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Territorialidades em (trans)formação: vilas e cidades nos primeiros tempos da Assembleia Legislativa Mineira (1835-1843)

Territorialities in (Trans)formation: Villages and Cities in the Early Times of the Legislative Assembly of Minas Gerais (1835-1843)

Territorialidades en (trans)formación: villas y ciudades en los primeros tiempos de la Asamblea Legislativa de Minas Gerais (1835-1843)

RESUMO

Esta pesquisa observou que o advento do Regresso se refletiu nos debates sobre criação de vilas em Minas Gerais, revelando a imbricada relação entre surtos de autonomia municipal e acirramento da tensão partidária, que culminou na revolta de 1842. A proposta se insere na perspectiva teórica que enfatiza o papel do Poder Legislativo e das elites regionais no funcionamento da política imperial. Com o Ato Adicional de 1834, tais elites representadas nas recém-criadas Assembleias Provinciais passaram a ter o poder de decidir sobre a divisão territorial. A análise de debates parlamentares e leis votadas no período revelou, de maneira inédita, a conexão entre o processo de criação de vilas e a política imperial em seus diferentes níveis. Com efeito, a intensa descentralização político-administrativa observada em Minas Gerais em pleno alvorecer do Regresso evidenciou que o binômio centralização/descentralização não explica a complexidade da política do período.

Palavras-chave:
Divisão político-administrativa; história das cidades; câmaras municipais; Movimento Liberal de 1842; Minas Gerais

ABSTRACT

This research observed that the advent of the Regresso was reflected in the debates on the creation of towns in Minas Gerais, revealing the intertwined relationship between outbreaks of municipal autonomy and the intensification of partisan tension, which culminated in the revolt of 1842. The proposal is part of the theoretical perspective that emphasizes the role of legislative power and regional elites in the functioning of imperial politics. With the Additional Act of 1834, these elites represented in the newly created Provincial Assemblies gained the power to decide on territorial division. The analysis of parliamentary debates and laws voted in the period revealed, in an unprecedented way, the connection between the process of creating towns and imperial politics at its different levels. In effect, the intense political-administrative decentralization observed in Minas Gerais at the dawn of the Regresso showed that the centralization/decentralization binomial does not explain the complexity of the Regress Politics.

Keywords:
Political-Administrative Division; History of Cities; Municipal Councils; Liberal Movement of 1842; Minas Gerais

RESUMEN

Este estudio observó que la llegada del Regreso se reflejó en los debates de la creación de las villas en Minas Gerais, revelando la entrelazada relación entre focos de autonomía municipal e intensificación de la tensión política partidaria, que culminó en la revuelta de 1842. La propuesta se introduce en la perspectiva teórica que enfatiza el papel del poder legislativo y de las élites regionales en el funcionamiento de la política imperial. Con el Acto Adicional de 1834, estas élites representadas en las recién creadas Asambleas Provinciales pasaron a tener el poder de decidir sobre la división territorial. El análisis de los debates parlamentares y de las leyes votadas en el periodo reveló, de forma inédita, la conexión entre el proceso de creación de las villas y la política imperial en sus diferentes niveles. De hecho, la intensa descentralización político-administrativa observada en Minas Gerais en pleno inicio del Regreso, evidenció que el binomio centralización - descentralización no explica la complejidad de la política del periodo.

Palabras Clave
división político-administrativa; historia de las ciudades; cámaras municipales; Movimiento Liberal de 1842; Minas Gerais

Espaço e poder em Minas Gerais

A criação de vilas em Minas Provincial atendeu a antigas demandas por divisão civil de um território marcado por distintos processos regionais de povoamento. Desde a Colônia, petições locais eram enviadas às autoridades competentes para a elevação de núcleos urbanos ao foro de vila. Interesses diversos contribuíram para que vários arraiais mineiros tivessem suas solicitações recorrentemente negadas, apesar de possuir “atributos semelhantes aos das cidades e vilas existentes” (MORAES, 2007MORAES, Fernanda Borges de. De arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas coloniais. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (org.). História de Minas Gerais. As Minas setecentistas. v. 1. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 55-85., p. 62). Ao fim da fase colonial, a rede urbana mineira compunha-se de mais de 300 arraiais e apenas 16 vilas e uma cidade, apesar de ser mais populosa do que Bahia - com 40 vilas - e São Paulo, com 31.

Para além do processo de ocupação territorial desde tempos coloniais, o estudo da dinâmica da instalação de vilas e cidades mineiras é capital ao entendimento dos meandros da política provincial. As peças desse jogo de forças impactam decisivamente na política regional e nos rumos da própria política imperial, tendo em vista a importância decisiva de Minas no jogo político nacional, por ser de longe, a província com maior representatividade nas bancadas da Câmara dos Deputados e Senado. A demanda por descentralização do poder local em uma província marcada por uma diversidade regional constituída por distintos processos de povoamento compõe um campo aberto à investigação. Sendo assim, esta pesquisa busca refletir sobre a atuação das elites com projeção na Assembleia Mineira na configuração do mapa do poder local, bem como as disputas por protagonismo político em diferentes níveis. A negociação e/ou conflito envolvia relações entre diferentes esferas de poder: Executivo e Legislativo provinciais; entre estes e as câmaras municipais; entre as câmaras e as freguesias; e, às vezes, com interferências do poder central.

A análise das trans (formações) na divisão civil permite apreender os conflitos e a fluidez na constituição de uma cartografia do poder local mineiro nos anos que antecederam a Revolta Liberal de 1842. A complexa urbanização mineira resultou em processos de hierarquização social e formação de elites em seus núcleos urbanos. Parte seleta dessas elites ganhou projeção com a instalação da Assembleia Provincial em 1835. Às elites ali representadas, a temática da demarcação territorial era crucial, pois interferia diretamente nos resultados eleitorais. Argumenta-se que a instalação do poder legislativo mineiro favoreceu esse tipo de debate, ao transferir às elites regionais a atribuição de legislar sobre as divisões civil, eclesiástica e judiciária. Todavia, esse processo estava condicionado à representatividade e capacidade de negociação política.

A (re) organização do poder local no início do regime monárquico

No período colonial, a expressão termo de vila abrangia a base territorial municipal, mas a designação município não era empregada, por se tratar de terras não emancipadas. Durante o Império, as duas denominações (município e termo) passaram a ser utilizadas indistintamente (CHAVES, 2013CHAVES, Edneila Rodrigues. Criação de vilas em Minas Gerais no início do regime monárquico: a região norte. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 29, n. 51, p. 817-845, set./dez., 2013., p. 818) para se referir a uma circunscrição civil. Por sua vez, a vila/cidade era a sede dessa demarcação. Logo, quando um arraial era elevado à categoria de vila, instalava-se ali um núcleo de poder local: a câmara municipal. A cidade, por seu turno, era um título honorífico conferido às vilas mais importantes, do ponto de vista religioso, político ou militar. Já a divisão judiciária era estruturada em comarcas que se dividiam em termos e estes em distritos de paz. A divisão eclesiástica, por sua vez, era formada por bispados e freguesias. Grande parte do território mineiro era regido por bispados de províncias vizinhas, pois Minas possuía apenas um bispado. A freguesia/paróquia era a base da vida política imperial, pois os alistamentos e eleições ocorriam nas igrejas (sedes paroquiais). Assim, a criação de uma freguesia era o primeiro passo para pleitear o foro de vila.

