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Muito além do céu: Escravidão e estratégias de liberdade no Paraná do século XIX

Quite beyond heaven: Slavery and strategies for liberty in XIX century Paraná

Resumos

Este artigo analisa o processo de doação de parte da Fazenda Santa Cruz (município de Ponta Grossa, PR) a escravos e libertos, feito pela proprietária Maria Clara do Nascimento, em 1854. Quais as razões, as motivações e as condições sociais deste ato de fazer de escravos e ex-escravos herdeiros efetivos são algumas das questões que guiam a presente reflexão. Trata-se então de apreender este ato como resultado de um movimento onde se cruzam questões particulares, afetos e desejos de diferentes atores sociais em um contexto mais amplo, regional e nacional, marcados por um conjunto de concepções e políticas públicas próprios àqueles períodos históricos.

Escravidão; Organização social; Parentesco.


The article deals with the legacy process of the Fazenda Santa Cruz, by which Maria Clara do Nascimento left part of her property to her slaves and former slaves in 1854. The reasons, the motivations, and the social conditions to transform slaves and ex-slaves into proper heritors are some of the questions that move the reflection. The aim is to grasp this act as an intertwinement of particular demands, affects and desires of different actors within a broader national and regional contexts, marked by a set of conceptions and official policies that characterize the historical periods.

Slavery; Social organization; Kinship.


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  • 1
    Mesmo que se tratasse de propriedades economicamente pouco rentáveis, seria importante(se de fato a intenção é compreender as formas que as relações entre senhores e escravos assumiam no âmbito das fazendas) saber se os cativos e libertos eram dotados, ou não, de forma igualitária pelos seus senhores.
  • 2
    É preciso fazer uma ressalva sobre o que estou entendendo por "ocupação" do território paranaense. Ao descrever o período da instalação das fazendas de criação, a história oficial, sobretudo em Westphalen, Machado e Balhana, apresenta o Paraná como um território desocupado, despovoado. A "instalação" e "expansão" das fazendas de criar não é pensada como expropriação das terras de caboclos, pretos, mulatos, índios, os "nacionais". Na verdade, o discurso dos representantes do governo imperial é encarado como reprodução de uma situação real, isto é, a de um território efetivamente desocupado, despovoado. Conforme observa Seyferth (1996), os projetos de imigração/colonização na região sul do país foram efetivados em terras indígenas e de "nacionais". Para uma crítica às políticas governamentais de ocupação do território, ver o artigo de Seyferth (1996) sobre as políticas de imigração e colonização no Sul do Brasil.
  • 3
    Em 1747 havia, nos Campos Gerais, 56 domicílios e, no caso de serem fazendas, seus proprietários eram absenteístas, residindo em Santos, Paranaguá, Itú, São Paulo e Curitiba (Cardoso e Westphalen, 1986).
  • 4
    Embora não discuta a transformação das fazendas de criação em invernadas, parecer educionista o argumento de que ela tenha decorrido apenas da abertura da estrada de Viamão e do desaparecimento dos campos reiúnos. Pesam outros fatores, embora desprezados, como o preço abusivo do gado paranaense (Machado, 1968); a degeneração do rebanho do Paraná (Padis, 1981); a situação privilegiada do Rio Grande do Sul como único criador de gado muar permitido pelo governo Imperial (Machado, 1963). O desaparecimento dos campos reiúnos também parece mais compreensível dentro de um contexto múltiplo, onde os fazendeiros do Paraná, provavelmente, "forçaram" o desaparecimento desses campos, visando ao lucro e aproveitamento de suas propriedades.
  • 5
    A evolução do preço médio de terra (braça quadrada) nos Campos Gerais foi a seguinte:1865, 2 réis; 1876, 12 réis; 1877, 11 réis; 1878, 8 réis; 1879, 4 réis; 1883, 8 réis e 1886, 13 réis (Santos, 1995).
  • 6
    Citado por Machado, 1977.
  • 7
    As observações de Avé-Lallemant, em 1858, indicam que a criação representou para asociedade dos campos gerais mais que simplesmente uma atividade econômica. Sobre isto o viajante escreveu: "Os homens têm animais para seu uso, mas são precisamente os seus animais, a sua outra natureza, as metades deles próprios, o segredo do centaurismo nos campos" (1980: 285).
