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Lendas urbanas em arquivo: uma relação de suplementaridade

Urban legends and the archive: a question of supplementarity

Resumos

Este artigo discute o modo como as chamadas lendas urbanas se inscrevem em um arquivo de narrativas presentes no imaginário social e, pelo mesmo processo, transformam esse arquivo, numa relação de suplementaridade. Em particular, um conjunto de narrativas em torno do tema da contaminação por agulhas, tal como circulam em um fórum de discussão virtual, são examinadas como fazendo parte de uma prática discursiva por meio da qual se constroem e reatualizam determinados saberes sobre os riscos de contágio nas sociedades contemporâneas.

lendas urbanas; arquivo; contaminação


This article discusses the way in which the so-called urban legends are inscribed in, and in the same process, transform an archive of narratives present in the social imaginary, in a relation of supplementarity. In particular, a group of narratives on the topic of needle contamination, such as they circulate in a virtual discussion forum, are examined as being part of a discursive practice whereby a certain knowledge about contagion risks in contemporary society is constructed and reenacted.

urban legends; archive; contamination


ARTIGOS

Lendas urbanas em arquivo: uma relação de suplementaridade

Urban legends and the archive: a question of supplementarity

Carlos Renato Lopes

UNIP, São Paulo (SP), Brasil, E-mail: carelo@uol.com.br

RESUMO

Este artigo discute o modo como as chamadas lendas urbanas se inscrevem em um arquivo de narrativas presentes no imaginário social e, pelo mesmo processo, transformam esse arquivo, numa relação de suplementaridade. Em particular, um conjunto de narrativas em torno do tema da contaminação por agulhas, tal como circulam em um fórum de discussão virtual, são examinadas como fazendo parte de uma prática discursiva por meio da qual se constroem e reatualizam determinados saberes sobre os riscos de contágio nas sociedades contemporâneas.

Palavras-chave: lendas urbanas; arquivo; contaminação.

ABSTRACT

This article discusses the way in which the so-called urban legends are inscribed in, and in the same process, transform an archive of narratives present in the social imaginary, in a relation of supplementarity. In particular, a group of narratives on the topic of needle contamination, such as they circulate in a virtual discussion forum, are examined as being part of a discursive practice whereby a certain knowledge about contagion risks in contemporary society is constructed and reenacted.

Keywords: urban legends; archive; contamination

"Legends may die away shortly, but they may also linger on and

enter a period of latency, losing their momentary attraction only

to come back again unchanged, modified, or expanded."

- Linda Dégh, Legend and Belief, 2001

1. A CONSTRUÇÃO DE UM ARQUIVO

Algumas lendas urbanas1 1 Adotamos aqui a definição mais ou menos geral dessa forma narrativa proposta por Renard (2006, p. 6): "Lendas urbanas são relatos anônimos, apresentados em múltiplas variantes, de forma breve e conteúdo surpreendente, contados como verdadeiros e recentes dentro de um meio social cujos medos e aspirações elas exprimem de forma simbólica". se tornam clássicos do gênero pelo modo como ressurgem em ciclos, mantendo um motivo comum, mais ou menos invariável, e adaptando-se aos temas locais e ao momento sócio-histórico em que circulam. É o caso, por exemplo, de uma série de histórias cujo motivo narrativo poderia ser assim definido: "jovem loira aparentemente angelical ou sedutora revela-se de fato uma figura ameaçadora ou diabólica". Incluem-se aí as lendas da "loira do banheiro", "loira do cemitério", "loira do Bonfim" e "loira do espelho" (Bloody Mary) - em suas versões mutantes e, por vezes, sobrepostas. A cada retomada de tais narrativas, a cada nova enunciação que as evoca, desencadeiam-se velhos e mesmos efeitos de pânico e alarmismo, para em seguida vir um desmentido, ou, como se diz em inglês, debunking.

Neste artigo examinamos um desses ciclos em particular, já um tanto conhecido principalmente por internautas interessados em cultura popular. Trata-se de narrativas em torno do tema da contaminação por agulhas, circuladas e comentadas no período entre 2005 e 2006 em um fórum de discussão virtual sobre lendas urbanas em língua inglesa (vinculado ao portal Snopes.com). Para entender melhor o modo como tais narrativas se inscrevem no imaginário social, partimos de uma consideração da noção de arquivo, tal como é concebida dentro de uma perspectiva discursiva.