As primeiras vilas instaladas em Minas decorreram do povoamento inicial dos centros mineradores e visou à melhoria da fiscalização da produção aurífera e controle da população por parte da Coroa (MORAES, 2007MORAES, Fernanda Borges de. De arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas coloniais. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (org.). História de Minas Gerais. As Minas setecentistas. v. 1. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 55-85., p. 65). De fins do século XVIII a meados do Oitocentos, a exaustão das lavras auríferas gerou um deslocamento demográfico em direção às fronteiras, em busca por terras agricultáveis e pastoris. Tais migrações geraram um progressivo rearranjo na distribuição populacional. Porém, nenhuma vila foi criada de 1731 a 1789, por ação do poder régio - que temia a eclosão de rebeliões fiscais - e das vilas existentes, que resistiam à perda de territórios (FONSECA, 2003FONSECA, Cláudia Damasceno. Funções, hierarquias e privilégios urbanos. A concessão dos títulos de vila e cidade na Capitania de Minas Gerais. Varia Historia, n. 29, v. 19, p. 39-51, jan. 2003., p. 39-51).

As demandas por criação de vilas só começaram a ser respondidas ao fim do Setecentos, mormente nas áreas da comarca de Rio das Mortes. Além de disputas territoriais entre províncias vizinhas, da questão fiscal, expansão migratória e mobilização de grupos locais influentes, a edificação de vilas nesse momento indicou a tentativa de apaziguar os ânimos regionais, após a Inconfidência (MORAES, 2007MORAES, Fernanda Borges de. De arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas coloniais. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (org.). História de Minas Gerais. As Minas setecentistas. v. 1. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 55-85., p. 82).

Após a Independência do país, o poder central criou o Conselho de Governo e o Conselho Geral das províncias. O Conselho Geral era eletivo e intermediou a relação entre os poderes local e central até a aprovação do Ato Adicional de 1834. Os conselheiros questionavam intensamente a divisão civil herdada do passado colonial e a má gestão das câmaras. Em 1828, o Conselho Geral passou a fiscalizar as ações das câmaras e se destacou no envio de proposições de criação de vilas ao poder Central. Essas propostas eram feitas por autoridades locais (juízes de paz, párocos e câmaras) e seguiam acompanhadas de inúmeras assinaturas. Os abaixo-assinados serviam para reforçar a ideia de que o pedido era desejado pelos povos do lugar (FERNANDES, 2017FERNANDES, Renata Silva. Unir e dividir: as controvérsias em torno da organização político-administrativa do território na Província de Minas Gerais (1825-1834). Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 22, p. 289-308, 2017., p. 292).

De 1830 a 1834, a Câmara dos Deputados passou a legislar a respeito do tema e, frente a uma agenda fiscal, Minas se destacou na divisão territorial. A proposta enviada pelo Conselho Geral de Minas em 1830 serviu de fundamento para a criação das vilas de Montes Claros, São Romão, Diamantina, Curvelo, Rio Pardo, Araxá, Lavras, Pouso Alegre e Pomba, no ano de 1831.1 1 COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil (doravante: LIB). Decreto de 13 de outubro de 1831. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1831. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis/copy_of_colecao3.html. Acesso em: 17 set. 2022. As regiões mais atendidas foram aquelas que sempre demandavam a criação de municipalidades e mais se ressentiam da distância em relação às sedes de seus termos e das disputas territoriais nos limites de Minas, fruto do esforço das elites mineiras na consolidação das fronteiras provinciais (FERNANDES, 2018FERNANDES, Renata Silva. As províncias do Império e o “governo por conselhos”: o conselho de governo e o conselho geral de Minas Gerais (1825-1834). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2018., p. 621).

Em 1833, as comarcas de Paraibuna, Sapucaí e Jequitinhonha foram instituídas pelo Conselho de Governo de Minas. A criação de comarcas era essencial ao processo de interiorização da justiça em uma província tão vasta. Na esfera política, ampliava-se o poder da sede da nova comarca, ao passo que se reduzia a jurisdição e poder da antiga comarca. Logo, uma nova comarca significava a formação de uma elite regional estabelecida em sua sede. Ainda nesse ano, o poder central fundou as vilas de Januária e Itabira. Esta última foi desmembrada de Caeté, que teve os foros de vila suprimidos, em punição por ter apoiado a Sedição de Ouro Preto, ocorrida em março desse ano.2 2 LIB. Resolução de 30 de junho de 1833. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1833. Tais medidas decorreram de pedido do presidente em Conselho de Governo, Manoel Ignácio de Mello e Souza. Por fim, a vila de Aiuruoca foi criada no dia em que se assinou o Ato Adicional de 1834.3 3 LIB. Resolução n. 17 de 14 de agosto de 1834. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1834.

Figura 1
Vilas e comarcas mineiras (1834)

Assim, de 1831 a 1834, foram instaladas três vilas na comarca do São Francisco - São Romão, Montes Claros e Januária. A ocupação do Vale do Jequitinhonha se deu em virtude da ligação de Minas Novas à região mineradora de Rio de Contas, cujo território pertencia à Bahia no século XVIII e, após disputa entre Minas e Bahia, foi transferido para Minas. Em 1833, os novos termos de Curvelo, Diamantina e Rio Pardo compuseram a recém-criada comarca do Jequitinhonha. A criação da vila de Rio Pardo foi defendida pelo deputado baiano Francisco Gê Acaiaba de Montezuma (futuro visconde do Jequitinhonha), atendendo a pedido de um político local (CHAVES, 2013CHAVES, Edneila Rodrigues. Criação de vilas em Minas Gerais no início do regime monárquico: a região norte. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 29, n. 51, p. 817-845, set./dez., 2013.). Em resumo, a divisão setentrional mineira foi redesenhada, mas persistia a concentração de vilas no eixo centro-sul (68,9%).

Cortes e recortes espaciais: a criação de vilas e cidades na Assembleia Mineira

Em 7 de setembro de 1833, moradores e autoridades do arraial de Camanducaia se reuniram para celebrar a independência do país na praça da Matriz e resolveram “fazer sua própria independência, elevando a freguesia à condição de vila, separada do termo de Pouso Alegre” (BARBOSA, 1995BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995., p. 67). Entre Pouso Alegre e Camanducaia, havia uma disputa pelo poder camarário. Camanducaia foi anexada ao termo da nova vila de Pouso Alegre em 1831, mas se julgava mais adequada a sediá-lo. Além disso, a câmara de Pouso Alegre era acusada de não encaminhar os pedidos de autonomia municipal de Camanducaia à Assembleia Geral. Em 1833, o arraial se queixava de arbitrariedades na administração da justiça cometidas na sede do termo (FERNANDES, 2017FERNANDES, Renata Silva. Unir e dividir: as controvérsias em torno da organização político-administrativa do território na Província de Minas Gerais (1825-1834). Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 22, p. 289-308, 2017., p. 290) e resolveu chamar atenção para a sua causa.