  • 8
    O escravo indígena era igualmente encontrado nas fazendas, porém, em menor número. Saint-Hilaire (1978) registrou sua presença nas fazendas em que visitou.
  • 9
    Sobre a exploração da erva-mate no Paraná ver Ianni, 1988; Padis, 1981; Pereira, 1996.
  • 10
    Alguns historiadores regionais, como Romário Martins (s/d), insistiam, a despeito dos dados que eles próprios apresentavam, em afirmar que os negros não tiveram expressão numérica ou cultural na formação da população paranaense. No caso de Romário Martins, os levantamentos populacionais trabalhados e apresentados mostram que suas análises foram pautadas não na evidência, mas em uma orientação ideológica afinada com o discurso do branqueamento e com teorias do determinismo biológico e geográfico. Mais recentemente, historiadores regionais reatualizaram estas idéias, já questionadas em 1960 pelo trabalho de Ianni (1988), pois, mesmo aceitando que a presença do escravo negro no Paraná foi maciça, enfatizam a evasão dessa população para áreas exportadoras, como as zonas cafeeiras de São Paulo, e sublinham a redução da presença negra no Paraná. Em 1993, Terezinha R. B. Pardo, autora de uma dissertação de mestrado pelo Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, repetindo o mesmo erro cometido por Martins em 1939, ignora os dados demográficos que ela própria apresenta no apêndice de sua dissertação, quando escreve: "Numa sociedade como a paranaense, cuja população escrava era reduzida (...) a economia paranaense em nenhum de seus três ciclos esteve sustentada pelo regime escravista" (p. 29 e 30). A hipótese do desconhecimento dos dados e da literatura específica está neste caso descartada; trata-se, como em 1939, de uma orientação afinada com o discurso do branqueamento. De qualquer modo, mesmo que os dados evidenciassem uma inexpressividade numérica do escravo negro no Paraná, o que é absolutamente falso dependendo do período e do local considerados, esta discussão é inócua, pois o que interessa de fato é conhecer as formas de organização social desta população em diferentes momentos da história do país ou do Paraná. Mesmo que apenas um escravo negro lá tivesse existido, ainda assim seria necessário refletir sobre sua existência.
  • 11
    Balhana e outros, 1968c; Gutiérrez, 1988; Ianni, 1988; Saint-Hilaire, 1978; Pardo, 1993.
  • 12
    Idem.
  • 13
    Idem.
  • 14
    Esses números, no entanto, variaram ao longo do tempo e, se em 1772 uma fazenda tinhaoito escravos e 152 cabeças de gado, essa mesma fazenda em 1795 apresenta um plantel de 25 escravos e 1326 cabeças de gado; em 1842, os escravos já eram 44 e o rebanho era de 2827 cabeças; e em 1870 havia 2675 cabeças de gado e 35 escravos (Machado, 1963). Esta redução do número de escravos parece estar relacionada a diversos fatores como o encarecimento do preço do escravo após a proibição do tráfico e, mais especificamente para os Campos Gerais, à mudança de atividade nas fazendas: a invernada exigia um número bem menor de escravos que a criação. Mais tarde ainda, depois do fim das atividades pecuárias, parte destes escravos seria vendida para as fazendas paulistas de café (Machado, 1963). Essa diminuição dos plantéis, entretanto, não significou o desaparecimento do escravo no Paraná, nem se pode daí deduzir uma "insignificância" da presença negra na formação da população paranaense. O número de escravos apenas se reduziu, o que não é sinônimo de desaparecimento.
  • 15
    A fazenda Capão Alto, na região de Castro, 70 anos sob a administração dos escravos, teve a sua frente o escravo Inocêncio. (Abreu e Marcondes, 1991).
  • 16
    Uma parte significativa dos agrupamentos negros em situação de vida rural no Brasil tem suas origens em heranças deixadas por senhores a escravos. Vide, entre outros, Florentino (1997); Fry (1996); Baiocchi (1983); Monteiro (1985); Queiroz (1983).
