Acessibilidade / Reportar erro

A NARRATIVA COMO CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE UMA PESSOA COM A DOENÇA DE ALZHEIMER

NARRATIVE AS THE IDENTITY CONSTRUCTION OF A PERSON WITH ALZHEIMER’S DISEASE

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar como uma pessoa acometida pela Doença de Alzheimer (doravante DA) constrói sua identidade interativamente no contexto de uma entrevista narrativa. O cenário da DA constitui-se como um campo complexo, considerando as perdas ocasionadas pela doença que acometem a linguagem e a cognição e incidem significativamente na interação e na vida social cotidiana. Além disso, o crescente envelhecimento da população brasileira é uma realidade que pode desencadear o aumento da incidência da DA. Levando tais fatores em consideração, em nossas análises identificamos os recursos linguísticos empregados pela participante que evidenciam a coconstrução de sua identidade. Dessa forma, como fundamentação teórica mobilizaremos os estudos da narrativa oral e o conceito de identidade. As análises demonstram que a participante da pesquisa acometida pela DA utiliza pistas de contextualização e elementos de indexicalidade que permitem evidenciar a construção identitária.

Palavras-chave:
Doença de Alzheimer; narrativa oral; identidade

ABSTRACT

This article aims to analyze how a person affected by Alzheimer’s Disease (henceforth AD) builds their identity interactively in the context of a narrative interview. The AD scenario is a complex field considering the losses caused by the disease that affect language and cognition and significantly affect interaction and everyday social life. In addition, the increasing aging of the Brazilian population is a reality that can trigger the increase in the incidence of AD. Taking these factors into consideration, in our analysis we identified the linguistic resources used by the participant that evidence the co-construction of her identity. Thus, as a theoretical foundation we will mobilize the studies of oral narrative and the concept of identity. The analyzes show that the research participant affected by AD uses contextualization clues and indexicality elements that allow the identity construction to be evidenced.

Keywords:
Alzheimer’s Disease; narratives; identity

INTRODUÇÃO

O objetivo principal do presente trabalho é analisar, a partir da interação no contexto de entrevista narrativa, as formas de construção identitária em um domínio empírico muito específico: a Doença de Alzheimer (doravante DA), que é comumente reconhecida pelo declínio progressivo da cognição, da linguagem e da mobilidade nas funções cotidianas e sociais. Especificamente, os dados analisados neste artigo são provenientes da interação da pesquisadora com uma pessoa acometida pela DA gerada em uma entrevista aberta, resultante da pesquisa narrativa (BARKHUIZEN; BENSON; CHIK, 2014).

A DA é clinicamente conhecida como uma patologia neurodegenerativa que afeta a cognição e a memória e a sua causa neurológica é atribuída ao acúmulo de uma proteína chamada Beta-Amilóide. Os neurônios afetados pela hipersecreção da proteína desencadeiam o surgimento de vacúolos de tamanhos maiores. O agrupamento desses vacúolos age nos neurônios sadios ao redor, causando sua morte, e, consequetemente o declínio de funções cognitivas nas regiões cerebrais onde há a proteína Beta-Amilóide (TEIXEIRA et al., 2015TEIXEIRA, J. B. et al. (2015). Doença de Alzheimer: estudo da mortalidade no Brasil 2000-2009. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 4, p. 1-12.). Conforme afirmam Barros et al (2009, p. 17)BARROS, A. C. et al. (2009). Influência genética sobre a doença de Alzheimer de início tardio. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 36, n. 01, p. 16-24., a DA é uma patologia responsável pela perda progressiva e irreversível de importantes funções cognitivas como a deterioração da memória episódica e recente e as dificuldades de raciocínio e de compreensão/ produção linguística.

A discussão a respeito da DA é relevante em função do impacto social que a patologia acarreta. Dados revelam que, em 2010, as pessoas a partir de 60 anos compreendiam 10% da população e estimativas afirmavam que tal número cresceria de 13,7% até 2020 a 23,8% em 2040 (SANTOS et al, 2020SANTOS, C. S.; et al. (2020). Factors associated with dementia in elderly. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n.2, p. 603-611.). Ainda, segundo Leite et al (2020)LEITE, M. S. et al. (2020). Diagnóstico do paciente com Doença de Alzheimer: uma revisão sistemática de literatura. Brazilian Journal of Surgery and Clinical Research – BJSCR, v. 30, n. 1, p. 47-50., a DA é a doença neurodegenerativa mais comum atualmente, abrangendo de 60 a 70% dos casos. Diante desse quadro, estudos linguísticos preocupam-se em descrever formas de apresentação da doença nas interações cotidianas (CRUZ, 2017CRUZ, F. M. (2017) Interação corporificada: multimodalidade, corpo e cognição explorados na análise de conversas envolvendo sujeitos com Alzheimer. Alfa. São Paulo, v. 61, n. 1, p. 55-80.; 2008CRUZ, F. M. (2008) Linguagem, interação e cognição na Doença de Alzheimer. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas.; MORATO, 2016MORATO, E. M. (2016). Das relações entre linguagem, cognição e interação - algumas implicações para o campo da saúde. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 575-590.; 2012MORATO, E. M. (2012). Referenciação metadiscursiva no contexto das afasias e da Doença de Alzheimer. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 47, n. 1, p. 45-54.; MIRA, 2019MIRA, C. (2019). Como é que a gente diz? Uma análise das estratégias textual-interativas na narrativa de uma pessoa com doença de Alzheimer. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 19, n. 3, p. 419-433., CUSTODIO, 2019CUSTODIO, K. A. (2019). “Como é que vou dizer...”: a coconstrução de sentidos nas narrativas orais de uma pessoa com atrofia cortical posterior. 2019. 116f. Dissertação (Mestre em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo.) com o objetivo de contribuir para a convivência nesse contexto.

A respeito dos déficits linguísticos causados pela DA, Morato (2012)MORATO, E. M. (2012). Referenciação metadiscursiva no contexto das afasias e da Doença de Alzheimer. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 47, n. 1, p. 45-54. aponta que a atividade de nomeação, a presença acentuada de repetições, os circunlóquios e o uso de dêiticos e de estruturas sintáticas simples, bem como hesitações são sintomas frequentes da patologia. Posteriormente, com a progressão da patologia, pode-se observar também o comprometimento semântico e sintático (dificuldade na compreensão de orações simples e complexas), além de substituições lexicais e semânticas no uso de determinadas palavras que não são encontradas devido às dificuldades de acesso lexical durante a interação, parafasias semânticas e lexicais (HUFF et al, 1988HUFF, F. et al. (1988). Semantic impairment and anomia in Alzheimer’s disease. Brain and Language, v. 28, n. 2, p. 235-249.). Durante o estágio mais avançado da DA, a competência linguística é bastante comprometida no que tange à produção e à compreensão dos enunciados (MORATO, 2012MORATO, E. M. (2012). Referenciação metadiscursiva no contexto das afasias e da Doença de Alzheimer. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 47, n. 1, p. 45-54.).

Considerando tais déficits que se agravam progressivamente, é notório que a doença afeta a pessoa não somente individual e fisicamente, mas também impacta consideravelmente o seu entorno social, “nas formas de recepção social da doença (algo que inclui as práticas diagnósticas e a interação do doente com seus próximos), bem como de seu enfrentamento no plano psicossocial, médico-terapêutico e familiar” (MORATO, 2016, p. 584MORATO, E. M. (2016). Das relações entre linguagem, cognição e interação - algumas implicações para o campo da saúde. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 575-590.). A DA afeta sensível e profundamente a capacidade de participar das várias práticas interacionais cotidianas que, sem dúvida, demandam o uso da linguagem, requerem o engajamento em uma ação conjunta e exigem a coordenação de ações individuais (CLARK, 1996CLARK, H. C. (1996). Using Language. New York: Cambridge University Press.). Uma das atividades linguísticas cotidianas que a DA pode impactar é a de contar histórias, devido aos problemas ocasionados pela doença em relação à linguagem e à memória.

