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PALAVRAS DE ORDEM E ENSINO: OS GÊNEROS DISCURSIVOS E RESISTÊNCIA

COMMAND WORDS AND EDUCATION: GENRES OF DISCOURSE AND RESISTANCE

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir a noção de gênero discursivo considerando os pressupostos teóricos de Medviédev (2012), Bakhtin (2016) e Volóchinov (2013, 2017) que trataram as relações entre língua, história e ideologia. A reflexão gira em torno de tentar compreender o funcionamento dos gêneros não apenas como uma representação formal da língua, mas como materialidade social, constituído a partir das tensões entre diferentes forças sociais. Assim, tomamos como objeto de análise o conteúdo de Língua Portuguesa do Plano de Estudos para Escolas Itinerantes (2013) com o foco de analisar o funcionamento do gênero “palavras de ordem”, pontuando o fato de que os gêneros discursivos, no caso em tela, apresentam-se, em primeiro lugar, como uma materialidade histórica e assim respondem, em sua constituição formal, às demandas de um movimento social.

Palavras-chaves:
gêneros do discurso; palavras de ordem; resistência

ABSTRACT

This article aims to discuss the notion of discursive genre considering the theoretical writings of Medviédev (2012), Bakhtin (2016) and Volóchinov (2013, 2017) who dealt with the relations between language, history and ideology. The reflection revolves around trying to understand the functioning of genres not only as a formal representation of language, but also as a social materiality, constituted from the tensions between different social forces. For this, we take as an object of analysis the content of Portuguese Language Study Plan for Itinerant Schools (2013) with the focus of analyzing the operation of the genre «words of order», punctuating the fact that discursive genres, in this case, first, as a historical materiality and thus respond, in their formal constitution to the demands of a social movement.

Keywords:
discourse genres; command words; resistance

INTRODUÇÃO

Investigar os gêneros do discurso como materialidade histórica observando a constituição, utilização, organização e funcionamento dos elementos por eles contemplados promove a reflexão sobre um arranjo que extrapola a condição normativa da língua para enveredar por questões históricas e ideológicas que sustentam as práticas linguageiras. Nesse contexto, fazemos a discussão sobre os gêneros discursivos tomando a relação dos gêneros com a realidade, como pontuou Medviédev (2012, p.198), para quem os gêneros “são as formas do enunciado, e não da língua, que desempenham o papel essencial na tomada da consciência e na compreensão da realidade”, o que nos instiga a pensar que as formas do enunciado - os gêneros do discurso - e as formas de existência da vida são relacionadas de modo que “a realidade do gênero e a realidade que o gênero pode alcançar estão organicamente ligadas” (MEDVIÉDEV, 2012, p.200), deslocando o olhar para vivido e a própria existência dos sujeitos - consideradas as condições de tal existência - como fundantes dos gêneros do discurso.

Essa organicidade traz à baila outros elementos-chave para a compreensão do aparecimento de certos gêneros do discurso e a forma como tais gêneros são sedimentados socialmente: a história e o funcionamento da coletividade social que organiza e faz aparecer um determinado gênero. Nesse contexto, uma das questões que nos propomos a debater relaciona-se ao entendimento de como o gênero do discurso pode ser tratado como um elemento concreto de determinada realidade social e, por essa razão, passível de análise e até mesmo de didatização. Assim, os gêneros discursivos não podem ser tomados apenas como objetos de estudos normativos, mas precisam ser observados em sua dimensão complexa, cujo aparecimento denota relações histórias, ideológicas e sociais responsáveis por caracterizar seu arranjo - estrutura composicional - tomado aqui como relativamente autônomo. É considerando a relação indissociável entre a) gênero do discurso e história e b) gênero do discurso e língua que analisaremos o gênero “palavras de ordem” no Plano de Estudos para Escolas Itinerantes do Estado do Paraná (2013).

O Plano é o resultado de um estudo avançado feito pelos estudiosos da educação dos movimentos sociais: Luiz Carlos de Freitas, Marlene Lucia Siebert Sapelli e Roseli Salete Caldart acerca dos pressupostos teóricos da pedagogia soviética pós-revolucionária, em especial, Makarenko (1986, 2012), Pistrak (2009PISTRAK, M. M. (2009). A Escola-Comuna. Tradução de Luiz Carlos de Freitas e Alexandra Marenich. São Paulo: Expressão Popular., 2012) e Krupskya (2017), para tentar estabelecer um percurso pedagógico dentro das escolas do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). O Plano apresenta-se divido em duas partes: os pressupostos teóricos e os encaminhamentos metodológicos. E é nos encaminhamentos metodológicos que encontramos a organização dos conteúdos referentes ao Ensino Fundamental II, bem como sugestões de textos e materiais que podem ser utilizados para as aulas, considerando a especificidade de uma escola de assentamento ou acampamento. Para o presente artigo, utilizamos os conteúdos de Língua Portuguesa propostos para o sétimo ano, em especial os tópicos de leitura.

1. LÍNGUA, IDEOLOGIA E GÊNEROS DO DISCURSO

A discussão sobre os gêneros discursivos, apresentada em nosso trabalho, é permeada pelo contexto soviético científico e filosófico pós-revolucionário, e com as relações entre pensadores como Volóchinov (2013), Medviédev (2012) e Bakhtin (2016) e a filosofia marxista que, de certa forma, era a base dos debates teóricos no período em questão. Assim, a reflexão sobre os gêneros do discurso passa, em nosso entendimento, pela compreensão sobre o modo como os filósofos soviéticos tratavam as questões de língua. Para Volóchinov (2017), “o sentido da palavra é inteiramente determinado por seu contexto” (p. 195) e, como salienta o autor, a palavra encontra-se no terreno da disputa, no campo da dialética, uma vez que o contexto não é um território homogêneo, ou ainda, “os contextos não se encontram lado a lado, como se não percebessem um ao outro, mas estão em estado de interação e embate tenso e ininterrupto” (p.197). O contexto é o lugar da vida onde também estão os homens e mulheres, a ideologia, a história, para, dialeticamente, produzirem discursos. A diferença do contexto pragmático para o contexto proposto por Volóchinov está no modo como a realidade e a história incidem na língua. Não se trata de uma explicação para a existência da palavra em sua forma linguística. É a própria existência da palavra que torna vívida a pluralidade, a possibilidade de distintas vozes, de distintos lugares sociais e, considerando tal aspecto, a contradição que é também constitutiva dos processos significativos.

