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A formação histórica do método de análise fílmica em Jean-Claude Bernardet

The historical formation of the film analysis method in Jean-Claude Bernardet

La formación histórica del método de análisis fílmico en Jean-Claude Bernardet

RESUMO

O objetivo do artigo é investigar a formação histórica do método de análise fílmica em Jean-Claude Bernardet a partir de dois livros fundamentais que perfazem um corpus escrito ao longo de 20 anos: Brasil em tempo de cinema (1967) e Trajetória crítica (1978). Aqui partimos da hipótese de que a leitura cerrada desses livros permite compreender a formação do método crítico em Bernardet, que passa da análise de autor ao paradigma da conscientização até alcançar a ambição pós-estruturalista de um exame de como as lutas de classes operam na própria forma fílmica. Argumentaremos que esse movimento não deve ser visto como mera fuga para frente, mas sim como superação reflexiva. Para compreendê-lo nos valemos de alguns postulados da dialética, tais como propostos pela tradição materialista. Assim, foi preciso relacionar a análise interna dos textos à totalidade social, no que, aliás, seguimos nosso autor.

Palavras-chave:
Jean-Claude Bernardet; crítica de cinema; análise fílmica; cinema; história intelectual

ABSTRACT

The aim of the article is to investigate the historical formation of the method of film analysis in Jean-Claude Bernardet based on two fundamental books that make up a corpus written over 20 years: Brasil em tempo de cinema (1967) and Trajetória crítica (1978). Here we start from the hypothesis that the close reading of these books allows us to understand the formation of the critical method in Bernardet, which passes from the author analysis to the paradigm of conscientization until reaching the post-structuralist ambition of an examination of how class struggles operate in the form filmic. We will argue that this movement should not be seen as a mere escape forward, but as a reflexive overcoming. To understand it, we make use of some postulates of dialectics, such as those proposed by the materialist tradition. Thus, it was necessary to relate the internal analysis of the texts to the social totality, in which, by the way, we follow our author.

Keywords:
Jean-Claude Bernardet; film criticism; film analysis; cinema; intellectual history

RESUMEN

El objetivo del artículo es investigar la formación histórica del método de análisis fílmico en Jean-Claude Bernardet a partir de dos libros fundamentales que componen un corpus escrito a lo largo de 20 años: Brasil em tempo de cinema (1967) e Trayectória crítica (1978). Aquí partimos de la hipótesis de que una lectura atenta de estos libros permite comprender la formación del método crítico en Bernardet, que va desde el análisis autoral al paradigma de la conciencia hasta llegar a la ambición postestructuralista de un examen de cómo la luchas de clase operan en la misma forma fílmica. Argumentaremos que, este movimiento no debe ser visto como una mera huida hacia adelante, sino como una superación reflexiva. Para comprenderlo, nos valemos de algunos postulados de la dialéctica, tal como los propone la tradición materialista. Así, fue necesario relacionar el análisis interno de los textos con la totalidad social, en la que, dicho sea de paso, seguimos a nuestro autor.

Palabras clave:
Jean-Claude Bernardet; crítica cinematográfica; análisis de películas; cine; historia intelectual

Introdução

Espero não fugir tanto às regras do gênero ao começar este artigo com uma nota pessoal. Meu primeiro contato com a obra de Jean-Claude Bernardet se deu em 2012, quando iniciei uma pesquisa de mestrado sobre a relação entre a crítica cinematográfica e o Cinema Novo, ainda em aberta formação. Na pesquisa, Bernardet aparece como jovem crítico de ambições revolucionárias em sintonia com o projeto estético e político cinemanovista. O corte temporal abrangeu desde inícios de 1960 até o golpe de 1964. Nesse sentido, Brasil em tempo de cinema, seu livro de 1967, foi menos objeto de análise do que referência teórica.

Em 2019 terminei o doutorado. Desta vez busquei analisar o campo da crítica de cinema no Brasil entre os anos 1940 e 1960. Como não poderia deixar de ser, Bernardet aparece como um interlocutor, sobretudo por conta de seus textos historiográficos (BERNARDET, 1983BERNARDET, Jean-Claude; GALVÃO, Maria Rita. Cinema: repercussões em caixa de eco ideológica. São Paulo: Brasiliense, 1983., 1994BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., 2009BERNARDET, Jean-Claude. O autor no cinema. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1994.). Passada a pressão da defesa, seus textos voltaram a me interessar. Agora por razões distintas. Desde 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, uma tarefa urgente se impôs ao campo intelectual: explicar as razões que permitiram a ascensão da extrema-direita no Brasil. Trata-se, portanto, de pensar a derrota. Isso me fez lembrar de Bernardet em 1965 elaborando a derrota. Brasil em tempo de cinema é uma reflexão teórica e política a quente do fracasso de um projeto. Este artigo, assim, procurou analisar o modo como a derrota política de um projeto deu lastro à formação de um método, destruindo certezas, estabelecendo alicerces.

De todo modo, pensar a obra de Bernardet é difícil. Corre-se sempre o risco da desnecessidade. Como pensador dialético, autorreflexivo, a cada nova figura da história ele faz a genealogia dos pressupostos em crise e os supera. E ele o faz escrevendo histórias. Por isso, este artigo é sobre a formação do método de análise fílmica em Bernardet com Bernardet. Ele é tanto objeto quanto referência teórica. Muitos dos pressupostos a revelar, ele já os revelou. Espero que o artigo contribua para sistematizar esse movimento e, em alguma medida, acrescente linhas novas, ainda que modestas.

Ao final deste trabalho ressalta o caráter dialético do modo de pensar de Bernardet. Como se trata aqui de pensar com ele, foi inevitável assumir a perspectiva que o próprio Bernardet empregou ao avaliar a sua trajetória. Com isso, também assumi a perspectiva da totalidade. O conceito de totalidade remete ao caráter mediato de todo particular que, portanto, sempre envia para além de si, para as suas condições. Não se trata de reafirmar a lógica do sistema. Não basta dizer que o significado das partes é determinado pela posição que ocupa no todo. Afinal, a totalidade compreende a mudança e, portanto, o tempo, em sentido forte (SAFATLE, 2013SAFATLE, Vladimir. Apresentação à edição brasileira - Os deslocamentos da dialética. In: ADORNO, Theodor W. Três estudos sobre Hegel. São Paulo: Unesp, 2013., p. 24-30). Em Hegel, a força que impele o particular para além de si é o Espírito absoluto. A que Marx, por seu turno, pôs sobre os pés. Para ele, é o trabalho social e seu corolário, a troca, o que constitui a mediação universal (ADORNO, 2013ADORNO, Theodor W. Três estudos sobre Hegel. São Paulo: Unesp, 2013., p. 91-101; 2008, p. 106-107). Portanto, na tradição materialista, o conceito de totalidade se confunde com o de modo de produção.

Pensar por meio desse conceito, no entanto, não implica a vã pretensão de esgotar o assunto em todas as suas dimensões. Aliás, para a dialética materialista, entre a totalidade social e o pensamento resta sempre uma distância insuperável. Determinação formalizada pelo postulado teórico que preconiza a primazia do objeto (ADORNO, 2013ADORNO, Theodor W. Três estudos sobre Hegel. São Paulo: Unesp, 2013., p. 100-103, 154-155; JAMESON, 1985JAMESON, Fredric. Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. São Paulo: Editora Hucitec, 1985., p. 250-260; REPA, 2011REPA, Luiz. Totalidade e negatividade: a crítica de Adorno à dialética hegeliana. Cad. CRH v. 24, n. 62, p. 273-284, ago. 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-49792011000200004.
https://doi.org/10.1590/S0103-4979201100...
, p. 280). Isso não implica um retorno ao realismo ingênuo pré-kantiano. Pelo contrário. Apenas reafirma que o sujeito, lócus da objetivação, nem por isso se torna constituinte (MUSSE, 2003MUSSE, Ricardo. Passagem ao materialismo. Lua Nova, n. 60, p. 97-116, 2003. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-64452003000300006.
https://doi.org/10.1590/S0102-6445200300...
, p. 103). Ou seja, que “aquilo que não é pensamento é condição lógica imanente do pensamento” (ADORNO apudMUSSE, 2003MUSSE, Ricardo. Passagem ao materialismo. Lua Nova, n. 60, p. 97-116, 2003. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-64452003000300006.
https://doi.org/10.1590/S0102-6445200300...
, p. 104). Os textos de Bernardet, portanto, são aqui compreendidos segundo o movimento da totalidade no interior da qual foram produzidos e recepcionados.

