranganathan reflete a preocupação e complexidade teóricas que sempre estiveram presentes em seu trabalho, enquanto bibliotecário e enquanto classificacionista. Seu pragmatismo, diferente do de Kaiser, cujas explicações metodológicas sempre tiveram um 'tom' mais de 'manual' a ser seguido, é fundamentado por um raciocínio teórico 'declarado' em suas inúmeras publicações. Aliás, suas obras e ideias estão constantemente presentes na literatura de tratamento temática da informação, diferentemente das de Kaiser, cujas interpretações e comentários ainda não foram significativamente alavancados ou, ao menos, destacados pelos estudiosos da área. Tal fato, obviamente, não indica que este seja menos importante que aquele; pelo contrário, o que se argumenta aqui é o pioneirismo de um e o aprofundamento teórico do outro.

Para Ranganathan, o conjunto das ideias conservadas pela humanidade formava o universo do conhecimento, um conhecimento universal e enciclopédico. Quando parte desse conhecimento era organizada, sistematizada e aplicada em um campo do saber, dava-se origem aos assuntos, ou ao universo dos assuntos. Desse modo, o universo a ser analisado por Ranganathan era o corpo do conhecimento produzido e aplicado nas diversas áreas do saber, obviamente, materializado nos documentos bibliográficos. Salva-guardado o fato de que o universo a ser analisado por Kaiser se distinguia do de Ranganathan pela abrangência, o primeiro de escopo técnico e especializado, o segundo de escopo enciclopédico e universal, não é descabido afirmar que ambos desenvolveram suas dimensões analíticas com base nos elementos que compunham os assuntos contidos nos conteúdos dos documentos.

A abordagem de Ranganathan considerava essencialmente dois elementos classificatórios: o assunto básico e a ideia isolada. O assunto básico correspondia às áreas mais abrangentes do conhecimento, sem nenhuma ideia isolada que o complementasse. A ideia isolada dizia respeito a um componente do assunto, por si só não considerada um assunto, mas apenas um conceito (CAMPOS, 2001CAMPOS, M. L. A. Linguagem documentária: teorias que fundamentam sua elaboração. Niterói: EdUFF, 2001. ). Em outras palavras, o passo inicial para a análise de um assunto era a identificação dos elementos de assuntos mais gerais e abrangentes (assuntos básicos) e dos elementos que lhes serviam de complemento (ideias isoladas ou isolados). Tanto os assuntos básicos quanto as ideias isoladas eram tratadas com base em suas respectivas facetas, ou seja, eram agrupados por um termo genérico (a faceta) que seria utilizado para a formação dos termos e dos códigos que representariam os assuntos. Desse modo, as facetas que agrupavam os assuntos básicos eram as facetas básicas, e as que agrupavam os isolados eram as facetas isoladas (CAMPOS, 2001CAMPOS, M. L. A. Linguagem documentária: teorias que fundamentam sua elaboração. Niterói: EdUFF, 2001. ). Cada campo específico do saber tende a possuir suas próprias facetas, ou seja, seus próprios aspectos particulares. Por exemplo, o campo da Literatura poderia possuir como facetas: gênero literário, autor, obra, editor etc. Entendendo facetas como aspectos particulares de campos específicos, verifica-se que Ranganathan desenvolveu uma análise de assunto com base no agrupamento (por facetas) dos termos (tanto gerais quanto específicos) identificados como fundamentais para a representação de um assunto complexo.

Ranganathan, aprimorando seu método sistemático, definiu o princípio das categorias fundamentais: Personalidade (P), Matéria (M), Energia (E), Espaço (S) e Tempo (T), conhecido como PMEST. Esse princípio zelava pela ordem de citação de concretividade decrescente, e passou a ser empregado a partir de Ranganathan (1952). A importância das categorias para a dimensão analítica de Ranganathan é flagrante na definição de que cada faceta de assunto deveria ser considerada como uma manifestação de uma das cinco categorias fundamentais: Personalidade (objeto estudado), Matéria (materiais e substâncias), Energia (ações e processos), Espaço (local) e Tempo (época) (RANGANATHAN, 1967RANGANATHAN, S. R. Prolegomena to library classification. Bombay: Asia Publishing House, 1967.).