De acordo com Foucault (1969/2004), o conceito de arquivo se relaciona ao domínio dos enunciados que é articulado por um a priori histórico. Tal domínio se apresenta como um volume complexo em que se diferenciam regiões heterogêneas e em que se instauram práticas discursivas onde vão se dar os enunciados como acontecimentos. O que Foucault propõe que chamemos de arquivo é precisamente o conjunto desses sistemas de enunciados. Para o autor, o arquivo funciona como a lei que rege o que pode ser dito, isto é, o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Ele é o que define, enfim, a própria condição de enunciabilidade. Estruturando-se permanentemente entre o esquecimento e a tradição (ou a memória discursiva), o arquivo "faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente" (op. cit., p. 147-8).

Falar de um arquivo de lendas urbanas implica considerar esse movimento entre esquecimento e memória que se encontra na base da constituição de um sistema de enunciados. O que permite que lendas envolvendo, por exemplo, alarmismos tecnológicos e/ou alimentares sejam reconduzidas e incorporadas a um repertório sempre atualizado e em circulação é justamente o fato de essas narrativas se situarem entre uma tradição - o arquivo potencialmente solidificado (em memória oral ou documentado em coletâneas) de lendas urbanas - e um esquecimento - o efeito de reaparecimento "fresco" e renovado de antigas tramas sob a forma de novas. O constante reaparecimento de tais lendas é possível, a princípio, por referência a esse próprio sistema anônimo, esse arquivo imaginável de lendas que constituem a condição de sua enunciabilidade; mas é possível também, é claro, pelas próprias condições sócio-históricas de produção - ou o que Maingueneau (1984/2005, p. 23) chama de "redes institucionais" - as quais sustentam e ao mesmo tempo tornam possível a enunciação de tais narrativas. Assim, por exemplo, as novas modalidades tecnológicas surgidas e as novas "ameaças" que essas representam em um momento inicial, ou as inovações e transformações constantes no mercado alimentício e nos hábitos alimentares das pessoas, são todos elementos que irão se incorporar à trama perenemente em construção do arquivo de lendas urbanas.

A noção de que o arquivo é estruturado entre o esquecimento e a tradição encontra eco na proposição de Derrida (1995/2001) segundo a qual o arquivo é a um só tempo instituidor e conservador, revolucionário e tradicional. O arquivo acumula e faz acumular, reserva e faz reservar; isto é, cria uma lei que se deve respeitar por força do próprio processo de sua construção. Discutindo o modo como a psicanálise freudiana pensou a questão do arquivo, Derrida aponta para as tensões, contradições ou aporias que são implicadas pela pulsão de morte que subjaz ao desejo de arquivamento (ou mal de arquivo). Pois arquivar envolve não uma operação natural, mas uma operação de investimento do desejo, uma projeção. Ele se apresenta mesmo como "um movimento de promessa ou de futuro não menos que de registro do passado" (op. cit., p. 44). Articula, enfim, o saber e a memória à promessa de um devir.

Assim é que se poderia afirmar que o arquivo de lendas urbanas existe como a projeção de um desejo de arquivamento - desejo esse cujo desdobramento vem impresso na língua e no discurso, e, vale dizer, nas narrativas mobilizadas pela cultura. Tal desejo não se reduz apenas ao esforço material de coleção, documentação e registro de narrativas sob os mais específicos critérios de classificação histórica. Esse investimento existe, é claro, como um aspecto considerável da questão. Mas há, além disso e, fundamentalmente, o trabalho exercido no interior das práticas discursivas, o qual remodela e reconfigura constantemente os documentos do arquivo, ora trazendo à luz seus traços de permanência - os efeitos de afiliação, de conservação, de tradição e "registro do passado" -, ora sua promessa de novidade, seu impulso instaurador, sua enunciação inescapavelmente contingente.

O arquivo torna-se, de qualquer maneira, um pressuposto para a circulação de toda forma de discurso e de saber. Como afirma Roudinesco (2001/2006), ele é a própria condição da história. Está situado entre os limites impossíveis de uma mesma interdição: aquele que por um lado afirma seu excesso - isto é, que lhe confere a autoridade máxima do arquivamento de um saber absoluto, "espelho de si" tendendo à anulação da história como construção interpretativa - e aquele que, por outro, nega seu peso pela força de uma memória subjetiva - isto é, que tende à soberania delirante de um eu que o reinventa "livremente". O arquivo é, assim, esse vestígio não apagado (ou espectro) sem o qual nenhuma narrativa pode começar, em primeiro lugar, a ser contada e interpretada como tal.