  • 17
    Essa área foi calculada a partir de um documento de registro de terras, datado de 1856, no qual a metade da fazenda perfazia uma légua - 4.356 hectares - e meia de comprimento por uma de largura, o que totaliza uma área de 6.530 ha. Meio século mais tarde, nos autos do processo de divisão desta metade da fazenda, a área registrada, aproximando-se daquela declarada no documento de 1856, foi de 6.176,79 ha (Autos da divisão Judicial da Fazenda Santa Cruz, realizada em 1915. Fórum Cível de Palmeira, volumes I, II, III, IV. Folha 28).
  • 18
    Informação constante do documento intitulado "Successão", que tem por base o inventário da fazenda, datado provavelmente de 1854. (Conforme os Autos do processo de divisão da Fazenda Santa Cruz. Fórum de Palmeira).
  • 19
    A bibliografia consultada foi utilizada parcialmente, pois as informações sobre a fazenda, baseadas quase sempre em fontes secundárias ou - o que é mais comum - em fontes não especificadas, resultam muito mais em opiniões que em informações, como se pode ver em Dergint (1941); Pedroso (1990) ou Waldmann (1992). Esses trabalhos são baseados no trabalho de Francisco Negrão (1946), Genealogias Paranaenses, tratado como fonte primária. Essa obra, entretanto, nem sempre registra a origem das informações que oferece e, muitas vezes, essas não se distinguem da opinião do autor. Desse modo, em diferentes trabalhos consultados sobre a história do Paraná, há uma série de informações de origem duvidosa, porque raramente se baseiam em fontes primárias. Trata-se de compilações de compilações. Quanto à documentação do Arquivo do Estado de São Paulo sobre sesmarias no Paraná, não se encontrou qualquer registro de sesmaria designada Santa Cruz e nem solicitação por parte daqueles que teriam feito a demanda (Livros de Sesmarias do período que vai de 1721 a 1821). Assim, a Fazenda Santa Cruz, a partir da documentação referida, tanto pode ter sido uma sesmaria quanto uma posse qualquer. Ambas as formas de aquisição eram possíveis e comuns no período e na região.
  • 20
    Arquivo do Estado de São Paulo. Livro de sesmarias - 1721-1821. Cx. 83; livro 23; livro 28.
  • 21
    Autos do Inventário de D. Maria Magdalena de Lima. Arquivo Público do Paraná. Cx. 082, doc. 027.
  • 22
    O inventário de Maria Clara não foi encontrado. Nos autos do processo de divisão da fazenda é mencionado como documento anexo, mas não consta de nenhum dos 4 volumes. As buscas nos arquivos do Paraná e São Paulo, em diferentes cartórios das cidades de Palmeira, Ponta Grossa, Castro e Lapa, também foram infrutíferas. Calcula-se que deva ter sido destruído no incêndio no Arquivo Público do Paraná, ocorrido na década de 70, quando boa parte da documentação da 1a Vara Cível do estado foi queimada. O documento, anexado aos autos do processo de divisão, é um extrato do testamento de Maria Clara do Nascimento. Este documento, datado de 1878, não especifica a data do testamento, a qual pode, entretanto, ser estimada para o ano de 1854, quando se considera um anúncio veiculado no jornal "Dezenove de Dezembro", de janeiro de 1855, onde Francisco de Paula Guimarães agradece o comparecimento ao funeral e à missa de 7ºdia de Maria Clara.
  • 23
    Conforme consta na escritura de terras, feita por um dos escravos herdeiros, datada de1856. Autos do processo de divisão da Fazenda Santa Cruz, Fórum da cidade de Palmeira, PR.
  • 24
    É provável que as relações entre Maria Clara e Francisco de Paula Guimarães fossem de proximidade. Em 1840, no inventário de um irmão de Maria Clara, ele é referido como seu curador e de mais outros dois irmãos. Em 1832, o mesmo Francisco de Paula Guimarães aparece nomeado procurador no inventário, agora, da mãe da mesma Maria Clara. Mas estas informações são insuficientes para confirmar sua condição de herdeiro de Maria Clara. Sabe se apenas que, em 1856, ele é dito proprietário da outra metade da fazenda.
  • 25
    Livros de Sesmarias - 1721 - 1821. Arquivo de São Paulo.