O corpus deste artigo foi composto por dois livros decisivos para a formulação metodológica da crítica em Bernardet: Brasil em tempo de cinema e Trajetória crítica. O primeiro foi escrito entre 1965 e 1966, portanto, logo após o golpe civil-militar. Trata-se de uma dissertação de mestrado interrompida que qualificaria Bernardet como docente no recém-fundado curso de Cinema da Universidade de Brasília, interditado pela força bruta do autoritarismo. Nesse texto, Bernardet analisa o cinema brasileiro moderno entre 1958 e 1966. Trajetória crítica, por sua vez, foi pulicado originalmente em 1978, quando Bernardet, já com a experiência de professor universitário, retoma a reflexão metodológica a partir de um balanço de sua carreira. Nesse sentido, Trajetória crítica é um livro de múltiplas temporalidades. Trata-se tanto de uma coletânea de 68 textos publicados entre 1959 e 1977 quanto de um programa crítico para o presente, ainda em formulação, apresentado ao longo das três introduções e dos 22 comentários em que ele analisa as condições intelectuais e políticas em que seus textos foram escritos e propõe novos caminhos de pesquisa a seguir (ARAÚJO, 2021ARAÚJO, Mateus. Duas palavras sobre Bernardet e os estudos de cinema no Brasil. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021., p. 41-42).

A hipótese aqui trabalhada é a de que a leitura cerrada destes textos permite reconhecer a formação de um método que passa da análise de autor até a ambição pós-estruturalista de análise do modo como as lutas de classes operam pela forma. Método, enfim, que vai dar lugar a obras seminais como Cineastas e imagens do povo ([1985] 2003). As afinidades entre este último e Brasil em tempo de cinema já foram notadas (ARAÚJO, 2021ARAÚJO, Mateus. Duas palavras sobre Bernardet e os estudos de cinema no Brasil. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021.; XAVIER, 2021XAVIER, Ismail. O ensaísta e a autoria. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021.). Mateus Araújo, aliás, vai mais longe. Vê na obra de Bernardet uma recorrência que a estrutura em pares solidários e conceituais. Assim, Cineastas e imagens do povo (1985) dialoga com Brasil em tempo de cinema (1967); Historiografia clássica do cinema brasileiro (1995) retoma Cinema brasileiro: propostas para uma história (1979); já Trajetória crítica (1978) teria sua forma desdobrada em Piranhas no mar de rosas (1982), enquanto O autor no cinema (1994) daria continuidade ao método de análise aberto com Cinema: repercussões em caixa de eco ideológica (1983). Sendo assim, a obra de Bernardet esconde continuidades maiores do que em geral admite o autor (ARAÚJO, 2021ARAÚJO, Mateus. Duas palavras sobre Bernardet e os estudos de cinema no Brasil. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021., p. 40). De nossa parte, buscaremos contribuir para a compreensão dessa dialética entre ruptura e continuidade seguindo as sugestões apontadas em Trajetória crítica, elo metodológico ainda pouco notado entre Brasil em tempo de cinema e Cineastas e imagens do povo. Argumentaremos que, desde inícios de 1960, ao avançar das rupturas o pensamento de Bernardet manteve um horizonte dialógico com seu passado que nos permite identificar algo como uma constante superação reflexiva.

Como dissemos, Bernardet pensa o cinema e a crítica de modo dialético. Desde muito cedo ele entende a produção cultural como parte de um processo histórico de corte fundo que configura a estrutura significativa pelo que a produção individual ganha significado. Voltando o espelho contra ele, podemos analisar as suas reflexões como parte da história intelectual brasileira, marcada, entre os anos 1950 e 1960, pelo corte fundo do desenvolvimentismo e das tensões que rondaram o seu esfacelamento. Isso nos permite relacionar seus textos críticos a outras produções com ambições teóricas e inserção institucionais distintas. Afinal, todos se encontram na mesma esquina: a história brasileira.

O paradigma da conscientização

Em inícios de 1960, Bernardet escreveu suas críticas no interior do que podemos chamar de paradigma da conscientização1 1 O conceito foi aqui formulado em diálogo com as reflexões de Bernardet. Em Trajetória crítica, ele afirma que na primeira metade da década de 1960 ninguém questionava o que estava por trás da ideia de conscientização, “justificativa para uma camada social que de algum modo se considera superior divulgar a sua ideologia para outra camada social” (2011, p. 95). Já distante dos anos que antecederam o golpe, Bernardet vê na ideia de conscientização ecos de teses reacionárias, tais como a de que “o problema do Brasil é a educação” (2011, p. 96). Além da “paixão pelo Brasil e sua história” (2011, p. 96), ele sugere a obra de Eisenstein e Brecht como influência de época. De nossa parte, acentuamos o caráter de paradigma, no sentido de modelo compartilhado, para indicar a pertinência histórica do conceito. Como argumentaremos a seguir, a industrialização planejada e suas contradições estabelecem então as condições de produção discursiva, tornando evidentes noções e conceitos que em outros contextos aparecem como problemáticos. . Este supõe, ao menos, dois interlocutores - em geral, reconhecíveis como grupos ou classes sociais - que se posicionam hierarquicamente um diante do outro (um sabe, outro não). O que sabe coloca o conhecimento à disposição e espera do que aprende a sua aplicação. O problema da conscientização, portanto, se impõe quando saber e poder estão, em alguma medida, dissociados.

O paradigma da conscientização, ao menos como praticado no Brasil de meados do século XX, supõe uma situação dinâmica e problemática. A conscientização é necessária porque dela dependeria a resolução de um processo. Se fala em tomada de consciência quando se acredita que algo precisa ser conhecido para ser mudado. O paradigma da conscientização participa, assim, daquilo que, de forma ampla, Jacques Rancière chamou de dispositivo crítico. Ele pensa especificamente os pressupostos do dispositivo tal como funciona na arte. Ali, “o artista crítico sempre se propõe produzir o curto-circuito e o choque que revelam o segredo ocultado pela exibição das imagens” (RANCIÈRE, 2012RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012., p. 32).

Segundo o filósofo francês, o artista crítico pretende que o receptor tome conhecimento para agir de acordo. No entanto, “não há evidências de que o conhecimento de uma situação provoque o desejo de mudá-la” (p. 29). Nesse caso, restaria ao dispositivo a ambição menor de provocar vergonha naqueles que se considera cúmplices (p. 30). Daí a melancolia de esquerda. O mesmo processo, à direita, daria lugar ao cinismo, cuja fórmula síntese foi descrita por Peter Sloterdijk: “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo” (apudSAFATLE, 2008SAFATLE, Vladimir. Sexo, simulacro e políticas de paródia. In: SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 167). Jacques Rancière, contudo, pretende descrever os pressupostos do dispositivo e passar a uma nova etapa, em que ao receptor se reconhece a capacidade de agir pela partilha do sensível, mesmo quando apenas espectador (­RANCIÈRE, 2009RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Exo experimental org., Editora 34, 2009., 2012). Ele está longe, portanto, das expectativas dominantes no Brasil dos anos 1950 e 1960. Os intelectuais brasileiros ainda esperavam do dispositivo crítico uma abertura possível à ação coletiva.

O paradigma da conscientização, tal como o praticou Bernardet, ganhou forma no Brasil dos anos 1950. O desenvolvimento industrial, assumido como tarefa de Estado, criou uma situação dinâmica e problemática sintetizada então pelas fórmulas dualistas. De um lado, haveria o Brasil industrial, moderno, em que as mais avançadas técnicas e os mais diversos hábitos ocidentais começavam a ser aclimatados. Doutro, estaria o Brasil atrasado, submetido a padrões de vida arcaicos, decorrentes da sobrevivência de modos de produção pré-capitalistas. Neste quadro, o saber é função do moderno, a ignorância, do arcaico. O saber deve contribuir para integração da nação sob o signo da modernidade, completando aquilo que Paulo Arantes (1997ARANTES, Paulo Eduardo. Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Sentido da formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.), refletindo sobre a obra de Antonio Candido, nomeou Formação2 2 Para a crítica da “razão dualista”, ver Oliveira (2003). Grosso modo, o autor argumenta que a tese dualista de matriz cepalina, ao dividir um setor arcaico sobrevivente e um setor capitalista moderno em formação, teria contribuído para mascarar antagonismos internos de classes, acentuando a luta nacional pelo desenvolvimento. Com isso, adiava-se ou, pior, nem mesmo se aventava, perguntas como sobre a quem afinal interessaria o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Para o autor, o capitalismo na periferia não seria uma etapa histórica, mas sim um momento estrutural que expressou a necessidade de expansão do sistema. Assim, arcaico e moderno seriam partes constitutivas de uma mesma totalidade dialética. Por isso, o estado de exceção, na periferia, seria permanente. .