O Ato Adicional de 1834 criou as Assembleias Provinciais e a elas atribuiu a divisão territorial.4 4 LIB. Lei n. 16 de 14 de agosto de 1834. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1834. Em 1835, no início dos trabalhos da Casa, o presidente da Comissão de Estatística analisou um pedido de emancipação de Camanducaia e usou o ato de rebeldia de 1833 como justificativa para indeferi-lo. Declarou Ottoni:

o ato de delírio praticado pelos cidadãos iludidos que declararam vila independente aquele arraial, sem para isso terem autorização alguma, provava que ali não existem muitas pessoas com as necessárias luzes e aptidão para os empregos municipais e a criação da vila iria sancionar um precedente funesto habilitando os desordeiros a satisfação de suas pretensões por meios ilegais.5 5 ANAIS da Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais (doravante: AMG). Sessão de 6 de fevereiro de 1835. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 1.148, 11 fev. 1835. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=706930&pagfis=10095. Acesso em: 2 jul. 2022.

A elevação de um arraial a vila significava a expressão do poderio econômico no plano político. Os principais atributos que qualificavam uma povoação a pleitear a autonomia municipal era a localização, aspectos populacionais, fomento econômico e capacidade fiscal. Mas era preciso ter representação parlamentar para lutar por tais medidas. Grande parte dos debates se ocupou dessas questões. Um levantamento do quantitativo de vilas criadas na primeira década de funcionamento da Assembleia Mineira salientou a existência de um incremento à divisão civil, do último ano da segunda legislatura (1839) ao terceiro biênio (1840-1841). O período correspondeu à transição do domínio liberal ao conservador, marcada por uma escalada de conflitos que culminou no “Movimento Liberal de 1842”. A exacerbação da luta partidária se refletiu na divisão provincial, desnudando a imbricada relação entre surtos de criação de vilas e acirramento da tensão partidária.

Figura 2
Número de vilas criadas pela Assembleia Mineira (1835-1844)

A primeira legislatura provincial foi composta por maioria liberal. Com o governo mineiro comandado pelo liberal Limpo de Abreu, havia afinidade entre os poderes provinciais (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, Kelly Eleutério Machado. A Assembleia Provincial de Minas Gerais e a formação do Estado nacional brasileiro, 1835-1845. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2018., p. 118). O desenlace da Sedição Militar de 1833 cindiu a Casa em quatro grupos liderados por Bernardo de Vasconcellos, Manoel Ignacio de Mello e Souza, um grupo apelidado de “enfants enragés”, com nomes como Teófilo Ottoni e um grupo de independentes/indecisos. À exceção deste último, os principais grupos formados em torno de três grandes líderes marcariam profundamente a política imperial (RODARTE, 2014RODARTE, Claus. Os liberais de Minas e o “Regresso”. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, n. 69, p. 70-85, 2014., p. 70). Neste triênio (1835-1837), 14 deputados provinciais (cerca de 30%) provinham de Ouro Preto e Mariana.

A partir de 1835, as representações dos povos referentes à organização territorial passaram a ser remetidas à Assembleia Provincial. Ali, eram remetidas à Comissão de Estatística, responsável por elaborar pareceres sobre o tema e apresentar ao debate na tribuna. O primeiro presidente dessa Comissão foi Teófilo Ottoni. Do Conselho Geral de Minas aos primeiros anos da -Assembleia Provincial, há uma mudança na percepção das elites regionais no que tange à criação de municípios. Até 1834, o Conselho via na criação de vilas uma solução para a melhoria na gestão camarária. A partir de 1835, havia um cenário de harmonia entre os poderes províncias e a Assembleia que possuía maior autonomia para levar a cabo um projeto descentralizador. Todavia, a Casa se opôs a criar municípios e freguesias, apesar das 20 petições recebidas nesse triênio. Anos depois, o cônego José Antônio Marinho alegou que a Assembleia Mineira dos primeiros tempos buscou frear os males gerados pelo excesso de divisões:

Convencida a maioria dos graves males produzidos pela multiplicidade de Municípios e Freguesias, que só tendem a multiplicar embaraços na administração pública e agravar os cofres provinciais, foram repelidas pela Comissão de Estatística, de que era membro relator o ex-Deputado Otoni, todas as pretensões deste gênero; e não só isto, indicou a mesma comissão a supressão de muitas Freguesias, cuja pequenez, ou proximidade de outras, as tornava inúteis (MARINHO, 1977, p. 78).

É possível que tenha surgido algum aspecto negativo associado às últimas demarcações do início dos anos 1830. Fato é que, alegando economia dos cofres públicos, a Casa indeferiu quase todos os pedidos de divisão civil. Uberaba foi a única vila criada neste triênio, em projeto de autoria do ouropretano Antônio José da Silva - cônego da freguesia de Uberaba desde 1815 e aliado de Vasconcellos. Ao debater a mudança do Julgado do Desemboque para Uberaba, Ottoni ofereceu a emenda de Silva, fundando a vila de Uberaba e anexando o Julgado do Desemboque a Araxá.6 6 AMG. Sessão de 10 de fevereiro de 1836. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 20, 15 fev. 1836. As duas medidas7 7 LIVRO das Leis Mineiras (doravante: LM). Lei n. 28 de 24 de setembro de 1836. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1836. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/docreader.aspx?bib=253634. Acesso em: 13 out. 2022. significaram a vitória de um projeto de poder sobre as terras do Pontal do Triângulo, diante da antiga disputa de domínio dessas áreas pelos cônegos Silva e Hermógenes. A agropecuária se expandiu na comarca de Paracatu, com migrações advindas do centro de Minas em direção ao oeste (CUNHA, 2007CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania à província: elites políticas e a administração da fazenda em um espaço em transformação. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2007.). Mas o que possibilitou a criação da vila de Uberaba foi a influência do cônego Silva. Até então, Paracatu era a única vila existente nesta vasta porção, até se criar Araxá (1831) e Uberaba (1836), minguando o poder de Hermógenes nestas fronteiras.

Em setembro de 1837, inaugurou-se a política do Regresso. O mineiro Bernardo Pereira de Vasconcellos foi um dos seus grandes articuladores e assumiu a pasta da Justiça. Com a vitória liberal para o biênio 1838-1839, se intensificaram as tensões entre legislativo e executivo provinciais, nas gestões dos regressistas José Cesário Miranda Ribeiro e Evaristo da Veiga. Findou a fase de coadjuvação entre os poderes provinciais (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, Kelly Eleutério Machado. A Assembleia Provincial de Minas Gerais e a formação do Estado nacional brasileiro, 1835-1845. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2018., p. 192).