Nesse sentido, a linguagem encontraria sua forma de existir e sua origem nas formas organizativas da sociedade, isto é, são os meios de produção e os modos de organização dos sujeitos que desencadeiam a existência da linguagem. O princípio do exterior que organiza o interior é novamente trazido à tona quando Volóchinov em O que é a Linguagem? (2013), enuncia que palavra não poderia ter uma origem, por assim dizer, acidental, no sentido natural do termo, pois a língua “é o produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou.” (VOLÓCHINOV, 2013, p. 141).

Por esse viés, língua(gem) mobiliza forças ideológicas que estão na base das relações entre os sujeitos. Podemos, então, refletir sobre dois aspectos: o lugar da ideologia e o lugar do corpo social. A partir da ideologia, já se torna possível pensar que as forças produtivas são a base da formação das relações entre os sujeitos e são tais relações que desencadeiam a realização da língua. No caminho inverso, a língua(gem) é o elo construtor e articulador da própria vida social, da consciência coletiva, que em Freudismo Bakhtin (2007) tratará como Psicologia do Corpo Social; ou, ainda, a relação entre a língua e o corpo social, cujo princípio organizativo - o trabalho - já se encontra em Volóchinov (2013), para quem o corpo social é o lugar de caracterização orgânica da língua, no qual a pluralidade não pode ser negada ou ocultada pela evidência dos sentidos. No corpo social estão os sujeitos e suas infinitas possibilidades de representações, que são possíveis a partir dos lugares socialmente ocupados, pois

[d]esde os primeiros estágios de sua formação, as relações linguísticas dos homens estavam estreitamente ligadas com outras formas de relações sociais. As relações nascem num terreno comum a todos os tipos de relações, aquele das relações produtivas. A comunicação verbal sempre esteve ligada, à situação real da vida, às ações reais dos homens: laborais, rituais, lúdicas e outras mais. (VOLÓCHINOV, 2013, p. 145)

A organicidade está relacionada às formas ideológicas concretizadas pelos sujeitos e, dentro de uma perspectiva marxista, esse processo ocorre por meio das relações mantidas no interior do corpo social e, para o Volóchinov (2017) de Marxismo e Filosofia da Linguagem, na infraestrutura.

Então, ao pensarmos na perspectiva marxista e em como ela poderia ser observada nas questões de linguagem, podemos fazer a reflexão de que uma das questões para Marx e Engels (2007) em A Ideologia Alemã - e que perpassará os trabalhos de Bakhtin e Volóchinov, especialmente em Marxismo e Filosofia da Linguagem - é a de distanciar-se do pensamento hegeliano. Para tanto, os autores se propõem a leitura de Feuerbach1 1 Filósofo alemão, nascido em 1804. Fortemente engajado na teologia humanista, tendo influenciado os trabalhos de Marx e Engels. , pois também ele havia se proposto a criticar o idealismo hegeliano. Os homens e mulheres em Marx e Engels (2007), diferentemente daqueles pensados por Hegel, são concebidos a partir do laço indissociável entre o que é natural e o que é social. Não há ser pertencente apenas à especulação filosófica, como na construção hegeliana, pois para existir é preciso que estabeleça para si laços sociais no interior das forças produtivas que redefinem o lugar que os sujeitos ocupam. E é também por meio do trabalho que os seres encontram o seu lugar na História, não apenas como dependentes dos fatores naturais, mas como transformadores de si e da natureza para suprir as necessidades de sua existência - que são, a partir da inscrição no mundo do trabalho, não mais individuais, mas coletivas. Tomemos então os escritos de Marx e Engels (2007, p. 32, 33).

[D]evemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder fazer história. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos.

Se observarmos atentamente a passagem, Marx e Engels (2007) já anunciam que toda reflexão sobre a existência humana só pode ser concebida a partir do lugar no qual ela produz a própria vida. A incidência desse produzir nas formas materiais de manifestação dos seres ocorre quando tais formas ganham um corpo significante, uma semiótica. Se, para Hegel, toda forma material precisaria voltar-se para o Absoluto, internalizar e, de modo idealizado, governar as interações; para Marx e Engels, em A Ideologia Alemã (2007, p. 34)

O ‘espírito’ sofre, desde o início, a maldição de estar ‘contaminado’ pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência - a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens. Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens.

A consciência, então, é formada a partir do modo de organização dos sujeitos em suas atividades materiais, assim como a representação só é possível se considerarmos as realidades nas quais eles estão inscritos. É no campo da práxis, como experiência vivida, que os seres apreendem a realidade e a transformam; e, ao fazê-lo, transformam a si próprios. E é no campo da práxis que também o signo passa corporificar suas possíveis significações.

O grande entrave para o processo de conscientização, de acordo com Marx e Engels (2007), era compreender o modo como a ideologia escamoteava a luta de classes pela sedimentação e pela cristalização do pensamento da classe dominante em forma de conceitos que se desdobravam na Ciência, na Filosofia, na História e, por fim, na forma de divisão do trabalho. Para os autores, a divisão do trabalho era um dos modos materiais da classe dominante para mascarar as marcas de determinados saberes sobre outros, fazendo com que os conceitos por ela construídos parecessem autônomos e de tal forma que, mesmo no seio da classe da trabalhadora, a propagação estivesse garantida.