Aqui certamente poderíamos citar os intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), responsáveis pela formulação do que à época ficou conhecido como ideologia do desenvolvimento nacional (ABREU, 2007ABREU, Alzira Alves de. Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). In: FERREIRA, Jorge; AARÃO, Daniel (orgs.). Nacionalismo e reformismo radical (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.; ORTIZ, 2012ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2012.; TOLEDO, 1997TOLEDO, Caio N. de. Iseb: fábrica de ideologias. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997.). Como autoproclamados ideólogos, os isebianos reservaram lugar central à tomada de consciência enquanto etapa de um amplo processo de desalienação. Tradição que alcança outros intelectuais diretamente ligados aos aparelhos de Estado, como Celso Furtado (1962FURTADO, Celso. A pré-revolução brasileira. Perspectivas do nosso tempo. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962.). No entanto, para compreender o quão pervasivo era o paradigma da conscientização podemos ler os textos de Florestan Fernandes dos anos 1950. Sociólogo uspiano, herdeiro de primeira geração da missão francesa que fundou o espírito universitário moderno na São Paulo derrotada pela aliança varguista, ao contrário dos isebianos, ele tinha como meta fundamental desenvolver um programa positivo de produção científica em um contexto de predomínio do ensaio (BLANCO; JACKSON, 2014BLANCO, Alejandro; JACKSON, Luiz Carlos. Sociologia no espelho: ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2014.; PONTES, 1998PONTES, Heloísa. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940-68). São Paulo: Companhia das Letras , 1998.). Nem por isso deixou de participar da ambição de fazer do conhecimento algo útil no processo de modernização em curso, também chamado então de revolução brasileira (REIS, 2007REIS, José Carlos. Anos 1960-70: Florestan Fernandes. Os limites reais, históricos, à emancipação e à autonomia nacionais: a dependência sempre renovada e revigorada. In: REIS, José Carlos. As identidades do Brasil 1. De Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 2007.).

Florestan Fernandes analisa a industrialização no Brasil a partir do desajuste entre as condições intrínsecas ao seu pleno funcionamento, postas pelas nações centrais, e a ordem social estabelecida, ainda marcada pelo que o autor chama características do “antigo regime”, cujo alicerce fundamental foi a escravidão. Para superá-la, o Brasil deveria importar tecnologias, instituições e valores do centro do capitalismo. A esse processo, contudo, não seguiria imediata modificações nas formas de trabalho, comportamento e mentalidade enraizados. Com isso, o desenvolvimento, que até então avançava, ainda que improvisadamente, começa a perder tração (FERNANDES, 2008FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008., p. 65). Nessa circunstância, o conhecimento produzido pelas ciências sociais adquire um caráter acentuadamente prático. Elas seriam responsáveis por complementar o panorama mais ou menos limitado até então oferecido pela economia. A complementariedade entre ambas disciplinas deveria contribuir para ampliar a consciência sobre a forma de funcionamento da sociedade na periferia, aumentando a eficácia da intervenção social (p. 90). O sociólogo, nesta concepção, aparece fundamentalmente como técnico. Sua tarefa seria, uma vez feito o diagnóstico, colocá-lo à disposição dos homens de ação (p. 23). Pressupõe-se, assim, que quando erravam os homens de ação, erravam por ignorância. Era preciso conscientizá-los (p. 66).

Como sociólogo, a perspectiva de Florestan Fernandes é estrutural, ou seja, impessoal e relativa. Ele não espera que a conscientização provoque mudanças objetivas afetando indivíduos ou mesmo um grupo ou classe social isoladamente. Do que depreendo, o interlocutor implícito em seu discurso não é a burguesia ou mesmo os trabalhadores. É o Estado3 3 Segundo Renato Ortiz, essa seria uma característica geral da época: “como a indústria cultural é incipiente, toda discussão sobre a integração nacional se concentra no Estado, que em princípio deteria o poder e a vontade política para a transformação da sociedade brasileira” (ORTIZ, 2001, p. 51). . Em seus textos dos anos 1950, o Estado, como um conjunto de instrumentos de gestão e governo a serviço do desenvolvimento e, portanto, compreendido como instância posicionada acima das lutas de classes, seria o único capaz de afetar racionalmente as condicionantes estruturais e produzir mudanças sistêmicas. “Nesta perspectiva, qualquer plano de desenvolvimento nacional adquire uma significação que transcende, com frequência, aos interesses e aos valores consagrados pela ideologia das camadas dominantes” (p. 92).

É deste ponto arquimediano que Florestan Fernandes pôde compreender as ciências sociais como sendo, ao mesmo tempo, úteis e independentes. Não vejo aí, no entanto, mera ideologia, como Caio Navarro de Toledo (1997TOLEDO, Caio N. de. Iseb: fábrica de ideologias. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997.) teria visto no Iseb. Em uma sociedade de capitalismo dependente, como a brasileira, por um momento o Estado ocupa, na prática, o lugar vago de uma burguesia modernizadora (SCHWARZ, 2009bSCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009b., p. 16). Como afirma Renato Ortiz, a perspectiva da crítica da ideologia está correta. Os isebianos, de fato, apagaram o potencial negativo da classe trabalhadora ao dar estatuto de sujeito alienado à nação. Mas, por vezes, ela perde o nervo da política e, portanto, o da história (ORTIZ, 2012ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 46). Ver os limites desta posição quando a história já o provou, após 1964, seria inevitável. E o próprio Florestan Fernandes o fez de forma contundente (FERNANDES, 1975FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975., 2008FURTADO, Celso. A pré-revolução brasileira. Perspectivas do nosso tempo. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962., p. 28-62; REIS, 2007REIS, José Carlos. Anos 1960-70: Florestan Fernandes. Os limites reais, históricos, à emancipação e à autonomia nacionais: a dependência sempre renovada e revigorada. In: REIS, José Carlos. As identidades do Brasil 1. De Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 2007.).

Como veremos a seguir, para Bernardet, em inícios de 1960 a arte valeria por sua utilidade. É como parte de uma mesma cultura útil, historicamente situada, que podemos relacionar seus textos aos da tradição desenvolvimentista brasileira. Ambos, afinal, tinham a “conscientização” como tema central e acreditavam que o conhecimento deveria participar de um esforço coletivo de transformações que se anunciavam no horizonte histórico. Todos, portanto, foram afetados ao seu modo pelo paradigma da conscientização.

À procura da comunicação

Jean-Claude Bernardet começou a publicar críticas de cinema quando, já cineclubista e funcionário da cinemateca, recebeu o convite de Paulo Emilio para cobrir a sua ausência no Suplemento Literário do Estadão (BERNARDET, 2013BERNARDET, Jean-Claude. Jean-Claude Bernardet (depoimento, 2013). Rio de Janeiro, CPDOC, 2013., p. 15). O próprio Bernardet divide esse momento inicial em duas fases. A primeira, a que ele chama colonizada, seria marcada pela ausculta das recorrências temáticas e das insinuações simbólicas no cinema de autor, sendo a segunda uma ruptura em direção ao que podemos caracterizar como crítica da ideologia, cujo páthos era revelar o sentido ideológico do filme, esperando que assim o espectador se sentisse compelido à ação (BERNARDET, 2011BERNARDET, Jean-Claude. Trajetória crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 48-50).

Bernardet atribui a viravolta de método a duas mudanças externas: transformações no contexto sócio-político e a emergência do Cinema Novo (2011, p. 61-62). De fato, a primeira metade da década de 1960 foi marcada por uma crescente de tensões sociais que culminou no golpe civil-militar em 1964 (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.). Esse contexto foi compreendido por parte da sociedade como prenúncio de uma revolução iminente. Segundo Marcelo Ridenti, neste momento parte da classe média estava atravessada pela “estrutura de sentimento romântico revolucionária” (RIDENTI, 2010aRIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Editora UNESP, 2010a., p. 89), por meio da qual, paradoxalmente, se buscava no passado “as bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante que, ao final do processo, poderia romper as fronteiras do capitalismo” (RIDENTI, 2010aRIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Editora UNESP, 2010a., p. 89). O interesse pelo passado, portanto, não era mero passadismo. “Pode-se mesmo dizer que predominava a empolgação com o ‘novo’, com a possibilidade de construir naquele momento o ‘país do futuro’, mesmo remetendo a tradições passadas” (RIDENTI, 2010aRIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Editora UNESP, 2010a., p. 91).