De maioria liberal e com marcada representação de políticos das comarcas de Ouro Preto, Piracicava, Rio das Mortes, Serro Frio, Rio das Velhas e Paraibuna, seguido das de Rio Verde, Sapucaí e Rio Grande, a segunda legislatura provincial (1838-1839) fez oposição ao governo. O advento do Regresso possivelmente despertou nos liberais o medo da exclusão da vida pública, motivando-os a forjar mais câmaras municipais. Além disso, ainda que a maioria liberal tenha sido reeleita para a segunda legislatura provincial, o aumento na criação de vilas em 1839 pode ter ocorrido em virtude da nova conformação parlamentar. Neste cenário de incerteza eleitoral e de nova composição na Casa, em 1839, foram criadas as vilas de Santa Bárbara (desanexada de Mariana e Itabira), Bonfim (Sabará), Formiga (Tamanduá), Oliveira (São João del Rei), São João Batista do Presídio (Pomba) e Caldas (Jacuí),8 8 LM. Lei n. 134 de 21 de março de 1839. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1839. em territórios situados nas comarcas de Ouro Preto, Rio das Velhas, Rio das Mortes, Paraibuna e Sapucaí. Neste ano, também foram instauradas as comarcas de Rio Verde e Rio Grande (MINAS GERAIS, 1839).

De autoria de José Feliciano Pinto Coelho da Cunha (futuro Barão de Cocais), a criação da vila de Santa Bárbara parecia estar nos planos de Teófilo Ottoni em 1836, quando indeferiu pedidos dos povoados de São Miguel e Paulo Moreira, pontuando que futuramente seria escolhida sede mais apropriada para um novo termo extraído de partes de Mariana e Itabira.9 9 AMG. Sessão de 16 de fevereiro de 1835. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 1147, 20 fev. 1835. A criação das vilas de Bonfim, Formiga e Oliveira era de autoria do padre João Antunes Corrêa, residente em Tamanduá. Formiga inicialmente tentou tomar de Tamanduá o posto de sede do termo.10 10 AMG. Sessão de 26 de março de 1835. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 1163, 30 mar. 1835. Não conseguiu, mas se emancipou. E a instauração da vila do Bonfim malogrou os planos de Santa Luzia, que pleiteava idêntico título. Ambos pertenciam à Sabará. Por sua vez, a elevação de Caldas à vila foi proposta pelo deputado estreante Tristão Alvarenga e a vila do Presídio foi defendida pelo liberal barbacenense Pedro de -Alcântara Cerqueira Leite.11 11 AMG. Sessão de 18 de fevereiro de 1839. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 44, 18 mar. 1839.

Territorialidades rivais: divisão civil, eleições e antecedentes da revolta

Em fins de 1839, os regressistas formaram maioria para a terceira legislatura provincial (1840-1841) e a presidência foi entregue ao conservador Bernardo Jacinto da Veiga. Em 1840, foi restaurada a vila de Caeté, proposta por João Teixeira da Fonseca Vasconcellos (futuro visconde de Caeté), morador de Santa Bárbara. Além do simbolismo em se restaurar uma vila extinta pelo poder central por se envolver na Sedição de 1833, a medida se traduziu em perda territorial para Santa Bárbara, Ouro Preto e Sabará.12 12 AMG. Sessão de 27 de fevereiro de 1840. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 32, 15 mar. 1840. O incremento à divisão civil iniciado em 1839 por uma Casa de maioria liberal, despertou inúmeros encaminhamentos à Comissão de Estatística no ano seguinte, como se nota na figura abaixo:

Tabela 1
Arraiais que peticionaram a elevação a vila e comarcas a que pertenciam (1840)

Além dos 14 pedidos, surgiram petições reveladoras dos antagonismos entre povoações vizinhas: Queluz requereu a revogação da lei de 1839 que criou a vila do Bonfim; Itajubá pediu para ser reincorporada a Campanha e, assim, sair do termo de Pouso Alegre; Porto do Salgado pediu a transferência da sede da vila de Januária para seu arraial; Jacuí pediu a transferência da vila; e São Francisco de Paula e Campo Belo solicitavam a transferência de Tamanduá para o termo de Oliveira.13 13 AMG. Sessão de 4 de fevereiro de 1840. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 17, 7 fev. 1840; AMG. Sessão de 24 de fevereiro de 1840. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 24, 13 fev. 1840.

Por fim, dentre os 14 pedidos de emancipação municipal, quatro foram aprovados em 1840 (Figura 6), sendo então fundadas as vilas de Conceição (desanexada do Serro), Camanducaia/Jaguari (Pouso Alegre), Grão Mogol (Montes Claros) e Patrocínio (Uberaba).14 14 LM. Lei n. 171 de 23 de março. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1840. A emancipação dessas povoações foi encampada por Francisco Vasconcellos, Miranda, Silva e Oliveira e Castro, residentes respectivamente em Ouro Preto, Mariana, Araxá e Montes Claros. Camanducaia finalmente emancipou-se de Pouso Alegre, passando a se chamar Jaguari. Além da divisão civil, em janeiro de 1840, o presidente da província convocou sessão extraordinária para reformar a divisão judiciária e duas comarcas foram criadas: Paraná (termos de Uberaba e Araxá) e Piracicava (Santa Bárbara, Itabira e Caeté). Em maio deste ano, foi aprovada a Lei de Interpretação do Ato Adicional, que transferia todo o sistema judicial e policial ao poder central. A lei só se efetivou com a Reforma do Código do Processo Criminal, adotada em fins de 1841 (CASTRO, 1985CASTRO, Paulo Pereira. A experiência republicana, 1831-1840. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II. O Brasil Monárquico, v. 2. Rio de Janeiro: Difel, 1985. p. 9-67.). Apesar de tais leis terem sido aprovadas nos interstícios das sessões, foram defendidas pela Assembleia Provincial, de maioria conservadora. Neste ínterim, conflitos se expandiram nas urbes mineiras inconformadas com as novas leis. Em julho de 1840, a Sedição de Araxá forçou a mudança do magistrado e vereadores para o Desemboque. Vereadores e juiz de paz de Tamanduá entraram em conflito nas eleições primárias de outubro de 1840, e o governo enviou forças para conter a situação.15 15 O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 148, 21 dez. 1840. Esses episódios são emblemáticos do clima político vigente, revelando o acirramento dos embates e o protagonismo das câmaras municipais (AMARAL, 2019AMARAL, Alex Lombello. Entre armas e impressos: a revolta de 1842 em Minas Gerais. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019., p. 92).

Figura 3
Colégios eleitorais de maioria liberal nas eleições de 1840

Figura 4
Colégios eleitorais de maioria conservadora nas eleições de 1840

Figura 5
Vilas criadas pela Assembleia Mineira (1836 e 1839-1841)

Figura 6
Vilas mineiras (1842)

Figura 7
Representação dos deputados provinciais por comarcas (1835-1843)

Após a declaração da maioridade do imperador, os liberais retomaram o poder em julho de 1840 e obtiveram maioria nas eleições para as Assembleias Geral e Provincial. O partido liberal dominou oito dos dez maiores colégios da província. Além disso, os liberais dominaram em colégios distribuídos em todas as comarcas e triunfaram em todos os colégios das comarcas de Ouro Preto,16 16 Não se sabe o resultado da eleição na vila de Queluz ou se Queluz possuía um colégio eleitoral. Piracicava, Jequitinhonha, Sapucaí, Paracatu e Paraibuna. Na comarca de Sapucaí, a votação liberal foi quase unânime.

