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A endemia de tracoma em São Paulo no início do século XX: as atuações governamentais e as repercussões na comunidade internacional

Trachoma endemic in São Paulo at the beginning of the 20th century: as governmental actions and as repercussions in the international community

Tracoma endémico en São Paulo a principios del siglo XX: acciones gubernamentales y repercusiones en la comunidad internacional

RESUMO

O tracoma, uma enfermidade oftálmica com alto risco de cegueira, tornou-se endêmica no final do século XIX em vários países da Europa, Ásia, África e América. No Brasil, a doença foi mais intensa nos estados com forte política imigratória, em especial em São Paulo, atingindo principalmente a população rural. Este artigo objetiva analisar como a disseminação do tracoma no início do século XX em São Paulo criou fissuras nas relações internacionais e como as pressões dos países vinculados às políticas imigratórias poderiam ter influenciado nas medidas profiláticas implantadas. A pesquisa relevou que as atuações governamentais de combate ao tracoma, realizadas de forma intermitente, coincidiram com os períodos de dissensos com a Itália, Espanha e Argentina, demonstrando que as questões migratórias estavam fortemente alicerceadas entre os fatores que definiram a política sanitária do período.

Palavras-chave:
História da Saúde e das Doenças; História da Saúde Pública; História das Epidemias; tracoma; São Paulo

ABSTRACT

Trachoma, an ophthalmic disease with a high risk of blindness, became endemic in the late nineteenth century in several countries in Europe, Asia, Africa and America. In Brazil, the disease was more intense in states with a strong immigration policy, especially in São Paulo, affecting mainly the rural population. This article aims to analyze how the spread of trachoma in the beginning of the 20th century in São Paulo created fissures in international relations and how the pressure exerted by the international community could have influenced the prophylactic measures implemented. The research showed us that government actions to combat trachoma that were carried out intermittently coincided with periods of dissent with Italy, Spain and Argentina, demonstrating that immigration issues were strongly rooted among the factors that defined health policy strategies of the period.

Keywords:
History of Health and Diseases; History of Public Health; History of Epidemics; trachoma; São Paulo

RESUMEN

El tracoma, una enfermedad oftálmica con alto riesgo de ceguera, se volvió endémica a finales del siglo XIX en varios países de Europa, Asia, África y América. En Brasil, la enfermedad fue más intensa en los Estados con fuerte política de inmigración, especialmente en São Paulo, afectando principalmente a la población rural. Este artículo tiene como objetivo analizar cómo la propagación del tracoma a principios del siglo XX en São Paulo creó fisuras en las relaciones internacionales y cómo la presión de los países vinculados a las políticas de inmigración pudieron haber influido en las medidas profilácticas implementadas. La investigación reveló que las acciones gubernamentales para combatir el tracoma que se llevaron a cabo de forma intermitente coincidieron con períodos de disidencia con Italia, España y Argentina, lo que demuestra que la cuestión de la migración estuvo fuertemente arraigada entre los factores que definieron la política sanitaria de la época.

Palabras clave:
Historia de la Salud y Enfermedades; Historia de la Salud Pública; Historia de las Epidemias; tracoma; São Paulo

Introdução

Na virada do século XIX para o XX, o tracoma tornou-se endêmico em vários países da Europa, Ásia, África e América. Conhecido também como conjuntivite granulosa ou oftalmia militar do Egito, a enfermidade oftálmica contagiosa exigiu dos governantes medidas profiláticas intensivas para se evitar a cegueira proveniente de constantes reinfecções1 1 O tracoma é uma doença bacteriana com transmissão direta por meio do contato com os enfermos, ou de forma indireta, por objetos contaminados como lençóis, toalhas, roupas, ou por vetores mecânicos, como as moscas. Apesar de 25% dos casos de tracoma serem assintomáticos, a maioria apresenta lacrimejamento, sensação de corpo estranho, fotofobia e pouca secreção purulenta. Com constantes reinfecções, os cílios envergam-se para a parte interna dos olhos, passando a raspar a córnea e provocando lesões no globo ocular. Neste quadro clínico, se não houver intervenção cirúrgica, o enfermo pode ter a visão comprometida chegando à cegueira (CVE, 2016). .

A doença atacou diversas civilizações durante séculos em ciclos endêmicos inconstantes. Ela teria sido identificada nos anos de 2700 a.C. na China e, mais tarde, na Suméria (2000 a.C.) e no Egito (1550 a.C.). Como essas civilizações estavam isoladas, a enfermidade permaneceu estagnada nessas regiões até os anos 404 a.C., quando ocorreram as movimentações em massa provocadas principalmente pela Guerra do Peloponeso, espalhando a doença para outras localidades da Europa. Com as Cruzadas iniciadas em 1095 d.C., um novo processo de contágio atingiu as populações mais distantes dos centros europeus, estando ao lado de enfermidades como a lepra, peste bubônica, varíola e malária (ROSEN, 1994ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1994.; TAYLOR, 2009TAYLOR, Henry R. Tracoma. Doyne lecture: tracoma, is it history? Eye - Journal of The Royal College of Ophthalmologists. n. 23, p. 2007-2022, 2009.; SCHLOSSER, 2011SCHLOSSER, Katherine. History of Trachoma. International Trachoma iniciative. Special edition. 15 May 2011. Disponível em : Disponível em : http://www.trachomacoalition.org/resources?keys=&field_topic_tid%5B%5D =18 . Acesso em: 18 nov. 2016.
http://www.trachomacoalition.org/resourc...
).

Em fins do século XIX, com o aumento das transações comerciais e a ampliação do fluxo imigratório, a enfermidade atingiu diversos países do Velho Continente como a ­Holanda, Bélgica, França, Itália, Alemanha, Suíça, Irlanda, Escócia e Inglaterra, e chegou no Novo Continente alcançando a Bolívia, Chile, Argentina, Brasil, Cuba, Canadá e Estados Unidos.2 2 OTTONI, David. Clinica Ophtalmologica - Conjunctivite granulosa. Brazil - Medico: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, ano XII, n. 41, p. 362-365, 1898; TRACOMA, Organizacion Panamericana de la Salud. Boletin de la Oficina Panamericana, v. 7 n. 7, p. 839, jul. 1928; PAPARCONE, Ernesto. Il Tracoma e sue complicazioni. Soceitá Editrice Libraria. Milano Via Ausonio, v. 16, n. 22, 1922.

No Brasil, a doença teria sido introduzida em meados de 1800, quando alguns ciganos infectados foram expulsos de Portugal para as províncias do Maranhão e do Ceará, região Nordeste do país3 3 BURNIER, Penido. O tracoma no Brasil: sua origem e difusão. Arquivos do Instituto Penido Burnier. v. 1, fascículo 1, p. 62-72, mar. 1932. (LUNA, 1993LUNA, Expedito J. A epidemiologia do tracoma no Estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Médicas) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1993.). A oftalmia espalhou-se facilmente na localidade em decorrência do clima quente com predominância de umidade e areia, condições favoráveis à irritabilidade da córnea criando vulnerabilidade para o contágio.4 4 OTTONI, David. Clinica Ophtalmologica - Conjunctivite granulosa. Brazil - Medico: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, ano XII, n. 41, p. 362-365, 1898. Em 1876 a região já era identificada por alguns médicos como epidêmica5 5 É possível identificar um processo endêmico quando ocorre o afastamento temporal dos primeiros casos e pode-se constatar que a doença prevalece/prevaleceu por décadas. O tracoma foi endêmico em São Paulo até a década de 1990 (LUNA, 1993). No entanto, em alguns momentos do artigo, quando as fontes documentais tomam voz, usamos o termo “epidemia” pois, no período vivenciado, os atores não sabiam se o tracoma permaneceria por muito tempo. com focos nas zonas limítrofes dos estados da Paraíba e Pernambuco.6 6 BURNIER, Penido. O tracoma no Brasil: sua origem e difusão. Arquivos do Instituto Penido Burnier. v. 1, fascículo 1, p. 62-72, mar. 1932.

Nas décadas seguintes, alguns casos pontuais começaram a surgir no Centro, Sudeste e Sul do país atingindo os estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.7 7 OTTONI, David. Clinica Ophtalmologica - Conjunctivite granulosa. Brazil - Medico: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, ano XII, n. 41, p. 362-365, 1898; BURNIER, Penido. O tracoma no Brasil: sua origem e difusão. Arquivos do Instituto Penido Burnier. v. 1, fascículo 1, p. 62-72, mar. 1932. A forma mais intensa, no entanto, foi relatada em São Paulo, na década de 1880, quando o governo estadual intensificou a política imigratória estimulando a chegada de trabalhadores europeus para trabalharem nas fazendas produtoras de café, introduzindo no estado grande quantidade de enfermos tracomatosos .8 8 SÃO PAULO - ESTADO. Relatório da Secretaria do Interior, annos de 1907 e 1908. São Paulo: Duprat & Comp. 1908.