Nessa conjuntura, o sentido de urgência do subdesenvolvimento se exacerba. A eficácia do conceito enquanto fator analítico já havia sido fixada nos anos 1950. Com os integrantes do que podemos chamar de nova crítica cinematográfica, sobretudo com Bernardet e Glauber Rocha, o conceito abre um horizonte ético cuja significação está fundada em uma interpretação do presente como um tempo de urgência, acelerado pela deflagração de conflitos sociais que punham em questão o futuro nacional. Assim, “a tarefa é tomar consciência do país como nação em estado pré-revolucionário, como nação que assume a si própria, a tarefa é trabalhar para a conscientização do povo” (BERNARDET, 2011BERNARDET, Jean-Claude. Trajetória crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 61).

Falando da crítica paulista de sua época, Bernardet denuncia uma uniformidade: a diferença entre os críticos, afirma, “é que uns gostam de cinema norte-americano de 1930, outros de cinema francês da mesma época, ou de cinema japonês, que uns gostam de fotografia clara e outros escura. O que tem isso a ver com o subdesenvolvimento?”4 4 O Estado de S. Paulo, 26 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 67). Os textos de jornais foram tomados à Trajetória crítica (2011). A página indica o lugar em que se encontram no livro. Sempre que o livro for citado sem a referência a um periódico é porque se trata de um dos comentários feitos por Bernardet no momento da publicação. . A pergunta introduzida ao final desqualifica a fruição estética, definida pelo imponderável gosto, ao confrontá-la com uma dimensão considerada superior e, portanto, fundadora de uma nova moral: a do subdesenvolvimento. Nesse contexto, o conceito passa a funcionar como princípio de realidade, único caminho que conduziria para além do que seriam veleidades estetizantes da crítica paulista. Talvez em um outro momento a preocupação estética recobrasse seus direitos, mas “hoje o trabalho crítico mais urgente é desmascarar as fitas”.5 5 O Estado de S. Paulo, 26 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 67). Nesse sentido, “o critério de qualidade [hegemônico entre a crítica paulista] é mera hipocrisia, porque não leva em consideração a ideologia do filme”.6 6 O Estado de S. Paulo, 26 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 64).

No paradigma da conscientização, o filme não deve demonstrar apenas superioridade estética. Antes, deve demonstrar capacidade comunicativa. E, em se comunicando, deve ser politicamente revolucionário. A ideia de comunicação está vinculada diretamente à de ação, tal como o falou Jacques Rancière (2012RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.). Se o paradigma acentua o que Bernardet chama de análise de conteúdo (tema, estrutura dramática, construção de personagem), não deixa de considerar certa dimensão significativa da forma. No entanto, todos os elementos do filme vão ser avaliados por sua maior ou menor capacidade de comunicação. Isso leva Bernardet a uma procura que o faz assumir posições muitas vezes contraditórias. Em Arraial do Cabo (Paulo César Saraceni, Mário Carneiro, 1960), por exemplo, critica a montagem paralela por ela reduzir o problema social no vilarejo a um clichê, “por explorar algo, que, válido quando o cinema estava num período de procura expressiva, tornou-se uma receita fácil: o contraste”.7 7 O Estado de S. Paulo, 12 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 75). Já na crítica de Apelo, curta-metragem de Trigueirinho Neto sobre a vegetação brasileira, ele inverte o argumento e elogia a força do choque, alcançada na fita “pelas oposições, pelos contrastes”8 8 O Estado de S. Paulo, 30 set. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 80). , e a simplificação, na medida em que ela seria necessária

para que fique clara a posição assumida e para provocar o espectador, de maneira a que não possa ficar este indiferente ou independente do que lhe é mostrado; explicações e justificações numerosas, que podem enriquecer o ponto de vista, enfraquecem a força do choque.9 9 O Estado de S. Paulo, 30 set. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 80).

Há, desse modo, um elogio do esquema, a valorização da cerebralidade, que leva noutro polo à recusa da emoção, vista como autoconsumível e, portanto, apassivadora. A emoção, assim, seria “uma das grandes inimigas da nossa época”. Além de não resolver os problemas, imporia soluções “nem estudadas, nem escolhidas pelos que as aceitam”.10 10 O Estado de S. Paulo, 30 set. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 82). Em um aparte sobre Eisenstein, ele sintetiza a sua visão:

Eisenstein comentava a necessidade de não fechar o espectador dentro de uma emoção. O plano podia emocionar, falar à sensibilidade, para entrar em comunicação com o espectador, mas, pela montagem, a emoção devia ser quebrada: a queda de nível provocava um choque que devia pôr o espectador frente a frente com ele mesmo. Talvez o método esteja ultrapassado, mas o fato em si permanece válido.11 11 O Estado de S. Paulo, 13 maio 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 94).

Podemos reconhecer no Eisenstein descrito reflexos do efeito de estranhamento brechtiano que, aliás, foi bastante influente à época (SCHWARZ, 2009SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009a.). Como no paradigma da conscientização o que importa é a capacidade comunicativa do filme, a emoção não poderia ser definitivamente descartada. Ao comentar Stella (Michael Cacoyannis, 1955), Bernardet inverte novamente o argumento e faz defesa do melodrama como meio possível de diálogo com o público popular. Afinal,

se quisermos nos comunicar imediatamente com esses públicos, o modo mais rápido consiste justamente em utilizar essas formas (elaboradas para fins entorpecentes), por serem já conhecidas e facilmente compreensíveis, carregando-as de um sentido novo.12 12 Última Hora, 31 ago. 1963 (apud BERNADET, 2011, p. 137).

Ao fazer o balanço dessa fase, Bernardet anota como positiva a superação de uma concepção de arte universal a-histórica, na qual se baseava quando começou escrever suas primeiras críticas. De fato, a ideia de que as obras de arte infletem perspectivas de classe historicamente situadas e que, portanto, veiculam ideologias, será decisiva em toda a sua trajetória desde então. No entanto, ele argumentaria mais tarde que esses comentários de inícios de 1960 seriam “pouco defensáveis como crítica cinematográfica” (2011, p. 115), isso porque ficariam “presos ao enredo e ao conteúdo mais imediato dos filmes” (2011, p. 115). Realmente, os comentários davam ênfase ao conteúdo, mas não deixaram de pensar a forma, como o prova suas reflexões sobre a montagem e mesmo sobre os gêneros, como o melodrama. A questão, aliás, não era apenas sua. Neste mesmo período os cinemanovistas questionavam o Centro Popular de Cultura (CPC-UNE) por acreditarem que não haveria cinema revolucionário sem forma revolucionária (SOUZA, 2003SOUZA, Miliandre Garcia de. Cinema Novo: a cultura popular revisitada. História: questões e debates. Curitiba: Editora UFPR, 2003.; BERNARDET; GALVÃO, 1983BERNARDET, Jean-Claude; GALVÃO, Maria Rita. Cinema: repercussões em caixa de eco ideológica. São Paulo: Brasiliense, 1983.).

Para que o paradigma da conscientização seguisse funcionando seria preciso que se mantivesse aberto um horizonte revolucionário experenciado como um impasse prestes a ser resolvido. Sendo assim, o golpe civil-militar em 1964, ao destituir João Goulart e perseguir as lideranças populares, exigiu dos intelectuais a pronta revisão da crença de que, afinal, poderiam contribuir para que a formação brasileira finalmente se completasse. Como indica a historiografia, o Cinema Novo o fez problematizando a classe média e, indiretamente, refletindo sobre a própria condição do intelectual na sociedade de classes (RAMOS, 1983RAMOS, Fernão. Os novos rumos do cinema brasileiro. In: RAMOS, Fernão (org.) História do cinema brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1983. ; XAVIER, 2001XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno - São Paulo: Paz e Terra, 2001.). Será Bernardet quem vai levar a autocrítica às suas últimas consequências.

Brasil em tempo das ilusões perdidas

“Fomos enganados e nos enganamos: precisamos procurar os motivos”

(Brasil em tempo de cinema, 2007, p. 152-153)

Em Brasil em tempo de cinema Bernardet já trata o paradigma da conscientização de forma crítica, ao menos como praticado até ali. O paradigma é agora algo a se compreender para então se desvencilhar. Ao comentar 5x favela, filme coletivo do Centro Popular de Cultura cujo objetivo era politizar a plateia, Bernardet argumenta que a realidade ali refletiria, antes, esquemas colhidos em tratados sociológicos. Não houve uma verdadeira compreensão da favela. E isso se repetia. Tanto que nos filmes da época proliferavam estereótipos paternalistas: “proletários sem defeitos, camponeses esfomeados e injustiçados, hediondos latifun­diários e devassos burgueses invadem a tela: a classe média foi ao povo” (2007, p. 49).