Tanto Kaiser quanto Ranganathan buscaram tecer suas análises de assuntos de modo a não ficarem restritos apenas aos assuntos dos documentos, mas, sim, aos aspectos fundamentais (categorias) do universo do conhecimento gerador dos assuntos. E, nesse ponto, Ranganathan foi mais além, pois Kaiser generalizou que todos os assuntos técnico--especializados poderiam ser tratados com base em concretos e processos, ao passo que Ranganathan, para além das categorias fundamentais, aprofundou sua classificação de assuntos no nível das facetas. Enquanto o princípio geral de Kaiser definia que os conhecimentos, consequentemente, os assuntos, deveriam ser abordados em níveis de concretos e processos, Ranganathan definia que o universo de assunto deveria ser analisado do particular ao geral até chegar às cinco ideias genéricas finais, indivisíveis e fundamentais. Essas ideias não possuíam valor de verdade ou falsidade, apenas de utilidade para fins de classificação. Portanto, não são definíveis, apenas supostas (RANGANATHAN, 1967RANGANATHAN, S. R. Prolegomena to library classification. Bombay: Asia Publishing House, 1967.).

O critério ranganathiano pautado na utilidade classificatória é ressaltado por Aranalde (2009ARANALDE, M. M. Reflexões sobre os esquemas categoriais de Aristóteles, Kant e Ranganathan. Ciência da Informação, v. 38, n. 1, p. 86-108, 2009.), que destacou a necessidade que se tinha de submeter a análise do universo (infinito) dos assuntos a termos mais gerais, possibilitando a classificação desse universo, quando materializado nos documentos bibliográficos.

Embora sejam as facetas os elementos efetivamente inovadores na metodologia ranganathiana, o presente estudo, quando relaciona Kaiser e Ranganathan, dirige o foco aos 'princípios gerais' definidos por ambos para a análise do universo do conhecimento. São os princípios gerais (categorias) que estão presentes no universo do conhecimento, ao passo que as facetas estão presentes ou são identificadas nos assuntos contidos nos documentos. Isso se torna evidente diante do fato de que Ranganathan apresentou, nas edições da Colon Classification, uma série de 'possíveis' facetas para cada área, e não uma descrição última e acabada daquelas que seriam as facetas correspondentes a cada assunto específico. Tal fato faria de seu sistema um esquema de classificação descritivo, e não dinâmico. Ranganathan elaborou regras que possibilitavam a criação de novas facetas, quando necessário. Portanto, as facetas estariam presentes, e eram evidenciadas, nos conteúdos dos documentos, e não necessariamente no universo do conhecimento. O que de fato pertence ao universo do conhecimento são os princípios teóricos gerais, são as categorias. Não se quer, com isso, afirmar que um conjunto de facetas não possa ser previamente atribuído aos campos de assuntos, mas é inegável que cada documento bibliográfico possa trazer em seu conteúdo facetas não manifestadas anteriormente pelo próprio universo de assunto.

Neste contexto, retomam-se exemplos utilizados anteriormente, que ilustraram as categorias de Kaiser, para visualizá-los também na perspectiva de Ranganathan. Isso será realizado exclusivamente no nível das categorias, que é o nível que efetivamente os aproxima (o nível dos princípios gerais).

No caso de um documento cujo assunto aborde as taxas de exportação dos produtos agrícolas no Brasil, pode-se vislumbrar a seguinte análise:

Personalidade (P) - Produto agrícola

Energia (E) - Exportação

Espaço (S) - Brasil.

Os termos produto agrícola, Brasil e exportação são componentes que formam um assunto complexo e, que, agrupados por facetas, são manifestações das categorias P, E e S, respectivamente, da mesma forma que na análise de assunto de Kaiser são manifestações das categorias concreto, lugar e processo. Sob a perspectiva de análise com base nas categorias PMEST, evidentemente, algumas informações a mais poderiam ser descritas. Por exemplo, se o documento abordasse de fato as taxas de exportação de produtos agrícolas no Brasil do século XX, a categoria referente ao aspecto temporal também se manifestaria na análise do assunto: (P) produto agrícola, (E) exportação, (S) Brasil e (T) século XX. Da mesma forma, o documento cujo assunto seja a oscilação do dólar nos Estados Unidos no ano de 2016, poderia ser analisado assim: (P) Dólar, (E) Oscilação, (S) Estados Unidos e (T) 2016. Para melhor visualização, traça-se um paralelo entre as possíveis análises de assunto realizadas com base nas categorias de Kaiser e de Ranganathan com relação aos dois exemplos acima:

Verifica-se que um assunto não precisa necessariamente manifestar todas as categorias fundamentais predeterminadas, conforme pode ser observado na terceira coluna do Quadro 1, pois o assunto foi analisado com base em quatro das cinco categorias ranganathianas. Observando o Quadro 1, nota--se uma correspondência entre as categorias: concreto e personalidade; lugar e espaço; e processo e energia. Porém, faz-se necessário ponderar que Ranganathan, ao explicar, com assumida dificuldade, a categoria personalidade, tomou um caminho distinto daquele argumentado por Kaiser. Este, de maneira parecida com a de Aristóteles ao explicar sua categoria substância, afirmou que tudo que for processo diz respeito a alguma coisa (concreto ou lugar). Ou seja, assim como a análise aristotélica definia que todas as nove últimas categorias eram predicados da categoria principal (substância), para Kaiser, a categoria principal de qualquer assunto era o concreto, podendo, às vezes, haver um assunto que não contemplasse nenhum concreto, mas apenas lugares. Não havia sentido ter um processo ocorrendo se não houvesse alguma 'coisa' sendo processada (ou processando). Assim como para Aristóteles todo predicado necessitava de algum sujeito para existir, para Kaiser, todo processo pressupunha alguma coisa concreta e/ou espacial. Ranganathan, numa perspectiva de análise por eliminação, afirmava em seu Prolegomena que toda faceta que não fosse manifestação ou de matéria, ou de energia, ou de espaço, ou de tempo, fatalmente seria uma manifestação de personalidade. Porém, o próprio Ranganathan (1967)RANGANATHAN, S. R. Prolegomena to library classification. Bombay: Asia Publishing House, 1967. afirmou que a personalidade teria a ver com as entidades, com as coisas e tipos de coisas, guardando, assim, relação com o concreto de Kaiser. Fato é que, nas análises propriamente ditas, concretos e personalidades cumprem papéis parecidos para a compreensão e definição dos assuntos complexos. Nas correspondências existentes entre lugar e espaço e entre processo e energia, parece não haver lugar a dúvidas quanto às reciprocidades, pois a primeira nitidamente diz respeito aos aspectos espaciais e a segunda às ações e operações.

Quadro 1.
Análises de assuntos de Kaiser e Ranganathan.

Obviamente que, por se tratar de princípios gerais e, como ressaltou Ranganathan (1967RANGANATHAN, S. R. Prolegomena to library classification. Bombay: Asia Publishing House, 1967.), por se tratar de categorias fundamentais indefiníveis, a categorização não garante uma análise uniforme ou isenta de variações. Porém, garante uma direção, uma forma de analisar. Independentemente das naturezas das categorias se diferenciarem quanto à perspectiva - categorias semânticas no caso de Kaiser (SVENONIUS, 2000SVENONIUS, E. The intellectual foundation of information organization. Cambridge: MIT Press, 2000.), categorias ontológicas no caso de Ranganathan (ARANALDE, 2009ARANALDE, M. M. Reflexões sobre os esquemas categoriais de Aristóteles, Kant e Ranganathan. Ciência da Informação, v. 38, n. 1, p. 86-108, 2009.) - o fato é que o pragmatismo (método) utilizado por ambos ao desenvolverem as análises dos assuntos é semelhante: analisar discursos com base em seus elementos constituintes fundamentais, ou seja, analisar assuntos com base em categorias predeterminadas. Essa forma de analisar, baseada na identificação de 'aspectos elementares' dos universos de conhecimentos e de assuntos, 'cristalizados por categorias', consiste na dimensão analítica do método analítico-sintético. Portanto, pode-se afirmar que esse tipo de análise foi iniciado por Kaiser e continuado por Ranganathan, que por sua vez, avançou a especificidade analítica para o nível mais particular das facetas. Apresentadas as dimensões analíticas dos trabalhos realizados por Kaiser e por Ranganathan, passa-se a investigar o pragmatismo por eles adotado no que se refere à dimensão da síntese.