As narrativas orais são um objeto de investigação da interação e de sua própria constituição que aborda os aspectos discursivos e linguísticos da comunicação face a face. Analisando as narrativas cotidianas, por exemplo, é possível identificar o mundo social que se configura por meio da produção discursiva cotidiana que é o ato de contar histórias. Amparado na perspectiva socioconstrucionista (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2020MOITA LOPES, L. P.; FABRÍCIO, B. F. (2020) Por uma ideologia linguística responsiva às teorizações queer. Cadernos de Linguagem e Sociedade, v. 21, n. 2.; MOITA LOPES, 2009MOITA LOPES, L. P. (2009). A performance narrativa do jogador Ronaldo como fenômeno sexual em um jornal carioca: multimodalidade, posicionamento e iconicidade. Revista da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística, Brasília, n. 27, v. 2, p. 128-157.), que considera a linguagem como uma prática social pela qual nos constituímos, este trabalho parte do princípio de que os significados do mundo social não são dados ou definidos a priori. Pelo contrário, eles são construídos na medida em que as pessoas escrevem, discutem e contestam nas práticas interacionais e discursivas, sendo esse processo imbricado, sobretudo, no âmbito linguístico-semântico do processo de construção identitária (FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, B. F. (2006). Linguística Aplicada como espaço de “desaprendizagem”: Redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar, São Paulo: Parábola Editora, p. 45-65.; BASTOS; BIAR, 2015BASTOS, L. C.; BIAR, L. (2015). Análise narrativa e práticas de entendimento da vida social. Delta, São Paulo, v. 31, p. 97-126.).

Narrativa e a identidade estão intimamente ligadas. As histórias são produções discursivas pelas quais as pessoas se representam no mundo social. Pelo seu caráter performativo, ao narrar não apenas expressamos uma visão de nós mesmos, mas construímos significados sobre quem é este eu que performa, sobre o outro e sobre o mundo (FREITAS; MOITA LOPES, 2019FREITAS, L. F. R.; MOITA LOPES, L. P. (2019). Vivenciando a outridade: escalas, indexicalidade e performances narrativas de universitários migrantes. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 19, n. 1, p. 147-172.). As identidades, segundo Hall (2006)HALL, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 12a ed., são deslocadas ou fragmentadas, constituindo-se continuamente “ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre sendo formada” (HALL, 2006, p. 38HALL, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 12a ed.).

As identidades emergem pelas práticas discursivas e pelo uso de elementos indexicais da língua que apontam para diversos marcadores sociais da representação de quem somos e as formas como essa representação imprime nossa existência como sujeitos sociais. Ta l movimento estaria associado a um esforço narrativo, constituído por recursos históricos, culturais e linguísticos, que nos mantêm no processo de elaboração significativa de um itinerário e de um conjunto de características na construção de identidades (HALL, 2014HALL, S. (2014). Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais (org.). Petrópolis: Vozes, 15a. ed, p. 247-264.).

Goffman (2002)GOFFMAN, E. (2002). Footing. In: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. Sociolinguística Interacional. São Paulo: Loyola, p. 107-148. utiliza a metáfora da representação teatral para demonstrar como os indivíduos se projetam para os outros, durante as interações, em diferentes situações sociais, realizando um gerenciamento de impressões sobre si. O sociólogo defende a ideia de que o self é o resultado das interações cotidianas e da imagem que projetamos de nós mesmos. Footing é o termo que o autor introduz em decorrência da noção de enquadre, “que formula a metamensagem a partir da qual situamos o sentido implícito da mensagem” (RIBEIRO, GARCEZ, 1998, p. 70RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. (1998). Sociolinguística Interacional. Porto Alegre: AGE.). Assim, o footing seria a representação de como os indivíduos projetam o self na interação, demonstrando um alinhamento que é assumido de acordo com o enquadre. Os footings são negociados na interação (sustentados ou modificados) e revelam como as identidades sociais e linguísticas dos sujeitos emergem e se constroem durante a atividade discursiva.

Mobilizar a relação entre narrativa e DA para um olhar mais atento à produção linguística/discursiva nesse contexto evidencia uma questão significativa a ser estudada, sobretudo, diante do quadro de ocorrência dessa doença na sociedade, que provoca impacto em diferentes esferas da vida social. Ao analisarmos como uma pessoa acometida pela DA constrói sua identidade durante o ato de narrar, mudamos a lente sobre o que é dito sobre a patologia e permitimos conhecer e reconhecer o que é desenvolvido pela mobilização de recursos linguísticos e discursivos no âmbito da interação.

1. NARRATIVA E IDENTIDADE

Em nosso cotidiano, a prática de contar histórias constitui uma das mais frequentes atividades discursivas em que nos engajamos. Ao contar e ouvir uma história não estamos apenas narrando fatos e eventos ocorridos no passado, mas construindo perspectivas discursivas pelas quais construímos papéis sociais e identidades na interação e que nos permitirmos atuar e compreender a vida social (MIRA, 2019MIRA, C. (2019). Como é que a gente diz? Uma análise das estratégias textual-interativas na narrativa de uma pessoa com doença de Alzheimer. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 19, n. 3, p. 419-433.). Nesse sentido, a narrativa não é apenas a recapitulação de eventos passados da experiência pessoal conforme foi a definição de Labov e Waletzky (1967)LABOV, W.; WALETZKY, J. (1967). Narrative Analysis: Oral Versions of Personal Experience. The Journal of Narrative and Life History, v. 7, n. 1-4, p. 3-38, 1967. que culminou no modelo canônico de análise da narrativa. Segundo Johnstone (2001)JOHNSTONE, B. (2001). Discourse analysis and narrative. In: SCHIFFRIN, D.; TANNEN, D.; HEIDI, E. H. (ed.). The handbook of discourse analysis. Malden, Mass.: Blackwell, p. 635-649., falar sobre o passado ou o presente é aparentemente algo que todos os humanos fazem, um “impulso autobiográfico”, o desejo de tornar a vida coerente ao contar sobre si mesmo que parece ser universal; a narrativa pessoal é a forma como fazemos sentido de nós mesmos como indivíduos e como membros de uma sociedade. Do ponto de vista da análise linguístico-interacional da narrativa, o foco analítico também deve conjugar recursos que falantes e ouvintes colocam em jogo na cena interacional, tais como os papéis de personagem/agentes que são construídos durante o desenvolvimento do enredo da história (DE FINA; GEORGAKOPOLOU, 2012DE FINA, A.; GEORGAKOPOULOU, A. (2012). Analyzing Narrative: Discourse and Sociolinguistic Perspectives. Cambridge University Press.).

A análise da narrativa situou a área em um outro patamar, isto é, uma perspectiva teórica e analítica voltada à investigação de uma prática social situada histórica e culturalmente. Nesse sentido, as narrativas figuram como resultado de um processo de construção da relação do narrador com os outros e com o mundo em que ele vive (OLIVEIRA; BASTOS, 2014OLIVEIRA, L. M.; BASTOS, L. C. (2014). Narrando em Colaboração: as construções discursivas de uma pessoa com afasia. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 14, n. 2, p. 247-267.). Contrariando a concepção de narrativa de Labov e Waletzky (1967)LABOV, W.; WALETZKY, J. (1967). Narrative Analysis: Oral Versions of Personal Experience. The Journal of Narrative and Life History, v. 7, n. 1-4, p. 3-38, 1967., que compreendia que contar histórias seria definido por pela forma de narrar eventos passados constituída por orações independentes que expressam eventos pontuais em uma ordem cronológica de acontecimentos, a sociolinguística interacional concebe a narrativa em uma perspectiva mais alargada (BASTOS, 2005BASTOS, L. C. (2005). Contando estórias em contextos espontâneos e institucionais – uma introdução ao estudo da narrativa. Calidoscópio. Vol. 3, n. 2, p. 74-87.). Nesse campo de estudo, o foco deixa de ter como objetivo apenas recapitular experiências, abrangendo narrativas constituídas de diferentes formas. A narrativa, passar a ser compreendida por uma perspectiva social, na qual contar histórias está relacionado a trazer à tona experiências de uma forma lógica e temporal, não sendo experiências unicamente passadas, mas presentes ou até futuras.

Narrar também constitui um ato performativo, sendo um espaço de construções discursivas e identitárias. Bauman (1986)BAUMAN, R. (1986). Story, performance and event: contextual studies of oral narrative. Cambridge: Cambridge University Press. define a performance narrativa como um espaço situado em que os falantes agem em um espaço interacional e contextualmente delimitados. As práticas comunicativas que se desenrolam nesses cenários posicionam discursiva e interacionalmente os narradores e a audiência (BAMBERG, 2002BAMBERG, M. (2002). Construindo a masculinidade na adolescência: posicionamentos e o processo de construção de identidade aos 15 anos. In: MOITA LOPES, L. P.; BASTOS, L. C. (Org.). Identidades: Recortes multi e interdisciplinares. Campinas, SP: Mercado de Letras, p. 149-185.; MELO; MOITA LOPES, 2015MELO, G. C. V.; MOITA LOPES, L. P. (2015). “Você é uma morena muito bonita”: a trajetória textual de um elogio que fere. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 54, n. 1, p. 53-78.). É nesse jogo que o evento narrativo constitui um locus teórico-analítico em que narradores e ouvintes agem na vida social “performando suas identidades de modos específicos, que são definidos pelo que os participantes decidem focalizar, pelos posicionamentos que escolhem ocupar e pelo modo como os interlocutores se relacionam com eles na performance” (MOITA LOPES, 2009, p. 135MOITA LOPES, L. P. (2009). A performance narrativa do jogador Ronaldo como fenômeno sexual em um jornal carioca: multimodalidade, posicionamento e iconicidade. Revista da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística, Brasília, n. 27, v. 2, p. 128-157.).