Se antes do golpe os esquemas eram exaltados por sua capacidade de comunicação, agora são denunciados como apassivadores. Nestes casos, diz Bernardet,

o espectador se encontra diante de um circuito fechado: a realidade só se abre para um único problema, que está apresentado esquematicamente; o problema tem apenas uma única solução positiva, que também está apresentada esquematicamente (2007, p. 43).

Com isso, não restaria outra alternativa ao espectador senão “negar o filme ou entusiasmar-se com ele” (2007, p. 43). O intelectual, que até então se identificava como instância livre e moral, ganha corpo e classe - aparece como verdadeiro objeto. Brasil em tempo de cinema não é um livro sobre cinema simplesmente. É sobre a intelectualidade brasileira no momento da crise de seu projeto de conscientização. Bernardet o sabe. Ele nos diz a cada linha.

Retomemos a tese central. Nos últimos anos, a vida cultural brasileira tem sido movida pela classe média. Sendo subproduto do capital, aspirando à condição burguesa ao mesmo tempo em que teme a queda nos estratos do proletariado, a classe média encontra no consumo simbólico um meio de resolução imaginária de sua posição em falso. Da cultura, assim, solicita duas características, quantidade e qualidade, por meio das quais acredita acumular prestígio e segurança (2007, p. 25). Para tanto, a classe média tenderia a formas de consumo ostensivo da mercadoria que se vende como bem feita, colorida, custosa e grandiloquente (2007, p. 23-28).

No entanto, a classe média não seria homogênea. Haveria no interior da classe uma fração progressista, a que pertenceria boa parte dos realizadores brasileiros. Se a classe média almeja o consumo ostensivo da qualidade e da quantidade, a sua fração progressista o recusaria. Ela se entende como parte do povo e quer tratar de sua realidade. Contudo, nunca o faz diretamente. Por ocupar posição em falso, seu comportamento é marcado pela ambiguidade. Tomemos o caso do cinema. Ao invés do camponês, do operário, do burguês, classes fundamentais do capitalismo, ela representa o marinheiro, o forasteiro, o cangaceiro, todos marginais (2007, p. 47-64). Isso porque, objetivamente, a classe média seria também marginal (2007, p. 48). Ao final, pretendendo conscientizar o povo, o cinema brasileiro o denuncia às classes dirigentes. Em seus filmes, líderes fazem política de cúpula, não se integram a qualquer movimento concreto. Sendo assim, a classe média progressista não ia além do que então estabelecia a política populista13 13 Bernardet estava bastante influenciado pela recente crítica sociológica do populismo. Ele cita Paul Singer (2007, p. 56), Francisco Weffort (2007, p. 79) e Luciano Martins (2007, p. 79) na fundamentação da sua tese. . O Cinema Novo, bem como toda a intelectualidade de esquerda, participou dela, mesmo quando se acreditavam revolucionários.

A existência de uma fração progressista seria um sintoma da estratificação da classe média? Bernardet não nos diz. Hoje, com Pierre Bourdieu (2008aBOURDIEU, Pierre. A distinção, crítica social do julgamento. Tradução de Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2008a., 2008bBOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008b., 2009aFERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008., 2009bFERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.), seria possível analisar como outros tipos de capital, como o cultural, e de poder, como o simbólico, contribuíram para formar essa fração. Aqui ainda podemos perguntar o que diferenciaria a classe média da burguesia. A isso Bernardet não responde diretamente. Mas é possível entender o ponto ao retomar a abordagem de classe em textos anteriores.

Nas críticas que escreve entre 1961 e 1964, a única classe que de fato aparece é a burguesia. Doutro lado não estariam trabalhadores, operários ou camponeses. E sim o povo. A burguesia, no entanto, é quase sempre qualificada indiretamente, seja por sua psicologia, moral ou, sobretudo, por seu gosto. Assim, o burguês seria aquele que “prefere esconder-se atrás de imagens ‘decorativas’, a assumir posição que poderia perturbar o seu bem-estar”14 14 O Estado de S. Paulo, 16 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 64). e nada o horrorizaria mais tanto quanto “pensar que o seu gosto possa ser superado ou possa não ser absolutamente original”.15 15 O Estado de S. Paulo, 16 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 65). Os espetáculos burgueses são tomados por uma “pomba artificial” e por um “monumentalismo vulgar”.16 16 O Estado de S. Paulo, 8 set. 1962 (apud BERNADET, 2011, p. 88). A burguesia é também a responsável pelas convenções sociais que sufocaram o homem, que lhe roubaram a espontaneidade, fossem estas convenções familiares, mundanas ou morais.17 17 Última Hora, 31 ago. 1963 (apud BERNADET, 2011, p. 138).

Já em artigo sobre O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), a burguesia brasileira aparece como classe em luta para afirmar os interesses nacionais.18 18 O Estado de S. Paulo, 8 set. 1962 (apud BERNADET, 2011, p. 85). Ambicionando conquistar a hegemonia interna contra setores do imperialismo ao mesmo tempo em que precisa conter a radicalização das demandas das massas, suas aliadas, a burguesia estaria marcada fundamentalmente pela ambiguidade. Sua postura política assume feição à esquerda, mas não rompe os limites estabelecidos pelos interesses fundamentais da classe. Assim também seria o filme de Anselmo Duarte. Aparentemente contra a Igreja, acabava reafirmando a sua legitimidade. O povo afirmaria o seu direito de ser supersticioso ao forçar a entrada no templo do corpo de Zé do Burro morto após tentar em vão cumprir promessa feita em terreiro. Dessa forma, “o Pagador resulta - talvez involuntariamente - numa obra de exaltação da igreja e numa lição de política”.19 19 O Estado de S. Paulo, 8 set. 1962 (apud BERNADET, 2011, p. 87). Está implícito, assim, um dos conceitos centrais em Brasil em tempo de cinema: ideologia objetiva. Por ele se afirma que a ideologia de um filme não converge necessariamente com a intenção declarada do seu autor.

Se a burguesia tem o seu gosto e interesses determinados por sua condição de classe, o intelectual, por seu turno, assume a figura do bastardo sartriano:

perdeu suas raízes, não pertence a grupo nenhum, a terra nenhuma. Este equilíbrio instável permite-lhe ver mais agudamente os problemas, analisá-los, encontrar os seus mecanismos, as suas estruturas. Assim, ele atua, e a atuação faz com que passe a pertencer a um grupo. Em suma, ele seria uma liberdade, mas uma liberdade que não deve ficar no vazio, mas, ao contrário, comprometer-se.20 20 O Estado de S. Paulo, 30 set. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 83).

Com efeito, muitas das características atribuídas à classe média em Brasil em tempo de cinema foram antes à própria burguesia: o gosto pela mercadoria bem feita e custosa, o consumo simbólico como distinção, a ambiguidade política. A principal mudança é que o bastardo sartriano, virtualmente livre, ganha corpo e classe após o golpe. O intelectual se descobre parte da classe média. O burguês de outrora é ele mesmo.

Em Brasil em tempo de cinema o paradigma da classe média é Antônio das Mortes, misterioso matador de cangaceiro de Deus e Diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964). Ele aceita colaborar com a classe dominante, que lhe arranja o soldo, mas não se submete a ela. Se elimina beato e cangaceiro, é para acelerar a história. História que não é a dele, mas a de Manuel. Ele está em falso. Daí a sua má consciência e a vontade de permanecer à sombra. Agora, no entanto, Bernardet não deixa de questioná-lo, ou melhor, questionar Glauber Rocha, seu alter ego:

por que não pensar que, se o próprio Manuel não for capaz de eliminar beato e cangaceiro, isto é, de superar suas duas revoltas alienadas, tampouco será capaz de fazer a guerra, ou seja, tornar a sua revolta uma revolução? (2007, p. 101).

Além da crise do populismo sobrevinda ao golpe e da censura, podemos pensar outra razão estrutural para o questionamento do paradigma da conscientização. A produção cultural brasileira, que começava a se organizar em bases industriais nos anos 1950, é amplamente mercantilizada a partir de meados dos anos 1960 (ORTIZ, 2001ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001.; RIDENTI, 2010bRIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2010b.). Com isso, características típicas da indústria cultural, em termos frankfurtianos, passam a regular o seu funcionamento (ADORNO, 2002ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.). Até então imaginado como povo, o público começa a ser estratificado em perfis de consumo. Os intelectuais, dependentes dessa indústria, veem reduzir o espaço para a atuação autônoma. A não ser aqueles que se abrigam nas instituições universitárias, então em expansão (SAMPAIO, 1991SAMPAIO, Helena. Evolução do ensino superior brasileiro (1808-1990). Documento de Trabalho 8/91. Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior da Universidade de São Paulo, 1991.). Com isso, há uma maior delimitação entre produção restrita, de corte acadêmico, e a ampliada, voltada para o consumo. Neste contexto, os que atuam na imprensa cotidiana precisam responder a demandas específicas de mercado, enquanto a academia, embora crítica, vê seu horizonte de interlocução se restringir a uma elite cultural. Assim, a ideia de que a tarefa dos intelectuais seria conscientizar um público popular virtualmente revolucionário termina ferida de morte. É o que Bernardet intui ao dizer que o cinema brasileiro dos anos 1960 pôde participar do debate político-cultural porque ainda “não chegou a se impor definitivamente como mercadoria” (2007, p. 26).