Nesse sentido, o partido liberal conquistou 36 colégios eleitorais, sendo 29 sediados em vilas. À exceção de Oliveira, todas as vilas instituídas em 1839 - último ano de domínio liberal na província - apoiaram os liberais. Em Três Pontas - que seria emancipada da liberal Lavras em 1841 -, o triunfo liberal se deu em votação apertada. Nos colégios de Ouro Fino (município de Pouso Alegre), Alfenas e Cabo Verde (termo de Caldas), situados no vale do Sapucaí, a votação liberal foi unânime. Em Santa Quitéria - pertencente à Sabará e terra natal do deputado liberal Teixeira da Fonseca Vasconcelos, os liberais prevaleceram com tranquilidade. Em Itacambira, município de Grão Mogol, também houve expressivo triunfo liberal.17 17 O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 140, 2 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 141, 4 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 142, 7 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 143, 9 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 144, 11 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 145, 14 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 146, 16 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 147, 18 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 148, 21 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 151, 30 dez. 1840.

No sul mineiro, houve empate na votação de Jaguari, que acabou de se emancipar de Pouso Alegre, onde os liberais venceram. Na comarca de São Francisco, no arraial de São Domingos (Montes Claros) e Julgado de Barra do Rio das Velhas (Grão Mogol), houve empate. A posição do eleitorado de Barra do Rio das Velhas parece associada a disputas entre os termos de Grão Mogol e Montes Claros: o Julgado foi transferido para Grão Mogol neste ano; a câmara de Montes Claros reagiu à perda do Julgado, solicitando a sua extinção. Nesse sentido, desacordos entre arraiais e vilas podem ter influenciado no acirramento da competição, gerando o empate nestes colégios.

De outro lado, o Regresso obteve alguma expressão nas comarcas de Rio das Velhas, São Francisco, Paraná e Rio Verde. Os conservadores obtiveram vantagem em apenas 13 colégios, sendo sete sediados em vilas. Sob a influência de conservadores importantes como o deputado geral Luiz Antônio Barbosa e Bernardo Jacinto da Veiga, Sabará e Campanha mantiveram a tradição conservadora. À exceção de Sabará e Campanha - com o segundo e terceiro maior eleitorado de Minas, os colégios de maioria conservadora possuíam um eleitorado pequeno. Dentre as vilas que apoiaram o Regresso, três foram constituídas no período colonial: Sabará (1711), Pitangui (1715) e Campanha (1798). As outras quatro vilas de maioria conservadora foram criadas nos anos 1830: São Romão (1831), Januária (1833), Uberaba (1836), Oliveira (1839).

Caeté e Conceição apoiaram os conservadores nestas eleições e foram elevadas a vila no mesmo ano. Os regressistas também formaram maioria em Piumhi, Bambuí e Itajubá. -Piumhi se tornaria vila em 1841, desmembrando-se de Formiga. Já Bambuí pertencia a Pitangui, e Itajubá pertencia a Campanha. Destes três colégios, apenas Piumhi não acompanhou o termo a que pertencia na votação, visto que Formiga obteve maioria liberal. A maioria conservadora em Piumhi pode ter contado na decisão por sua emancipação municipal, no ano seguinte.

Os conservadores contestaram os resultados das eleições de 1840, rotulando-as de “eleições do cacete”. As denúncias de irregularidades deste ano em nada diferiam das ocorrências de votações pregressas. A diferença é que, dessa vez, havia um evidente intuito de anular o resultado. Logo, como notou Alex Amaral (2019AMARAL, Alex Lombello. Entre armas e impressos: a revolta de 1842 em Minas Gerais. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019., p. 121), a fama violenta deste pleito foi concebida para possibilitar a dissolução das Assembleias, viabilizando a continuidade do domínio do Regresso: “os situacionistas queriam anular as eleições de 1840 e penadas de Juízes de Paz eram assunto batido, argumento insuficiente para comover a opinião pública.” Para o pesquisador, a ideia que se impôs na historiografia de que o governo fazia as eleições e a maioria contribuiu para abafar os estudos sobre o tema. Porém, as eleições eram importantíssimas às pessoas da época, que “não compartilhavam da crença na invalidade do sistema representativo de seu tempo” (AMARAL, 2019AMARAL, Alex Lombello. Entre armas e impressos: a revolta de 1842 em Minas Gerais. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019., p. 100).

As elites locais se articulavam para eleger representantes que defendessem seus interesses, como a demanda por autonomia política. Portanto, este estudo destaca a existência de uma relação intrínseca entre as (trans) formações na divisão civil e as conjunturas político-partidárias dos primeiros anos de funcionamento da Assembleia Mineira, que passou a decidir sobre essa importante questão. Durante o período, nota-se um incremento à criação de vilas entre 1839 e 1841, intimamente associado à exacerbação da luta partidária que culminou na revolta de 1842. Após 1841, deputados provinciais liberais questionavam as emancipações municipais de 1840-1841, alegando que estas divisões impulsionariam ainda mais os embates eleitorais nas localidades. Além disso, argumentava-se que a criação de mais vilas onerava os cofres públicos. Em março de 1841, o periódico ouropretano O Universal publicou um extrato de O Popular de São José del Rei, tecendo duras críticas às freguesias, vilas e comarcas votadas em 1840, denunciando a má fé dos regressistas. Acusou-os de promoverem uma desorganização da divisão provincial, após derrota nas urnas:

Outro meio de que vão lançar mão os desorganizadores da província, consiste em elevar a paróquias todos os distritos da província, a vilas quase todas, e a comarcas não poucos municípios dos que ora existem, por entenderem que fazendo isso e não sendo possível que persistam, faltando dinheiro para fazer face à despesas, necessariamente hão de ver revogadas tão absurdas deliberações e os que as fizerem acarretarão sobre si a indisposição dos povos; (...) pretendem decretar tudo isso e, ao mesmo tempo, negar ao governo a lei do orçamento, deixando-o inabilitado para ocorrer as necessidades públicas.18 18 O UNIVERSAL. Comunicado. Do Popular. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 35, p. 1, 31 mar. 1841.

Assim, a Assembleia Mineira criou mais quatro vilas nas sessões de 1841: Piranga, Piumhi, São João Nepomuceno e Três Pontas.19 19 LM. Lei n. 202 de 1º de abril de 1841. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1841. Foram criadas nove vilas neste biênio conservador.

Assim, é preciso apreender essas trans (formações) na divisão político-administrativa mineira, à luz do entendimento da instabilidade política e competição eleitoral vigentes. As insatisfações geradas pela descentralização do poder resultante das demarcações aprovadas de 1839 a 1841 se somaram à exacerbação da tensão partidária nos diversos núcleos urbanos. A província vivia a eclosão de tensões entre localidades e governo mineiro, com suspensões de câmaras, prisões de vereadores e ameaça de anulação da eleição que deu vitória aos liberais em 1840. Em março de 1841, um Gabinete conservador subiu ao poder e, no mês seguinte, um legislativo mineiro de maioria regressista anulou as ditas “eleições do cacete”. Em meio a isso, a Reforma do Código do Processo Criminal e a recriação do Conselho de Estado caí-ram como bomba no colo liberal, pois seu teor revelava a extensão das mudanças sugeridas na lei de 1840 (CASTRO, 1985CASTRO, Paulo Pereira. A experiência republicana, 1831-1840. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II. O Brasil Monárquico, v. 2. Rio de Janeiro: Difel, 1985. p. 9-67.). A reforma acenava à redução do poder das câmaras e juízes de paz, despertando o temor das perseguições.