Como corolário desse pensamento, poderíamos afirmar que o arquivo é condição de existência dos próprios gêneros discursivos. São várias, aliás, as conexões que se podem traçar a partir dessa afirmação. No caso das narrativas que estamos analisando, reconhecemos, na condição de intérpretes, que estamos diante de um texto "pertencente" ao gênero lenda urbana quando o recuperamos num arquivo, isto é, quando o identificamos como fazendo parte de um arquivo já constituído de narrativas afins, especificamente aqui a lista de discussão na Internet sob a rubrica [UL] (urban legends). Quer dizer, o arquivo está "pronto", chancelado por uma ordem classificatória, uma tópica comum e agregadora. Mas nesse mesmo movimento, e a um só tempo, instauramos a lei do que será considerado lenda urbana quando selecionamos os textos para compor um corpus, quando excluímos outros textos e quando decidimos, enfim, o que se encaixa e o que não se encaixa no arquivo, operando, dessa forma, uma nova configuração, um deslocamento no interior de um arquivo supostamente dado.

Também é possível propor que os ciclos de lendas urbanas que vêm e vão, que são esquecidos e depois retomados, são modos concretos de construção de um arquivo historicamente lançado, constituindo-se, assim, como verdadeiros gestos interpretativos de leitura-escritura, de acordo com a perspectiva mais ampla em que Pêcheux (1982/1997) concebe a relação entre linguagem, arquivo e memória. Trata-se aqui de articulações sempre renovadas de vestígios imemoriais - vestígios da doença, da insegurança, do medo da morte, da ambição, do poder, e outras experiências compartilhadas que impulsionam a narração de histórias, sejam elas "reais ou "fictícias".

Passemos então às narrativas que se inscrevem em "nosso" arquivo de lendas urbanas e vejamos como essas histórias são (ou podem ser) contadas.

2. PAINS AND NEEDLES

O fantasma da AIDS, doença que em pleno início de século XXI se encontra ainda rodeada de mitos e, por que não dizer, franca ignorância, frequentemente assombra as narrativas apócrifas que nos chegam via e-mail. Não foram poucas, certamente, as dúvidas que se materializaram nos discursos sobre a doença quando esta ainda se encaminhava para a condição de epidemia mundial. Afinal, de que formas se transmitia a AIDS? Quem a transmitia? A quem? Como evitá-la? Questões como essas exigiam respostas inequívocas, as quais por muito tempo - e ainda hoje - competiram com toda sorte de desinformação e preconceitos. Para citar um exemplo disso, reportamo-nos aos resultados de um estudo promovido pela Rand Corp. e a Oregon State University, publicado em janeiro de 2005, segundo os quais aproximadamente 50% dos 500 negros norte-americanos entrevistados acreditavam que o vírus que causa a AIDS tivesse sido fabricado em laboratório por cientistas brancos, numa espécie de grande conspiração de genocídio contra a raça negra. Segundo artigo publicado na época pelo jornal The Washington Post, mais de ¼ dos entrevistados disseram acreditar que a AIDS havia sido produzida em um laboratório do governo, e 12% acreditavam que a doença fora criada e propagada pela CIA. Além disso, pouco mais de metade dos entrevistados (53,4%) declararam acreditar que existe cura para a doença, mas que tal informação seria mantida pelo governo como um segredo contra a população pobre2 2 Fine & Turner (2001, p. 157-166) e Goldstein (2004, p. 91-95) discutem como concepções desse tipo foram sendo alimentadas - inclusive entre celebridades e líderes negros influentes nos Estados Unidos - desde o aparecimento da doença no início da década de 1980. . Citado no artigo, Phil Wilson, diretor executivo do Instituto Black AIDS em Los Angeles, conclui: "A noção toda de teorias da conspiração e desinformação (...) afasta a responsabilidade pessoal. Se existe esse bicho-papão, as pessoas dizem, 'Por que eu deveria usar camisinha? Por que eu deveria usar agulhas limpas?' E se eu sou uma organização, 'Por que eu deveria me importar em educar a minha comunidade?'" (Fears 2005)3 3 Artigo enviado ao grupo de discussão por Brian Chapman no mesmo dia de sua publicação, em 25 de janeiro de 2005. .