É no bojo de tais desdobramentos teóricos que, no contexto soviético, Marxismo e Filosofia da linguagem é publicado pela primeira vez em 1929, depois da morte de Lenin, mas ainda imerso nos saberes marxistas. Por essa razão, algumas concepções tratadas no texto são marcadas pela corrente teórica de Marx, mas também por teóricos como Plekhanov (1989), especialmente no que diz respeito ao corpo social e às formas de relação desse corpo com as questões políticas. Para Volóchinov (2017), o corpo social só existirá se associado às questões da organização ideológica e da materialidade dessas formas ideológicas em formas do enunciado. A questão apontada pelos autores tem relação com a construção dialética dos enunciados concretos a partir da relação com o corpo social. Dessa forma, esse corpo não poderia ser compreendido dentro da ordem do psiquismo; para que não fosse estanque ou a ideologia que o compõe homogênea, seria preciso considerá-lo no movimento que, dentro da perspectiva materialista, envolve a relação dos sujeitos com as forças produtivas. Ou, ainda, compreender que o movimento dessas forças sociais não ocorre de modo sucessivo e linear, pois está envolto pelas tensões advindas da luta das classes. Esse conjunto complexo que compõe o corpo social não é demarcado de maneira clara, por isso, as interações verbais, os discursos, colocam em jogo lugares distintos da história. E, considerando a perspectiva materialista, Volóchinov (2017, p. 110) nos diz que para conceber o signo dentro do corpo social é preciso:

  1. 1) Não se pode isolar a ideologia da realidade material do signo (ao inseri-la na “consciência” ou em outros campos instáveis e imprecisos).

  2. 2) Não se pode isolar o signo das formas concretas da comunicação social (pois o signo é uma parte da comunicação social organizada e não existe, como tal, fora dela, pois se tornaria um simples objeto físico)

  3. 3) Não se pode isolar a comunicação e suas formas da base material.

Observemos melhor os aspectos da formulação acima: o primeiro diz respeito ao conceito de ideologia que nos é apresentado como sendo aquela da materialidade, a ideologia é a coletividade das forças sociais. Não há signo fora da ideologia e não há ideologia fora da realidade. Já o segundo aspecto diz respeito às formas concretas da comunicação social que são também marcas da própria história na qual estão inseridas (assim identificamos as marcas dos gêneros do discurso, por exemplo), e essa história tem vínculo com o modo como as forças da infraestrutura organizam as formas de enunciação concreta, realizando a ideologia. O sujeito, nesse contexto, está sempre envolto pelo movimento do corpo social, com o que esmaece e o que aparece no horizonte social. Por isso, a questão do valor do signo em Volóchinov está no processo de interação.

É, portanto, no campo da prática que se configura o valor do signo em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2017, p.111): “somente aquilo que adquiriu um valor social poderá entrar no mundo da ideologia, tomar forma e nele consolidar-se.” Pois, ao entrar, como simbólico no domínio da ideologia, o signo não possui um valor homogêneo, mas é determinado pelas condições de existência que são, por sua vez, o lugar da luta de classes. É aqui que a contradição passa a ser construída, para depois, no processo de refração/reflexão tomar corpo. Nesse contexto, “a existência não apenas é refletida no signo, mas também refratada nele” (VOLÓCHINOV, 2017, p.112), assim como o jogo dialético da relação entre o ser e o objeto, levantado por Plekhanov (1989) em Os Princípios Fundamentais do Marxismo, que tentava tirar o sujeito da condição de abstração do pensamento para colocá-lo no seio das práticas concretas que arquitetam a realidade e a consciência, nos embates da luta de classe, ou seja, o inverso da reflexão hegeliana.

Nessas condições, a questão da língua se torna fundamental para Volóchinov (2017), pois a deformação do ser, isto é, sua existência e suas práticas, é também aquilo que lhe dá a vida. Além disso, essa contradição só é perceptível na língua viva, razão pela qual a base material (a infraestrutura) é o lugar da apreensão da tensão entre a língua homogênea (imposta pela classe dominante) e a língua viva utilizada e organizada no seio das condições de produção da própria vida

É considerando a relação entre língua e ideologia que podemos vislumbrar os gêneros do discurso como elemento concreto das “inesgotáveis possibilidades da multifacetada atividade humana” (BAKHTIN, 2016, p.12), ou seja, não se trata de discutir a forma da língua, mas a materialidade complexa da constituição social como bem pontou Zandwais (2014ZANDWAIS, Ana. (2014). Contribuições de Teorias de Vertente Marxista para os Estudos da Linguagem. In. Conexão Letras 12: Estudos linguísticos e literários e suas interfaces com a filosofia marxista. V. 9, Número 12, Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre., p. 54):

Para que se possa compreender em que consiste um gênero discursivo é preciso entender que os gêneros não se constituem primeiramente na materialidade da língua, mas a partir do modo como os signos que compõem o repertório discursivo de cada classe, cada grupo social representam as formas de produção e de segmentação sócio-política, refletindo, em última instância, o modo como as formas de segmentação verbal incorporam valores e práticas de classe e materializam-se sob diferentes modalidades e ‘acentos’ discursivos.

Assim, pontuar o caráter sócio histórico dos gêneros é colocá-los como catalizadores das relações tensivas que marcam as disputas entre classes, não apenas como elemento passível de ser analisado levando em conta apenas sua estrutura composicional.

É preciso considerar, diante do exposto, que não é suficiente tratar os gêneros do discurso - ou sua didatização - como um elemento da ordem linguística apenas; é necessário considerá-lo como um elemento constitutivo das relações conflituosas estabelecidas a partir das vivências sociais e, por tal razão, os gêneros respondem aos modos de existir das distintas esferas em que são criados. Para Bakhtin (2016, p.42), “todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva” e os gêneros, para o autor, são enunciados relativamente estáveis que organizam, assim como as próprias formas da língua, o dizer. Como pontuou Zandwais (2016ZANDWAIS, Ana. (2016). O sistema da Língua, o diálogo e o discurso. In Conexão Letras 11. Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol.11 no.15. Porto Alegre, RS: UFRGS., p. 98), os limites do enunciado, diferente dos limites da língua, não são definidos a priori, estão na ordem do devir, no processo de construção social do dizer.

Se a língua, portanto, pode ser definida como um corpo material de um corpo social e o discurso, um objeto híbrido que reflete as contradições entre as superestruturas e a infraestrutura (forças sociais), precisamos pensar também que a organização social refletida sob a modalidade discursiva, é resultado do trabalho dos sujeitos sociais e históricos.