A noção de performatividade da narrativa é associada à ideia de contextualização, entendida como um processo dinâmico das relações entre narradores, eventos, comunidade de falantes e contextos culturais (DE FINNA; GEORGAKOPOLOU, 2012). Na definição das autoras, a performance narrativa está relacionada não a uma lista de elementos culturais e situacionais que formatam o evento narrativo, mas sim a uma combinação dinâmica que esses elementos adquirem nas especificidades das situações comunicativas.

Ao contarmos uma história, não apenas nos comunicamos em trocas de turnos linguísticos. Narrar é muito mais que isso, é uma forma de agirmos interativamente com outras pessoas com as quais estabelecemos relações no mundo social (MIRA; CUSTODIO, 2021MIRA, C.; CUSTODIO, K. A. (2021). “Isso tudo me traz de novo a vida que eu tinha”: a coconstrução de uma narrativaautobiográfica na Doença de Alzheimer.Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 29, n. 3, p. 1979-2009.). Clark (1996, p. 346)CLARK, H. C. (1996). Using Language. New York: Cambridge University Press. afirma que a narrativa é o locus em que “essas histórias são parte integrante da conversa, com a audiência participando tanto quanto os narradores”. As narrativas produzidas por pessoas acometidas pela DA possibilitam investigar essa ação conjunta entre os eventos narrados e a audiência e as suas estratégias linguístico-interacionais que emergem no quadro de dificuldades linguísticas, cognitivas e de comunicação causadas por essa patologia. Em outras palavras, essa é a possibilidade de investigar não só a materialidade linguística da narrativa, mas, sobretudo, como essas pessoas se posicionam discursivamente para projetarem ou reconstruírem suas identidades sociais.

As perdas cognitivas e linguísticas são fatores que dificultam a organização temporal e discursiva do mundo narrado (MIRA, 2019MIRA, C. (2019). Como é que a gente diz? Uma análise das estratégias textual-interativas na narrativa de uma pessoa com doença de Alzheimer. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 19, n. 3, p. 419-433.). Hydén e Örulv (2008)HYDÉN, L. C.; ÖRULV, L. (2008). Interaction and narrative structure in dementia. In: SCHIFFRIN, D.; DE FINA, A.; NYLUND, A. (Orgs.). Telling stories: language, narrative, and social life. Washington D.C.: Georgetown University Press. mostram em seus trabalhos que tais condições não impedem as pessoas com DA de participarem de interações face a face das quais eram parte atuante na ação de narrar. Os autores ainda destacam que ao narrar no contexto de Alzheimer, as pessoas mobilizam sua criatividade a fim de, pela história, coconstruir sua identidade com o interlocutor.

O papel colaborativo do ouvinte da narrativa é importante porque o avanço do declínio cognitivo compromete o conhecimento compartilhado entre narrador e ouvinte, elemento que é essencial para o desenvolvimento da interação. Nesse cenário, o andaimento1 assume uma função primordial por propiciar o processo de construção de sentidos (HYDÉN, 2017HYDÉN, L. C. (2017). Storytelling in dementia: collaboration and commun ground. In: HYDÉN, L. C; ANTELIUS, E. Living with demencia. Palgrave: London, p. 116-134.; MIRA, 2019MIRA, C. (2019). Como é que a gente diz? Uma análise das estratégias textual-interativas na narrativa de uma pessoa com doença de Alzheimer. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 19, n. 3, p. 419-433.), pois possibilita a sequencialidade da interação, frente às dificuldades linguísticas que a patologia impõe.

A manutenção das atividades conversacionais é um dos pilares que sustenta o processo contínuo de exibição da personalidade e da identidade. Nesse exercício, o ato ubíquo de narrar frequentemente é a forma pela qual construímos cotidianamente nossa identidade por meio do compartilhamento de memórias e de histórias pessoais. As narrativas têm sido consideradas o meio de expressar quem somos, sendo as histórias o elemento da vida cotidiana que nos molda socialmente. Os narradores, ao contar histórias, estão simultaneamente construindo suas próprias identidades e a dos outros durante o desenvolvimento do mundo narrado e dos papéis sociais (DE FINNA, 2015). A identidade não é aquilo que é encontrado internamente em nós, como uma faculdade ou instância cognitiva que estrutura o conhecimento sobre o self. Pelo contrário, conforme Hydén (2018)HYDÉN, L. C. (2018). Entangled Narratives. New York: Oxford University Press., a abordagem da identidade deve ser relacional e social, concebida como um objeto de engajamento no mundo a partir do uso dos recursos discursivos. A narrativa representa uma dessas formas de engajamento.

A identidade tem sido fenômeno de investigação explorado em diversos trabalhos da Linguística Aplicada (FABRÍCIO; MOITA LOPES, 2002FABRÍCIO, B. F.; MOITA LOPES, L. P. (2002). Discursos e Vertigens: identidades em xeque em narrativas contemporâneas. Veredas Rev. Est. Ling. Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 11-29.; MOITA LOPES; BASTOS, 2010MOITA LOPES, L. P..; BASTOS, L. C. (2010). A experiência identitária na lógica dos fluxos-uma lente para se entender a vida social. In: LOPES, L. P. M.; BASTOS, L. C. (org.). Para além da identidade: fluxos, movimentos e trânsitos. Belo Horizonte: UFMG, p. 9-23.; BASTOS; BIAR, 2015BASTOS, L. C.; BIAR, L. (2015). Análise narrativa e práticas de entendimento da vida social. Delta, São Paulo, v. 31, p. 97-126.). Hall (2006)HALL, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 12a ed. mostra como a noção de sujeito na pós-modernidade é fragmentada e descentralizada. O argumento do sociólogo é que esse processo desencadeou a chamada “crise de identidade”, um processo gigantesco de mudanças, que desestruturam os processos centrais das sociedades modernas e abalam os estados de referência que proporcionavam aos indivíduos um sentimento de estabilidade no mundo social. Nesse cenário, a identidade está fragmentada, colocando em xeque e modificando os conceitos de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça, cultura e nacionalidade incrustrados na sociedade.

Tais mudanças levaram a um movimento no campo da Linguística Aplicada que descentralizou a língua como o lugar de constituição da identidade pré-determinada em categorias estanques, como gênero, etnia, classe social e nacionalidade, para uma concepção de que a identidade é um construto social e não só linguístico, constituído pela discursividade de recursos multissemióticos diversificados. Nesse sentido, não há linguagem de forma homogênea e imutável. É pela variação no uso de recursos discursivos e multissemióticos que a identidade dos indivíduos é indexada e interpretada (JOSEPH, 2016JOSEPH, J. E. (2016). Historical perspectives on language and identity. In: PREECE, S. The Routledge Handbook of Language and Identity. New York: Routledge: p.19-33.).

Moita Lopes e Bastos (2010)MOITA LOPES, L. P..; BASTOS, L. C. (2010). A experiência identitária na lógica dos fluxos-uma lente para se entender a vida social. In: LOPES, L. P. M.; BASTOS, L. C. (org.). Para além da identidade: fluxos, movimentos e trânsitos. Belo Horizonte: UFMG, p. 9-23. afirmam que existir é um movimento em meio à continuidade e rupturas dos momentos da história. Os movimentos, os trânsitos, os fluxos são elementos constitutivos de quem somos. São as mudanças sociais, políticas, culturais e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas que têm trazido à tona problemáticas relacionadas às nacionalidades, etnias, territórios, subjetividades, sexualidades dentre tantos outros temas que levam a uma profunda reflexão e à ânsia de entender em quem estamos nos tornando a cada momento na vida social.

Assumimos, no âmbito do presente trabalho, a perspectiva socioconstrucionista de que as identidades sociais são constituídas na e pela atividade discursiva. Portanto, as identidades sociais não estão nos indivíduos ou são fixas. Pelo contrário, é na cena interativa que os processos identitários emergem entre os interagentes. Pela perspectiva socioconstrucionista, as identidades são uma prática de construção intrinsecamente conectada aos processos linguísticos e comunicacionais. Portanto, as identidades e o self não são considerados como pré-existentes, mas sim constituídos no contexto social, onde a linguagem desempenha um papel fundamental na maioria das práticas em que os seres falantes se engajam cotidianamente (DE FINA; GEORGAKOPOLOU, 2012DE FINA, A.; GEORGAKOPOULOU, A. (2012). Analyzing Narrative: Discourse and Sociolinguistic Perspectives. Cambridge University Press.).