De fato, como uma espécie de espectro ameaçador, a AIDS se presta(va) a determinadas metáforas que foram se transformando ao longo do tempo. Ora incidindo sobre os gays, ora sobre os africanos, negros, doadores de sangue, viciados em drogas, cientistas americanos ou amantes promíscuos, tais metáforas associa(va)m doença e moralidade de forma inequívoca e bastante explícita - motivo que de certa forma contribuiu para a manutenção da mistificação, da nuvem de incompreensão e medo em torno de uma questão social de proporções planetárias.

Não seria de se estranhar, portanto, que narrativas apócrifas se infiltrassem nesse terreno, gerando teorias conspiratórias, rumores e lendas urbanas - algumas já clássicas, mas cujos motes seguem se metamorfoseando a cada ano.

Um desses clássicos é certamente o que envolve o risco de contaminação por agulhas plantadas em assentos de teatros e cinemas, em receptáculos de moedas em telefones públicos ou em bombas de gasolina. Ainda em agosto de 2002, recebíamos em nossa caixa de correio eletrônico a primeira mensagem desse tipo alertando sobre o perigo. Tratava-se, possivelmente, da primeira fonte pela qual nos fora dado conhecer a existência de um verdadeiro ciclo de narrativas onde a agulha é elemento protagonista. A mensagem, contendo o nome e o e-mail de uma série de remetentes anteriores a quem havia sido encaminhada, e enviada por um executivo de uma empresa multinacional alemã situada no Brasil a uma pessoa nossa conhecida, apresentava no campo "assunto" simplesmente a palavra UNICAMP. Reproduzimos o corpo da mensagem em sua formatação original:

Algumas marcas textuais denunciam logo tratar-se de uma lenda urbana, ou pelo menos de um exemplar característico do gênero: a menção a uma instituição de prestígio (uma universidade pública respeitada no país) que contribui para legitimar a "veracidade" do relato; referências vagas à vítima - "uma amiga de trabalho" - e a um caso que "está acontecendo na Inglaterra"; a imprecisão de termos usados - "portador do HIV positivo" e "agulhas infectadas com hepatite, HIV positivo e outras doenças", onde HIV positivo equivale ao nome de uma doença - e o apelo à divulgação do alerta ao "maior número de pessoas possível". Questões mais "factuais", do tipo: como pode uma agulha contaminada estar estrategicamente posicionada em um assento ou (mais curiosamente ainda) em um receptáculo de moedas, ou quem a teria plantado lá e com que intenção, escapam, obviamente, a uma "primeira leitura", cuja orientação principal é no sentido do pânico e do alerta. Antes mesmo de se poder avaliar a plausibilidade do narrado, é preciso que o relato siga adiante, que seja encaminhado ao maior número possível de remetentes - colegas de trabalho, amigos, familiares.

Uma pesquisa em coleções publicadas e sites sobre lendas urbanas aponta para o que já poderíamos suspeitar. O "alerta da Unicamp" não é a primeira narrativa desse tipo sobre a AIDS de que se tem notícia. De acordo com Barbara Mikkelson, moderadora da lista de discussão em Snopes.com, o alerta, em suas inúmeras versões locais difundidas desde a década de 1990, é uma variante da popular AIDS Mary - esta sim, provavelmente a primeira lenda sobre o tema. AIDS Mary tornou-se conhecida no final de 1986, quando o medo de contrair AIDS entre heterossexuais - já não apenas entre homossexuais, como de início ocorreu - atingia um momento crítico na história social da doença. Em sua versão mais comum, a lenda relatava o caso de um rapaz que, comemorando seu aniversário de 21 anos, é embebedado pelos amigos e ganha de presente uma noite em um quarto de hotel com uma prostituta. Na manhã seguinte, ao se dirigir ao banheiro, o aniversariante dá de cara com a seguinte mensagem, escrita com batom, no espelho: "WELCOME TO THE WORLD OF AIDS". Numa versão masculina, a AIDS Harry, a vítima da contaminação é uma mulher, geralmente uma namorada fiel. Uma das justificativas mais plausíveis para tal ato de crueldade seria o desejo de vingança indireta contra alguém do sexo oposto, que, ciente de sua condição de HIV positivo, teria sido irresponsavelmente o causador da contaminação primeira (BRUNVAND, 2002, p. 5-6).