A política sanitária adotada no porto de Santos com atuações em nível provincial/estadual e normativas do governo central não foram eficientes para criar barreiras portuárias contra o tracoma, desencadeando na propagação da doença em terras paulistas afetando os trabalhadores e seus familiares. Diversos atores, observando a disseminação da doença, passaram a publicar impressões sobre a epidemia em variados veículos nacionais e internacionais. São exemplos as publicações do Guida dello Stato di San Paolo nel Brasile que calcularam que em 1904 havia cerca de 120 mil colonos com tracoma no interior do estado. Na imprensa diária, o médico Melo Barreto publicou uma estimativa de que a cada seis colonos, um era tracomatoso, e uma viajante italiana calculou que cerca de 75% dos trabalhadores das fazendas estavam com tracoma. Outros atores representantes do governo como o chefe da Comissão Sanitária de Ribeirão Preto pronunciaram que, além de encontrar grande número de adultos cegos, o número de crianças infectadas aumentava consideravelmente, ao ponto de se poder afirmar que nenhum filho de colono escapava da enfermidade9 9 BARRETO, M. O trachoma. O Estado de S. Paulo, 22 ago. 1903, p. 4. (RIBEIRO, 1993RIBEIRO, Maria Alice. História sem fim: um inventario da saúde pública, São Paulo, 1880-1930. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.). Como a doença atingia principalmente imigrantes, a epidemia passou a repercutir na comunidade internacional ocasionando barreiras de circulação, problemas com as políticas imigratórias e propagandas negativas sobre a situação sanitária de São Paulo.

As pesquisas que discorreram sobre o tracoma no Brasil em uma vertente histórica ainda são escassas. Encontramos no final da década de 1980 até meados da década de 1990 os trabalhos de Castro Santos (1987CASTRO SANTOS. Luiz Antonio. Power, ideology and Public Health in Brazil, 1889-1930. Tese (Doutorado em Sociologia) - Departamento de Sociologia. Harvard University, Cambridge, 1987.), Ribeiro (1993REBELO, Fernanda. Entre o Carlo R. e o Orleannais: a saúde pública e a profilaxia marítima no relato de dois casos de navios de imigrantes no porto do Rio de Janeiro, 1893-1907. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 765-796, jul.-set. 2013.), Telarolli Jr. (1996TELAROLLI JR. Rodolfo. Poder e saúde: as epidemias e a formação dos serviços de saúde em São Paulo. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1996.) com breves apontamentos sobre o tracoma em São Paulo, a dissertação de mestrado de Expedito Luna (1993LUNA, Expedito J. A epidemiologia do tracoma no Estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Médicas) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1993.) que objetivou estudar os dados seriais da situação epidemiológica paulista entre as décadas de 1890 e 1990 e um pequeno artigo de Scarpi (1991SCARPI, Marinho Jorge. História do tracoma no Brasil. Arq. Bras. Oftal, v. 5, n. 54, p. 202-205, 1991.) sobre a história do tracoma no Brasil. Após uma década, alguns pesquisadores retomaram o tema e passaram a observar a tracoma sob outros ângulos. Leonor Schwartsmann (2020SCHWARTSMANN, Leonor C. Baptista. O fenômeno imigratório e o controle do tracoma: repercussões da doença. História em Revista, v. 26, n. 1, p. 146-162, dez. 2020.) analisou a relação do tracoma e a imigração com foco no Rio Grande do Sul e Soraya Lodola e Cristina Campos (2020LODOLA, Soraya; CAMPOS, Cristina de. A profilaxia e o tratamento das enfermidades do oeste paulista: o Serviço Sanitário e o tracoma no princípio do século XX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1.035-1.053, out.-dez. 2020.; 2018LODOLA, Soraya; CAMPOS, Cristina. “Era urgente e indispensável agir”: o tracoma em São Paulo no início do século XX. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, p. 2-21, 2018.) estudaram as relações entre os governos estaduais paulistas e seus municípios no combate à conjuntivite e as motivações que levaram o governo de São Paulo a implantarem os primeiros serviços de profilaxia do tracoma. Apesar dessas vertentes, ainda não se analisou se São Paulo sofreu pressões da comunidade internacional sobre a situação endêmica do estado e se as atuações profiláticas adotadas pelo governo estadual foram influenciadas pelas relações com países vinculados ao processo imigratório.

Para cobrir tais lacunas objetivamos pontuar na primeira parte do artigo, após esta introdução, como o tracoma chegou a São Paulo, quais as medidas profiláticas e de tratamento adotadas pelo governo estadual e como essas atuações estavam em consonância com outros países que sofreram com o tracoma na virada do século XIX para o XX. Na segunda parte abordaremos como a comunidade internacional reagiu em relação à endemia em terras paulistas e como esse fator influenciou no processo imigratório. À guisa de considerações, destacamos como as atuações governamentais paulistas implantadas de forma intermitente poderiam ter relações diretas com as pressões exercidas pela comunidade internacional.

Utilizamos como material empírico jornais nacionais e da imprensa estrangeira, relatórios governamentais, documentos oficiais, teses e artigos científicos.

O tracoma em terras paulistas

Em meados do último quartil do século XIX, a província de São Paulo, dotada de terras em abundância para a expansão das plantações de café, assumiu a posição de liderança na pauta agroexportadora brasileira após período de intensa produtividade no Vale do Paraíba propiciada pela saída da Jamaica e de Cuba do mercado produtor, e o aumento dos Estados Unidos como um importante país consumidor (MELO, 2006MELO, José E. V. Café com açúcar: a formação do mercado consumidor de açúcar em São Paulo e o nascimento da grande indústria açucareira paulista na segunda metade do século XIX. Saeculum(UFPB), v. 14, p. 64-93, 2006.; MARQUESE; TOMICH, 2009MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial, v. II- 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 339-383.).

O governo provincial foi parceiro desse processo apoiando e oferecendo ajuda na forma de garantia de juros para as empresas interessadas em explorar serviços, além de uma série de políticas públicas para atrair braços imigrantes para as lavouras em expansão. Com essas práticas, observou-se uma grande ampliação das fazendas e das produções de café nas últimas três décadas do século XIX, em um processo que andava em paralelo com a ampliação das ferrovias.

Os estadistas, aliados aos fazendeiros, incentivaram a substituição da mão de obra escrava por imigrantes do Velho Continente para cumprir as intenções do embranquecimento e da europeização da população após medidas abolicionistas tomadas a partir da década de 1850 (SCHWARCZ, 1993SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.; OLIVEIRA SOBRINHO, 2013OLIVEIRA SOBRINHO, Afonso Soares. São Paulo e a ideologia higienista entre os séculos XIX e XX: a utopia da civilidade. Sociologias, Porto Alegre, ano 15, n. 32, p. 210-235, jan.-abr. 2013.). Dentre os países que realizaram políticas emigratórias, Antônio de Queiroz Teles, conhecido por Visconde de Parnaíba, governador da província de São Paulo (1886-1887), optou em firmar parceria com a Itália10 10 Para o governo da Itália, criar políticas emigratórias era a solução para amenizar a crise acarretada pelas lutas pela unificação, saturação demográfica e problemas econômicos. O governo italiano entendia que a emigração possibilitaria aos que ficassem na Itália terem melhores condições de vida, ao mesmo tempo em que teriam maior estabilidade política, uma vez que os responsáveis pelas organizações de protestos e greves também entrariam no processo emigratório (CENNI, 2011). , oferecendo passagens com 100% dos custos da travessia transatlântica subsidiadas pelo governo, além de moradia e alimentação até os imigrantes se instalarem nas fazendas de café. Os resultados contábeis da política paulista, reforçados pelas propagandas realizadas no exterior pelos agentes de imigração, acarretaram na introdução de 820.666 italianos entre os anos de 1886 e 1915, conforme Gonçalves (2008GONÇALVES, Paulo Cesar. Mercados de braços: riqueza e acumulação na organização da emigração europeia para o Novo Mundo. Tese (Doutorado em História Econômica) - Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.).

Com esses estímulos imigratórios, o estado de São Paulo atraiu indivíduos de diversas regiões italianas sem ter, no entanto, conhecimento que muitas delas estavam tomadas pelo tracoma tendo índices de positividade que ultrapassavam 50% de tracomatosos11 11 PAPARCONE, Ernesto. Il Tracoma e sue complicazioni. Soceitá Editrice Libraria. Milano Via Ausonio, v. 16, n. 22, 1922. No relatório de 1907 da Secretaria do Estado dos Negócios do Interior de São Paulo, o Secretário Gustavo de Oliveira Godoy afirmou que “não havia tracoma antes da grande imigração europeia de 1887, quando chegaram os imigrantes da Itália, nação que há mais de 40 anos sofria com os percalços da enfermidade” (SÃO PAULO - ESTADO, 1908). . Esses tantos enfermos que saíam dos portos italianos com destino ao Brasil, se acumulavam nos navios e, ao chegaram no estado de São Paulo pelo porto de Santos, hospedavam-se na capital e vagavam pelas linhas férreas até as terras longínquas do oeste paulista, provocando um rastro de contágio por onde passavam (GOIS, 2020GOIS, Soraya. História do tracoma em São Paulo: uma rede formada entre as linhas da sociedade e os laços de uma doença (1880-1916). Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica) - Instituto de Geociências, Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2020.).