Ao pensarmos na discussão proposta pela autora, voltamo-nos para a construção da hibridez do discurso e para a própria existência dos gêneros que o sustentam, uma vez que consolidam lugares sociais institucionalizados e fazem circular as forças sociais, evidenciando a contradição própria do corpo social. Pensar o gênero como uma materialidade advinda do constante arranjo e desarranjo das forças sociais é a base para a reflexão sobre como as modalidades linguísticas (os enunciados concretos e as formas como eles se arranjam) não estão vinculadas ao modelo lógico-normativo da gramática. A língua viva é constituída da própria realidade do corpo social e é a base para a compreensão do funcionamento dos gêneros. É considerando tal princípio que nos debruçamos sobre os objetos de ensino de Língua Portuguesa de uma escola de assentamento para observarmos especificamente as palavras de ordem que, em nosso entendimento, fazem funcionar a relação orgânica entre língua e ideologia, articulando-se como um gênero discursivo, cuja organização e realização é baseada nas forças da infraestrutura. Como só podemos pensar o gênero em sua relação com a realidade que o cerca, descrevemos a seguir as condições de produção das palavras de ordem que, em nosso trabalho, estamos tratando como um gênero discursivo.

2. A ESCOLA DO MST E O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO DA ESCOLA ESTADUAL DO CAMPO IRACI SALETE STROZAK

A Escola Estadual do Campo Iraci Salete Strozak está localizada no Assentamento Marco Freire em Rio Bonito do Iguaçu, no Estado do Paraná, e, além de organizar toda a documentação das 10 escolas itinerantes do Paraná, fica em um dos maiores assentamentos de terra do Brasil, no meio do latifúndio pertencente à empresa Giacomet-Marodin (hoje Araupel). A extensão de 83 mil hectares faz dele a maior extensão de terra do sul do Brasil. A empresa de celulose e exploração de madeira está localizada entre os municípios de Laranjeiras do Sul e Quedas do Iguaçu, região centro-oeste do Paraná.

Em 1996, de acordo com Hammel (2007HAMMEL, A.C.; SILVA, N.J.C.; ANDREETTA, R. (Orgs.). (2007). Escola em movimento: a conquista dos assentamentos. Rio Bonito do Iguaçu, PR: Editora Progressiva.), trabalhadores Sem Terra de diversas partes do Paraná acamparam às margens da BR 158, que liga os Munícipios de Quedas do Iguaçu e Laranjeiras do Sul, ambos localizados no sul do Paraná, com aproximadamente 3000 famílias, no espaço conhecido como Buraco. Eram quase doze mil pessoas esperando - em barracos de lonas, em condições mínimas de existência - que as terras da Giacomet/Marondin fossem desapropriadas.

É diante desse contexto histórico, e ainda de acordo com Hammel (2007HAMMEL, A.C.; SILVA, N.J.C.; ANDREETTA, R. (Orgs.). (2007). Escola em movimento: a conquista dos assentamentos. Rio Bonito do Iguaçu, PR: Editora Progressiva.), que emerge a E.E.C Iraci Salete Strozak2 2 O nome da escola é referência a uma militante do Movimento dos Atingidos por Barragem em Guaíra-Paraná. como resultado da luta dos acampados do Buraco contra a Giacomet/Marondin. Finalmente, quando a União, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), desapropriou as terras para entregar aos campesinos, a organização do Movimento ergueu3 3 O verbo erguer tem uma relação com aquilo que é levantado do chão, que se edifica e se fortalece: Ele é bastante utilizado nos relatos sobre construções das escolas em acampamentos. a escola. A princípio de maneira improvisada em barracos de lona e, depois, quando as terras já eram assentamentos, de acordo com a autora, a escola foi construída pelo Estado do Paraná.4 4 No caso da Escola Iraci, o Estado, exercendo seu papel de propagador da ideologia da superestrutura, a construiu o mais distante possível do núcleo do assentamento. Assim, os educandos/as precisam pegar ônibus e os professores também. Foi uma tentativa de desagregar as famílias, já que a escola, nos assentamentos e acampamentos, é o centro organizador das atividades. Entretanto, há uma particularidade nas escolas dos assentamentos que diz respeito ao modo de organização e que é dividido entre MST e Estado: a coordenação política/pedagógica fica a cargo do MST e o funcionamento estrutural da escola fica a cargo do Estado.

A relação contraditória Estado/MST serve para pensarmos que a língua viva, no caso do Movimento, aparece no espaço escolar como um objeto de estudo, pois na organização do MST as palavras de ordem são aquelas utilizadas para as

marchas, ocupações e movimentos de resistência. Essas palavras são definidas nos Congressos Nacionais do Movimento respondendo às condições históricas como, por exemplo, o funcionamento da relação entre o MST e os latifundiários, as articulações políticas em torno da reforma agrária, as condições econômicas, entre outras. Esses elementos somados à disposição do MST no arranjo da luta são condensados nas palavras de ordem que funcionam como catalizadoras das contradições da luta de classes, organizadas linguisticamente.

Estabelecer uma palavra de ordem é estabelecer um gesto de luta na perspectiva do MST. Assim, quando ela aparece no espaço escolar já está marcada pela memória da organização do próprio movimento. Então, durante o período de trabalho na E.E.C Iraci Salete Strozak, foi possível ouvir as palavras de ordem: “Terra, educação e luta!”. E ainda, cartazes espalhados pela escola com os enunciados: “Ocupar, resistir e produzir também na escola!” A fundamental diferença entre os saberes mobilizados pelas escolas do MST e as escolas do Estado está justamente na forma como esses conteúdos entram no campo didático. Segundo o Plano de Estudos das Escolas Itinerantes, as palavras de ordem são um gênero discursivo a serem apreendidos e ensinados na sétima série do Ensino Fundamental II. Ao tomarmos o gênero discursivo da forma em O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica, Medviédev (2012) conceitua: estamos nos reportando ao fato de que as condições de existência do gênero estão vinculadas às condições históricas que determinam como será a base linguística que sustentará tal processo histórico que ele materializa. Ou ainda, que o gênero é orientado pela realidade social e também organiza discursivamente tal realidade de modo que, ao tornar possível a interação entre os sujeitos, torna possível tal realidade. As palavras de ordem remetem à questão da luta pela terra, à questão da Reforma Agrária e aos processos de resistência que serão organizados pelo Movimento. Vejamos algumas retiradas dos cartazes dos congressos nacionais do MST conforme o quadro abaixo:

Tabela 01
Palavras de Ordem retiradas e organizadas a partir dos cartazes do MST disponíveis em www.mst.org.br

O movimento que nos chama atenção é justamente o da inserção de um gênero discursivo de luta no seio de um conjunto de saberes determinados, em princípio, pelo Estado. A contradição que aqui se levanta é a de que a institucionalização dos gêneros pela escola convencional é feita de modo a atender primordialmente os interesses da superestrutura, e só em um segundo plano, a infraestrutura. Contudo, na escola do MST essa relação se inverte, e os gêneros da infraestrutura, aqui notadamente os saberes de luta, passam a ser parte do conteúdo programático escolar, conforme podemos observar no conteúdo previsto no “Plano de Estudos da Escola Itinerante” (2013) para o sétimo ano do ensino Fundamental, cujo conteúdo de leitura diz respeito aos Gêneros discursivos: relatos de experiências vividas, palavras de ordem5 5 Grifos nossos , Jornal Sem Terra, texto não-verbal, fotos, pesquisa, dicionários, textos informativos, (...)”. E para pensarmos o conteúdo mencionado, vamos voltar nossa atenção para a definição, dentro da escola do MST, do que seja um plano de estudos. Essa definição nos é importante, pois apresenta o que Bakhtin (2016), Estética da Criação Verbal, e Volóchinov (2017), Marxismo e Filosofia da Linguagem, tratam como realidade concreta como o alicerce de fundação dos gêneros do discurso.

3. OS COMPLEXOS DE ESTUDO: O ENCONTRO DA PEDAGOGIA SOVIÉTICA COM A PEDAGOGIA DO MST

Para o funcionamento da escola do MST como um lugar de formação política capaz incluir em seu currículo gêneros discursivos relacionados à luta, precisamos compreender o funcionamento dos Complexos de Estudos. Para tanto, vamos tomar por fundamento a reflexão de Caldart (2015CALDART, R. S. (2015). Pedagogia do Movimento e Complexos de Estudo. In. SAPELLI, M. L. S.; FREITAS, L.C.; CALDART, R. S. (Orgs.). Caminhos para transformação da escola: organização do trabalho pedagógico nas escolas do campo ensaio sobre complexos de estudo. São Paulo: Expressão Popular. em Pedagogia do Movimento e Complexos de Estudo, fazendo uma observação: o modo como os intelectuais do Setor de Educação do MST incorporaram os Complexos advindos da pedagogia soviética passa pela prática educacional do MST e, assim, passa a considerar também o próprio percurso educativo do Movimento como unidade de formação dos Complexos. Por exemplo, de acordo com a autora, o projeto de Reforma Agrária Popular precisa organizar a construção de “unidades orgânicas6 6 A autora retoma o conceito de Pistrak (apud Freitas, 2015) para definir a unidade orgânica. Se refletirmos o modo de funcionamento do pensamento soviético, considerando inclusive os estudos sobre língua(gem) do Círculo de Bakhtin, podemos pensar o orgânico como o funcionamento concomitante e dialético das relações entre os sujeitos e o mundo, mediados pela forma como tais sujeitos organizam a existência. Ainda nos parece que tal conceito de organicidade tem uma relação com a própria definição da dialética marxista do trabalho: em que tudo que existe, existe pelo trabalho e pelo modo como a humanidade organiza (e se organiza) a partir do trabalho. que permitam maior clareza de concepção e de como organizar a prática da agricultura camponesa” (p.55), isto é, as formas práticas de existência e trabalho dos conceitos vinculados ao projeto de transformação social proposto pelo MST. As unidades orgânicas na educação, por exemplo, podem ser observadas nos Complexos, pois, para Caldart (2015, p. 56), os Complexos de Estudo:

Podem ser uma forma de constituir essas unidades orgânicas, pondo em relação dialética os elementos fundamentais do (...) projeto formativo [do MST], na organização do ambiente educativo da escola: o trabalho como método geral, princípio educativo; a atualidade (os fenômenos da realidade atual que precisam ser estudados e cujo conteúdo é específico e geral); o princípio da auto-organização e do trabalho associado dos estudantes e uma concepção materialista e histórico-dialética do conhecimento.

Essa definição nos parece um ponto central, uma vez que estabelece, ao mesmo tempo, o encaminhamento pedagógico de forma ampla (auto-organização) e o trabalho como eixo de progressão curricular, bem como um encaminhamento filosófico: alinhavar tais questões dentro de uma perspectiva materialista dialética, ou seja, a possibilidade de que um movimento social seja capaz de organizar-se no interior de um sistema de produção capitalista e, por isso mesmo, mostrar a própria engrenagem do funcionamento de tal sistema para opor-se a ele. Ao fazer desse funcionamento uma possibilidade de prática pedagógica, os Complexos assumem, dentro do MST, um papel de organizar a educação de forma indissociável da própria organização do Movimento.