As narrativas do tipo "alerta da Unicamp" e AIDS Mary/Harry, entretanto, remontam a períodos pré-AIDS, ainda bastante afastados em relação ao momento em que a doença começava a capturar o imaginário de indistintos "grupos de risco" (essa outra nomenclatura provando ser uma "ficção provisória", afinal4 4 No breve histórico da AIDS apresentado em Soares (2001), vemos como foi a partir da identificação dos chamados "grupos de risco", pelo menos numa fase inicial da história da doença, que foi se estabelecendo "a maior parte dos preconceitos que se tornaram elementos fundamentais para a transformação da Aids em epidemia" (op. cit., p. 83). A partir dos anos 1990, o uso do termo "grupo de risco" passou a ser questionado, sendo substituído gradativamente - ainda que permaneça com alguma força no imaginário popular - por "comportamento de risco" ou "vulnerabilidade". ). Mikkelson nos leva de volta a Nova Orleans, décadas de 1920 e 1930. Na época, garotas adolescentes eram alertadas para o perigo de serem atacadas pelos chamados Needle Men ("Homens da Agulha"). Elas recebiam a instrução de se sentarem sempre nas extremidades das fileiras nos cinemas, nunca no centro, evitando assim atrair a atenção de "escravizadores brancos". Estes elementos suspeitos, agindo em duplas, sentavam-se cada um de um lado da garota, injetavam-lhe morfina e carregavam-na para fora do local e "para dentro de uma vida de vergonha" (into a life of shame)5 5 Citação de http://www.snopes.com/horrors/madmen/pinprick.asp, último acesso em 2/7/2008. . Numa outra versão, os "needle men" seriam estudantes de medicina, agindo em cinemas, mas também em ônibus e nas ruas, em busca de cadáveres para dissecação.

Poderíamos seguir numa investigação histórica mais extensa buscando outras tramas, outros fios interdiscursivos em que histórias diversas como essas fariam algum tipo de intersecção. Provavelmente iríamos encontrar tantas outras histórias de ameaças de contaminação por agulha, outras em que garotas inocentes arriscariam se tornar "escravas brancas", ou outras em que lugares públicos aparentemente inofensivos (como hipermercados e shopping centers) esconderiam ameaças à segurança e bem-estar de seus frequentadores...

Em 27 de abril de 2005, ficamos sabendo, por meio de um artigo de jornal enviado por um membro assíduo do fórum de discussão, de um rumor que então se espalhava pelas Ilhas Salomão. Segundo o artigo, pessoas supostamente infectadas com o vírus HIV estariam circulando em ônibus e eventos públicos injetando pessoas inocentes com agulhas infectadas. As autoridades do pequeno país, que registrara apenas cinco casos da doença em sua história, estariam investigando a possível (e improvável) veracidade do rumor. Quatro dias depois, nos chega outro relato envolvendo um ônibus e uma agulha. O garoto de dois anos de idade Jesus Hernandez, viajando com sua avó Marilu em um ônibus da companhia Greyhound, se espeta em uma agulha posicionada sob seu assento pouco depois de deixar Portland, no estado americano de Oregon. Alertado sobre o ocorrido, o motorista do ônibus providencia atendimento emergencial em um hospital de Medford, cidade próxima, onde a agulha é examinada e amostras de sangue do menino são testadas. Uma porta-voz da empresa afirma nunca ter ouvido falar de caso semelhante, e que todos os ônibus são limpos antes de partir. No dia seguinte, um terceiro artigo reporta a recente onda de sensacionalismo na imprensa do Quênia motivada por um suposto caso de contaminação em massa por uma estudante de direito da Moi University, em Eldoret. A estudante, que permanecia anônima, havia postado no mural da faculdade uma lista com os nomes das 118 pessoas (incluindo diversos professores) que ela, por vingança, teria infectado com HIV. Mais uma versão, portanto, de AIDS Mary. Por fim, seis meses depois, em 30 de novembro, um relato (sem agulhas, mas igualmente surpreendente) nos informa que em Sofala, província no centro de Moçambique, uma grande quantidade de pessoas soropositivas estaria se recusando a comer carne moída vinda de doações assistenciais dos Estados Unidos por acreditar tratar-se de carne de origem humana. Estaríamos aqui diante de mais uma manifestação da velha teoria da conspiração de brancos contra negros? Ou de uma nova articulação do velho motivo do canibalismo? De qualquer maneira, verdadeiros ou não, os relatos trazem à tona motivos que nunca deixaram de estar lá, no arquivo, como que simplesmente aguardando sua mais recente atualização.