Desde a Regência, a justiça eletiva local fortalecia o papel do juiz de paz e da câmara municipal na autoridade de justiça e polícia. Além disso, desde 1832, cabia às câmaras confeccionar a lista tríplice (muitos não diplomados) de juízes municipais, de órfãos e promotores e enviar à apreciação do presidente da província. A reforma de 1841 transferiu tais atribuições para delegados e subdelegados (cargos novos, de escolha do chefe de polícia), juízes municipais e chefes de polícia. Além disso, juízes de paz e vereadores não podiam mais indicar cargo algum, nem mesmo os de escrivão, oficial, carcereiro e inspetor de quarteirão (DANTAS, 2020DANTAS, Mônica Duarte. O código do processo criminal e a reforma de 1841. Dois modelos de organização dos poderes. História do Direito: RDH, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 96-121, jul./dez., 2020., p. 1.712). Esvaziava-se o poder eletivo local, concentrando o poder judiciário nas mãos do Gabinete. Ademais, anteriormente, competia à Junta paroquial - formada pelo juiz de paz, o pároco e presidente da câmara municipal - elaborar a lista de jurados e essa atribuição foi transferida ao delegado de polícia. Com o advento destas leis, a tensão se elevou agudamente, conforme Alex Amaral (2019AMARAL, Alex Lombello. Entre armas e impressos: a revolta de 1842 em Minas Gerais. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019., p. 93), devido ao seu potencial de mobilizar grande número de ricos e pobres, por abranger diversas questões locais: atingir políticos, autoridades judiciais e policiais locais, interferir nas eleições, no recrutamento e até na luta dos negros por liberdade, uma vez que circulavam rumores de reescravização de homens livres de cor.

Em fins de 1841, vereadores de São João del Rei, Barbacena e Presídio foram suspensos por assinarem uma representação ao Trono contra o Ministério. Ainda neste período, a câmara de Itabira e eleitores de Montes Claros também enviaram idênticas petições (HÖRNER, 2010HÖRNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838-1844). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 221). Em janeiro de 1842, a câmara de Minas Novas solicitou o fim da perseguição, após a derrota sofrida pelos governistas naquela vila (AMARAL, 2019AMARAL, Alex Lombello. Entre armas e impressos: a revolta de 1842 em Minas Gerais. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019., p. 93). Em seguida, a câmara de Baependi e os povos de Aiuruoca, Turvo, Serrano, Serro, Campanha, Tamanduá, Rio Verde e São Tomé enviaram petições ao Imperador (HÖRNER, 2010HÖRNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838-1844). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 223).

Assim, nas diversas municipalidades, aflorava o descontentamento liberal com a política do Regresso. Em maio de 1842, o governo processou a câmara de Barbacena, primeira a se rebelar. A dissolução da Câmara dos Deputados e o adiamento da reunião da Assembleia Provincial foram o estopim para o recurso às armas, motivada pela insatisfação com as recentes leis. Temia-se que tais leis colocassem em risco os princípios norteadores do Ato Adicional de 1834. Mas como bem apontou Alexandre Mansur Barata (2011BARATA, Alexandre Mansur. Política provincial e a construção do Estado nacional brasileiro: Minas Gerais (1834-1844). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXVI, Anais... São Paulo: ANPUH, p. 1-8, 2011 (Anais eletrônicos)., p. 3), apesar de os envolvidos justificarem a decisão de pegar em armas às políticas regressistas, é preciso considerar que desde 1840, havia um clima de acirramento das rivalidades a envolver autoridades locais e regionais em várias partes de Minas. Portanto, embora centrais, as leis regressistas aprovadas no período não foram as únicas razões para a deflagração do combate armado. Para Erik Hörner (2010HÖRNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838-1844). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 185), a adoção das leis regressistas unificou as insatisfações locais geradas nos últimos pleitos, a feridas políticas antigas que remontam à Sedição de 1833.

E no rol das querelas locais, a criação de vilas merece ser mais detidamente estudada, uma vez que os conflitos locais poderiam interferir diretamente na política provincial. Erik Hörner (2010HÖRNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838-1844). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 190) chegou a mencionar o papel da criação de municípios no acirramento da disputa, nos anos antecedentes à eclosão do conflito. E a presente pesquisa permitiu apreender que os conflitos locais do período influenciaram na tomada de decisão da Assembleia Provincial sobre a reconfiguração do poder local mineiro. De outro lado, a divisão civil adotada por esta Casa inflamava as contendas locais, em um jogo de mão dupla na relação entre elites locais, Assembleia Mineira, governo provincial e poder central, até o instante do apelo à luta armada. Além de implicar em perda territorial às vilas já existentes, a fundação de municípios gerava efeitos negativos àqueles termos que tinham suas receitas e eleitorado reduzidos. Por isso, a decisão se desdobrava em querelas locais, intrarregionais e inter-regionais. A conjuntura instável que culminou em 1842 foi determinante no incremento à aprovação de vilas. Logo, embora não tenha sido a motivação central para a revolta, as demarcações de 1839 a 1841 ajudaram a atiçar os ânimos. Após as vilas aprovadas em 1839 pelos liberais, a legislatura de 1840-1841 reagiu. E as alterações empreendidas pelos conservadores não foram bem recebidas pela oposição liberal e por diversas localidades. Em obra escrita em defesa dos revoltosos, o cônego Marinho realçou que as divisões adotadas em 1840 e 1841 elevaram enormemente as despesas públicas:

O sistema de divisões e subdivisões de Freguesias e Termos, adição e subtração de uns para outros, com o que enormemente gravaram os cofres provinciais, (...) e a província teria sido lançada nas coragens da mais completa anarquia, se a demissão do Gabinete de Julho não fosse mudar no Ouro Preto a tendência dos espíritos (MARINHO, 1977, p. 82-83).

Os debates parlamentares evidenciaram que a dimensão partidária foi decisiva na divisão civil mineira. E ainda que os desmembramentos pudessem estar conectados ao processo de urbanização, tais demandas só frutificavam quando encontravam a defesa de um deputado com boa articulação política nessa conjuntura que antecedeu o conflito armado. Os anos 1839-1841 foi o período em que mais se instituiu vilas na província: foram 15 em três anos (34,88% das vilas existentes - seis criadas por uma maioria liberal e nove no biênio de domínio regressista).

A respeito das vilas criadas em 1839, é notório que suas câmaras eram liberais. Apenas a câmara de Oliveira aderiu ao Regresso, tendo sido subtraída de um termo tradicionalmente liberal como São João del Rei. À exceção de Patrocínio, desmembrada de Uberaba, todas as vilas aprovadas em 1840 foram desanexadas de municípios em que os liberais dominaram nas eleições de 1840. E Caeté foi desanexada de três termos, sendo Sabará de tradição conservadora e Ouro Preto e Santa Bárbara, de maioria liberal em 1840. Por sua vez, os termos das vilas adotadas em 1841 pertenciam anteriormente à municípios cuja eleição de 1840 resultou na vitória liberal. É o que se observa nos casos de Piranga, Piumhi, Nepomuceno. A exceção foi Três Pontas, desanexada de Lavras, pois ambas ajudaram a compor a vitória liberal de 1840. O termo de Três Pontas passou a pertencer à comarca do Rio Verde, com sede em Campanha, sendo revelador o componente partidário na motivação para esta decisão, pois Campanha era reduto conservador.