Assim, de acordo com Hammel; Farias e Sapelli (2015) em Complexos de Estudo - do Inventário ao Planos de Estudos, iniciou-se, ainda em 2009, a construção da proposta de Complexos de Estudo que levou, em 2010, a uma proposição inicial do Plano de Estudos para Escolas Itinerantes que considerou a organização sintetizada no quadro abaixo, tendo como base para tanto o texto acima mencionado das autoras (p.69)

Tabela 2
Síntese dos níveis de organização dos Complexos

É nesse projeto curricular do MST - chamado de Plano de Estudos para Escolas Itinerantes7 7 Conforme mencionado anteriormente, o documento é parte de uma discussão coletiva e a organização para publicação é de Luiz Carlos de Freitas, Marlene Lucia Siebert Sapelli e Roseli Salete Caldart. - que encontraremos, de maneira mais fortalecida, a relação entre os saberes sobre a educação da pedagogia soviética8 8 É preciso salientar que de acordo com Caldart (2015, p.58) a relação com a pedagogia soviética já considera a própria autocrítica dos autores soviéticos: a dificuldade de compreensão do trabalho socialmente útil e a dificuldade em considerar o conhecimento como sistemático e carente de método, disciplina e constante vínculo com a realidade para não voltar a ser um objeto de ensino conforme o proposto pela escola burguesa. e os saberes sobre a educação do MST. Essa relação ocorre, como já mencionamos, através da tomada do trabalho como eixo articulador das atividades em sala, da preocupação com a coletividade e a auto-organização e pelo modo como o currículo escolar é organizado. Essa organização retoma um saber da pedagogia soviética, que é o complexo, ou ainda, os complexos de estudos , responsáveis por agrupar o inventário da realidade dos assentamentos/acampamentos para que estes se tornem objetos de estudo. Expliquemos de forma mais específica: o complexo é composto por definições de conteúdos e práticas relacionados a questões que dentro dos assentamentos e acampamentos necessitem de uma interferência escolar. Dessa maneira, por exemplo, no 8º. Ano do Ensino Fundamental II, o Complexo A luta pela Reforma Agrária é organizado em torno de tudo que possa envolver, dentro do contexto escolar, a luta pela terra, como consta no Plano de Estudos para Escolas Itinerantes (2013):

essa luta envolve outras lutas específicas, que se desdobram no entorno da escola: luta pela terra, por infraestrutura nas áreas, por condições de produção, pela agroecologia, pela educação, por saúde, entre outras. Essas lutas se manifestam por ações de envolvimento das famílias, da juventude, mobilizações ou jornadas de lutas previstas para o período e sua disposição no território, produção de materiais para mobilizações, discussões que existem no acampamento ou assentamento sobre a participação da escola e especialmente dos estudantes. (FREITAS; SAPELLI; CALDART, 2015FREITAS, L. C. (2015). A escola única do trabalho: explorando os caminhos de sua construção. In. CALDART, R.S. Caminhos para transformação da Escola: reflexões desde as práticas da licenciatura em educação do campo. São Paulo: Expressão Popular., p. 170)

É possível observar a tentativa de estabelecer a realidade como um lugar de observação e transformação, onde se desenvolvem os processos de luta. Todas as ações que envolvem o contexto dos assentamentos/acampamentos, seguindo a proposta do complexo, devem ter a participação ativa da escola. A metodologia passa a ser uma tentativa de estabelecer a realidade concreta como ponto de partida, ou seja, de reformular os conhecimentos para atender as necessidades dos assentamentos/acampamentos. É nesse sentido que entendemos que os complexos se instituem na escola do MST e que, por isso mesmo, a diferencia da escola estatal.

Os saberes que compoem a Formação Discursiva Escolar do MST são pensados a partir de uma perspectiva materialista. Para demonstrar tal aproximação, trazemos Pistrak (2011PISTRAK, M. M. (2011). Fundamentos da Escola do Trabalho. 3 ed. Tradução de Daniel Aarão Reis Filho. São Paulo: Expressão Popular., p. 27-28) em Fundamentos da Escola do Trabalho, e a compreensão do Complexo como método de trabalho

O objetivo que os alunos devem atingir é não somente estudar a realidade atual, mas também se deixar impregnar por ela. A consequência é que os antigos métodos de ensino não podem mais servir, é preciso estudar os fenômenos em suas relações, sua ação e dinâmicas recíprocas, é preciso demonstrar que os fenômenos que estão acontecendo na realidade atual são simplesmente partes de um processo inerente ao desenvolvimento histórico geral, é preciso demonstrar a essência dialética de tudo que existe, mas uma demonstração desse tipo só é possível na medida em que o ensino se concentre em torno de fenômenos constituídos em objetos de estudo: assim, a questão do ensino unificado, da concentração do ensino por complexos, torna-se, uma questão candente; a questão do método que agora se coloca não é simplesmente a questão de uma assimilação melhor e mais completa destes ou daqueles estudos; trata-se de uma questão que se relaciona com a essência do problema pedagógico, com o conhecimento dos fenômenos atuais em suas relações e dinâmicas recíprocas, isto é, com a concepção marxista da pedagogia.

A realidade de que fala Pistrak9 9 Os enunciados que relacionam a Escola à vida ou à realidade são uma constante nos escritos de Pistrak e também nos trabalhos de Luis Carlos de Freitas. Essa relação nos importa na medida em que reestabelece o lugar do vivido - também presente em Medviédev (2012), para definir o “meio ideológico”. é a própria vida. E a vida, na concepção dos soviéticos, é complexa, pois abrange diversas facetas do humano, da relação deste com outros seres, de forma coletiva no trabalho, o que resulta na formação de uma consciência de classe. A questão fundamental para a pedagogia soviética era construir um lugar para a escola que a distanciasse da compreensão burguesa, com isso, mantendo nos estudantes a consciência da revolução, mas também objetivando construir um novo paradigma social a partir da própria revolução. Para isso, era preciso pensar a escola de forma indissociável da realidade, ou seja, estabelecer um percurso de estudos que organizasse o conhecimento, as práticas pedagógicas e a vida dentro de um mesmo movimento que teria uma clareza objetiva nos princípios formativos: a formação de trabalhadores para a resistência e para a sustentação das transformações sociais possíveis a partir da mudança das relações de produção.

O que queremos destacar nos complexos, da educação soviética, é o profundo vínculo com a vida. A questão da vida aparece com bastante força nos textos soviéticos pós-revolução. Em nosso entendimento, isso se deve ao fato de que havia uma tentativa de construir todo um conjunto de valores a partir das necessidades do proletário e tais necessidades estavam vinculadas ao modo de existência, às relações no interior dos meios de produção e ao modo como funcionava a escola, a universidade, no regime soviético. Era a tentativa de construir todo um novo paradigma para confrontar os modelos vinculados ao antigo regime e guiados, fundamentalmente, pelos anseios do povo. Assim, a vida não diz respeito somente à condição biológica de existência dos sujeitos, mas principalmente, à condição histórica.