  • 26
    Inventário de Manoel Gonçalves Guimarães. Arquivo Público do Paraná. Cx. 080, doc. 002.
  • 27
    Alguns desses bens móveis estão arrolados para a casa de Curitiba.
  • 28
    Boa parte desses bens aparecem nas listas de produtos chegados ao Porto de Paranaguá, vindos do Reino e de outros países, obtidos através do Rio de Janeiro (Cardoso e Westphalen, 1986).
  • 29
    Ver Pedroso (1990). Um outro descendente de Manoel Gonçalves Guimarães foi o historiador aqui citado, Brasil Pinheiro Machado, filho de uma de suas tataranetas. (Conforme Negrão, 1946, vol. V: 152-153).
  • 30
    Em Negrão, F. 1946.
  • 31
    Em Negrão, F. 1946.
  • 32
    Grifo meu.
  • 33
    Boletim Informativo da Casa Romário Martins, vol. 22, no 104. Abril de 1995.
  • 34
    Fundos de Emancipação, 1875, AP 468, pg. 150, vol. 13.
  • 35
    Desse número, nove escravos não aparecem no inventário, mas puderam ser resgatados nos registros de batismo e óbito anteriores à data do inventário. Provavelmente, os nove cativos residiam na fazenda, já que pertenciam a Maria Clara e Joaquim, que também sempre residiram ali.
  • 36
    Algumas informações dos registros utilizados são parciais, especialmente as referentes à origem dos cativos, cujo percentual de indefinição é de 30% e pode inverter o quadro da origem do plantel. Não obstante, esses dados permitem caracterizar o conjunto dos escravos da Santa Cruz por ocasião do falecimento de Maria Clara. Havia, então, escravos africanos, homens, jovens e solteiros. Esse quadro vai exatamente no sentido oposto ao que se tem dito sobre os plantéis escravos das áreas de economias periféricas, caso do Paraná. Ao contrário das áreas de plantation e de mineração onde, em decorrência das atividades econômicas, os plantéis eram majoritariamente africanos e masculinos, nas áreas como o Paraná, também em função do tipo de atividade econômica, a escravaria era sobretudo crioula e havia um equilíbrio entre os sexos. O plantel escravo da Santa Cruz, portanto, se aproxima daquele tido como característico das áreas de "plantation" e mineração, o que põe em dúvida a operacionalidade das generalizações e teorias de médio e grande alcance.
  • 37
    Consta que uma das escravas era casada, mas seu cônjuge não é referido. Pode-se supor que pertencia a outro senhor ou era livre.
  • 38
    Pitt-Rivers,1979.
  • 39
    Além disto, em diversos momentos dos inventários e testamentos os dois irmãos aparecem juntos. No inventário do irmão Manoel e da mãe, Joaquim foi procurador da irmã Maria Clara. Neste mesmo inventário, os dois irmãos solicitam esclarecimentos sobre as contas apresentadas pelo irmão Mathias, tutor do irmão inventariado. Os cônjuges de duas outras irmãs, advogando em causa própria, manifestam opinião contrária à demanda de Maria Clara e Joaquim, argumentando prejuízo para os negócios da fazenda e os demais herdeiros. Em seu testamento, Maria Clara refere-se à libertação dos escravos como uma ação promovida conjuntamente, por ela e seu irmão. Tudo sugere que os laços entre os dois irmãos eram estreitos, de confiança e afetividade. No inventário da mãe de ambos percebe-se que houve longa discussão entre os herdeiros para se chegar a um acordo: eles acabam por abrir mão de suas partes na Santa Cruz, em proveito de Maria Clara e Joaquim. Infelizmente, o estado dos registros, que foram parcialmente queimados, não permitiram acompanhar toda discussão.