Portanto, o que há de comum nestas demarcações de 1841 e em quase todas de 1840, é que todos os novos termos foram extraídos de municípios de eleitorado notoriamente liberal, que em 1842, apoiaria a luta armada. Esse fato apenas não se deu na criação da vila de Patrocínio, de maioria conservadora na última eleição, tal qual Uberaba. Nos demais casos, contudo, se observa que os resultados das eleições de 1840 influenciaram fortemente nas divisões aprovadas neste biênio. O caso de Piranga é emblemático: para se criar esta vila - em projeto de autoria de Francisco Badaró - reduziu-se a área de quatro municípios reconhecidos pela adesão à causa liberal: Barbacena, Mariana, Presídio, Pomba. Quanto à Nepomuceno, vale lembrar que todos os colégios da comarca de Paraibuna apoiaram os liberais nos últimos pleitos. Por sua vez, em 1840, os conservadores venceram no colégio de Piumhi e os liberais em Três Pontas, fato que certamente influenciaria na criação destas vilas em 1841. Por seu turno, contendas em Tamanduá e Araxá foram decisivas na fundação da vila de Piumhi, a pedido do cônego Silva.

Tabela 2
Vilas criadas em 1839-1841, termos a que pertenciam e resultados das eleições de 1840

Portanto, essas demarcações tiveram forte viés de reação vingativa aos arraiais de maioria liberal, bem como à divisão adotada em 1839. Houve um componente de retaliação, a fim de enfraquecer elites liberais de termos já existentes e favorecer a virada partidária. Além disso, discórdias locais e regionais retroalimentavam o cenário conturbado pelos novos ventos que sopravam da Corte em direção às províncias, com a execução da reforma de 1841. O incremento à divisão político-administrativa evidenciou um esforço intenso em se delinear os espaços do poder local e suas constantes alterações salientaram o conflito entre diversos segmentos locais/regionais com voz no legislativo mineiro. Ademais, os cortes e recortes refletiam a relevância do domínio das câmaras em meio à competição eleitoral de uma conjuntura tão belicosa que se apelou à luta armada.

É curioso notar que o período em que se criou mais vilas foi justamente aquele em que a Casa era dominada por regressistas, o que coloca uma questão aparentemente contraditória: se a política do Regresso era centralizadora, como explicar a ampliação da descentralização do poder local neste período em Minas? A este respeito, é preciso realçar que o binômio centralização/descentralização não explica a complexidade da política do Regresso, quando se olha para além do poder judiciário. Como bem notou Miriam Dolhnikoff (2005DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005., p. 150), a revisão conservadora de 1841 apenas buscava garantir a eficácia da divisão de competências: “os conservadores centralizaram o aparato judiciário para permitir ao governo central um controle efetivo sobre ele, mas esse era o limite da centralização”. Assim, havia muito mais uma disputa política em pontos específicos do que divergências de projetos adversários entre si. Neste sentido é que, durante a Regência, até os liberais defendiam o enquadramento das Câmaras municipais a seguirem os ritos burocráticos do Estado Moderno, bem como pontuavam a necessidade de interpretar o Ato Adicional e reformar o Código de Processo Criminal.

Entretanto, em 1841, os liberais não dominavam mais o Gabinete ministerial e seriam os principais atingidos pelas leis do Regresso. E além da contestação de tais leis, a revolta de 1842 deve ser entendida como resultado de disputas regionais pelo controle do poder provincial, dos cargos provinciais, bem como do poder de organizar a divisão civil na Assembleia Mineira. No âmbito da divisão político-administrativa, tais disputas se expressaram nas leis mineiras aprovadas entre 1839 e 1841. Portanto, a exacerbação da disputa política nestes anos é que nos permite apreender o que moveu os regressistas a considerarem uma boa ideia promoverem a descentralização do poder local. Para Mônica Dantas (2020DANTAS, Mônica Duarte. O código do processo criminal e a reforma de 1841. Dois modelos de organização dos poderes. História do Direito: RDH, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 96-121, jul./dez., 2020., p. 119), mesmo no âmbito do judiciário, o binômio descentralização-centralização não explica as diferenças entre as leis da Regência e do Regresso. Segundo a historiadora, a reforma de 1841 e a própria política do Regresso não se reduziam à simples ideia de centralização.

Apoiado por 15 das 43 vilas (IGLESIAS, 1977IGLESIAS, Francisco. Introdução. In: MARINHO, José Antônio (1803-1853). História do movimento político de 1842. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977. p. 13-36., p. 24), o conflito armado foi duramente reprimido em Santa Luzia, em agosto de 1842. Como destacou Alexandre Mansur Barata (2011BARATA, Alexandre Mansur. Política provincial e a construção do Estado nacional brasileiro: Minas Gerais (1834-1844). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXVI, Anais... São Paulo: ANPUH, p. 1-8, 2011 (Anais eletrônicos)., p. 6-7), a revolta marcou “um momento importante de questionamento da política centralizadora executada no início da década de 1840” e ocasionou o “rearranjo das facções que compunham a elite provincial.” O acontecimento marcou profundamente as práticas políticas da província, com efeitos que ultrapassaram o recorte temporal. Demarcou identidades em confronto: em alusão ao local da derrota, os liberais foram apelidados de “luzias”, sendo atribuída a eles a alcunha de rebeldes. Ao longo do Segundo Reinado, os liberais tentaram ressignificar o evento na memória da província e do Império.

Os anos que se seguiram a 1842 foram de retração nos debates sobre divisão provincial. A revolta trouxe prejuízo aos cofres públicos e a instalação de vilas demandava recursos. Além disso, 1/3 das câmaras mineiras (35%) aderiu à revolta, reforçando o temor governamental em se criar mais vilas. O marechal Soares Andrea - atuante nas batalhas de 1842 - se tornou presidente provincial e suplentes regressistas foram convocados para compor a quarta legislatura provincial (1842-1843). Liberais envolvidos na luta armada foram afastados do poder até serem anistiados, em 1844. Essa foi a legislatura com menor diversidade de representação das vilas, sendo a maioria composta por conservadores oriundos das vilas centrais de São João del Rei, Ouro Preto, Mariana e Sabará.