Do conteúdo à forma...

Em Brasil em tempo de cinema Bernardet continua no âmbito do paradigma da conscientização. Já não se trata, entretanto, de denunciar o cinema comercial, ou mesmo autoral, em nome do cinema crítico. É o cinema crítico mesmo que vai aparecer como ideológico. Há, assim, um télos que mantém, em alguma medida, a temática da alienação e da conscientização. Ou melhor, da autoconscientização (NAGIB, 2021NAGIB, Lúcia. Bernardet visto de longe. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021., p. 23). Não por acaso Bernardet abre seu livro indicando se tratar de uma quase autobiografia (2007, p. 19). Algumas vezes ele se aproxima de Marcelo (2007, p. 150), personagem de O desafio (Paulo César Saraceni, 1965) em crise após o golpe desestabilizar sua identidade e projetos, e noutras mais, de Antônio das Mortes, a quem dedica o livro (2007, p. 19, 99, 165). Assim, Bernardet permanece reservando espaço em suas análises ao tema, à estrutura dramática e à construção das personagens, lócus de articulação da ideologia. Mas há algo novo. Ele nos explica tomando como exemplo dois textos sobre um mesmo filme: Barravento (Glauber Rocha, 1962).

Na primeira crítica, de 1963, Bernardet o exalta acentuando que, diferentemente de outros filmes brasileiros, Barravento não representava marginais. Seus personagens eram trabalhadores, viviam da pesca na comunidade praieira de Buraquinho, na Bahia. Enquanto trabalhadores, estavam submetidos ao dono da rede, que por ser proprietário açambarcava mais ou menos 90% da pesca. Em vez de enfrentar racionalmente o conflito social, os pescadores explicam a sua condição por meio do candomblé, tratado tanto por Glauber Rocha quanto por Bernardet como superstição e, portanto, fator de alienação. Se já tiveram o papel de “preservar a cultura e a dignidade dos negros [...] hoje não tem mais” (2011, p. 242). Neste quadro, Bernardet elogia a personagem de Firmino, em quem reconhece um verdadeiro líder popular. Ele volta da grande cidade resolvido a convencer a comunidade, mesmo que pela violência, a “substituir a magia pela ação” (2011, p. 243). Só por isso o filme poderia ser considerado realista, e não naturalista ou populista, como a maior parte do cinema brasileiro da época. Dessa forma, o artigo demostra que já em 1963 Bernardet se preocupava com o afastamento do cinema brasileiro da representação das classes fundamentais, fator decisivo para a argumentação de Brasil em tempo de cinema.

De todo modo, as coisas mudam em 1965, quando da escrita de Brasil em tempo de cinema. Ali, diz Bernardet,

já não mais numa perspectiva jornalística, tento superar este nível do conteudismo imediato, para procurar com mais intuição do que metodologia a significação dos meios a que recorre o filme para se expressar (análise do significado do significante). Basicamente, trata-se de identificar os elementos que compõem o filme, encontrar as relações que interligam estes elementos e procurar as significações do filme nestas relações (2011, p. 244).

Teria bastado essa mudança de perspectiva para que Barravento aparecesse com outra figura. Firmino não seria um autêntico líder popular e o filme já não poderia ser qualificado como realista. Seria, antes, populista. Em vez de se comunicar com a comunidade, Firmino permanece isolado. Ele é voluntarista. No máximo, modifica Aruã, desfazendo o mito ao criar as condições para que o tabu sexual que o sustentava se quebrasse: “mais uma vez, trata-se de um indivíduo que resolve solucionar sozinho o problema de todos” (2007, p. 77).

Continuando a descrição do método, afirma Bernardet

os elementos sobre os quais me fixei foram elementos da estrutura narrativa e os personagens. Não exatamente nos personagens, mas nas relações que os personagens mantinham entre si através da ação dramática, procurei a significação ideológica dos filmes. Não a ideologia voluntariamente expressa pelo filme, mas o que seria a sua ideologia objetiva (a qual pode até contradizer totalmente a ideologia voluntariamente expressa) manifestada pelo sistema dramático do filme e a imagem da sociedade revelada por este sistema (2011, p. 245).

O novo método opera com duas dimensões: a da intencionalidade e, outra, estrutural, a do inconsciente de classe (ADAMATTI, 2016ADAMATTI, Margarida Maria. Brasil em Tempo de Cinema como método de análise fílmica de Jean-Claude Bernardet.E-Compós, v. 19, n. 3, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.30962/ec.1299.
https://doi.org/10.30962/ec.1299...
). Na primeira leitura, Firmino pôde ser tomado como um autêntico líder popular porque, afinal, o filme intencionalmente o reivindicava assim. Ao considerar, no entanto, que entre a intenção explícita e a estrutura fílmica não haveria necessariamente convergência, Bernardet pôde pesquisar o modo de relacionamento entre instâncias distintas em um mesmo filme. Desta forma, o filme aparece como totalidade dinâmica, por vezes, contraditória. A apresentação explícita de Firmino como líder popular, afirmada pelos diálogos e pelo letreiro inicial, assim, entrou em contradição com seu isolamento e voluntarismo, inscritos na estrutura dramática e no relacionamento entre as personagens. Por mais que Glauber Rocha quisesse tratar de um processo de conscientização articulado por um autêntico líder popular, seu inconsciente de classe o traía.

A discussão de Barravento permanece focada na estrutura dramática e no relacionamento entre as personagens. Em Brasil em tempo de cinema, a notação de recorrências formais se torna mais ampla quando Bernardet passa a analisar os filmes que têm como tema as relações urbanas e cujo foco social é a classe média. Em Noite vazia (Walter Hugo Khouri, 1964), por exemplo, ele identifica a existência do que chama estruturas simétricas, que reconhece igualmente em Deus e o Diabo. No nível interno do próprio método, aliás, não há qualquer motivo para que as contradições da totalidade afetassem apenas as dimensões da estrutura dramática e do relacionamento entre as personagens. É o que o próprio Bernardet formula:

O fato de haver uma dicotomia tão acentuada em dois filmes como Noite Vazia e Deus e o Diabo, opostos por tantos motivos ideológicos e formais, torna lícito perguntar se essa simetria não seria o reflexo, no nível da estrutura (independentemente dos enredos, dos conteúdos, das posições ideológicas), da situação daquelas personagens que vimos divididas entre dois polos, situação essa em que localizamos a expressão das hesitações, da incapacidade da classe média brasileira. Ou melhor, se a classe média - sem projeto próprio, vinculando-se, por motivos diversos, tanto à burguesia quanto ao povo - não expressaria essa bipolaridade através de estruturas simétricas (2007, p. 128).

Essa dimensão da estrutura profunda, inscrita na forma em um sentido amplo e abstrato, ainda aparece como hipótese, uma possível linha de pesquisa. Nem sempre Bernardet consegue relacionar a regularidade formal identificada a uma dimensão socialmente significativa, como sugeria o método adotado. No final do livro, inclusive, a forma ganha uma autonomia relativa que inflete menos um inconsciente de classe do que a lenta formulação estilística que daria origem a um sistema cinematográfico, no sentido em que, noutra ocasião, Antonio Candido empregou o conceito de sistema literário21 21 Segundo Antonio Candido (2000, p. 23-25), há sistema literário quando, em âmbito nacional, se conforma no processo de produção e recepção um conjunto de denominadores comuns que são internos (língua, temas, imagens) e externos, quer dizer, sociais e psicológicos. Um sistema sempre constitui uma tradição amplamente reconhecida por aqueles que dele tomam parte, estabelecendo, inclusive, as condições estruturais para as rupturas estéticas. . Neste quadro, o cinema é de classe média, mas a forma é brasileira e expressa uma coletividade, que, lida em outra chave, pode ser entendida como povo. Assim, ao falar da fotografia dos filmes da Vera Cruz, de claro-escuro rebuscado esculpido por rebatedores, Bernardet afirma que é necessário reconhecer que ela não está apta a “expressar a luz brasileira” (2007, p. 173). Já “a luz branca, ofuscante, obtida por José Rosa e Luís Carlos Barreto para Vidas secas, foi um verdadeiro manifesto do fotógrafo brasileiro” (2007, p. 174). Não apenas a luz seria brasileira. A acumulação de formas alcançaria outras dimensões do cinema, lida em chave nacional:

Essa conquista de uma forma brasileira é sensível na evolução do diálogo, processando-se em duas frentes. Tem-se de substituir o diálogo regido enfaticamente na estrita obediência às gramáticas portuguesas por uma fala que não só respeite o uso efetivo do português no Brasil, como também o elabore numa forma expressiva (2007, p. 172).