Alguns médicos que prestavam atendimentos em regiões distantes dos centros urbanos perceberam a gravidade da disseminação do tracoma sobre a população rural e criaram meios de divulgar e sensibilizar as autoridades públicas sobre a necessidade de intervenção governamental. Um destes médicos foi o especialista em oftalmologia David Ottoni que residia no estado vizinho, em Minas Gerais, e que atendia enfermos residentes nos munícipios mais a oeste de São Paulo onde havia uma grande quantidade de enfermos (LODOLA; CAMPOS, 2018LODOLA, Soraya; CAMPOS, Cristina. “Era urgente e indispensável agir”: o tracoma em São Paulo no início do século XX. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, p. 2-21, 2018.). Em 1898, em um artigo publicado na Revista Brazil-Médico, o médico explicou que depois de percorrer diversas regiões do Brasil para estudar a prevalência do tracoma, constatou que em algumas localidades a situação era calamitosa:

Eu vi, nesses centros, infelizes que associavam-se na sua desgraça e contratando um guia formavam grupos de 10, 12 e mais e pegando um na extremidade de um bastão, cuja outra extremidade era segurada por outro e assim dispostos vagavam pelas ruas das cidades ou pelas estradas, valendo-se da caridade dos que passavam.12 12 OTTONI, David. Clinica Ophtalmologica - Conjunctivite granulosa. Brazil - Medico: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, ano XII, n. 41, p. 11, 1898.

O chefe da clínica de olhos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, presenciando a grande procura por atendimentos na ala oftalmológica do hospital, também utilizou as páginas da imprensa em agosto de 1903 solicitando atuação dos órgãos públicos. No jornal O Estado de S. Paulo, o médico Eusébio de Queiroz Mattoso relatou que as duas enfermarias de moléstia dos olhos estavam “literalmente cheias” e que esperava do governo estadual providências a fim de evitar a disseminação da doença e que se oferecesse meios de atender “inúmeros doentes que chegam diariamente a S. Paulo”.13 13 MATTOSO, Eusebio de Queiroz. O Trachoma. O Estado de S. Paulo, 21 ago. 1903, p. 2.

A atuação dos médicos que pressionaram publicamente intervenção governamental fez com que, em meados de 1904, a Secretaria do Interior pedisse ao diretor do Serviço Sanitário Emílio Ribas que providenciasse um mapeamento para entender a extensão do mal. Com esse estudo em mãos, as autoridades governamentais iniciaram algumas medidas sanitárias começando pelo porto de Santos, portal de entrada dos tracomatosos (LODOLA; CAMPOS, 2018LODOLA, Soraya; CAMPOS, Cristina. “Era urgente e indispensável agir”: o tracoma em São Paulo no início do século XX. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, p. 2-21, 2018.). Em 17 de dezembro de 1904 foi então decretada a vistoria médica oftalmológica nos imigrantes que atracavam no porto de Santos, seguindo o exemplo implantado nos Estados Unidos desde 1897. A prática paulista, entretanto, diferenciava-se da norte-americana em alguns pontos.

No continente americano, foram os Estados Unidos o primeiro país a iniciar a campanha contra o tracoma. A doença foi identificada na região no fim do século XIX, quase que simultaneamente ao reconhecimento da doença pelos médicos paulistas (LODOLA; CAMPOS, 2018LODOLA, Soraya; CAMPOS, Cristina. “Era urgente e indispensável agir”: o tracoma em São Paulo no início do século XX. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, p. 2-21, 2018.). Como no Brasil, a introdução e a disseminação da doença naquele país também foram atribuídas aos imigrantes, que no caso americano eram provenientes tanto da Europa como da Ásia.14 14 CARRUTH. Frances Weston. A Unique Municipal Crusade. The North American Review, Published by University of Northern Iowa, v. 177, n. 564, p. 766-774, nov. 1903; POWDERLY, T. V. Immigration’s menace to the national health. The North American Review, University of Northern Iowa, v. 175, n. 548, p. 53-69, jul. 1902. A primeira medida, de uma sequência de outras ações para combater a doença, foi uma intervenção protecionista, decretada em 1897 com a vistoria médica dos imigrantes que chegassem ao porto de Nova York com olhos vermelhos ou inflamados15 15 O tracoma fazia parte da lista de enfermidades mais indesejadas, inserindo-a na “Classe A” junto com a tuberculose, as doenças sexualmente transmissíveis e os transtornos. . Os exames eram realizados na Ellis Island, uma ilha perto de Nova York onde todos os navios aportavam. Ao desembarcarem, os viajantes eram colocados em filas para serem vistoriados por quatro oficiais da marinha. O primeiro grupo de médicos verificava as condições mentais e defeitos físicos e, quando observavam alterações nos olhos, encaminhavam para o segundo grupo de médicos para identificação do tracoma. Em 1905, o governo recrudesceu as regras de vistoria obrigando os inspetores a realizarem exames oftalmológicos não somente nos viajantes que apresentassem algum tipo de vermelhidão ou lacrimejamento ocular, mas em todos os passageiros. Em filas indianas, todos os viajantes passavam pelo procedimento da dobra das pálpebras com a ajuda de um instrumento para identificação de sinais da doença (YEW, 1980YEW, Elizabeth. Medical inspection of immigrants at Ellis Island, 1891-1924. Bull. N. Y. Acad. Med. v. 56, n. 5, p. 489-510, jun. 1980.; ALLEN; SEMBA, 2002ALLEN, Shannen K; SEMBA, Richard. The trachoma “Menace” in the United States, 1897-1960. Survey of Ophtalmology. v. 47, n. 5, p. 500-509, set.-out. 2002.; SCHLOSSER, 2011SCHLOSSER, Katherine. History of Trachoma. International Trachoma iniciative. Special edition. 15 May 2011. Disponível em : Disponível em : http://www.trachomacoalition.org/resources?keys=&field_topic_tid%5B%5D =18 . Acesso em: 18 nov. 2016.
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)16 16 Nas duas décadas seguintes os EUA implantaram uma rede de hospitais e clinicas permanentes para tratar o tracoma, além de criar escolas para receberem crianças tracomatosas (ALLEN; SEMBA, 2002; LODOLA; CAMPOS, 2018). Como a doença tem uma relação direta com as condições socioeconômicas, em 2016 a endemia do tracoma era ainda muito presente na maioria dos países da África, em algumas regiões da Ásia e em países da América Latina como no Brasil e México (WHO, 2020). .

Em São Paulo, o processo de vistoria portuária era desmembrado em três departamentos: a Comissão Sanitária de Santos, de responsabilidade da Secretaria do Interior, a vistoria dos imigrantes realizadas pela Secretaria da Agricultura responsável pelos processos imigratórios e, na esfera federal, o Serviços de Fiscalização dos navios ancorados. Para a identificação do tracoma, o serviço de inspeção foi alocado na Secretaria da Agricultura.

Para a inspeção foi nomeado o médico oftalmologista Seraphim Vieira, que procedia às vistorias dentro dos navios, não consentindo o desembarque dos imigrantes atacados pela conjuntivite. Quando o tracoma era encontrado entre os imigrantes subvencionados, o médico notificava o comandante do navio e os responsáveis pelos imigrantes em Santos e iniciava o procedimento de retorno do passageiro para o país de origem, com as custas da repatriação arcadas pelos responsáveis do embarque nos postos de origem.17 17 OS ESTADOS. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 fev. 1905; SÃO PAULO - ESTADO. Decreto n. 1.255, de 17 de dezembro de 1904. Fixa o número de imigrantes a introduzir em 1905 nesse estado. Destacamos que o objetivo da medida era identificar, dentre os viajantes com passagens subvencionadas pelo governo, enfermos que poderiam afetar as atividades produtoras agrícolas. Para os demais passageiros, a Comissão Sanitária de Santos teria a opção de realizar ou não os exames oftálmicos.18 18 NOTAS e Informações. O Commercio de São Paulo, São Paulo, 23 fev. 1905, p. 1. Com essa flexibilização, as vistorias não foram padronizadas e a doença quebrou as barreiras de proteção sanitária portuária se propagando em solo paulista.

Dois anos depois da primeira medida, sem que o número de enfermos fosse controlado, as autoridades governamentais estaduais iniciaram uma campanha intensiva de combate ao tracoma. Em setembro de 1906, foi criado o Serviço de Profilaxia e Tratamento do Tracoma, tendo como estratégia a instalação de postos de tratamento, visitas médicas escolares e apoio das instituições privadas de assistência à saúde que se propusessem acolher e tratar os enfermos19 19 SÃO PAULO - ESTADO. Decreto n. 1.395, de 3 de setembro de 1906. Cria, na Diretoria do Serviço Sanitário, o serviço de profilaxia e tratamento do “Tracoma”. (LODOLA; CAMPOS, 2020LODOLA, Soraya; CAMPOS, Cristina de. A profilaxia e o tratamento das enfermidades do oeste paulista: o Serviço Sanitário e o tracoma no princípio do século XX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1.035-1.053, out.-dez. 2020.).