As dimensões sintéticas de Kaiser e de Ranganathan

O significado da palavra sintético está relacionado tanto com o ato de 'operar das partes para o todo', 'unir elementos', quanto com a 'artificialidade' de tal operação, tornando clara a noção de que sintético é o adjetivo relacionado à ação de unir componentes de maneira artificial.

Kaiser (1908KAISER, J. O. The card system at the office. London: Vacher & Sons, 1908. (The Card System Series, 1)., 1911KAISER, J. O. Systematic indexing. London: Isaac Pitman & Sons, 1911. (The Card System Series, 2).) empregou o termo statement para designar a declaração ou cabeçalho de assunto de seu sistema. Para o bibliotecário alemão, os statements eram essencialmente expressões verbais padronizadas, compostas por termos que manifestavam as categorias concreto (e localidade) e processo, nos assuntos analisados. Em outras palavras, os statements consistiam na representação das informações mais relevantes extraídas dos assuntos dos documentos, tomando por base os concretos e os processos. Se, para o entendimento da dimensão analítica do sistema de Kaiser o foco esteve direcionado à compreensão das categorias, para o entendimento da dimensão sintética a atenção voltar-se-á ao modus operandi da construção dos índices, pontualmente no desenvolvimento dos statements; afinal, foi por meio deles que Kaiser procurou estabelecer como os assuntos analisados poderiam ser padronizadamente enunciados.

Para uma construção eficiente de índices de assuntos, era necessário decidir quais seriam as combinações possíveis entre as categorias, ou seja, ater-se à ordem de importância das categorias para estabelecer uma ordem de citação adequada aos enunciados (statements). Para Kaiser (1911KAISER, J. O. Systematic indexing. London: Isaac Pitman & Sons, 1911. (The Card System Series, 2).), existiam três possíveis combinações: (a) concreto - processo; (b) país - processo; e (c) concreto - país - processo. Verifica-se que a ordem de importância definida por Kaiser privilegiava a concretividade dos aspectos dos assuntos, privilegiava aquilo que é mais estático, que é 'coisificado' (no sentido ontológico do termo). Observa-se que a categoria concreto (quando existir no assunto) sempre estará em posição privilegiada se comparada com as categorias país (lugar) e processo. Nota-se, ainda, que as categorias que designavam coisas (concreto e país) sempre figurariam como termos de entrada na ordem de citação estabelecida por Kaiser. Assim, evidencia-se que a ordem de citação pautada na sequência de 'concretividade decrescente', adotada por Ranganathan somente na década de 1950, quando da adoção das categorias PMEST na quarta edição da Colon Classification, já havia sido utilizada por Kaiser no Systematic Indexing, em 1911.

Porém, faz-se necessário um parêntese para explicar as perspectivas distintas entre as noções de concretividade de Kaiser e de Ranganathan. A concretividade no sistema de Kaiser está relacionada com o quão estático pode ser um elemento de assunto. Identificado o elemento mais estático do assunto, todas as demais informações diriam respeito a esse elemento (concreto). Para Ranganathan, o elemento mais concreto pode surgir de uma relação de causa e efeito. Conforme destacado por Aranalde (2009ARANALDE, M. M. Reflexões sobre os esquemas categoriais de Aristóteles, Kant e Ranganathan. Ciência da Informação, v. 38, n. 1, p. 86-108, 2009.), para o bibliotecário indiano, a causa (o porquê) muitas vezes pode ser mais concreta que o próprio efeito (o o quê). Toma-se, como exemplo, um artigo que trate sobre indexação. Indexação pode ser entendida como um efeito dos fazeres da Biblioteconomia, que seria sua causa. Desse modo, a área de conhecimento Biblioteconomia seria mais concreta que a própria indexação. Embora a noção de concretividade de Kaiser esteja pautada na relação entre estático e dinâmico e a de Ranganathan esteja ligada à relação entre causa e efeito, o fato é que ambos buscaram privilegiar aquilo que há de mais concreto nos assuntos, a fim de ditarem a ordem de importância de suas sínteses.