Para De Finna e Georgakopoulou (2012), os processos de ressignificação e negociação de sentidos da narrativa envolvem o entrelaçamento dos enunciados com textos já ditos ou citados na história. Esse movimento ocorre porque certos “signos (não somente os linguísticos) “indexam”, ou apontam para alguma coisa que é externa a eles” (p. 176). A indexicalidade consiste na propriedade do signo linguístico de apontar para as condições externas semióticotextuais que indicam os discursos e aspectos socioculturais compartilhados entre os interagentes (SILVERSTEIN, 2003SILVERSTEIN, M. (2003). Indexical order and dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, University of Chicago, n. 23, p. 193-229.; GUIMARÃES; MOITA LOPES, 2017GUIMARÃES, T. F.; LOPES, L. P. M. (2017). Trajetória de um texto viral em diferentes eventos comunicativos: entextualização, indexicalidade, performances identitárias e etnografia. Alfa Revista de Linguística, São Paulo, v. 61, n. 1, p. 11-33.). Por essa perspectiva, a indexicalidade é o princípio de contextualização dos signos linguísticos em uso”. (SILVERSTEIN, 2003SILVERSTEIN, M. (2003). Indexical order and dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, University of Chicago, n. 23, p. 193-229.). Fabrício (2016)FABRÍCIO, B. F. (2016). Mobility and discourse circulation in the contemporary world: the turn of the referential screw. Revista da Anpoll, Florianópolis, n. 40, p. 129-140. sintetiza que a indexicalidade é um jogo de linguagem em que mobilizamos diversas narrativas, vozes e valores sociais para participar dos processos que envolvem a interação social. Como um construto teórico, a indexicalidade contribui para a análise da construção da identidade na narrativa porque abarca a variação e a riqueza dos recursos linguísticos nos diferentes níveis do ato de contar histórias, o que evita restringir a análise aos temas e posicionamentos mais explícitos do narrador (DE FINA; GEORGAKOPOLOU, 2012DE FINA, A.; GEORGAKOPOULOU, A. (2012). Analyzing Narrative: Discourse and Sociolinguistic Perspectives. Cambridge University Press.).

O fenômeno da indexicalidade é um elemento que constitui os processos de contextualização e (re) significação de narrativas, sendo um construto teórico que permite analisar como a relação entre o ato de constar histórias e de performar identidades se constitui linguística e interacionalmente. Há diversos contextos em que tais fenômenos foram investigados. Alguns exemplos mais recentes desse tipo de investigação em contextos diversos (produção audiovisual, redes sociais, narrativas de estudantes migrantes e de imigrantes) podem ser conferidos em trabalhos como os de De Fina e Georgakopolou (2012)DE FINA, A.; GEORGAKOPOULOU, A. (2012). Analyzing Narrative: Discourse and Sociolinguistic Perspectives. Cambridge University Press., De Fina (2015)DE FINA, A. (2015). Narrative and Identities. In: DE FINA, A.; GEORGAKOPOULOU, A. The Handbook of Narrative Analysis. Oxford: Wiley Blackwell, p.361-368. Gonzales e Moita Lopes (2018)GONZALEZ, C.; LOPES, L. P. M. (2018). Reflexividade metapragmática sobre o cinema de Almodóvar numa interação online: indexicalidade, escalas e entextualização. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 57, n. 2, p. 1102-1136, 2018., Guimarães e Moita Lopes (2017)GUIMARÃES, T. F.; LOPES, L. P. M. (2017). Trajetória de um texto viral em diferentes eventos comunicativos: entextualização, indexicalidade, performances identitárias e etnografia. Alfa Revista de Linguística, São Paulo, v. 61, n. 1, p. 11-33. e Freitas e Moita Lopes (2019)FREITAS, L. F. R.; MOITA LOPES, L. P. (2019). Vivenciando a outridade: escalas, indexicalidade e performances narrativas de universitários migrantes. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 19, n. 1, p. 147-172.. Mobilizar esses construtos teóricos para a análise das práticas identitárias em narrativas de pessoas com DA representa uma possibilidade de compreender como a relação entre linguagem e identidade é mantida e/ou reconfigurada no cenário de perdas cognitivas, linguísticas e interacionais. Essa é uma lacuna pouco explorada no campo dos estudos da narrativa e da Linguística Aplicada.

2. METODOLOGIA

O presente artigo constitui-se como de base qualitativa-interpretativista, a partir do método indutivo, ou seja, tendo seus procedimentos analíticos direcionados a partir da geração de dados. Além disso, este trabalho se caracteriza como uma investigação de inspiração etnográfica que considera como objeto de análise não só as entrevistas narrativas, mas também a observação das interações da pessoa com DA com seu núcleo familiar e os depoimentos de seus familiares e cuidadores. Cabe esclarecer que a proposta não se enquadra especificamente como uma investigação etnográfica stricto sensu, mas sim como um conjunto de procedimentos que visa a triangular dados diferentes para compreender os fenômenos narrativos e identitários por uma perspectiva mais abrangente. No campo da análise da narrativa, “diferentemente da etnografia clássica, considera-se que a inserção no contexto de pesquisa e as descrições desse contexto devem ser densas o suficiente para ancorar as análises do discurso produzido no campo” (BASTOS; BIAR, 2015, p. 103BASTOS, L. C.; BIAR, L. (2015). Análise narrativa e práticas de entendimento da vida social. Delta, São Paulo, v. 31, p. 97-126.). A geração de dados foi composta por três instrumentos.

O primeiro deles foi a entrevista narrativa com os participantes com DA. Compreendemos a entrevista narrativa como um processo interacional em que os interlocutores constroem conjuntamente o discurso no ato interacional que é a entrevista. Nesse processo, os significados das perguntas e respostas são coconstruídos na atividade interacional na medida em que “questionar e responder são formas de falar que se fundamentam e dependem de suposições culturalmente compartilhadas e muitas vezes tácitas sobre como expressar e entender crenças, experiências, sentimentos e intenções” (MISHLER, 1986, p. 7MISHLER, E. G. (1986). Research interviewing - context and narrative. Cambridge: Harvard University Press.). As entrevistas narrativas são de formato não estruturado. O interesse do pesquisador pela fala dos participantes é fundamental para que a entrevista seja um discurso coconstruído, em que emergem significados que são moldados pelos turnos de fala do entrevistado e do participante (SANTOS, 2013SANTOS, W. S. (2013). Níveis de interpretação na entrevista de pesquisa interpretativa com narrativas. In: BASTOS, L. C.; SANTOS, W. S. A entrevista na pesquisa qualitativa - perspectivas em análise da narrativa e da interação. Rio de Janeiro: Quartet.; MISHLER, 1986MISHLER, E. G. (1986). Research interviewing - context and narrative. Cambridge: Harvard University Press.). Mondada (1997, p. 59)MONDADA, L. (1997). A entrevista como acontecimento interacional: abordagem linguística e interacional. RUA, Campinas, v. 3, n. 1, p. 59-86. explica que a entrevista deve ser entendida como “um acontecimento comunicativo no qual os interlocutores, incluído o pesquisador, constroem coletivamente uma versão do mundo”.

Tal método, também denominado como entrevista aberta, tem como objetivo conhecer a realidade do entrevistado segundo sua perspectiva, a fim de analisá-la. A preocupação não está em traçar perguntas específicas ou em gerar respostas que vêm ao encontro das hipóteses do pesquisador, mas ampliar a visão sobre as experiências das pessoas e significados construídos a partir delas.

O segundo instrumento de geração de dados foi a observação de interações cotidianas do núcleo familiar das pessoas com DA. A realização dessas observações ocorreu por meio de visitas dos pesquisadores às casas dessas famílias. Foram utilizadas nessa etapa gravações de momentos cotidianos e notas de diário de campo. O objetivo da geração desse tipo de dado foi observar as características das interações cotidianas e como nesses momentos ocorrem definições de papéis identitários.

O terceiro instrumento consistiu na realização de entrevistas com os familiares/cuidadores da pessoa com DA. As entrevistas foram semiestruturadas e abordaram questões relacionadas às diferentes dimensões do convívio com uma pessoa com DA, tais como: a rotina de cuidados, as características do uso da linguagem, o histórico familiar e individual, a descrição do diagnóstico e progressão da doença e informações médicas sobre a condição clínica.