Em setembro de 1906 foram iniciadas as instalações de postos de tratamento em 35 municípios, situados um na capital e os demais na zona oeste, onde a endemia era reinante (LUNA, 1993LUNA, Expedito J. A epidemiologia do tracoma no Estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Médicas) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1993.). A equipe de médicos e auxiliares tinham a atribuição de examinar, desenvolver curativos diários por 15 dias consecutivos, realizar cirurgias, aconselhar com medidas de prevenção e fazer vistorias escolares (GOIS, 2020GOIS, Soraya. História do tracoma em São Paulo: uma rede formada entre as linhas da sociedade e os laços de uma doença (1880-1916). Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica) - Instituto de Geociências, Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2020.). A iniciativa de espalhar equipes médicas em locais com maior incidência de tracoma estava em consonância com as práticas adotadas em outros países como a Alemanha20 20 Na Alemanha foram implantados postos que visavam a promover os atendimentos nas regiões mais flageladas pela doença (Revista Médica, 1907, p. 356). , Egito21 21 A profilaxia intensiva do tracoma no Egito, apesar da grande incidência da doença desde o século XVIII, iniciou-se em 1902 quando o filantropo Sir Ernest Cassel financiou um Hospital Oftalmológico Itinerante (Travelling Ophthalmic Hospitals - TOHs) que deveria seguir os moldes dos TOH da Rússia e Hungria, instando-se de forma temporária em diversas regiões (MACCALLAN, 2015; CACCAMISE, 2017). e EUA22 22 As clínicas de combate ao tracoma norte-americanas funcionavam em pontos fixos e atendiam populações distantes através de enfermeiras (ALLEN; SEMBA, 2002). , que enfrentavam o mesmo problema da disseminação do tracoma. Para a campanha, que durou menos de dois anos, o governo alocou uma equipe composta por mais de 100 membros, entre eles 45 médicos, auxiliares e desinfetadores em uma ação conjunta entre estado e municípios (LODOLA; CAMPOS, 2020LODOLA, Soraya; CAMPOS, Cristina de. A profilaxia e o tratamento das enfermidades do oeste paulista: o Serviço Sanitário e o tracoma no princípio do século XX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1.035-1.053, out.-dez. 2020.). Nos três primeiros meses de funcionamento da primeira comissão, entre setembro a dezembro de 1906, os postos realizaram 38.037 exames, sendo identificados 14.967 tracomatosos, o que indica um índice de 39,35% de positividade. Nas escolas os médicos examinaram 15.468 estudantes de diversas regiões do interior do estado e encontraram um índice de positividade de 18,83%. Em um ano e meio, os postos realizaram 2.828.115 curativos, 1.404 cirurgias e identificaram 78 cegos provenientes do tracoma23 23 SÃO PAULO - ESTADO. Relatório da Secretaria do Interior, anno de 1906. São Paulo: Typographia do Estado de S. Paulo, 1907; SÃO PAULO - ESTADO. Relatório da Secretaria do Interior, annos de 1907 e 1908. São Paulo: Duprat & Comp., 1908. (LODOLA; CAMPOS, 2020LODOLA, Soraya; CAMPOS, Cristina de. A profilaxia e o tratamento das enfermidades do oeste paulista: o Serviço Sanitário e o tracoma no princípio do século XX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1.035-1.053, out.-dez. 2020.).

Em 1908, sob a alegação de falta de recursos financeiros para manter a enorme estrutura criada, a primeira comissão de tratamento do tracoma foi extinta sem que o número de casos tivesse sofrido reduções24 24 SÃO PAULO - ESTADO. Relatório da Secretaria do Interior, annos de 1907 e 1908. São Paulo: Duprat & Comp., 1908. (RIBEIRO, 1993RIBEIRO, Maria Alice. História sem fim: um inventario da saúde pública, São Paulo, 1880-1930. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.; GOIS, 2020GOIS, Soraya. História do tracoma em São Paulo: uma rede formada entre as linhas da sociedade e os laços de uma doença (1880-1916). Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica) - Instituto de Geociências, Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2020.). Quase três anos depois da primeira iniciativa, em 1911, outra campanha de combate ao tracoma foi criada. A segunda campanha foi estruturada com uma equipe bem menor, composta por 16 médicos, 32 enfermeiros e dois auxiliares de farmácia. Além de desenvolverem atendimentos em postos fixos, a equipe visitava as fazendas para tratar os moradores rurais, desenvolvia vistoria escolares, fazia vacinações e atendia doentes de ancilostomose, malária e com mordedura de cobra (GOIS, 2020GOIS, Soraya. História do tracoma em São Paulo: uma rede formada entre as linhas da sociedade e os laços de uma doença (1880-1916). Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica) - Instituto de Geociências, Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2020.). Em 1914, com as consequências da Primeira Guerra Mundial, a comissão foi novamente extinta sem que a endemia tivesse sido controlada25 25 SÃO PAULO - ESTADO. Decreto n. 2.141 de 14 de novembro de 1911. Reorganiza o Serviço Sanitário. (GOIS, 2020GOIS, Soraya. História do tracoma em São Paulo: uma rede formada entre as linhas da sociedade e os laços de uma doença (1880-1916). Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica) - Instituto de Geociências, Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2020.). Outras iniciativas estaduais surgiram em 1917 e 1925 e, na esfera federal, na década de 1940 foi criada a Campanha Federal do Tracoma (SCARPI, 1991SCARPI, Marinho Jorge. História do tracoma no Brasil. Arq. Bras. Oftal, v. 5, n. 54, p. 202-205, 1991.).

Apesar das medidas implantadas por São Paulo estarem em consonância com as praticadas em outros países, as instabilidades das campanhas com características intermitentes não surtiram efeito para frear ou diminuir o número de casos (LUNA, 1993LUNA, Expedito J. A epidemiologia do tracoma no Estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Médicas) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1993.), o que acarretou em grande repercussão na comunidade internacional.

Tracoma e as relações internacionais

Parte substancial da agricultura paulista era destinada ao mercado internacional. A dependência de países como os Estados Unidos, como principal comprador das safras de café, da Inglaterra, como uma das financiadoras dos produtos e processos cafeeiros, e da Itália, como a principal parceira de braços imigrantes, desenhava um cenário onde era preciso manter uma boa imagem do país no exterior26 26 De acordo com Santos (2010), tanto a Sociedade Central de Imigração, fundada em 1883, quanto a Sociedade Promotora de Imigração, criada em 1886, buscavam melhorar a imagem do país no exterior para estimular a vinda de imigrantes. . Aos fazendeiros recaía a responsabilidade de garantir a produção e, ao estado, a incumbência de auxiliar nas demais operações, inclusive na ampliação da oferta de mão de obra para a agricultura.

As políticas de imigração empregadas pelos governantes de São Paulo com as passagens subvencionadas, no entanto, só surtiriam efeito se fossem sanadas as epidemias e endemias, como a febre amarela e a varíola, que ameaçavam a situação sanitária do estado desde meados do século XIX. Os governantes tinham consciência de que essas enfermidades e outras, como a peste e a tuberculose, “inibiam a chegada de novos contingentes de imigrantes, afugentando igualmente os negociantes que buscavam estabelecer elos econômicos com o país” (BERTOLLI FILHO, 2001BERTOLLI FILHO, Claudio. História Social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001., p. 61). Assim, como indica Blount (1972, p. 46), a “região tinha que ser saudável para atrair colonos e mantê-los sadios”27 27 Blount (1972) destaca que as medidas sanitárias tinham como objetivo eliminar a ameaça de doenças transmissíveis, melhorar o desempenho do trabalhador e transformar São Paulo em um local com boas condições de salubridade. O autor sublinha que “para o orgulho paulista e, possivelmente, para o campo de investimentos estrangeiros, esses fatos tiveram relevante importância” (BLOUNT, 1972, p. 46). .

Embora houvesse algumas medidas para melhorar o saneamento e extinguir epidemias, elas não foram suficientes para impedir as constantes queixas dos órgãos internacionais sobre as condições insalubres do território brasileiro (RIBEIRO, 1993RIBEIRO, Maria Alice. História sem fim: um inventario da saúde pública, São Paulo, 1880-1930. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993., p. 182). São Paulo, que já havia sofrido diversas críticas em razão da epidemia da febre amarela no final do século XIX (GAMBETA, 1988GAMBETA, Wilson Roberto. Soldados da saúde: a formação dos serviços de saúde pública em São Paulo (1889-1918). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1988., p. 28), voltou a chamar a atenção da comunidade exterior no início do século XX, agora em decorrência do tracoma.