A fim de exemplificar o funcionamento, tomaremos no Plano de Estudos para Escolas Itinerantes (2013) a turma equivalente ao primeiro semestre do 8º ano do Ensino Fundamental II e, em seguida, um quadro, também retirado do Plano de Estudos, que trata dos objetivos formativos e êxitos para o mesmo semestre e turma. Assim, temos no primeiro semestre a definição de como a realidade será problematizada no espaço escolar, considerando a relação com os valores do MST. Vejamos o excerto:

O primeiro semestre do oitavo ano reúne um conjunto de três complexos que servem de focos articuladores das atividades teórico-práticas realizadas a partir das diferentes disciplinas, que na ligação com eles buscarão desenvolver seus conceitos, categorias e procedimentos. Os objetivos formativos formulados para esta etapa da educação básica também devem integrar o trabalho no semestre com esses complexos. As porções da realidade/categorias da prática presentes nos complexos que serão desenvolvidas nesse semestre serão as seguintes: Luta pela Reforma Agrária, manejo do agrossistema, formas de organização do acampamento e escola. (FREITAS; SAPELLI; CALDART; 2015FREITAS, L. C. (2015). A escola única do trabalho: explorando os caminhos de sua construção. In. CALDART, R.S. Caminhos para transformação da Escola: reflexões desde as práticas da licenciatura em educação do campo. São Paulo: Expressão Popular., p. 168, grifos nossos).

Em seguida, temos o quadro dos objetivos formativos e os êxitos esperados considerando os conteúdos e práticas em torno da Luta pela Reforma Agrária, Manejo do Agroecossistema e das Formas de organização do Acampamento e Escola. São essas três “porções da realidade” (FREITAS, 2015FREITAS, L. C. (2015). A escola única do trabalho: explorando os caminhos de sua construção. In. CALDART, R.S. Caminhos para transformação da Escola: reflexões desde as práticas da licenciatura em educação do campo. São Paulo: Expressão Popular.) que definirão quais conteúdos serão sistematizados por meio da inter-relação com práticas na escola, nos acampamentos, assentamos e outros espaços vinculados diretamente ao arranjo organizativo do MST. Vejamos o quadro, baseado no Plano de Estudos (2013, p.168)10 10 O quadro constante no Plano é bastante amplo. Para montar o plano apresentado acima, escolhemos os objetivos e êxitos que apresentavam alguma relação com questões de língua(gem), realidade e militância. .

Tabela 3
Exemplo de objetivos Formativos e Êxitos Esperados para o complexo do 8º. ano

A forma organizativa dos complexos envolve, no espaço escolar, mais de uma disciplina. Por exemplo, o Complexo Luta pela Reforma Agrária envolve as disciplinas de Língua Portuguesa, Educação Física, Espanhol, Geografia, História e Arte. Há um conjunto de objetivos formativos que estabelece uma relação entre as disciplinas e a realidade da escola e, como dito anteriormente, tais objetivos são vinculados às especificidades das disciplinas, mas, em especial, ao modo como tais saberes podem funcionar no cotidiano da luta. Assim, para a Língua Portuguesa no oitavo ano, temos a seguinte justificativa:

A luta pela Reforma Agrária está vinculada aos aspectos da vida, descritos nas falas que contam os fatos e trazem em si os conflitos, as lutas, as condições de vida. Na escola essas falas devem ser resgatadas, estudadas, tematizadas na oralidade, leitura e textos. Os textos lidos e produzidos são organizados em diferentes gêneros textuais, dependendo de suas condições de produção (quem escreve, para quem, quando, em que situação, com que intenção, etc.) E é necessário que o leitor seja capaz de perceber essas condições para compreender que o texto expressa visões de mundo. Além disso, ao dar voz na oralidade e na produção de textos ao aluno rompe-se com a posição de que ele é apenas consumidor de textos, passando ele a ser também aquele que os produz. (FREITAS; SAPELLI; CALDART, 2015FREITAS, L. C. (2015). A escola única do trabalho: explorando os caminhos de sua construção. In. CALDART, R.S. Caminhos para transformação da Escola: reflexões desde as práticas da licenciatura em educação do campo. São Paulo: Expressão Popular., p.171/172, grifos nossos)

A primeira questão é a de que a base para as reflexões linguísticas está na vida dos camponeses como sujeitos situados, ou seja, a reflexão sobre o funcionamento da língua está ligada, primeiramente, em sujeitos socialmente organizados e participantes de um movimento social da infraestrutura. A língua é, nesse sentido, parte da prática de luta; e, por isso, parte-se “dos aspectos da vida, descritos nas falas que contam os fatos e trazem em si os conflitos, as lutas, as condições de vida” (FREITAS; SAPELLI; CALDART, 2015FREITAS, L. C. (2015). A escola única do trabalho: explorando os caminhos de sua construção. In. CALDART, R.S. Caminhos para transformação da Escola: reflexões desde as práticas da licenciatura em educação do campo. São Paulo: Expressão Popular., p.171). É a partir da própria luta pela reforma agrária (os conflitos, as histórias de ocupações etc.) que se constrói o caminho para compreender a língua. Ao se pensar o funcionamento da língua (sintático e discursivo) com base nos movimentos de luta, há um entendimento de que a língua é também um lugar de disputa e, por isso, uma práxis, uma vez que se inscreve no vivido, no mundo concreto, estabelecendo um diálogo ininterrupto com as condições históricas e ideológicas para a constituição dos sentidos.