Levando em consideração esses procedimentos metodológicos, podemos afirmar que este estudo pode ser definido como uma pesquisa narrativa, que utiliza como método de geração de dados entrevistas abertas, sem roteiro previamente definido, como uma conversa informal, durante a qual emergem narrativas interacionais. Contar histórias além de ser uma atividade humana universal (RIESSMAN, 1993RIESSMAN, C. K. (1993). Narrative Analysis. Newbury Park, CA: Sage.) ainda pode ser considerada a principal forma pela qual nossas experiências se tornam significativas (POLKINGHORNE, 1988POLKINGHORNE, D.E. (1988). Narrative Knowing and the Human Sciences. Albany, NY: State University of New York Press.). A partir dessa premissa, cada vez mais os pesquisadores das ciências sociais têm visto na pesquisa narrativa uma forma legítima de investigação.

De acordo com Barkhuizen, Benson e Chik (2014), a força desse tipo de pesquisa reside em como as pessoas utilizam as histórias para dar sentidos às suas próprias experiências em áreas de investigação nas quais compreender os fenômenos pela perspectiva de quem as experiencia é imprescindível.

As convenções de transcrição adotadas na presente pesquisa são as mesmas utilizadas nos estudos do projeto NURC (Norma Urbana Culta) e propostas na obra de Marcuschi (1986)MARCUSCHI, L. A. (1986). Análise da Conversação. São Paulo: Ática.. Tal sistema de notação é “eminentemente ortográfico, mas considerando a produção real” (MARCUSCHI, 1986, p. 9MARCUSCHI, L. A. (1986). Análise da Conversação. São Paulo: Ática.) do falante. Algumas convenções foram acrescentadas a fim de contemplar a especificidade do dado e as necessidades da análise. Considerando a natureza dos dados, optamos por descrever gestos ou outros recursos semióticos relevantes à análise por meio de comentários na transcrição.

2.1 Contexto de pesquisa

Os dados gerados com a participante compreendem um período de cerca de 40 meses (de abril de 2016 a novembro de 2018), em entrevistas mensais e/ou quinzenais, realizadas na residência da participante, cujo nome fictício é Joana2, em uma cidade do sul do país. Os encontros constituíam-se em um contexto de conversas cotidianas informal, sem definição prévia de tópicos abordados ou um roteiro de atividades pré-definidas. Além desses encontros, foram realizadas duas visitas de observação das interações da participante com seu núcleo familiar e entrevistas com suas cuidadoras. Essa etapa de observação e entrevistas foi fundamental para a inserção dos pesquisadores no contexto do convívio de Joana e possibilitou conhecer os detalhes de seu diagnóstico, bem como sua rotina de cuidados e dificuldades enfrentadas por ela no desenvolvimento da doença.

Os encontros eram previamente agendados e um dos pesquisadores se dirigia à casa da participante onde era recebido por ela e pela cuidadora que inicialmente participava das interações, passando a ser apenas Joana, posteriormente. A participante sabia previamente o dia da visita dos pesquisadores e os esperava com algo para mostrar ou discutir. Isso reafirma que as entrevistas não eram pré-definidas pelos pesquisadores, mas determinadas por temas de interesse da participante. Normalmente Joana, no início do encontro, mostrava algum objeto de valor sentimental ou recordação que motivava a conversa, outras vezes eram acontecimentos cotidianos ou recentes que orientavam a interação.

A participante é uma mulher de 75 anos, professora universitária de inglês aposentada, natural do Rio Grande do Sul. Joana foi diagnosticada com DA há cerca de sete anos. Ela recebe o auxílio de duas cuidadoras para a execução de suas atividades diárias e o apoio dos familiares mais próximos. Joana é ciente do seu diagnóstico e, atualmente, apresenta como sintomas a perda de visão e mobilidade reduzida. A sua produção linguística evidencia a dificuldade de articulação fonológica no início de palavras, de acesso lexical, parafasias semânticas e lexicais e repetição de segmentos vocálicos.

Joana é pós-graduada, com alto nível de letramento, participa de atividades culturais, gosta de cinema, música e literatura. Viajar é uma de suas atividades preferidas e já esteve em vários países, vivendo em alguns deles por certo tempo. Gosta muito de falar em inglês e algumas vezes, solicita para que a interação aconteça nessa língua. Em sua rotina, ela busca envolver-se em diversos tipos de atividades, tais como exercícios físicos, conversas cotidianas, organização de livros, álbuns de músicas, fotografias, recordações de viagens e eventos culturais, como saídas para cinema, teatro e concertos musicais. Além dessas atividades, são frequentes as viagens e as visitas à casa de familiares e amigos. A maior parte do tempo, demonstra uma atitude ativa e participativa frente ao que lhe é proposto.

3. ANÁLISE DE DADO

A interação que será analisada tem como interlocutores Joana e a pesquisadora, identificada pelo nome fictício de Clara, de 41 anos, professora de inglês e português há 17 anos. O encontro aconteceu na residência da participante. Joana já havia participado de encontros antreriores com outro pesquisador, mas essa seria a primeira visita da pesquisadora, que ela ainda não conhecia. Visto que se tratava de um encontro inicial, a interação gira em torno da apresentação de ambas, que iniciam a conversa falando sobre a profissão que possuem em comum: a docência. A pesquisadora se apresenta à Joana e conta um pouco da sua vida: onde mora, sua rotina profissional, onde trabalha, as funções que desempenha e seu trabalho acadêmico. Joana sente-se muito à vontade e logo também começa a contar como foi sua trajetória profissional, desde a primeira escola na qual deu aula, uma escola da rede particular.

Nesse momento da interação, transcrito abaixo, Joana continua a narrativa sobre sua vida profissional, dando ênfase ao narrar as várias situações positivas da sua trajetória, iniciando por uma licença que lhe foi concedida.

Excerto 1
A licença

No excerto acima, diante do enquadre estabelecido de entrevista, na qual a pesquisadora assume um papel de ouvinte, Joana reconhece o footing de narradora principal, construindo ao longo de sua narrativa evidências de uma construção identitária da profissional que foi e das situações que vivenciou em sua carreira. Demonstraremos como Joana utiliza as pistas de contextualização (GUMPERZ, 2002GUMPERZ, J. J. (2002). Convenções de Contextualização. In: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. Sociolinguística Interacional. São Paulo: Loyola, p. 149-182.) e a indexicalidade (SILVERSTEIN, 2003SILVERSTEIN, M. (2003). Indexical order and dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, University of Chicago, n. 23, p. 193-229.) a fim de tecer essa construção identitária interacionalmente na história narrada. De acordo com Gumperz (2002)GUMPERZ, J. J. (2002). Convenções de Contextualização. In: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. Sociolinguística Interacional. São Paulo: Loyola, p. 149-182., essas pistas podem se manifestar de várias formas dependendo do repertório linguístico dos falantes, historicamente determinado. Além de pistas linguísticas, também são passíveis de análise as pistas paralinguísticas (pausas, hesitações) ou as pistas prosódicas (entoação, acento) as quais passaremos a descrever.

O excerto inicial gira em torno de uma situação positiva ocorrida na vida de Joana, que também impactou sua vida profissional. Nas linhas 283-285, Joana conta à Clara sobre a licença que lhe foi concedida, após uma ajuda de dona Elizandra, para que pudesse acompanhar uma viagem com o marido para a Alemanha. Na linha 288, o marcador discursivo “entendeu” com tom de riso e, em seguida na linha 290 “tinha isso”, também enunciado com riso, evidenciam a oportunidade que Joana pode desfrutar, que de certa forma acabou contribuindo para seu aprimoramento como professora de inglês. Na linha 315, Joana utiliza a expressão “deu nos pauzinhos dela”, popularmente conhecida como “mexeu os pauzinhos” e utiliza de outros recursos não linguísticos salientando a predisposição de Dona Elizandra em ajudá-la para que ela pudesse ir para a Alemanha. Além disso, por meio da construção “ela deu a possibilidade” (linha 317) e a ênfase os pronomes “eu” e “ele” remetem ao fato ser algo considerado por ela como uma grande oportunidade, o que é compartilhado com Clara que avalia positivamente na linha 320.