O acentuado número de enfermos, em conjunto com as notícias veiculadas internacionalmente sobre estado sanitário de São Paulo, fizeram com que o importante médico sanitarista Carlos Seidl, em pronunciamento na Academia Nacional de Medicina, mostrasse sua indignação ao Ministro da Agricultura, informando que “houve quem ousasse apelidar, em documento impresso em nação estrangeira, a bela terra paulista de - país do trachoma!”.28 28 SEIDL, Carlos. A doença de Chagas. Diário de Pernambuco, Recife, p. 1, 16 ago. 1911.

Seidl estava referindo-se às notícias como as que foram publicadas na comunidade internacional pelos médicos italianos Ernesto Paparcone e Alberto Benedetti e pela “Organizacion Panamericana de La Salud”, que apontaram o estado paulista como uma localidade com alto índice de periculosidade, estando ao lado de países como a Argentina, Índia, Itália e Egito.29 29 IL “TRACOMA” nelle Fazendas - L’opera benemerita del prof. Cav. Alberto Benedetti, L´Emigrato Italiano in America, ano V, p. 88, mar. 1911; PAPARCONE, Ernesto. Il Tracoma e sue complicazioni. Soceitá Editrice Libraria. Milano Via Ausonio, v. 16, n. 22, 1922; TRACOMA, Organizacion Panamericana de la Salud. Boletin de la Oficina Panamericana, v. 7 n. 7, p. 839, jul. 1928.

Notícias veiculadas na imprensa carioca demonstram a representatividade das terras paulistas e brasileiras nos relatos de viagens internacionais. O Jornal do Commercio de janeiro de 1913 destacou trechos do livro da escritora italiana Cesarina Lupati, em que descreveu sua viagem de volta para a terra natal depois de morar na Argentina por dois anos:

não tocamos nos portos do Brasil, portanto não podemos estar infeccionados. Agora é só o Brasil que tem o privilégio das doenças infectivas. O navio, não tocando em Santos, não tinha embarcado os que repatriariam do Brasil, a triste e costumada bagagem de enfermidades e de sofrimentos que os navios italianos carregavam, ali, na torcida e melancólica terra do café. Não se viam a bordo homens curvos pelas fadigas suportadas debaixo da inclemência do sol, as faces emagrecidas com a epiderme manchada pela febre e com os olhos em chagas, pelo tracoma, as pobres criaturas do nosso sangue, que o exilio reduz à escravidão nas fazendas brasileiras.30 30 PICCAROLO, Antonio. Publicações a pedido: interesses italianos no Brasil partes VII e VIII. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 8, 24 jan. 1913.

Com essas declarações, e unidas às denúncias de maus tratos, os consulares de países que aceitavam a política imigratória de São Paulo retiraram o seu apoio e proibiram as iniciativas de passagens pagas como elemento motivador para a imigração. As suspensões vieram ainda em 1902 pela Itália através do Decreto Prinetti. Com inúmeras queixas na imprensa italiana e brasileira sobre as situações precárias do colono em São Paulo, o governo italiano decidiu enviar Aldo Rossi com a incumbência de confirmar as insatisfatórias condições de moradia e trabalho. Em seu retorno, em julho de 1902, o comissariado escreveu um relatório acusando que as mulheres e homens sofriam com violências e situações econômicas precárias e doenças, inclusive com o tracoma.31 31 ROSSI, Adolpho. Bollettino Dell´Emigrazione. Ministero Degli Affari Esteri. Roma. Tipografia Nazionale Di G. Bertero F. C. ano 1902, n. 7, p. 35, 1902.

Quatro anos mais tarde, em 1906, o vice-cônsul italiano imprimiu suas observações sobre seus conterrâneos em terras paulistas chamando a atenção para o completo abandono dos colonos nas fazendas que não possuíam assistência médica, mestres-escolas e padres, além da disseminação do tracoma e a ausência de um projeto governamental mais eficaz para controlar a endemia. Queixas sobre o tracoma também foram relatadas pelo Comissário Geral da Emigração Italiana, L. Renaudi, que observou que a doença piorava as condições gerais dos trabalhadores rurais que, sem um atendimento médico eficiente, pediam repatriamento ou ficavam à deriva, pedindo esmolas pelas estradas em um avançado estado de debilidade visual (RIBEIRO, 1993REBELO, Fernanda. Entre o Carlo R. e o Orleannais: a saúde pública e a profilaxia marítima no relato de dois casos de navios de imigrantes no porto do Rio de Janeiro, 1893-1907. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 765-796, jul.-set. 2013.).

O tracoma, que colaborou com a decisão do governo da Itália em desestimular a vinda dos italianos para o Brasil, também afetou as relações com a Espanha. O país espanhol figurou como um dos mais importantes países imigrantistas no início do século XX, superando a imigração italiana em São Paulo em alguns períodos. De acordo com Martins (1989), entre os anos de 1905 a 1920 entraram no estado mais imigrantes espanhóis que italianos, favorecidos pelo deslocamento das atenções governamentais brasileiras para a Espanha após o Decreto Prinett e pela opção dos italianos pela reemigração para a Argentina, Uruguai ou repatriação.

As insatisfações do governo espanhol com seus conterrâneos em terras paulistas foram as mesmas declaradas pela Itália. Em menção enviada ao governo brasileiro em 1910, o conselheiro Fernando Merino destacou a situação precária dos espanhóis que viviam em São Paulo, principalmente em decorrência de diversas enfermidades como o tracoma e da falta de assistência médica. Essas denúncias desencadearam a desestimulação da imigração espanhola para o Brasil nos anos seguintes (MARTINS, 1989MARTINS, José de Souza. A imigração espanhola para o Brasil e a formação da força-de-trabalho na economia cafeeira: 1880-1930. R. História, São Paulo, n. 121, p. 5-26, ago./dez. 1989.). Destacando o tracoma, o conselheiro alegou:

O Conselho Superior de Emigração, em sua primeira sessão, acordou por unanimidade propor ao Governo que com toda urgência disponha a proibição temporal da imigração ao Brasil com passagem gratuita, fundamentando-se para isso em razões cuja gravidade é manifesta.

Os informes oficiais demonstram sem dar lugar à dúvida, que a situação dos imigrantes espanhóis no Brasil é verdadeiramente lastimosa. As condições do clima fazem vítimas de enfermidades, como as pulmonares, a ancilostomíase e o terrível tracoma, enfermidade que se são de difícil cura em todos os casos, são muito mais quando aqueles que se padecem ou não tem assistência médica ou não podem cumprir as prescrições facultativas, por exigir-lhes gastos muito superiores aos recursos econômicos de que dispõe, pois segundo as notícias referidas, a visita de um médico em muitas habitações do Brasil não custa menos que 100 ou 120 pesetas, e quando ocorre muitas vezes, o doente não pode se tratar onde se oferecem os serviços, pela grande distância que tem que percorrer.32 32 MERINO, Fernando. Relatório do Ministério das Relações Exteriores. Hespanha, immigração hespanhola, n. 1, Exposición: Ministerio de la Gobernación. Madri, 25 ago.1910. In: Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, compreendendo o período decorrido de 1º jan. a 30 abr. 1912. Rio de Janeiro, 1912. O tracoma já era conhecido no país espanhol desde o fim do século XIX, possuindo um coeficiente de cerca de 240 por mil habitantes nas regiões da Valência, Barcelona e Valladolid (RUDGE, 1924). Mesmo tendo a consciência da gravidade da enfermidade, como apontado no relatório pelo Conselho Superior de Emigração, as ações profiláticas na Espanha demoraram a serem aplicadas em comparação a outros países, inclusive ao estado de São Paulo (LODOLA; CAMPOS, 2018). A doença foi declarada oficialmente no país somente em 1919 e os números de enfermos publicados pelo governo datam de 1925, com mais de 45 mil espanhóis tracomatosos (BERNABEU-MESTRE et al. 2013).

O tracoma não só afetou os negócios provenientes do setor agroexportador com a proibição da mão de obra para o estado de São Paulo, mas também contribuiu para que agenciadores de imigrantes de outros países usassem a situação insalubre paulista para aliciarem trabalhadores que se destinavam ao Brasil, conforme veremos na sessão seguinte.

A Argentina e os imigrantes do Brasil

Em 1906, um intenso fluxo de passageiros que saíam de São Paulo com destino a ­Argentina fez chamar a atenção de um representante do jornal Commercio de S. Paulo, que publicou:

Ultimamente este êxodo tem assumido proporções extraordinárias, tais são elas, que as companhias de navegação não podem satisfazer todos os pedidos de passagens, estando as hospedarias desta capital e as de Santos atulhadas de passageiros esperando a sua vez de embarque para a Republica do Prata.

A cada embarque contam-se por centenas e mais de mil passageiros, repetindo-se o estranho fato a cada vapor que segue rumo ao sul.33 33 A RE-IMMIGRAÇÃO. Commercio de São Paulo, 24 nov. 1906, p. 1.

Buscando encontrar uma justificativa, os representantes do jornal levantaram a hipótese de que os deslocamentos dos imigrantes para a Argentina foram acarretados por propagandas desmerecendo as terras paulistas.