Nesse sentido, no Plano de Estudos do MST é proposto um imaginário de língua heteroglóssica que considera todas as variantes possíveis na realidade de vida do campesinato, porque a língua não é falada do mesmo modo em todos os contextos, ou seja, “a comunicação discursiva nunca poderá ser compreendida nem explicada fora dessa ligação com a situação concreta” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 220). A realidade que é a vida da pedagogia soviética também é a vida da palavra para os filósofos e filólogos soviéticos, especialmente Bakhtin, Volóchinov e Medviédev, segundo os quais, é na existência coletiva, no processo de interação, nas avaliações sociais, no estabelecimento do espaço do eu e o do outro que as formas enunciativas produzem sentidos. Se nos reportarmos a Volóchinov (2017, apudTODOROV, 1981TODOROV, T. (1981). Mikhaïl Bakhtine: le principle dialogique suivi de écrits du Circle Bakhtine. Paris: Seuil., p. 199)

Assim, a vida, não se agita, não age sobre o enunciado do exterior, ela o penetra do interior; ela é a unidade e a comunhão da existência que circunda os locutores, assim a chave das avalições sociais está enraizada na vida, sem a qual nenhum enunciado seria compreensível.11

É a vida que confere às formas linguísticas estáveis o movimento vivo da história que caracteriza tais formas de modo singular no centro do enunciado concreto que envolve as disputas entre forças antagônicas, a relação dialógica entre os sujeitos que estabelecem a palavra como um campo movediço, capaz de materializar no material verbal as esferas da vida das quais participam os envolvidos na interação verbal.

CONSIDERAÇÕES

Este artigo buscou apresentar algumas reflexões em torno dos gêneros do discurso com o objetivo de fazer uma breve retomada do conceito e de sua relação com a história e com suas condições sociais de aparecimento.

Para tanto, utilizamos um exemplo de uma escola estadual do campo, no interior do Paraná, cujo conteúdo programático está de acordo com a organização política-pedagógica desenvolvida e sustentada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST. A presença atuante de um movimento social no seio da escola - situada em um assentamento que materializa uma das mais significativas conquistas do MST - provoca um entendimento do gênero como mecanismo linguístico-político, extrapolando questões formais de língua.

Estabelecendo um elo entre linguística e pedagogia soviética, pudemos observar que não há como falar de língua e educação sem considerar a orientação para a formação social baseada na coletividade e na organização material e concreta de tal coletividade. É a realidade que apresenta as contingências para que os gêneros sejam organizados, construídos e passem a ser relativamente estáveis, com forma composicional e estilo próprios, com vistas a atender as demanda sociais em que são efetivamente produzidos.

Parece-nos, então, que é possível pensar que há na orientação das escolas do MST uma percepção de que os sentidos, a língua, o arranjo pedagógico e a própria existência dos gêneros discursivos passam pela realidade do corpo social e das contradições existentes no interior das relações estabelecidas entre os sujeitos. As palavras de ordem tomadas como gêneros discursivos são, de certa forma, a língua viva, a língua dos sujeitos que estão na história movendo-se para existir e resistir.

  • 1
    Filósofo alemão, nascido em 1804. Fortemente engajado na teologia humanista, tendo influenciado os trabalhos de Marx e Engels.
  • 2
    O nome da escola é referência a uma militante do Movimento dos Atingidos por Barragem em Guaíra-Paraná.
  • 3
    O verbo erguer tem uma relação com aquilo que é levantado do chão, que se edifica e se fortalece: Ele é bastante utilizado nos relatos sobre construções das escolas em acampamentos.
  • 4
    No caso da Escola Iraci, o Estado, exercendo seu papel de propagador da ideologia da superestrutura, a construiu o mais distante possível do núcleo do assentamento. Assim, os educandos/as precisam pegar ônibus e os professores também. Foi uma tentativa de desagregar as famílias, já que a escola, nos assentamentos e acampamentos, é o centro organizador das atividades.
  • 5
    Grifos nossos
  • 6
    A autora retoma o conceito de Pistrak (apud Freitas, 2015) para definir a unidade orgânica. Se refletirmos o modo de funcionamento do pensamento soviético, considerando inclusive os estudos sobre língua(gem) do Círculo de Bakhtin, podemos pensar o orgânico como o funcionamento concomitante e dialético das relações entre os sujeitos e o mundo, mediados pela forma como tais sujeitos organizam a existência. Ainda nos parece que tal conceito de organicidade tem uma relação com a própria definição da dialética marxista do trabalho: em que tudo que existe, existe pelo trabalho e pelo modo como a humanidade organiza (e se organiza) a partir do trabalho.
  • 7
    Conforme mencionado anteriormente, o documento é parte de uma discussão coletiva e a organização para publicação é de Luiz Carlos de Freitas, Marlene Lucia Siebert Sapelli e Roseli Salete Caldart.
  • 8
    É preciso salientar que de acordo com Caldart (2015, p.58) a relação com a pedagogia soviética já considera a própria autocrítica dos autores soviéticos: a dificuldade de compreensão do trabalho socialmente útil e a dificuldade em considerar o conhecimento como sistemático e carente de método, disciplina e constante vínculo com a realidade para não voltar a ser um objeto de ensino conforme o proposto pela escola burguesa.
  • 9
    Os enunciados que relacionam a Escola à vida ou à realidade são uma constante nos escritos de Pistrak e também nos trabalhos de Luis Carlos de Freitas. Essa relação nos importa na medida em que reestabelece o lugar do vivido - também presente em Medviédev (2012), para definir o “meio ideológico”.
  • 10
    O quadro constante no Plano é bastante amplo. Para montar o plano apresentado acima, escolhemos os objetivos e êxitos que apresentavam alguma relação com questões de língua(gem), realidade e militância.
  • 11
    O texto ao qual estamos fazendo menção é a tradução de Tzvetan Todorov para o francês, do original usso Slovo, v zhizni i slovo v poézii, publicado inicialmente, por Volochinov na revista Zvezda, número 06 de 1926 (ver referências). A tradução do francês para o português é de responsabilidade da autora e diz respeito à passagem: “Ainsi la vie n’agit pas sur l’énoncé de l’extérieur, mais ele le penetre de l’intérieur, ele est l’unitté et la communauté de l’existence qui entoure les locuteurs, ainsi que l’unité des évaluations essentielles qui s’enracinent dans cette existence et en dehors desquelles il ne peut y avoir d’énoncé intelligible.”

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2019
  • Aceito
    22 Jan 2020
  • Publicado
    21 Fev 2020
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