Assim como a organização da tomada de turnos é essencial em uma conversa, havendo uma negociação entre os interlocutores da garantia do seu turno de fala, obviamente, da mesma forma, ao se narrar uma história nas mais variadas situações cotidianas, é esperado que o interlocutor que narra tenha garantido um espaço interacional maior (GARCEZ, 2001GARCEZ, P. M. (2001). Deixa eu te contar uma coisa: o trabalho sociológico do narrar na conversa cotidiana. In: RIBEIRO, B. T.; LIMA, C. C.; DANTAS, M. T. L. (Orgs.). Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro: Edições IPUB – CUCA (Instituto de Psiquiatria, UFRJ), p. 189-213.), interrompendo momentaneamente essa troca de turnos. Na interação analisada, é fundamental a atenção e a garantia do piso conversacional ao interlocutor acometido pela DA e a contribuição em momentos oportunos a fim de que a narrativa se concretize.

Neste excerto é possível perceber alguns déficits de linguagem que se manifestaram como pausas longas em função da dificuldade de acesso lexical (linhas 283-284, 307) e repetições (linhas 301, 307). Apesar de tais dificuldades, Clara mantém sua atitude de ouvinte, fazendo contribuições que auxiliam Joana a coconstruir sua história, aguardando as pausas, dando confirmações (linha 289, 298), auxiliando na dificuldade de acesso lexical (linha 310), avaliando o que está sendo narrado (linha 320). Podemos dizer que Clara realiza o andaimento necessário para que Joana mantenha-se como uma narradora ativa e sob uma luz favorável para construir sua identidade por meio da história. A responsabilidade da pessoa não Alzheimer colaborando com a narrativa da pessoa com DA, seja por meio da oferta de contribuições linguísticas, outros recursos semióticos ou até mesmo com o silêncio no momento oportuno é fundamental para que a coconstrução se efetive.

Excerto 2
Trajetória profissional

No excerto acima, Joana continua a narrativa a partir do retorno da viagem à Alemanha com o marido e passa a descrever a sua trajetória profissional. Iniciam-se pistas que indexam a identidade que a participante coconstrói com Clara durante a interação. Na linha 323, com a expressão interjetiva “timba”, Joana marca com a entonação (alongamento) e gesto com as mãos, a relevância daquilo que sua amiga diz e que ela reporta como um diálogo construído (TANNEN, 2007TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue and imagery in conversational discourse. 2. ed. New York: Cambridge University Press, 2007.), ou seja, como uma recontextualização da fala já utilizada anteriormente em outra situação: “Joana tu é muito boa, tu vai ficar no curso de idioma ainda”. Ao reconstruir a fala de dona Elisandra, Joana utiliza a entonação no predicativo “boa” e no advérbio “ainda”, além da expressão corporal descrita na transcrição como recursos semióticos que apontam para o seu potencial profissional, reconhecido por Dona Elizandra em sua fala e que irá se consolidar com as próximas cenas narradas que estão diretamente relacionadas à identidade de boa profissional que Joana segue coconstruindo com o interlocutor. Nas linhas 327-328, Joana avalia positivamente os fatos ocorridos na sua vida como “benesses maravilhosas”. No entanto, nas linhas posteriores (330, 334-337, 359) ela deixa evidente que não se tratava apenas de sorte ou de chances, mas de uma postura profissional comprometida e dedicada.

Nas linhas 330-331, a participante utiliza predicações sobre sua postura profissional: “eu era estudiosa, eu era cumpritosa (no sentido de cumpridora de seus deveres), eu era assim” e em seguida, isso é reforçado pela fala reportada de uma outra personagem que surge, a profissional que a atendeu quando fora solicitar a aposentadoria, que se surpreendeu por Joana nunca ter apresentado uma falta sequer ao trabalho. Cabe destacar aqui, que ao reportar “a senhora não tem nenhuma falta” (linha 334-337), Joana enfatiza a fala assumindo uma postura corporal e entonação de admiração que novamente encenam o que havia sido dito naquela situação e a sua relevância ao contexto interacional, o que funciona como uma comprovação, neste momento, para a construção identitária de profissional dedicada que vem tecendo ao longo da narrativa. Na linha 334, Joana apresenta uma dificuldade de acesso lexical, percebida pelos prolongamentos. Diante disso, na linha 336, Clara contribui com a palavra falta, auxiliando no prosseguimento da narrativa na linha 337.

Nas linhas 343 a 364, Joana enumera os lugares em que trabalhou, evidenciando sua vasta experiência profissional à Clara. Ao citar tais locais (escolas de rede pública, privada, de idiomas e a universidade), Joana toca cada um dos dedos das mãos, reforçando a ideia de não serem poucos os locais (linhas 345-346; 359-364). Além de enumerar os locais, a participante reforça o tempo pelo qual trabalhou: “trabalhei em toda a minha vida tu entende?” (linha 356-357), “eu fiz dez anos eu trabalhei na universidade en entende?” (linha 367-368). Nessas duas referências ao seu tempo de trabalho, Joana utiliza o marcador discursivo “entende”, um marcador recorrente na fala da participante, operando como um pedido de confirmação, uma forma de alinhamento com Clara sobre o que está sendo narrado.

Joana revela, na linha 370-371, outra experiência que teve com a docência, o trabalho com os estágios na universidade e em seguida, descreve o que esse cargo lhe permitia fazer: “eu levava as pessoas” (linha 376), “eu ia nas escolas delas para dar ideias e tal” (linhas 376-380), “a gente fazia o estágio com elas” (linhas 383-384) e, por fim, avalia positivamente a experiência usando a expressão “muito bacana” (linha 386) com entonação e alongamento vocálico enfatizando o intensificador “muito” e o predicativo “maravilhosos” (linha 387), marcado por uma segmentação silábica que reforça o sentido dessa atividade na constituição da sua identidade, além de novamente repetir o período de tempo pelo qual exerceu essa função. O fato de trabalhar com estágios indexa a condição de uma professora experiente e capaz de aconselhar professores iniciantes, além de revelar a atitude colaboradora de Joana.

Clara mantém sua atitude colaborativa nessa sequência narrativa da participante, que pode ser observado pelas poucas interrupções ao longo da fala de Joana. Além da contribuição já analisada (linha 336), quando a participante apresenta dificuldades, Clara oferece alguma colaboração. Nas linhas 360-362, ao observar uma sequência de pausas e prolongamentos vocálicos, ela oferece a palavra “universidade” por ser de seu conhecimento que Joana trabalhou lá, o que facilita o seguimento da narrativa na linha 364. Além disso, a pesquisadora oferece o apoio interacional para que Joana sinta sua história como relevante e motiva com avaliações sobre o que está sendo narrado como na linha 373.

Excerto 3
O eclipse

No último excerto de nossa análise, Joana, por meio do marcador discursivo “por exemplo” (linha 392), interrompe a sequência narrativa sobre a sua trajetória profissional e faz uma relação metafórica entre aproveitar as oportunidades que a vida proporciona com o eclipse que ocorreria naquele dia. Após narrar sua trajetória profissional, nas linhas 392-395, a participante anuncia que estava ouvindo as notícias, antes de Clara chegar, sobre o eclipse que poderia ser observado naquela noite. Ao enunciar utilizando gestos e acelerando a fala, o que havia pensado “eu vou ver agora porque daqui a pouco não vou mais ver” (linha 400-401), Joana leva a interlocutora Clara a refletir com ela sobre a sua vida comparando as chances com um acontecimento raro. Joana se reporta ao fato no contexto da narrativa, como um exemplo de que as oportunidades únicas acontecem e cabe a nós não as deixar passar. Convém destacar que na linha 395, Joana apresenta parafasia ao enunciar “eclipse”. Clara demonstra entendimento do termo (linha 397), por ser um assunto amplamente veiculado no momento e não sente necessidade em corrigi-lo.

Em seguida, na linha 405, a participante, conscientemente mudando de idioma, entextualiza um verso de uma música muito conhecida “it is now or never”, revelando sua identidade de professora de inglês que utiliza a segunda língua autonomamente, reconstruindo o contexto de utilização da música, coadunando com a ideia de que as oportunidades devem ser aproveitadas. O code switch de Joana indexa sua identidade de professora de inglês, visto que sempre que possível, nas interações, ela utiliza enunciados nesse idioma.

O último excerto, o final da narrativa, traz o interlocutor para o aqui e agora interacional e ainda exerce uma função moral, dando um aconselhamento, de que as chances que surgem devem ser aproveitadas e indexa a sua qualidade de ser alguém que soube usufruir do que a vida proporcionou.