Como qualquer esforço de representação de assunto, o enunciado de Kaiser não definia a informação completa sobre o assunto de um documento, mas, sim, os elementos que necessitavam ser conectados para a obtenção das informações relevantes sobre o assunto. A esse respeito, Kaiser determinou em sua síntese a possibilidade de amplificações (ou ampliações) dos enunciados, de forma a viabilizar a inclusão de elementos não contemplados em um único enunciado de combinação padrão. Para tanto, adotou o termo amplification para se referir a um suplemento do statement. A amplificação consistia em algumas informações secundárias do próprio enunciado.

Os tipos de amplificações definidos por Kaiser foram: a extensão, as datas e os autores. Desse modo, Kaiser (1911KAISER, J. O. Systematic indexing. London: Isaac Pitman & Sons, 1911. (The Card System Series, 2)., § 305) tabulou as partes de uma informação da seguinte maneira:

Statement: Concrete - Country - Process

Amplification: Extension; Dates; Authors

Os elementos descritos acima foram conjuntamente denominados por Kaiser de index item (item do índice). Em outras palavras, tratava-se do item a ser utilizado para a indexação. Assim, os itens do índice tornavam possível a reconstituição de várias informações descritas na literatura analisada, viabilizando a construção de um índice abrangente e composto por informações efetivamente relevantes.

Diferenciando a função de um índice com relação às demais formas de representações condensadas, Kaiser afirmou que um índice não tinha a função de eliminar (como as abreviações), nem de concentrar (como os resumos) e nem de recapitular (como os compêndios). A função essencial desse dispositivo de redução era de analisar, ou seja, tratava-se de uma síntese proveniente de uma análise. Exemplo de síntese (Adaptação: KAISER, 1911KAISER, J. O. Systematic indexing. London: Isaac Pitman & Sons, 1911. (The Card System Series, 2)., § 307, Tradução livre).

Informação dada: Durante os últimos seis meses os preços pagos para o papel têm tido um aumento contínuo, devido a sua escassez. O mercado indiano está com seus estoques quase esgotados, dificultando a obtenção de grandes quantidades e, em alguns casos, os preços habituais têm avançado de 60% a 80%.

Síntese da informação:

Enunciado - Papel - Índia - Demanda

Extensão - Os preços avançaram 60-80% devido à escassez.

A síntese ilustrada no exemplo acima é composta pelos seguintes elementos: Concreto - Papel; País - Índia; Processo - Demanda; Amplificação (do tipo extensão) - Os preços avançaram 60-80% devido à escassez.

Como desenvolvedor de um método para construção de índices, Kaiser, obviamente, estabeleceu uma série de orientações (regras) para conduzir tanto a análise dos assuntos quanto a representação sintética dos mesmos. As regras voltadas à representação sintética (regras para a construção dos enunciados e das amplificações) foram denominadas por Svenonius (2000SVENONIUS, E. The intellectual foundation of information organization. Cambridge: MIT Press, 2000.) de sintaxe da linguagem de Kaiser. Essas orientações, que diziam respeito às formas de apresentação dos termos, às pontuações que deveriam separar cada termo, às formas de remissivas etc., podem ser verificadas em detalhes em Sales (2012SALES, R. A presença de Kaiser no quadro teórico do tratamento temático da informação (TTI). 2012. 190f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação ) - Universidade Estadual Paulista, Marília, 2012. , 2014SALES, R. A organização da informação de Julius Kaiser: o nascimento do método analítico-sintético. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2014. ).

Reorganizar as informações que eram levantadas na análise, tecendo regras que conduziam a uma síntese controlada, com base não somente nas categorias de análise, mas também nas amplificações que tornavam a representação mais informativa, foram os aspectos que fizeram da dimensão sintética de Kaiser um marco inicial do método analítico-sintético. Mesmo tendo em conta que a síntese de Ranganathan (notação classificatória) resultava em produto distinto da síntese de Kaiser (enunciado alfabético), torna-se possível relacionar ambas as sínteses no que se refere ao pragmatismo (caminho) desenvolvido pelos teóricos.