  • 40
    O trabalho de Pardo (1993) sobre relações familiares no Paraná do século XIX traz algumas notícias de jornais onde se pode perceber que esta é uma preocupação da sociedade como um todo. Em 1826, 1859 e 1870 há notícias de venda ou até mesmo de aluguel de escravas, sempre acompanhadas de seus filhos. A prole de algumas se resume a um filho, mas outras são vendidas com dois ou três filhos. A idade das crianças também chama a atenção: varia de 1 a 13 anos. Estes filhos das escravas poderiam ser vendidos separadamente, sobretudo os com mais idade. Mas o que se percebe, nesses anúncios de venda de escravos, é certa condição na venda: estão à venda as famílias, não os escravos. O texto do anúncio indica esta condição: não são postos à venda uma escrava e seus filhos, mas uma escrava "com" ou "acompanhada" de seus filhos. E isto quase 50 anos antes da Lei do ventre livre, cujos parágrafos 4, 5 e 7 do artigo 1º, ou o parágrafo 7ºdo 4º artigo protegem a relação mãe/filho e a família.
  • 41
    Recuperam-se nos registros 35 escravos, mas sete já aparecem nos registros anteriores, por isto não foram computados.
  • 42
    Esta é uma característica dos plantéis médios e grandes, diferenciando o caso brasileiro do americano, onde os casais eram formados por escravos de senhores diferentes (conforme Slenes, 1987).
  • 43
    Para uma análise mais detalhada sobre os fatores que intervinham na escolha dos padrinhos, ver Gudeman e Schwartz (1988).
  • 44
    Chama a atenção o fato de que o Capitão Francisco de Paula Guimarães, provavelmente umamigo da família, tenha sido o padrinho de todos os escravos africanos da fazenda que foram batizados. Se escravos não africanos eram escolhidos para padrinhos dos africanos, porque auxiliavam na integração destes últimos, como propõem Gudeman e Schwatrz (1988), então ao Capitão tinha sido atribuída esta tarefa. Para melhor entender a situação seriam necessárias mais informações sobre este amigo dos proprietários da fazenda. Infelizmente, as buscas foram infrutíferas.
  • 45
    Koster, segundo Gudeman e Schwartz (1988), sugeriu que, ao escolher padrinhos ilustrespara os filhos, os escravos, talvez, esperassem que os padrinhos pagassem para ver livres seus afilhados. Um estudo sobre a Bahia, entre 1684 e 1745, mostrou que esta esperança na maioria das vezes não se concretizou. Mas se não havia modificação da condição, a mitigação e a movimentação social dentro dela era um fato. Para um escravo, ser afilhado de um homem livre já era uma forma de distinção que aliviava a própria condição e, se este padrinho ainda desfrutasse de uma posição de destaque, os ganhos simbólicos eram ainda maiores. O parentesco espiritual era, como sugerem Gudeman e Schwartz, muito mais uma garantia de aliados ou protetores em situações de maior dificuldade. Nas áreas de cana-de-açúcar, onde desenvolveram suas pesquisas, em 70% dos batizados de escravos, os padrinhos eram livres e residiam nos engenhos vizinhos. E também era comum que em caso de fuga esses escravos recorressem aos padrinhos livres e vizinhos para que intercedessem junto aos senhores no intento de ter a pena aliviada. Ou seja, não se buscava, na maior parte dos casos, a inversão da condição, mas sua atenuação.
  • 46
    Autos do processo de divisão da fazenda datado de 1915. Arquivos do Fórum Cível de Palmeira. A data do inventário foi calculada a partir da data de falecimento de Maria Clara e do registro de terras feito por um dos legatários da proprietária.
  • 47
    Talvez haja nesta lista mais crianças, mas apenas são identificáveis as que aparecem nos registros de batismo, o que permite uma aproximação das idades.
  • 48
    Primos paralelos são os filhos de irmãos do mesmo sexo.
  • 49
    As práticas de nominação entre os escravos da Santa Cruz mostram que, muito raramente, os filhos herdavam o nome dos pais. Apenas em três casos isto acontece. O que é mais recorrente é a prática de dar aos filhos o nome de outros parentes, tios, avós, bisavós, primos, extrapolando-se, portanto, a família conjugal, mas se mantendo dentro do grupo familiar de afins e consangüíneos. Estas práticas nominativas foram identificadas também por Florentino (1997) para os plantéis por ele analisados. Entre os escravos e libertos da Santa Cruz, há também uma tendência muito forte de nomear os filhos com os nomes de pessoas livres, provavelmente pertencentes ao rol das amizades e relações dos proprietários. As práticas nominativas dos escravos e libertos da Santa Cruz seguem, portanto, a orientação da ampliação da rede de relações, da busca de aliados de condição superior à deles.