O ato de narrar é performativo, pois ao narrar, o indivíduo constrói significados sobre si (FREITAS; MOITA LOPES, 2017FREITAS, L. F. R.; MOITA LOPES, L. P. (2017). “Sobre feminismo, sobre racismo, sobre xenofobia, sobre tudo”: desequilíbrios narrativos em performances heterossexuais de um aluno migrante branco. Calidoscópio. V. 15, n. 2, p. 305-316.) e cria processos identitários que revelam como ele se vê. Joana, ao narrar, organiza fatos, apresenta personagens, reconstrói diálogos, utiliza pistas linguísticas e índices que, ao longo da narrativa, levam a construir uma identidade de uma boa profissional, batalhadora, mas também perspicaz, que soube aproveitar o que a vida lhe proporcionou.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo se propôs a analisar como uma pessoa acometida pela DA maneja sua construção identitária, na cena interacional, juntamente com o interlocutor, por meio da narrativa que conta. Compreendemos que cada narrativa é única em cada momento, uma prática localmente situada em contextos específicos. Dessa forma, não nos cabe generalizar sobre a forma como as pessoas com DA constroem suas narrativas ou como constroem suas identidades, mas abordar esse caso específico. O fato de utilizarmos uma entrevista aberta em nosso estudo, possibilita analisar uma real produção linguística de uma pessoa acometida pela DA em uma cena interacional cotidiana, na qual ela coconstrói uma narrativa com uma pessoa não Alzheimer e maneja sua identidade, diferentemente de estudos biomédicos que abordam os déficits, os comprometimentos e as perdas decorrentes da patologia. Tais procedimentos metodológicos justificam a singularidade dos dados aqui analisados.

Ao analisarmos os excertos na seção anterior, foi possível evidenciar que a participante apresenta dificuldades linguísticas ocasionadas pela patologia como parafasias, repetições de segmentos vocálicos, alongamentos, pausas e nesses momentos, a atitude colaborativa da interlocutora Clara é fundamental. Seja manifestando atenção, interesse, silenciando, ignorando certas dificuldades que não geram prejuízo ao entendimento do que está sendo dito, respeitando o turno de fala, fazendo o reparo necessário, demonstrando entendimento, as ações da interlocutora são fundamentais para a performance narrativa da participante.

A narrativa contada por Joana pode ser considerada como um evento de reportabilidade estendida (LINDE, 1993LINDE, Charlotte. (1993). Life Stories: the creation of coherence. Oxford, Oxford University Press.), ou seja, eventos “como os mais relevantes de sua biografia, a ponto de serem muitas vezes contados e recontados em diferentes situações sociais” (BIAR; ORTON; BASTOS, 2021, p. 239BIAR, L. A.; ORTON, N.; BASTOS, L. C. (2021). A pesquisa brasileira em análise de narrativa em tempos de “pós-verdade”. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 21, n. 2, p. 231-251, maio/ago.). No caso da presente interação, o evento narrado serve como uma forma de Joana se apresentar à Clara, construindo sua identidade de profissional exemplar, além de trazer à tona discursos socialmente marcados como o de que o sucesso profissional é fruto de empenho e dedicação e de chances bem aproveitadas.

Durante sua performance narrativa, Joana lança mão de recursos semióticos que enfatizam e auxiliam na construção de sua identidade de profissional comprometida, como observado nas análises, fazendo uso de projeções corporais, entonação, predicações e enumerações, as chamadas pistas de contextualização (GUMPERZ, 2002GUMPERZ, J. J. (2002). Convenções de Contextualização. In: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. Sociolinguística Interacional. São Paulo: Loyola, p. 149-182.). Outro princípio analítico que pode ser observado durante a narrativa da participante é a indexicalidade, a propriedade do signo linguístico de apontar significados que são recuperáveis contextualmente (GUIMARÃES; MOITA LOPES, 2017GUIMARÃES, T. F.; LOPES, L. P. M. (2017). Trajetória de um texto viral em diferentes eventos comunicativos: entextualização, indexicalidade, performances identitárias e etnografia. Alfa Revista de Linguística, São Paulo, v. 61, n. 1, p. 11-33.).

Ao manejar a coconstrução de sua identidade frente à pesquisadora, Joana alinha-se à interlocutora, que exerce profissionalmente as mesmas funções que ela um dia desempenhou. A participante coloca-se no patamar de profissional mais experiente e que tem algo a compartilhar com Clara, além de deixar o aconselhamento de aproveitar as oportunidades que a vida proporciona. Na interação analisada, Joana não faz referência à sua doença, mas se constrói durante a interação como uma professora experiente e que teve uma carreira da qual se orgulha. Retomando a concepção de que “as identidades são construídas dentro e não fora do discurso” (HALL, 2014, p. 199HALL, S. (2014). Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais (org.). Petrópolis: Vozes, 15a. ed, p. 247-264.) e que estão sempre em processo contínuo de construção, observamos a forma como Joana se constitui na narrativa.

A DA é comumente (re)conhecida como uma doença cruel e socialmente estigmatizante. O presente trabalho, ao ouvir a pessoa acometida pela doença, possibilitou observar que a escolha que Joana faz ao construir sua identidade nessa prática discursiva específica é como professora e não como alguém que sofre com a DA. As análises demonstraram que Joana, ao apresentar-se à pesquisadora, escolhe negociar a construção de sua identidade na interação como uma profissional que se orgulha da carreira que exerceu e das atividades significativas que realizou. Isso nos leva à reflexão de que a condição patológica nem sempre representa a real visão de si da pessoa acometida e que participar de interações cotidianas e poder contar histórias é uma forma da pessoa com DA ressignificar suas experiências e uma identidade que está continuamente se constituindo e sendo parte das diversas práticas sociais em que nos engajamos cotidianamente.

  • 1
    Andaimento, termo mais comumente utilizado em um quadro relacionado à aprendizagem, no presente contexto consiste na atitude do interlocutor sem a patologia que oferecerá o apoio interacional necessário a fim de facilitar a interação, estabelecendo significados conjuntos. Hydén (2017)HYDÉN, L. C. (2017). Storytelling in dementia: collaboration and commun ground. In: HYDÉN, L. C; ANTELIUS, E. Living with demencia. Palgrave: London, p. 116-134. utiliza o termo “andaimento” (scaffolding) para explicar o papel interacional do interlocutor frente a uma pessoa acometida por este tipo de patologia.
  • 2
    A identidade e o anonimato da participante foram preservados durante toda a geração e transcrição de dados, conforme o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado (TCLE), aprovado pelo CAAE sob o protocolo nº: 50341815.3.0000.5344 no Comitê de Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA
    O conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo não está disponível ao público.

ANEXO

Convenções de transcrição

SINAIS OCORRÊNCIAS (+) Pausa de 0.5 segundos (1.5) Pausa longa cronometrada : Fala alongada / Truncamento brusco - - - - Silabação MAIÚSCULA Ênfase (minúscula) Comentários do transcritor e designações gestuais (SI) Segmento incompreensível [ Sobreposição de fala (( )) Comentário do transcritor º º Volume mais baixo ** Início e término de expressão gestual ? Interrogação @@@ Risos “ “ Leitura de texto Fonte: Marcuschi (1986), adaptado por Mira e Custodio.