Ranganathan (1952RANGANATHAN, S. R. Colon Classification. 4th ed. Madras: Madras Library Association, 1952.), ao teorizar a respeito de sua classificação facetada, fruto de um trabalho empírico constante que possibilitou o aperfeiçoamento da "Colon Classification", percebeu que seu esquema de classificação apresentou mudanças significativas ao longo dos anos, fato que o levou a distingui-lo em duas fases: a fase do esquema rigidamente facetado e a fase do esquema livremente facetado. O esquema rigidamente facetado era constituído por regras rígidas sobre a ordem de citação dos conceitos. Em outras palavras, tanto as facetas quanto a ordem de representação das facetas eram predeterminadas para cada classe de assunto, cristalizadas pelas chamadas fórmulas facetadas (CAMPOS, 2001CAMPOS, M. L. A. Linguagem documentária: teorias que fundamentam sua elaboração. Niterói: EdUFF, 2001. ). A fórmula facetada (pré)estruturava cada área de conhecimento.

Imagine-se, como exemplo, o assunto Solubilidade do Sódio. Recorrendo à Colon Clasification, verifica-se que: a classe de assunto Química é representada pela letra (maiúscula) E; o conceito Sódio é designado pelo código 111; o conceito Solubilidade é denotado pelo código 2201. A síntese para Solubilidade do Sódio seria representada pela notação E111:2201.

A fórmula facetada para a área de Química determinava que os assuntos, a ela relacionados, deveriam ser representados nessa ordem: primeiro a Classe, depois a faceta que correspondesse à Personalidade (Sódio - 111), seguida das demais facetas, que respeitariam a ordem de concretividade decrescente (no exemplo, 2201- Solubilidade é a manifestação de uma Energia). Essa estrutura prefixada pela fórmula facetada se assemelha à estrutura prefixada dos enunciados de Kaiser, não somente por definir a ordem de citação, mas, principalmente, por tal ordem ser determinada pela concretividade decrescente. Embora cada classe de assunto apresentasse uma fórmula própria, a orientação preconcebida para a combinação dos conceitos identificados na análise foi um aspecto preconizado por Kaiser.

No entanto, Ranganathan avançou a questão da síntese de assuntos em prol de uma classificação que efetivamente respeitasse a dinamicidade do conhecimento. Tentar prever a ordem mais adequada para a síntese dos assuntos não era uma boa maneira de acompanhar o caráter expansivo do universo do conhecimento. Assim, Ranganathan, rompendo com a rigidez de seu esquema classificatório, a partir da quarta edição da Ranganathan (1952)RANGANATHAN, S. R. Colon Classification. 4th ed. Madras: Madras Library Association, 1952., abandonou o princípio da fórmula facetada e, de certa forma, delegou a definição da ordem de importância dos conceitos aos utilizadores do sistema.

A partir desse momento, o esquema de Ranganathan passou a ser considerado, por ele mesmo, como um esquema livremente facetado, ou analítico--sintético, pois não determinava mais a ordem para a combinação dos conceitos. A combinação passou a ser conduzida por princípios, o que possibilitava a criação de novas subdivisões. No que se refere às atualizações dos conhecimentos e dos assuntos, Kaiser, embora não tenha avançado tanto nessa questão quanto Ranganathan, também não as negligenciou. Mesmo não abandonando as combinações predeterminadas das categorias que compunham os enunciados, o bibliotecário alemão, por trabalhar com linguagem alfabética, flexibilizou a rigidez de sua síntese ao abrir espaço para as amplificações que complementavam os enunciados. Desse modo, peculiaridades características dos assuntos especializados, não contempladas pelas categorias, podiam ser incluídas na síntese dos assuntos.

Nesse quesito, Ranganathan ampliou a flexibilidade de sua síntese não com elementos complementares, mas sim com aspectos estruturais, que deram maior liberdade à própria construção das notações. Notadamente, Ranganathan foi quem efetivamente desenvolveu uma teoria de classificação de assuntos de base dinâmica, criando preceitos de flexibilidade e de hospitalidade que permitiam a atualização da própria organização dos assuntos. Porém, o que está em foco no presente estudo é o potencial pioneirismo de Kaiser para a concepção do método analítico-sintético. Desse modo, faz-se necessário evidenciar as semelhanças entre os caminhos (pragmatismos) delineados por ambos os bibliotecários ao tecerem seus métodos. O Quadro 2 permite uma visualização sucinta desse pioneirismo.