Neste momento, Bernardet reassume o discurso do próprio Cinema Novo tal como montado no período anterior a 1964.

Esse enfoque do cinema brasileiro em sua formação revela outro achado de método fundamental em Brasil em tempo de cinema, assinalado por Paulo Emilio Salles Gomes já em seu primeiro prefácio: “a principal descoberta de Jean-Claude Bernardet nasceu de duas deliberações: encarar o moderno cinema brasileiro como um todo orgânico e procurar a mais variada associação com o tempo nacional correspondente” (GOMES, 2007GOMES, Paulo Emílio Salles. Prefácio da 1. ed. In: GOMES, Paulo Emílio Salles. Brasil em tempo de cinema. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 18). Como Antonio Candido, Bernardet trata o cinema brasileiro enquanto sistema, abrindo um vasto campo de correlações e significados. Para o primeiro, no entanto, o sistema literário havia se completado já no século XIX, com a obra tardia de Machado de Assis (ARANTES, 1997ARANTES, Paulo Eduardo. Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Sentido da formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. São Paulo: Paz e Terra, 1997., p. 27-30). O cinema brasileiro, ao contrário, ainda estaria em seu momento de acumulação temática e de formas. Daí o tom enervado do livro, que sabe participar de um processo ainda incerto em todas as dimensões.

... à forma do conteúdo

A retomada da reflexão metodológica em Trajetória crítica preserva de Brasil em tempo de cinema três procedimentos fundamentais: tratar o cinema como sistema, a ideologia como sintoma objetivo e o filme como totalidade contraditória22 22 Sobre o conceito de crítica sintomática, ver Bordwell (1991, p. 8-9). . Quanto à primeira, Bernardet propõe ampliar o escopo de comparação ao conjunto da produção cultural brasileira, integrando cinema, teatro, literatura, artes plásticas, bem como desfazendo hierarquias entre o erudito e o popular (2011, p. 284-286). Trata-se de um método simétrico: chanchada e Cinema Novo deveriam ser apreendidos pelas mesmas categorias (2011, p. 272-275). Isso permitiria encontrar significações até então insuspeitas. Em relação ao segundo, argumenta que a ideologia objetiva se manifesta tanto ao nível da construção e relacionamento das personagens, da estrutura dramática quanto da forma enquanto totalidade de relações. Com isso, encaminha o terceiro procedimento: o filme deve ser entendido como uma totalidade complexa potencialmente contraditória (2011, p. 314-318). Ao invés de se perguntar pela unidade, como, aliás, era comum entre a crítica dominante nos anos 1950 (BERNARDET, 1994BERNARDET, Jean-Claude. O autor no cinema. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1994., p. 94-95), deve-se pesquisar dialeticamente o modo de interação entre suas distintas dimensões.

Há, com isso, um novo deslocamento na posição de sujeito da crítica. Se no paradigma da conscientização o objetivo é esclarecer o sentido ideológico para um leitor virtualmente revolucionário e, após o golpe, denunciar as limitações do cinema brasileiro como sintoma da classe média, agora Bernardet pretende investigar como as lutas de classes se manifestam no campo artístico (2011BERNARDET, Jean-Claude. Trajetória crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 300). “Mas de modo totalmente diferente do que costuma fazer a sociologia que em geral toma a obra como uma extensão ou expressão ou ilustração ou mesmo reflexo, no campo artístico, dos conflitos sociais em outras áreas” (2011, p. 300). Assim, “preserva-se o estético enquanto tal, mas para que não escape o objeto da análise concreta, isto por um lado; por outro, para investigar como o estético trabalha historicamente” (2011, p. 300). Nesse caso, como indica Ismail Xavier, ecoando a voz de Bernardet, “a busca formal dos cineastas não é ‘formalista’, mas ‘trabalho com o social’” (2021, p. 119).

Podemos identificar nessas tomadas de posição metodológicas uma dupla negação: de um lado, trata-se de preservar a autonomia do estético como legitimação da existência de estudos fílmicos em âmbito acadêmico contra a crítica sociologizante ou mesmo impressionista, doutro, trata-se de afastar o que Bernardet acreditava ser a ideologia da técnica importada com a semiologia, que assumiu posto no Brasil com a abertura dos primeiros cursos de comunicação.23 23 Como tradutor de A significação no cinema, de Cristian Metz, em 1972, Bernardet foi um dos principais promotores da semiologia estrutural nos estudos de cinema no Brasil.

Quanto à primeira, Bernardet questiona a capacidade da crítica marxista da época, de corte lukacsiano, para responder os problemas cinematográficos que então aventava. Para ele, análises da literatura feitas por intelectuais como José Paulo Netto e Carlos Nelson Coutinho, entre outras razões, ficariam comprometidas ao assumirem teses sociológicas abstratas, em geral importadas de outros contextos sociais e históricos, que não resistiriam a uma leitura próxima do texto (2011, p. 316-318). Já o estruturalismo importado de primeira hora do centro do capitalismo pela periferia, ao contrário, se satisfaria com a ilusão da técnica que lhe provê o arranjo de tabelas e números, desdenhando da dimensão ideológica da arte.

A assimilação da semiologia europeia nos dava a impressão de que nosso nível de informação atingia o dos pesquisadores europeus; a semiologia não criava caso ideológico, nem político; a semiologia dava foros de técnico a quem esteva totalmente desligado do processo de produção cultural brasileiro: uns quadros e uma tabelas já queriam dizer “profundo entendedor”, uma máquina de fazer doutores; os sonhos tecnocráticos da ideologia oficial, respondia-se com tecnologia importada (2011, p. 287).

Para Bernardet, a teoria deve emergir pari passu à análise dos filmes, no que ele chamou de “proposta de trabalho semiempírica e bastante selvagem que horrorizará a crítica universitária” (2011, p. 299). Assim, era preciso descobrir na estrutura mesma dos filmes as suas significações que, por fim, remontam sempre à totalidade social (2011, p. 320). Com isso, ele encaminha a fundamentação de um campo rigoroso de análise fílmica, então em plena articulação, ao mesmo tempo em que preserva a função da crítica como fator de agitação cultural no presente brasileiro. Nesse sentido, ele chegou a uma solução bastante próxima a que Antonio Candido e Roberto Schwarz, pouco antes, haviam sistematizado para a análise materialista da literatura (CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, p. 67-89, 1970. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i8p67-89.
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, 1974; SCHWARZ, [1972] 2009a). Grosso modo, para ambos, caberia à crítica analisar o que Antonio Candido nomeia redução estrutural, ou formalização, pelo que uma determinada realidade social se faz forma. A tarefa da crítica, portanto, seria compreender como a literatura internaliza na forma a sociedade que está, necessariamente, em sua base. Assim, ao se valer do conceito de estrutura de Antonio Candido, Bernardet passa a adotar um método em que “a dimensão social e o estilo não podem ser desconectados, porque os fatores externos e sociais são agentes da estrutura interna, de tal forma que a realidade social se transforma em componentes da estrutura cinematográfica” (ADAMATTI, 2014ADAMATTI, Margarida Maria. Crítica ensaística e resistência política em Jean-Claude Bernardet: o caso Lição de Amor. Galaxia(São Paulo, online), n. 27, 120-132, jun. 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542014116112.
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).

A ênfase na obrigação de não perder a análise concreta dos filmes ao se realizar generalizações ideológicas tem um ânimo polêmico em relação a outros métodos, mas pode ser entendida igualmente como acerto de contas com Brasil em tempo de cinema, momento em que a urgência da denúncia saltava a necessária apreensão do pormenor formal24 24 Há razões materiais para isso. Como já o disse Bernardet, a falta de cópias e de mesa de montagem o obrigou a falar de muitos filmes de memória. O que levou a inevitáveis inconsistências (2011, p. 254). . Desse modo, após um percurso de 20 anos, o método que vai dar origem a obras seminais como Cineastas e imagens do povo está plenamente formado.