REFERÊNCIAS

  • BAKHUIZAN, G.; BENSON, P; CHIK, A. (2014). Narrative Inquiry in Language Teaching and Learning Research New York: Routledge.
  • BAMBERG, M. (2002). Construindo a masculinidade na adolescência: posicionamentos e o processo de construção de identidade aos 15 anos. In: MOITA LOPES, L. P.; BASTOS, L. C. (Org.). Identidades: Recortes multi e interdisciplinares Campinas, SP: Mercado de Letras, p. 149-185.
  • BARROS, A. C. et al. (2009). Influência genética sobre a doença de Alzheimer de início tardio. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 36, n. 01, p. 16-24.
  • BASTOS, L. C.; BIAR, L. (2015). Análise narrativa e práticas de entendimento da vida social. Delta, São Paulo, v. 31, p. 97-126.
  • BASTOS, L. C. (2005). Contando estórias em contextos espontâneos e institucionais – uma introdução ao estudo da narrativa. Calidoscópio Vol. 3, n. 2, p. 74-87.
  • BAUMAN, R. (1986). Story, performance and event: contextual studies of oral narrative Cambridge: Cambridge University Press.
  • BIAR, L. A.; ORTON, N.; BASTOS, L. C. (2021). A pesquisa brasileira em análise de narrativa em tempos de “pós-verdade”. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 21, n. 2, p. 231-251, maio/ago.
  • CLARK, H. C. (1996). Using Language New York: Cambridge University Press.
  • CRUZ, F. M. (2017) Interação corporificada: multimodalidade, corpo e cognição explorados na análise de conversas envolvendo sujeitos com Alzheimer. Alfa São Paulo, v. 61, n. 1, p. 55-80.
  • CRUZ, F. M. (2008) Linguagem, interação e cognição na Doença de Alzheimer Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas.
  • CUSTODIO, K. A. (2019). “Como é que vou dizer...”: a coconstrução de sentidos nas narrativas orais de uma pessoa com atrofia cortical posterior 2019. 116f. Dissertação (Mestre em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo.
  • DE FINA, A. (2015). Narrative and Identities. In: DE FINA, A.; GEORGAKOPOULOU, A. The Handbook of Narrative Analysis Oxford: Wiley Blackwell, p.361-368.
  • DE FINA, A.; GEORGAKOPOULOU, A. (2012). Analyzing Narrative: Discourse and Sociolinguistic Perspectives. Cambridge University Press.
  • FABRÍCIO, B. F. (2006). Linguística Aplicada como espaço de “desaprendizagem”: Redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar, São Paulo: Parábola Editora, p. 45-65.
  • FABRÍCIO, B. F. (2016). Mobility and discourse circulation in the contemporary world: the turn of the referential screw. Revista da Anpoll, Florianópolis, n. 40, p. 129-140.
  • FABRÍCIO, B. F.; MOITA LOPES, L. P. (2002). Discursos e Vertigens: identidades em xeque em narrativas contemporâneas. Veredas Rev. Est. Ling Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 11-29.
  • FREITAS, L. F. R.; MOITA LOPES, L. P. (2019). Vivenciando a outridade: escalas, indexicalidade e performances narrativas de universitários migrantes. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 19, n. 1, p. 147-172.
  • FREITAS, L. F. R.; MOITA LOPES, L. P. (2017). “Sobre feminismo, sobre racismo, sobre xenofobia, sobre tudo”: desequilíbrios narrativos em performances heterossexuais de um aluno migrante branco. Calidoscópio V. 15, n. 2, p. 305-316.
  • GARCEZ, P. M. (2001). Deixa eu te contar uma coisa: o trabalho sociológico do narrar na conversa cotidiana. In: RIBEIRO, B. T.; LIMA, C. C.; DANTAS, M. T. L. (Orgs.). Narrativa, identidade e clínica Rio de Janeiro: Edições IPUB – CUCA (Instituto de Psiquiatria, UFRJ), p. 189-213.
  • GOFFMAN, E. (2002). Footing. In: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. Sociolinguística Interacional São Paulo: Loyola, p. 107-148.
  • GONZALEZ, C.; LOPES, L. P. M. (2018). Reflexividade metapragmática sobre o cinema de Almodóvar numa interação online: indexicalidade, escalas e entextualização. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 57, n. 2, p. 1102-1136, 2018.
  • GUIMARÃES, T. F.; LOPES, L. P. M. (2017). Trajetória de um texto viral em diferentes eventos comunicativos: entextualização, indexicalidade, performances identitárias e etnografia. Alfa Revista de Linguística, São Paulo, v. 61, n. 1, p. 11-33.
  • GUMPERZ, J. J. (2002). Convenções de Contextualização. In: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. Sociolinguística Interacional São Paulo: Loyola, p. 149-182.
  • HALL, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade Rio de Janeiro: Lamparina, 12a ed.
  • HALL, S. (2014). Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais (org.). Petrópolis: Vozes, 15a. ed, p. 247-264.
  • HUFF, F. et al. (1988). Semantic impairment and anomia in Alzheimer’s disease. Brain and Language, v. 28, n. 2, p. 235-249.
  • HYDÉN, L. C. (2017). Storytelling in dementia: collaboration and commun ground. In: HYDÉN, L. C; ANTELIUS, E. Living with demencia Palgrave: London, p. 116-134.
  • HYDÉN, L. C. (2018). Entangled Narratives New York: Oxford University Press.
  • HYDÉN, L. C.; ÖRULV, L. (2008). Interaction and narrative structure in dementia. In: SCHIFFRIN, D.; DE FINA, A.; NYLUND, A. (Orgs.). Telling stories: language, narrative, and social life. Washington D.C.: Georgetown University Press.
  • JOHNSTONE, B. (2001). Discourse analysis and narrative. In: SCHIFFRIN, D.; TANNEN, D.; HEIDI, E. H. (ed.). The handbook of discourse analysis Malden, Mass.: Blackwell, p. 635-649.
  • JOSEPH, J. E. (2016). Historical perspectives on language and identity. In: PREECE, S. The Routledge Handbook of Language and Identity New York: Routledge: p.19-33.
  • LABOV, W.; WALETZKY, J. (1967). Narrative Analysis: Oral Versions of Personal Experience. The Journal of Narrative and Life History, v. 7, n. 1-4, p. 3-38, 1967.
  • LEITE, M. S. et al. (2020). Diagnóstico do paciente com Doença de Alzheimer: uma revisão sistemática de literatura. Brazilian Journal of Surgery and Clinical Research – BJSCR, v. 30, n. 1, p. 47-50.
  • LINDE, Charlotte. (1993). Life Stories: the creation of coherence. Oxford, Oxford University Press.
  • MARCUSCHI, L. A. (1986). Análise da Conversação São Paulo: Ática.
  • MELO, G. C. V.; MOITA LOPES, L. P. (2015). “Você é uma morena muito bonita”: a trajetória textual de um elogio que fere. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 54, n. 1, p. 53-78.
  • MIRA, C.; CUSTODIO, K. A. (2021). “Isso tudo me traz de novo a vida que eu tinha”: a coconstrução de uma narrativaautobiográfica na Doença de Alzheimer.Rev. Estud. Ling, Belo Horizonte, v. 29, n. 3, p. 1979-2009.
  • MIRA, C. (2019). Como é que a gente diz? Uma análise das estratégias textual-interativas na narrativa de uma pessoa com doença de Alzheimer. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 19, n. 3, p. 419-433.
  • MISHLER, E. G. (1986). Research interviewing - context and narrative Cambridge: Harvard University Press.
  • MOITA LOPES, L. P. (2009). A performance narrativa do jogador Ronaldo como fenômeno sexual em um jornal carioca: multimodalidade, posicionamento e iconicidade. Revista da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística, Brasília, n. 27, v. 2, p. 128-157.
  • MOITA LOPES, L. P..; BASTOS, L. C. (2010). A experiência identitária na lógica dos fluxos-uma lente para se entender a vida social. In: LOPES, L. P. M.; BASTOS, L. C. (org.). Para além da identidade: fluxos, movimentos e trânsitos. Belo Horizonte: UFMG, p. 9-23.
  • MOITA LOPES, L. P.; FABRÍCIO, B. F. (2020) Por uma ideologia linguística responsiva às teorizações queer. Cadernos de Linguagem e Sociedade, v. 21, n. 2.
  • MONDADA, L. (1997). A entrevista como acontecimento interacional: abordagem linguística e interacional. RUA, Campinas, v. 3, n. 1, p. 59-86.
  • MORATO, E. M. (2016). Das relações entre linguagem, cognição e interação - algumas implicações para o campo da saúde. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 575-590.
  • MORATO, E. M. (2012). Referenciação metadiscursiva no contexto das afasias e da Doença de Alzheimer. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 47, n. 1, p. 45-54.
  • OLIVEIRA, L. M.; BASTOS, L. C. (2014). Narrando em Colaboração: as construções discursivas de uma pessoa com afasia. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 14, n. 2, p. 247-267.
  • POLKINGHORNE, D.E. (1988). Narrative Knowing and the Human Sciences Albany, NY: State University of New York Press.
  • RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. (1998). Sociolinguística Interacional Porto Alegre: AGE.
  • RIESSMAN, C. K. (1993). Narrative Analysis Newbury Park, CA: Sage.
  • SANTOS, C. S.; et al. (2020). Factors associated with dementia in elderly. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n.2, p. 603-611.
  • SANTOS, W. S. (2013). Níveis de interpretação na entrevista de pesquisa interpretativa com narrativas. In: BASTOS, L. C.; SANTOS, W. S. A entrevista na pesquisa qualitativa - perspectivas em análise da narrativa e da interação Rio de Janeiro: Quartet.
  • SILVERSTEIN, M. (2003). Indexical order and dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, University of Chicago, n. 23, p. 193-229.
  • TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue and imagery in conversational discourse. 2. ed. New York: Cambridge University Press, 2007.
  • TEIXEIRA, J. B. et al. (2015). Doença de Alzheimer: estudo da mortalidade no Brasil 2000-2009. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 4, p. 1-12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2022
  • Aceito
    17 Ago 2022
  • Publicado
    18 Ago 2022
UNICAMP. Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) Unicamp/IEL/Setor de Publicações, Caixa Postal 6045, 13083-970 Campinas SP Brasil, Tel./Fax: (55 19) 3521-1527 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: spublic@iel.unicamp.br