[...] Diz-se que a causa é devida à propaganda ativa que, neste sentido, faz a Republica Argentina em seu favor e especialmente contra nós, chegando ao ponto inacreditável de enviar para aqui agentes, que desempenham o seu mandato, aliás, com o melhor êxito.

Que os argentinos desenvolvam a propaganda em favor do povoamento do seu território e o façam com grande eficácia [...]. Mas que tenham a incrível ousadia de virem entre nós mesmos, à socapa, à traição, à falsa, tramar contra os nossos interesses, prejudicar-nos, roubar o fruto do nosso trabalho e do nosso dinheiro para conseguir imigração, é ato de tamanha gravidade [...].34 34 Idem.

A movimentação entre os países vizinhos da América do Sul era comum nos períodos de entressafras agrícolas e eram intensificadas com as atuações dos “agentes de imigração” que promoviam propagandas com promessas de melhores condições de trabalho. A balança entre os que entraram e os que saíram do Brasil nos mostra o dinamismo desse processo e a dificuldade de fixar os viajantes no país. Martins (1989) apresenta que entre os anos de 1908 e 1926 mais de 38 mil espanhóis e 33 mil italianos entraram no Brasil vindos da Argentina e que mais de 43 mil espanhóis e 43 mil italianos deixaram os portos de Santos com destino à Argentina e ao Uruguai.

O que chamou a atenção do jornal Commercio de S. Paulo na citação acima foi a estratégia propagandista da Argentina que conseguia atrair imigrantes de vários países da Europa e desenvolver uma ação efetiva para receber imigrantes também de países limítrofes como o Chile, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Brasil.35 35 MINISTERIO DEL INTERIOR. Inmigracion Limitrofe en Argentina. Museo de la Inmigración, 2017. Para conseguirem um maior número de interessados para o país, os agentes argentinos desenvolviam algumas iniciativas que iam desde a promoção da Argentina com promessas de terra e trabalho até a utilização de propagandas negativas dos países que concorriam pelos mesmos trabalhadores.

Um conjunto de textos publicado no jornal O Estado de S. Paulo e posteriormente publicado no O Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, nos ajuda a entender como estava representada a imagem do Brasil na Itália e qual o papel da Argentina no processo de desestímulo ao ingresso e permanência dos italianos em terras brasileiras.

Destacamos para essa análise os artigos assinados pelo italiano Antonio Picarollo, colaborador do jornal O Estado de S. Paulo e diretor do periódico Avanti!. A série de artigos publicados no Jornal do Commercio tinha o objetivo de descrever a relação da imigração italiana com o Brasil. Nas partes VII e VIII de uma sequência de oito textos publicados em janeiro de 1913, o jornalista apontou que, mesmo tendo uma grande massa de imigrantes dirigindo-se a São Paulo, havia entre os italianos uma grande rejeição ao Brasil. Sob o título “O estado de ânimo na Itália em relação ao Brasil” (parte VII), Piccarollo buscou entender os motivos que levaram a opinião pública italiana a criar essa ideia contrária ao Brasil e, em particular a São Paulo. Sua análise levou-o a associar dois fatores: o Decreto Prinetti de 1902 e as ações difamatórias da Argentina.

Analisando as repercussões do Decreto Prinetti, o jornalista descreveu:

Para a grande maioria do público [italiano], a América é.... a América: Brasil, Argentina, Peru etc. são todos um ‘grande país’ que se chama América, e já é muito quando se faz distinção entre norte e sul. Acontece muitas vezes, mesmo entre gente sabida, encontrar-se quem não distingue o Brasil da Argentina, julgando-os um só país.

[...] Até 1902 ninguém se preocupou na Itália com o que os emigrantes viessem fazer no Brasil, nem com as condições em que eles aqui se achassem. Partiam como manadas de gado, maltrapilhos, descalços, e os que ficavam, vendo diminuir o número das bocas concorrentes, davam suspiros de alivio; tanto mais porque da América, de tempos em tempos, chegavam as economias ali feitas.

Foi somente por esse tempo, em seguida ao relatório Rossi, que provocou o decreto Prinetti, que se começou a falar no Brasil, e naturalmente sob a impressão do relatório e do decreto, os comentários eram tudo, menos que favoráveis a este país.36 36 PICCAROLO, Antonio. Publicações a pedido: interesses italianos no Brasil partes VII e VIII. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 8, 24 jan. 1913.

Na parte seguinte do artigo (parte VIII), publicado na mesma data, Piccarolo abordou a “Influência extraordinária”, em que aponta as ações da Argentina nesse processo de descrédito ao país. Nas palavras do jornalista:

Embora algumas pessoas o queiram negar, não há dúvidas que, para formar o atual estado de animo existente na Itália, desfavorável ao Brasil, também concorreu uma ação estrangeira habilmente dirigida, sobretudo a ação da Argentina, direta e profundamente interessada em desencaminhar a emigração do Brasil, o grande, temido concorrente que lhe está disputando a hegemonia da América do Sul.37 37 Idem.

Piccarolo explica que, utilizando-se de um jornal publicado na Itália, a Argentina conseguia difamar o Brasil com a publicação de casos de atos bárbaros e atrocidades contra os italianos que, de acordo com o jornalista, nem sempre eram confirmadas. Com uma onda de notícias, muitas das quais exageradas, criou-se a convicção entre os italianos de que “o Brasil é realmente uma região infernal, onde o imigrante não pode contar com nenhuma garantia, para onde... é preciso não ir”.38 38 Idem. Na Argentina, diz Piccarolo, existe uma “tendência a dizer mal do Brasil” que se manifesta nas pessoas, na literatura e nos jornais.

O uso de periódicos para fazer a propaganda negativa do Brasil também foi apontado pelo jornal Correio Paulistano, que confirmou serem os “jornais italianos que se imprimem na República Argentina, os que fecundam a campanha contra a emigração para o Brasil”.39 39 BRAGA, Gomes. Do meu canto. Correio Paulistano, São Paulo, 31 mar. 1914, p. 1. Dentre as difamações, estavam as relacionadas com as questões sanitárias, como as publicadas pela Gazzeta d´Italia que denunciaram que a assistência pública paulista não auxiliava nas enfermidades como a malária, a ancilostomose e, em grande parte, o tracoma.

Os ataques argentinos foram frequentes, como foi possível observar pelo jornal O Commercio de São Paulo de 24 de novembro de 1906. Em uma das reportagens, os representantes da imigração, ao abordarem a questão da reimigração, se queixaram das constantes interferências feitas pela Argentina, que usava a situação sanitária do estado de São Paulo para difamar a região. Conscientes de que havia um esforço governamental para controlar as epidemias, os representantes afirmaram: “Dir-se-ia que o nosso Estado é vitima de alguma epidemia assoladora [...] ora, sabemos que as nossas condições de salubridade são ótimas, com exceção do tracoma [...]”.40 40 A RE-IMMIGRAÇÃO. Commercio de São Paulo, 24 nov. 1906, p. 1.

Além das notícias negativas sobre o estado sanitário paulista, a Argentina buscou criar medidas que restringiam a circulação de viajantes que embarcavam no porto de Santos com destino aos seus portos. Alegando desenvolver uma ação protecionista, o médico argentino Wernicke, em 1901, no “Segundo Congresso Scientifico Latino Americano” em Montevideu, exigiu do seu governo que os imigrantes embarcados nos portos brasileiros fossem separados dos demais com fins de vistoria para identificação do tracoma e quarentena.41 41 BRITO, Vitor, I. R. Brazil Medico, Rio de Janeiro, ano XIX, n. 33, p. 311, 1 set. 1905.

A prática das vistorias portuárias na América do Sul, em especial no Brasil, iniciou-se em meados do século XIX quando ocorreram as epidemias de febre amarela, cólera e peste em diversos países continentais e transcontinentais. Na década de 1880, com a epidemia de cólera, o Brasil intensificou as medidas protetivas e implementou sua defesa sanitária através da imposição de quarentenas e cordões sanitários com aparato militar para garantir o não desembarque de enfermos. Com receio do ingresso de doenças no país, o governo imperial brasileiro ampliou sua normativa proibindo não somente o ingresso de viajantes, mas também a entrada de mercadorias vindas de portos infectados. Essas restrições mais impositivas ocasionaram enormes prejuízos à Argentina e ao Uruguai, pois foram impedidos de entregar o seu maior produto exportador para o seu melhor mercado consumidor. Esse desgaste ocasionou na assinatura em 1887 de uma Convenção Sanitária que dava flexibilidade aos processos comerciais (CHAVES, 2008CHAVES, Cleide de Lima. “Pesquisadores de uma verdade experimental ainda não comprovada”: a ciência médica na Convenção Sanitária Internacional de 1887 entre Brasil, Uruguai e Argentina. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 122-136, jul.-dez. 2008.; REBELO, 2013REBELO, Fernanda. Entre o Carlo R. e o Orleannais: a saúde pública e a profilaxia marítima no relato de dois casos de navios de imigrantes no porto do Rio de Janeiro, 1893-1907. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 765-796, jul.-set. 2013.).