Em 2006 umas outras tantas narrativas vêm se somar a essa já intricada rede de tramas paralelas, tecidas no interdiscurso. A primeira delas, reportada em um site de notícias indiano (www.sify.com) em 19 de fevereiro, aborda mais uma vez o pânico das agulhas infectadas no cinema. De acordo com o artigo, e-mails de alerta estariam circulando recontando a mesma trama como tendo ocorrido em cinemas lotados e clubes noturnos em Paris, Londres, Mumbai e Dehli. Com informações médicas e de ONGs dedicadas ao combate à AIDS, as quais afastam a possibilidade dos relatos terem realmente acontecido, o artigo conclui tratar-se, afinal, de mais uma variante de AIDS Mary, a popular lenda dos anos 1980. Três meses depois, em 10 de maio, o site NewsIndPress.com ainda aborda essa onda de e-mails assustadores, comparando-a a algo semelhante ocorrido na Índia quase 10 anos antes. Mas antes disso, outro artigo, publicado em 9 de março em um jornal de Athens, Georgia (o Athens Banner-Herald), é enviado trazendo um follow-up sobre o caso de uma mulher de 34 anos que teria de fato sido espetada por uma agulha, cinco meses antes, em um cinema de um shopping center local. Nenhuma consequência grave teria advindo do incidente, embora não tivesse sido possível testar o material - aparentemente sangue seco - encontrado em insuficiente quantidade no interior da seringa. Nesse caso, a memória viva de um conteúdo lendário é explicitamente evocada, numa circunstância em que os detalhes de um "fato real", segundo o artigo, "espelham" os de uma lenda urbana.

3. ENTRE A ESTRUTURA E O COMENTÁRIO

Até aqui, a sucessão de relatos, em artigos enviados quase sempre pelo mesmo membro do grupo de discussão, parece criar um efeito quase que exclusivamente acumulativo. Aparentemente, estamos, como participantes da lista, recebendo os últimos updates de uma "matriz" textual-discursiva já sedimentada em um arquivo de "conhecimento geral". Ocorre uma espécie de materialização do princípio do suplemento, tal como o formula Derrida (1972/2005). Para o autor, a repetição só é possível numa relação de suplementaridade entre o que repete e o que é repetido. No caso aqui, as "atualizações" propostas para a leitura dos membros do grupo operam discursivamente de modo a acrescentar, "na falta de uma unidade plena, uma outra unidade que vem supri-la, sendo ao mesmo tempo a mesma o bastante e outra o bastante para substituir acrescentando" (op. cit., p. 121). Em outras palavras, os textos suplementam uma suposta completude - digamos, o imaginário/arquivo ao redor da AIDS - ao mesmo tempo em que suprem uma falta: "O que há de novo a dizer sobre a AIDS? Qual é a última?". É o princípio de toda marca, de todo traço (de toda escritura, no sentido que a ela é dado por Derrida): permanecer sem ser nunca "só ele mesmo" e nunca "sempre uma coisa nova e distinta".

Em uma linha de pensamento semelhante, podemos, nessa junção, nos remeter ao que Foucault (1971/1996) chama de princípio do comentário. Há, sem dúvida, uma riqueza de práticas de comentário, constituintes do próprio processo discursivo de trocas de mensagens num grupo de discussão. Mas é possível, com Foucault, abordarmos o comentário de um ponto de vista bem particular: como uma função. O autor propõe uma visão dialética do comentário. Por um lado, há o seu aspecto produtivo, que possibilita a construção infinita de novos discursos: "o fato de o texto primeiro pairar acima, sua permanência, seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto de que passa por ser detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos"; por outro lado, seu aspecto coercitivo: "o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro" (op. cit., p. 25). Assim, em um paradoxo incontornável, o comentário aparenta dizer pela primeira vez aquilo que já havia sido dito, e repetir continuamente aquilo que nunca havia sido dito.