Considerações finais

Ao investigar o método de análise fílmica em Brasil em tempo de cinema, Margarida Maria Adamatti (2016ADAMATTI, Margarida Maria. Brasil em Tempo de Cinema como método de análise fílmica de Jean-Claude Bernardet.E-Compós, v. 19, n. 3, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.30962/ec.1299.
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) ressalta a influência de dois autores franceses: Lucien Goldmann e Roland Barthes. Do primeiro, Bernardet teria emprestado o conceito de homologia das estruturas significativas, que o permitiu relacionar criticamente filmes e autores, entendidos não como indivíduos, mas como membros nem sempre conscientes da classe média. Já de Barthes, ele teria apreendido a limitação da crítica de classe de corte moral ou estético, em geral dirigida à burguesia, que não se elevava à condição de crítica política, permanecendo, portanto, perfeitamente recuperável. Acredito que ela tem razão.

De nossa parte, mais que encontrar influências teóricas externas, buscamos acompanhar o movimento interno ao pensamento de Bernardet desde inícios dos anos 1960 até 1978, quando ele publicou suas notas metodológicas em Trajetória crítica. Como afirma Arthur Autran, a obra de Bernardet é atravessada por uma disposição comum ao conflito com o objeto (AUTRAN, 2021AUTRAN, Arthur. Desassombrar os mitos. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021., p. 126). Seu pensamento, portanto, não poderia deixar de ser bastante sensível às viradas de conjuntura. Com isso, formou-se um modo de reflexão fundamentado na autocrítica permanente. Assim, Bernardet seria “um dos intelectuais mais socráticos de nosso meio, em sua constante busca do diálogo, da interação, da contenda ou, mesmo, do conflito” (REWALD, 2021REWALD, Rubens. O segredo do sistema Bernardet. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021., p. 133). Ou, em outra leitura, ao ir “na contramão do senso comum e do que está sendo canonizado como verdade” (PINTO, 2021PINTO, Ivonete. Os caminhos de Bernardet. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021., p. 62), Bernardet seria o nosso Nietzsche. Postura que por vezes assume um ar de “esqueçam o que escrevi”, como acentuou Lúcia Nagib (2021NAGIB, Lúcia. Bernardet visto de longe. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021., p. 25), dado que só o futuro lhe interessaria. Tanto por isso, para alguns, ele buscaria novos objetos o tempo todo e “não retoma seus assuntos” (MOREIRA, 2021MOREIRA, Roberto. Livre, sempre. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021., p. 142).

Nesse ponto, discordamos. Como mostrou Mateus Araújo (2021ARAÚJO, Mateus. Duas palavras sobre Bernardet e os estudos de cinema no Brasil. In: PINTO, Ivonete; MARGARIDO, Orlando (orgs.). Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro. Jundiaí, SP: Paco, 2021.), a sua obra, organizada em pares solidários e conceituais, está sempre em diálogo com seu passado, em uma busca de ruptura que se realiza não como mera fuga para frente, mas como superação reflexiva. Assim, como demonstra nosso artigo, as preocupações teóricas e políticas em Brasil em tempo de cinema, afetadas pelo golpe civil-militar, recuperam o movimento de reflexão sociológica e crítica que já havia tomado curso no diálogo com as obras do período. Nesse quadro, o conceito de classe média retrabalha o de burguesia, o conceito de ideologia objetiva já está implícito na análise d’O pagador de promessas e a crítica a um cinema afastado das classes fundamentais já aparece na primeira leitura de Barravento, ainda em 1963. Essa dialética entre ruptura e continuidade permanece o tempo todo, ao menos ao longo do período em que delimitamos o nosso objeto. Assim, se o pensamento de Bernardet se vale dos intelectuais franceses, como indica Adamatti, ele o faz segundo os problemas já colocados pelo autor de acordo com as solicitações que a totalidade social e suas contradições condicionaram.

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  • 1
    O conceito foi aqui formulado em diálogo com as reflexões de Bernardet. Em Trajetória crítica, ele afirma que na primeira metade da década de 1960 ninguém questionava o que estava por trás da ideia de conscientização, “justificativa para uma camada social que de algum modo se considera superior divulgar a sua ideologia para outra camada social” (2011, p. 95). Já distante dos anos que antecederam o golpe, Bernardet vê na ideia de conscientização ecos de teses reacionárias, tais como a de que “o problema do Brasil é a educação” (2011, p. 96). Além da “paixão pelo Brasil e sua história” (2011, p. 96), ele sugere a obra de Eisenstein e Brecht como influência de época. De nossa parte, acentuamos o caráter de paradigma, no sentido de modelo compartilhado, para indicar a pertinência histórica do conceito. Como argumentaremos a seguir, a industrialização planejada e suas contradições estabelecem então as condições de produção discursiva, tornando evidentes noções e conceitos que em outros contextos aparecem como problemáticos.
  • 2
    Para a crítica da “razão dualista”, ver Oliveira (2003). Grosso modo, o autor argumenta que a tese dualista de matriz cepalina, ao dividir um setor arcaico sobrevivente e um setor capitalista moderno em formação, teria contribuído para mascarar antagonismos internos de classes, acentuando a luta nacional pelo desenvolvimento. Com isso, adiava-se ou, pior, nem mesmo se aventava, perguntas como sobre a quem afinal interessaria o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Para o autor, o capitalismo na periferia não seria uma etapa histórica, mas sim um momento estrutural que expressou a necessidade de expansão do sistema. Assim, arcaico e moderno seriam partes constitutivas de uma mesma totalidade dialética. Por isso, o estado de exceção, na periferia, seria permanente.
  • 3
    Segundo Renato Ortiz, essa seria uma característica geral da época: “como a indústria cultural é incipiente, toda discussão sobre a integração nacional se concentra no Estado, que em princípio deteria o poder e a vontade política para a transformação da sociedade brasileira” (ORTIZ, 2001, p. 51).
  • 4
    O Estado de S. Paulo, 26 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 67). Os textos de jornais foram tomados à Trajetória crítica (2011). A página indica o lugar em que se encontram no livro. Sempre que o livro for citado sem a referência a um periódico é porque se trata de um dos comentários feitos por Bernardet no momento da publicação.
  • 5
    O Estado de S. Paulo, 26 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 67).
  • 6
    O Estado de S. Paulo, 26 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 64).
  • 7
    O Estado de S. Paulo, 12 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 75).
  • 8
    O Estado de S. Paulo, 30 set. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 80).
  • 9
    O Estado de S. Paulo, 30 set. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 80).
  • 10
    O Estado de S. Paulo, 30 set. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 82).
  • 11
    O Estado de S. Paulo, 13 maio 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 94).
  • 12
    Última Hora, 31 ago. 1963 (apud BERNADET, 2011, p. 137).
  • 13
    Bernardet estava bastante influenciado pela recente crítica sociológica do populismo. Ele cita Paul Singer (2007, p. 56), Francisco Weffort (2007, p. 79) e Luciano Martins (2007, p. 79) na fundamentação da sua tese.
  • 14
    O Estado de S. Paulo, 16 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 64).
  • 15
    O Estado de S. Paulo, 16 ago. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 65).
  • 16
    O Estado de S. Paulo, 8 set. 1962 (apud BERNADET, 2011, p. 88).
  • 17
    Última Hora, 31 ago. 1963 (apud BERNADET, 2011, p. 138).
  • 18
    O Estado de S. Paulo, 8 set. 1962 (apud BERNADET, 2011, p. 85).
  • 19
    O Estado de S. Paulo, 8 set. 1962 (apud BERNADET, 2011, p. 87).
  • 20
    O Estado de S. Paulo, 30 set. 1961 (apud BERNADET, 2011, p. 83).
  • 21
    Segundo Antonio Candido (2000, p. 23-25), há sistema literário quando, em âmbito nacional, se conforma no processo de produção e recepção um conjunto de denominadores comuns que são internos (língua, temas, imagens) e externos, quer dizer, sociais e psicológicos. Um sistema sempre constitui uma tradição amplamente reconhecida por aqueles que dele tomam parte, estabelecendo, inclusive, as condições estruturais para as rupturas estéticas.
  • 22
    Sobre o conceito de crítica sintomática, ver Bordwell (1991, p. 8-9).
  • 23
    Como tradutor de A significação no cinema, de Cristian Metz, em 1972, Bernardet foi um dos principais promotores da semiologia estrutural nos estudos de cinema no Brasil.
  • 24
    Há razões materiais para isso. Como já o disse Bernardet, a falta de cópias e de mesa de montagem o obrigou a falar de muitos filmes de memória. O que levou a inevitáveis inconsistências (2011, p. 254).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2021
  • Aceito
    11 Fev 2022
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