Apesar da reformulação das práticas portuárias no final da década de 1880 seguindo um padrão internacional, as medidas protecionistas implantadas entre a Argentina, Brasil e Uruguai, não impediram que ocorressem estranhamentos entre essas nações. Com as declarações do médico argentino Wernicke, o médico brasileiro Melo Barreto recorreu às páginas do jornal Correio da Manhã do Rio de Janeiro e levou a público que na Argentina “se pensa em receber pavilhões especiais e separados os emigrantes que saem de S. Paulo para ali, medida essa que tem por fim impedir o contagio e a propagação do tracoma”.42 42 J.C. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 out. 1906, p. 3.

Através das publicações na revista Memória, periódico argentino estudado por Di Liscia e Marrón (2009), as notícias que chegavam de São Paulo expressavam uma região tomada por fazendas com pequenos centros urbanos onde havia uma intensa produção cafeicultora ao lado de centenas de tracomatosos vendados, acamados e quase cegos. Para o médico argentino Otto Wernicke, o maior perigo estava entre os italianos que ingressavam na Argentina tomados pelo tracoma depois de passarem pelo Brasil (DI LISCIA; MARRÓN, 2009DI LISCIA, María Silvia; MARRÓN, Melisa Fernández. Sin puerto para el sueño americano. Políticas de exclusión, inmigración y tracoma en Argentina (1908-1930). Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], débats, mis en ligne le 29 novembre 2009.2009 Disponível em : Disponível em : http://nuevomundo.revues.org/57786 . Acesso em: 1º dez. 2017.
http://nuevomundo.revues.org/57786...
).

Buscando defender o estado de São Paulo dos ataques sofridos internacionalmente em decorrência do tracoma, Gomes Braga, colaborador do jornal Correio Paulistano, publicou:

Para um certo número de doenças especiais, como o tracoma, difundiu o governo, pelo interior do estado, diversos postos de tratamento [...] não hesitando os poderes públicos diante dos encargos necessários para restituir as localidades atacadas [...]. E é a um estado que assim procede, que certos jornais italianos acusam de descurar, quase por completo, a assistência sanitária!... Quantos países europeus, ainda dos mais cultos e adiantados, terão razão de invejar a excelência da nossa organização sanitária?43 43 BRAGA, Gomes. Do meu canto. Correio Paulistano, São Paulo, 31 mar. 1914, p. 1.

Nos discursos desenvolvidos por Braga e Barreto, os atores mostram-se incomodados, pois nos ataques sofridos havia uma intenção de induzir o público a acreditar que a Argentina era um local imune ao tracoma. Essa situação sanitária salubre, entretanto, não condizia com a realidade argentina daquele período, pois o país, assim como o Brasil, também recebeu intensa entrada de imigrantes europeus e não ficou ilesa ao tracoma. Di Liscia (2010) assinala que, apesar da doença ser oficialmente identificada em 1903, o tracoma ingressou no país em finais do século XIX, proveniente da imigração europeia. Sua disseminação abrangeu todo o litoral e interior, tendo forte incidência no norte do país onde foi identificada, em meados da década de 1910, uma prevalência de 43,9% em escolares.

Considerações finais

As repercussões internacionais da endemia do tracoma no Brasil, em especial em São Paulo, nos revelaram que a doença, pouco estudada pelos pesquisadores brasileiros, provocou fissuras nas relações com a Itália, Espanha e Argentina, países com grande influência nas questões econômicas do estado paulista.

Mesmo que o governo estadual buscasse caminhar lado a lado com países que sofreram com a oftalmia no início do século XX, as medidas profiláticas adotadas não surtiram os efeitos necessários para controlar uma endemia que se alastrou pelo estado até as últimas décadas do século XX (LUNA, 1993LUNA, Expedito J. A epidemiologia do tracoma no Estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Médicas) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 1993.).

Como a doença instalou-se nas zonas rurais, afetando principalmente a força de trabalho imigrante, os consulados estrangeiros reagiram pedindo intervenção aos seus governos com a proibição da vinda dos seus conterrâneos com passagens subvencionadas. Os argumentos recaíram na incapacidade da visão provocada pela conjuntivite e a preocupação da ausência de uma estrutura de tratamentos que suportasse trocas diárias de curativos. Ao estado sobrou discursos e algumas campanhas para amenizar a situação que se agravou ao adentrar pelo século.

Chamamos a atenção para as datas das atuações profiláticas governamentais e os períodos de maior pressão exercidas pela comunidade internacional. O processo da vistoria portuária em 1904, por exemplo, que era realizada somente nos imigrantes subvencionados, nos fez refletir se os interesses governamentais estavam voltados para a barreira sanitária ou recaía nos assuntos relacionados à imigração e, consequentemente, à economia do estado.

Em 1906, o Consulado italiano passou a promover duras críticas ao estado de São Paulo em decorrência da oftalmia. No mesmo ano, foi criado o primeiro Serviço de Profilaxia e Tratamento do Tracoma. Depois de quase dois anos de duração, o serviço foi encerrado com a justificativa de falta de verba para manter a estrutura criada.

Em 1911, um pouco depois que o Conselho da Imigração Espanhola recomendou a proibição dos seus conterrâneos ao Brasil, uma segunda campanha foi criada. Essa segunda inciativa durou pouco tempo, sendo encerrada em 1914 com o mesmo argumento de falta de recursos, desta vez em decorrência da Primeira Guerra Mundial.

As atuações da Argentina também devem ser destacadas. O uso de propagandas enfatizando a precariedade da saúde pública em São Paulo em decorrência do tracoma teve grande visibilidade da imprensa diária, provocando reações entre governantes e na comunidade científica que tentavam contra-argumentar demonstrando os esforços governamentais para combater a endemia.

A demora governamental para criar medidas profiláticas contra o tracoma iniciadas somente em 1904 e as instabilidades de suas atuações com campanhas de durações efêmeras e sem resultados efetivos para eliminar a endemia nos demonstram que havia interesses que se sobrepunham às preocupações com a saúde da população. No texto de Lodola e Campos (2018LODOLA, Soraya; CAMPOS, Cristina. “Era urgente e indispensável agir”: o tracoma em São Paulo no início do século XX. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, p. 2-21, 2018.), os problemas da baixa produtividade do trabalhador tracomatoso foram apontados quando as autoras analisaram a implantação do primeiro Serviço de Combate e Profilaxia do Tracoma em 1906. Neste artigo, ao colocarmos no centro do debate as pressões exercidas pela comunidade internacional com a quebra dos acordos migratórios com a Itália e a Espanha e as fissuras ocorridas nas relações com a Argentina, identificamos que as questões econômicas/migratórias estavam fortemente alicerceadas entre os fatores que definiram as estratégias da política sanitária do período.