O que acreditamos ser o aspecto mais revelador dessa discussão é a ideia de que o comentário possa ser um fator de cerceamento do discurso, agindo no sentido de conjurar o acaso e impedir que novos saberes ameacem os saberes já estabelecidos. Por mais que uma lenda ou rumor sobre a AIDS ou contaminação por agulhas reapareça nos meios de comunicação como uma novidade, de conteúdo inusitado ou inédito, haverá sempre um movimento de "cercar", rarefazer esse discurso. O que pode se dar de diversas formas: com explicações e referências a fatos cientificamente comprovados, a conhecimentos que os membros julgam que outros membros têm, a avaliações de especialistas, a argumentos e contra-argumentos - enfim, toda uma gama de comentários que buscam absorver o acontecimento dentro de uma estrutura já reconhecida, onde os sentidos podem ser (temporariamente) assentados.

Em outras palavras, é justamente porque há sistema que o acontecimento pode aflorar. É justamente porque existe um arsenal de conhecimentos disponíveis à mão - quer sejam eles de cunho tradicional, técnico-científico, ou meramente "intuitivos" - prontos para serem mobilizados no fio do discurso (isto é, recuperados de uma memória) que os acontecimentos podem proliferar, que as novas versões das histórias podem se apresentar, enfim, que os comentários podem se acumular.

A ordem do discurso, é claro, jamais permanece a mesma a cada movimento dessa dinâmica - afinal, os discursos se multiplicam. Mas ela não deixa de ser a condição primeira, enquanto estrutura, para que todos os enunciados/comentários que nela se produzem estejam, como diria Foucault, no verdadeiro - isto é, que reclamem algum efeito de sentido, alguma verdade verificável, algum ponto de vista concebível em torno de um dado do real.

Tais reflexões nos permitiriam concluir que o relançar de textos em sucessão, inscritos numa ordem discursiva tal como a da lista de discussão, representa a tentativa de preencher um dizer constitutivamente incompleto, visando (projetivamente) à possibilidade de que uma nova série de regularidades venha a ser descrita - isto é, que os dizeres sobre a AIDS sejam reestruturados em função da ação sempre movente dos acontecimentos enunciativos que se dão "em seu nome".

Comentar, ainda que por meio de uma sucessão de textos deixados "sem comentário" - uma vez que não houve propriamente um "debate" sobre eles -, significa aqui um exercício, uma prática de deslocamento dos sentidos que segue na direção ora de reforçar os estereótipos, a desinformação e os preconceitos em torno de uma questão de saúde que pode afetar a qualquer um sem distinção, ora de corrigir estes mesmos, por meio de desmentidos e informações autenticadas por saberes oficiais institucionalizados. Essas duas direções, é claro, não serão, em si mesmas, as únicas direções possíveis a que os discurso sobre o contágio, em particular por AIDS, irá nos conduzir. Tampouco elas serão mutuamente excludentes em um mesmo texto-acontecimento. A leitura atenta de nosso corpus nos permite compreender, de qualquer forma, que, pelo princípio da suplementaridade, o discurso faz sempre e a cada vez relançar os saberes, "revirar" as páginas do arquivo, propondo comentários inesgotáveis sobre a "mesma e velha lenda".

Recebido: 6/05/2009

Aceito: 30/04/2010

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  • 1
    Adotamos aqui a definição mais ou menos geral dessa forma narrativa proposta por Renard (2006, p. 6): "Lendas urbanas são relatos anônimos, apresentados em múltiplas variantes, de forma breve e conteúdo surpreendente, contados como verdadeiros e recentes dentro de um meio social cujos medos e aspirações elas exprimem de forma simbólica".
  • 2
    Fine & Turner (2001, p. 157-166) e Goldstein (2004, p. 91-95) discutem como concepções desse tipo foram sendo alimentadas - inclusive entre celebridades e líderes negros influentes nos Estados Unidos - desde o aparecimento da doença no início da década de 1980.
  • 3
    Artigo enviado ao grupo de discussão por Brian Chapman no mesmo dia de sua publicação, em 25 de janeiro de 2005.
  • 4
    No breve histórico da AIDS apresentado em Soares (2001), vemos como foi a partir da identificação dos chamados "grupos de risco", pelo menos numa fase inicial da história da doença, que foi se estabelecendo
    "a maior parte dos preconceitos que se tornaram elementos fundamentais para a transformação da Aids em epidemia" (op. cit., p. 83). A partir dos anos 1990, o uso do termo "grupo de risco" passou a ser questionado, sendo substituído gradativamente - ainda que permaneça com alguma força no imaginário popular - por "comportamento de risco" ou "vulnerabilidade".
  • 5
    Citação de
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      06 Maio 2009
    • Aceito
      30 Abr 2010
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