  • 50
    Os escravos alforriados por Joaquim e sua irmã Maria Clara eram provavelmente os dele, já que os registros de batismo, datados de 1852, e o testamento, de 1854, informam que Maria Clara ainda possuía escravos.
  • 51
    Documento já citado.
  • 52
    A lei te terras, datada de 1850, proibia a ocupação das terras devolutas do Império; revalidava as sesmarias e outras concessões e instituía que a aquisição de terras devolutas se daria unicamente por compra (Renk, 1997).
  • 53
    Dicionário Aurélio eletrônico, 1999.
  • 54
    As famílias fazendeiras dos Campos Gerais costumavam, nesta época, residir em suas casasda cidade apenas uma parte do ano, sobretudo quando os trabalhos da propriedade diminuíam. Passavam mais tempo nas fazendas. (Balhana e outros, 1968a).
  • 55
    Memórias de José Mathias Ferreira de Abreu, Officios de 1860, citado por Machado,1977; Avé-Lallemant, 1858; Padis, 1981.
  • 56
    Manolo Florentino, comunicação pessoal.
  • 57
    As inclinações religiosas dos Gonçalves Guimarães e, sobretudo, as das mulheres revelam-se ainda em sua obediência aos requisitos e normas do Concílio de Trento. Conforme Gudeman e Schwartz (1988), os recém-nascidos deveriam ser batizados na primeira semana de vida por um padre da paróquia e deveriam ter apenas um padrinho e uma madrinha. Ao contrário do que os autores verificaram no Recôncavo baiano, onde essas regulamentações eram freqüentemente burladas ou ignoradas, as duas proprietárias da Santa Cruz parecem tê-las seguido à risca. De todos os batismos dos escravos da fazenda, apenas dois não cumprem a segunda norma. Quanto ao primeiro requisito, há uma diferença entre os três proprietários de escravos da fazenda. Dos seis escravos batizados de Maria Magdalena, apenas um tem a idade declarada, que é de 16 anos. Era um escravo de Nação. Dos 12 escravos batizados de Joaquim, sete têm a idade declarada e apenas um foi batizado antes do primeiro mês. Os demais são escravos adultos. A situação dos escravos de Maria Clara é diferente. Dos seus 12 escravos batizados, nove têm a idade declarada e, destes, sete foram batizados antes de completar um mês de vida. Dos dois outros, um tinha três meses na ocasião do batismo e o outro africano, 16 anos.
  • 58
    A esta perspectiva poderia ser contraposta uma outra, de orientação mais econômica, que encontra sua explicação em uma propriedade decadente, sem valor econômico; daí sua doação. Esta perspectiva esbarra em, ao menos, dois pontos. Um, mais geral: o foco de interesse é a doação e não seu valor econômico, ou seja, procura-se compreender o ato em si e as relações envolvidas entre doador e recebedor. O outro ponto entra na discussão do valor econômico do bem doado. O ano da doação, 1854, é um ano favorável às atividades ligadas à pecuária. O período entre 1855-1860 é de ápice do comércio de mulas em Sorocaba, quando 100.000 mulas entraram na feira e, certamente, invernaram nas fazendas dos Campos Gerais, onde o número de cativos é expressivo, havendo escravos até mesmo nas aldeias indígenas (Ianni, 1988). Essa presença significativa de escravos é sinal de vigor econômico e, portanto, a doação não encontraria aí sua justificativa. Os negócios da Santa Cruz, como os de todas as demais fazendas da região naquele período, estavam em desenvolvimento, o que invalida uma explicação dessa.
  • 59
    Em Coelho, {1860} 1968: 28, 48 e 49.
  • 60
    Em Ferrarini, 1971.
  • 61
    Dezenove de Dezembro, 23/1/84. Em Ferrarini (1971).
  • 62
    Já em 1699 Curitiba mandou erigir um tronco para açoitar escravos (Ianni, 1988).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2005

Histórico

  • Recebido
    Mar 2004
  • Aceito
    Out 2004
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