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    » https://www.who.int/health-topics/trachoma#tab=tab_1
  • 1
    O tracoma é uma doença bacteriana com transmissão direta por meio do contato com os enfermos, ou de forma indireta, por objetos contaminados como lençóis, toalhas, roupas, ou por vetores mecânicos, como as moscas. Apesar de 25% dos casos de tracoma serem assintomáticos, a maioria apresenta lacrimejamento, sensação de corpo estranho, fotofobia e pouca secreção purulenta. Com constantes reinfecções, os cílios envergam-se para a parte interna dos olhos, passando a raspar a córnea e provocando lesões no globo ocular. Neste quadro clínico, se não houver intervenção cirúrgica, o enfermo pode ter a visão comprometida chegando à cegueira (CVE, 2016).
  • 2
    OTTONI, David. Clinica Ophtalmologica - Conjunctivite granulosa. Brazil - Medico: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, ano XII, n. 41, p. 362-365, 1898; TRACOMA, Organizacion Panamericana de la Salud. Boletin de la Oficina Panamericana, v. 7 n. 7, p. 839, jul. 1928; PAPARCONE, Ernesto. Il Tracoma e sue complicazioni. Soceitá Editrice Libraria. Milano Via Ausonio, v. 16, n. 22, 1922.
  • 3
    BURNIER, Penido. O tracoma no Brasil: sua origem e difusão. Arquivos do Instituto Penido Burnier. v. 1, fascículo 1, p. 62-72, mar. 1932.
  • 4
    OTTONI, David. Clinica Ophtalmologica - Conjunctivite granulosa. Brazil - Medico: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, ano XII, n. 41, p. 362-365, 1898.
  • 5
    É possível identificar um processo endêmico quando ocorre o afastamento temporal dos primeiros casos e pode-se constatar que a doença prevalece/prevaleceu por décadas. O tracoma foi endêmico em São Paulo até a década de 1990 (LUNA, 1993). No entanto, em alguns momentos do artigo, quando as fontes documentais tomam voz, usamos o termo “epidemia” pois, no período vivenciado, os atores não sabiam se o tracoma permaneceria por muito tempo.
  • 6
    BURNIER, Penido. O tracoma no Brasil: sua origem e difusão. Arquivos do Instituto Penido Burnier. v. 1, fascículo 1, p. 62-72, mar. 1932.
  • 7
    OTTONI, David. Clinica Ophtalmologica - Conjunctivite granulosa. Brazil - Medico: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, ano XII, n. 41, p. 362-365, 1898; BURNIER, Penido. O tracoma no Brasil: sua origem e difusão. Arquivos do Instituto Penido Burnier. v. 1, fascículo 1, p. 62-72, mar. 1932.
  • 8
    SÃO PAULO - ESTADO. Relatório da Secretaria do Interior, annos de 1907 e 1908. São Paulo: Duprat & Comp. 1908.
  • 9
    BARRETO, M. O trachoma. O Estado de S. Paulo, 22 ago. 1903, p. 4.
  • 10
    Para o governo da Itália, criar políticas emigratórias era a solução para amenizar a crise acarretada pelas lutas pela unificação, saturação demográfica e problemas econômicos. O governo italiano entendia que a emigração possibilitaria aos que ficassem na Itália terem melhores condições de vida, ao mesmo tempo em que teriam maior estabilidade política, uma vez que os responsáveis pelas organizações de protestos e greves também entrariam no processo emigratório (CENNI, 2011).
  • 11
    PAPARCONE, Ernesto. Il Tracoma e sue complicazioni. Soceitá Editrice Libraria. Milano Via Ausonio, v. 16, n. 22, 1922. No relatório de 1907 da Secretaria do Estado dos Negócios do Interior de São Paulo, o Secretário Gustavo de Oliveira Godoy afirmou que “não havia tracoma antes da grande imigração europeia de 1887, quando chegaram os imigrantes da Itália, nação que há mais de 40 anos sofria com os percalços da enfermidade” (SÃO PAULO - ESTADO, 1908).
  • 12
    OTTONI, David. Clinica Ophtalmologica - Conjunctivite granulosa. Brazil - Medico: Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, ano XII, n. 41, p. 11, 1898.
  • 13
    MATTOSO, Eusebio de Queiroz. O Trachoma. O Estado de S. Paulo, 21 ago. 1903, p. 2.
  • 14
    CARRUTH. Frances Weston. A Unique Municipal Crusade. The North American Review, Published by University of Northern Iowa, v. 177, n. 564, p. 766-774, nov. 1903; POWDERLY, T. V. Immigration’s menace to the national health. The North American Review, University of Northern Iowa, v. 175, n. 548, p. 53-69, jul. 1902.
  • 15
    O tracoma fazia parte da lista de enfermidades mais indesejadas, inserindo-a na “Classe A” junto com a tuberculose, as doenças sexualmente transmissíveis e os transtornos.
  • 16
    Nas duas décadas seguintes os EUA implantaram uma rede de hospitais e clinicas permanentes para tratar o tracoma, além de criar escolas para receberem crianças tracomatosas (ALLEN; SEMBA, 2002; LODOLA; CAMPOS, 2018). Como a doença tem uma relação direta com as condições socioeconômicas, em 2016 a endemia do tracoma era ainda muito presente na maioria dos países da África, em algumas regiões da Ásia e em países da América Latina como no Brasil e México (WHO, 2020).
  • 17
    OS ESTADOS. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 fev. 1905; SÃO PAULO - ESTADO. Decreto n. 1.255, de 17 de dezembro de 1904. Fixa o número de imigrantes a introduzir em 1905 nesse estado.
  • 18
    NOTAS e Informações. O Commercio de São Paulo, São Paulo, 23 fev. 1905, p. 1.
  • 19
    SÃO PAULO - ESTADO. Decreto n. 1.395, de 3 de setembro de 1906. Cria, na Diretoria do Serviço Sanitário, o serviço de profilaxia e tratamento do “Tracoma”.
  • 20
    Na Alemanha foram implantados postos que visavam a promover os atendimentos nas regiões mais flageladas pela doença (Revista Médica, 1907, p. 356).
  • 21
    A profilaxia intensiva do tracoma no Egito, apesar da grande incidência da doença desde o século XVIII, iniciou-se em 1902 quando o filantropo Sir Ernest Cassel financiou um Hospital Oftalmológico Itinerante (Travelling Ophthalmic Hospitals - TOHs) que deveria seguir os moldes dos TOH da Rússia e Hungria, instando-se de forma temporária em diversas regiões (MACCALLAN, 2015; CACCAMISE, 2017).
  • 22
    As clínicas de combate ao tracoma norte-americanas funcionavam em pontos fixos e atendiam populações distantes através de enfermeiras (ALLEN; SEMBA, 2002).
  • 23
    SÃO PAULO - ESTADO. Relatório da Secretaria do Interior, anno de 1906. São Paulo: Typographia do Estado de S. Paulo, 1907; SÃO PAULO - ESTADO. Relatório da Secretaria do Interior, annos de 1907 e 1908. São Paulo: Duprat & Comp., 1908.
  • 24
    SÃO PAULO - ESTADO. Relatório da Secretaria do Interior, annos de 1907 e 1908. São Paulo: Duprat & Comp., 1908.
  • 25
    SÃO PAULO - ESTADO. Decreto n. 2.141 de 14 de novembro de 1911. Reorganiza o Serviço Sanitário.
  • 26
    De acordo com Santos (2010), tanto a Sociedade Central de Imigração, fundada em 1883, quanto a Sociedade Promotora de Imigração, criada em 1886, buscavam melhorar a imagem do país no exterior para estimular a vinda de imigrantes.
  • 27
    Blount (1972) destaca que as medidas sanitárias tinham como objetivo eliminar a ameaça de doenças transmissíveis, melhorar o desempenho do trabalhador e transformar São Paulo em um local com boas condições de salubridade. O autor sublinha que “para o orgulho paulista e, possivelmente, para o campo de investimentos estrangeiros, esses fatos tiveram relevante importância” (BLOUNT, 1972, p. 46).
  • 28
    SEIDL, Carlos. A doença de Chagas. Diário de Pernambuco, Recife, p. 1, 16 ago. 1911.
  • 29
    IL “TRACOMA” nelle Fazendas - L’opera benemerita del prof. Cav. Alberto Benedetti, L´Emigrato Italiano in America, ano V, p. 88, mar. 1911; PAPARCONE, Ernesto. Il Tracoma e sue complicazioni. Soceitá Editrice Libraria. Milano Via Ausonio, v. 16, n. 22, 1922; TRACOMA, Organizacion Panamericana de la Salud. Boletin de la Oficina Panamericana, v. 7 n. 7, p. 839, jul. 1928.
  • 30
    PICCAROLO, Antonio. Publicações a pedido: interesses italianos no Brasil partes VII e VIII. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 8, 24 jan. 1913.
  • 31
    ROSSI, Adolpho. Bollettino Dell´Emigrazione. Ministero Degli Affari Esteri. Roma. Tipografia Nazionale Di G. Bertero F. C. ano 1902, n. 7, p. 35, 1902.
  • 32
    MERINO, Fernando. Relatório do Ministério das Relações Exteriores. Hespanha, immigração hespanhola, n. 1, Exposición: Ministerio de la Gobernación. Madri, 25 ago.1910. In: Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, compreendendo o período decorrido de 1º jan. a 30 abr. 1912. Rio de Janeiro, 1912. O tracoma já era conhecido no país espanhol desde o fim do século XIX, possuindo um coeficiente de cerca de 240 por mil habitantes nas regiões da Valência, Barcelona e Valladolid (RUDGE, 1924). Mesmo tendo a consciência da gravidade da enfermidade, como apontado no relatório pelo Conselho Superior de Emigração, as ações profiláticas na Espanha demoraram a serem aplicadas em comparação a outros países, inclusive ao estado de São Paulo (LODOLA; CAMPOS, 2018). A doença foi declarada oficialmente no país somente em 1919 e os números de enfermos publicados pelo governo datam de 1925, com mais de 45 mil espanhóis tracomatosos (BERNABEU-MESTRE et al. 2013).
  • 33
    A RE-IMMIGRAÇÃO. Commercio de São Paulo, 24 nov. 1906, p. 1.
  • 34
    Idem.
  • 35
    MINISTERIO DEL INTERIOR. Inmigracion Limitrofe en Argentina. Museo de la Inmigración, 2017.
  • 36
    PICCAROLO, Antonio. Publicações a pedido: interesses italianos no Brasil partes VII e VIII. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 8, 24 jan. 1913.
  • 37
    Idem.
  • 38
    Idem.
  • 39
    BRAGA, Gomes. Do meu canto. Correio Paulistano, São Paulo, 31 mar. 1914, p. 1.
  • 40
    A RE-IMMIGRAÇÃO. Commercio de São Paulo, 24 nov. 1906, p. 1.
  • 41
    BRITO, Vitor, I. R. Brazil Medico, Rio de Janeiro, ano XIX, n. 33, p. 311, 1 set. 1905.
  • 42
    J.C. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 out. 1906, p. 3.
  • 43
    BRAGA, Gomes. Do meu canto. Correio Paulistano, São Paulo, 31 mar. 1914, p. 1.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2021
  • Aceito
    15 Set 2021
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