Quadro 2
Aproximação dos pragmatismos de Kaiser e de Ranganathan.

Retomando a noção de que o pragmatismo de William James consiste em um meio eficiente para se chegar a uma teoria, ou à concepção de um método, é possível verificar, no Quadro 2, um significativo ponto de interseção entre as análises e sínteses desenvolvidas por Kaiser e por Ranganathan. Entendendo o pragmatismo como um meio (e não como um fim), é possível visualizar o Quadro 2 como se fosse a ilustração de dois sistemas, o sistema de Kaiser e o sistema de Ranganathan. Os componentes da análise são os elementos de entrada em ambos os sistemas. Esses elementos passam pelas realizações da análise e da síntese, que consistem nos meios dos sistemas, para chegar aos produtos finais, ou melhor, aos elementos de saída dos sistemas (produto da síntese). Têm-se, portanto, dois sistemas compostos por entradas, meios e saídas.

Embora tanto as entradas quanto as saídas sejam conceitualmente distintas nos sistemas observados, ambas as sistemáticas apresentam claras semelhanças quanto aos 'meios' de se chegar ao produto final. Desse modo, é nas formas de realização da análise e de realização da síntese que se encontram as interseções fundamentais entre o pragmatismo de Kaiser e o pragmatismo de Ranganathan. Ambos os bibliotecários realizam suas análises por meio da decomposição dos assuntos em suas partes constituintes, transitando entre o plano ideacional, que define e/ou supõe as categorias de análise, e o plano verbal, que dá os contornos terminológicos às ideias contidas nos assuntos. Para a realização da síntese, ambos reapresentam os assuntos por meio da recomposição dos mesmos pautada na construção de declarações de assuntos (verbal, no caso de Kaiser, e notacional, no caso de Ranganathan), cujas ordens de importância são orientadas pelo grau de concretividade que as categorias de análise apresentam.

Assim, verifica-se que, mesmo Kaiser apresentando como produto de seu método uma declaração verbal e Ranganathan apresentando como produto uma declaração notacional, o fato é que ambos trataram seus elementos de entrada de maneira fundamentalmente semelhante. Desse modo, sustenta--se o argumento de que Kaiser, entre os anos de 1908 e 1911, já havia definido e publicado os pilares do método analítico-sintético, e o fez para a elaboração de um método de construção de índices sistemáticos. Já Ranganathan, entre as décadas de 1930 e 1960, utilizou o mesmo pragmatismo para a elaboração de um método de construção de esquemas de classificação. Em outras palavras, Kaiser fez surgir a construção de índices analítico-sintéticos e, posteriormente, Ranganathan fez surgir a construção de classificações analítico-sintéticas.

Conclusão

Ao lançar o olhar pragmatista definido por William James como abordagem metodológica para investigar os caminhos percorridos por Kaiser e por Ranganathan ao desenvolverem suas sistemáticas de tratamento temático da informação, foi possível sustentar a proposição de que a indexação sistemática de Kaiser já trazia em seu bojo a essência do movimento analítico-sintético, antes mesmo da concepção facetada elaborada por Ranganathan. O cotejamento de ambos os sistemas de organização da informação, tomando por base suas dimensões analíticas e sintéticas, notadamente no que se refere às realizações da análise e da síntese, revelou o pioneirismo de Kaiser em relação a Ranganathan, sobretudo no que se refere ao resgate do princípio teórico de categorização que serviria tanto à análise quanto à síntese dos assuntos de documentos.

Assim, o presente estudo, além de trazer um esclarecimento de ordem histórica ao universo do tratamento temático da informação, trouxe também um assentamento epistemológico à organização da informação e do conhecimento no bojo da Ciência da Informação, uma vez que o método analítico-sintético se configura como um dos principais métodos estabelecidos na área desde o século XX. Destacar o pioneirismo de Kaiser para a concepção analítico--sintética pode colocá-lo, portanto, no rol dos grandes referenciais teóricos da organização da informação e do conhecimento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2016
  • Aceito
    06 Abr 2016
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