Em 1843, algumas povoações solicitaram a revogação daquelas leis. Foi o caso da câmara do Pomba, que lamentou a perda de três distritos, com a criação dos termos de São João Nepomuceno e Piranga. Vale lembrar que esta câmara apoiou a revolta. Por sua vez, o distrito de Ubá solicitou a transferência da vila de São João Batista do Presídio para lá. Ubá possuía um líder regressista - o deputado provincial Francisco de Assis Athayde - e buscava tirar proveito do apoio dado pela câmara de Presídio à revolta, para tornar-se sede deste termo. Por sua vez, a vila do Bonfim peticionou à Casa para não ser suprimida. Mas a Assembleia indeferiu todas as representações contrárias às leis de 1839 a 1841,20 20 AMG. Sessão de 8 de fevereiro de 1843. O compilador da Assembleia Mineira. Ouro Preto: Tip. Correio de Minas, n. 3, 24 fev. 1843. Disponível em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/jornaisdocs/photo.php?lid=97879. Acesso em: 30 out. 2022. de modo que, após 1842, as emancipações municipais foram praticamente paralisadas. Temia-se que novas divisões levantassem mais desavenças, como relatou o padre Silveira sobre a Zona da Mata em 1846: “Se da Pomba, parto à vila do Presídio, que triste teatro não nos tem oferecido aquela povoação, digna na verdade de melhor sorte! Se do Presídio, volto minhas vistas à vila de S. Nepomuceno, aí vejo grassar o mesmo mal”.21 21 AMG. Sessão de 19 de fevereiro de 1846. O compilador da Assembleia Mineira. Ouro Preto: Tip. Correio de Minas, n. 20, 19 mar. 1846. Disponível em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/jornaisdocs/photo.php?lid=97879. Acesso em: 30 out. 2022. Em 1842, a província possuía 42 vilas e 10 cidades.

O título de cidade poderia conferir ao núcleo urbano a ampliação de seu poder regional ou significar apenas o reconhecimento deste poderio. Contudo, a elevação à cidade nem sempre significava agregar alguma prerrogativa política (MORAES, 2007MORAES, Fernanda Borges de. De arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas coloniais. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (org.). História de Minas Gerais. As Minas setecentistas. v. 1. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 55-85.), de modo que tornar-se vila era mais crucial do ponto de vista político-administrativo. Isto explica por que os projetos de fundação de cidades não suscitaram polêmicas. Em 1842, as cidades mineiras se concentravam nas áreas de povoamento mais antigo, embora só duas tenham sido criadas durante o período colonial.

Tabela 3
Cidades mineiras (1745-1842)

Os anos em que se concedeu o título de cidade coincidem com a fase de incremento à criação de vilas por liberais e conservadores, em 1838 e 1840. Mariana se tornou cidade para sediar o primeiro bispado de Minas, em 1745. Por sua vez, Ouro Preto recebeu esse título após a Independência, quando um decreto elevou a cidade todas as vilas que eram capitais de províncias. Em 1838, nas áreas mineradoras, quatro vilas se transformaram em cidades: Sabará, São João del Rei, Diamantina e Serro. Em 1840, Campanha e Barbacena se tornaram cidades, no bojo da instauração das comarcas de Rio Verde (criada em 1839) e Paraibuna (1840). Já as cidades de Minas Novas e Paracatu foram fundadas respaldadas nos critérios de antiguidade e importância regional, pois ambas eram cabeças de comarcas desde 1833 e não possuíam o título de cidade. Além disso, a elevação de Paracatu a cidade significou uma compensação a essa vila, que perdia parte expressiva de seu território com a criação da comarca de Paraná.

Conclusões: representatividade regional e (trans) formações do poder local

A instituição de vilas se concentrou no eixo centro-sul, fato que denota a força da representação dos povos dessa área na Assembleia Provincial e corrobora a observação de Alexandre Mendes Cunha (2007)CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania à província: elites políticas e a administração da fazenda em um espaço em transformação. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2007. de que 46,75% do eleitorado mineiro de 1842 se concentrava na região central mineira. Nesse sentido, no período que antecede a revolta de 1842, a representatividade política se concentrava nas antigas áreas mineradoras e na zona sul de Minas. Portanto, para além da questão partidária, a origem da representação política poderia definir o arraial a receber o foro de vila. Um levantamento revelou a prevalência de políticos residentes nas comarcas de Ouro Preto e Piracicava, seguidos de Rio das Velhas, Rio das Mortes e Serro Frio no período em foco.

Os parlamentares das comarcas de São Francisco, Jequitinhonha, Paracatu e Paraná ocuparam poucos assentos na Casa. A exceção é Serro Frio, que também é uma área mineradora de ocupação antiga. Também foi possível notar oscilações que refletem a posição das câmaras locais em relação à revolta de 1842: ampliação da participação de Ouro Preto e redução da de Rio das Mortes com a ascensão conservadora de 1840 e sua retomada, após 1842. Nota-se certa continuidade na representação de lideranças do Rio Verde e Sapucaí, no sul de Minas. Por sua vez, o povoamento e fomento econômico da Zona da Mata, representada acima pela comarca do Paraibuna, só começa a ser notada nacionalmente a partir dos anos 1850. Contudo, paulatinamente ao longo dos anos 1840, o desenvolvimento desta zona começa a se traduzir em maior representatividade regional.

A representatividade no Poder Legislativo mineiro se refletia nas regiões privilegiadas nos momentos em que se debatiam novas demarcações territoriais. Logo, o eixo centro-sul abrangia as áreas mais populosas e ricas, sendo essas também as zonas que possuíam maior participação na Assembleia Mineira. O efeito disso é que, enquanto nos anos 1830, várias vilas foram criadas na região norte, em prol de uma agenda fiscal e de interesses estratégicos do poder central de exercer maior controle nas áreas limítrofes de Minas, quando a Assembleia Provincial passou a legislar sobre o tema, o eixo centro-sul foi priorizado, por possuir maior representação na Casa.

Ademais, é significativo que a criação de câmaras municipais tenha se intensificado com o acirramento da competição eleitoral, revelando o papel crucial dos processos de instalação de vilas no sistema eleitoral do Império. Evidenciou-se que o debate estava condicionado às conjunturas políticas: em alguns períodos, as demandas locais eram contidas pela Casa; quando a competição recrudescia, novas divisões eram adotadas. Após 1842, o tema foi suplantado e só voltou à ordem do dia em 1848, ano marcado por outra revolta - a Praieira - e na iminência de nova virada partidária.

  • 1
    COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil (doravante: LIB). Decreto de 13 de outubro de 1831. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1831. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis/copy_of_colecao3.html. Acesso em: 17 set. 2022.
  • 2
    LIB. Resolução de 30 de junho de 1833. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1833.
  • 3
    LIB. Resolução n. 17 de 14 de agosto de 1834. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1834.
  • 4
    LIB. Lei n. 16 de 14 de agosto de 1834. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1834.
  • 5
    ANAIS da Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais (doravante: AMG). Sessão de 6 de fevereiro de 1835. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 1.148, 11 fev. 1835. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=706930&pagfis=10095. Acesso em: 2 jul. 2022.
  • 6
    AMG. Sessão de 10 de fevereiro de 1836. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 20, 15 fev. 1836.
  • 7
    LIVRO das Leis Mineiras (doravante: LM). Lei n. 28 de 24 de setembro de 1836. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1836. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/docreader.aspx?bib=253634. Acesso em: 13 out. 2022.
  • 8
    LM. Lei n. 134 de 21 de março de 1839. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1839.
  • 9
    AMG. Sessão de 16 de fevereiro de 1835. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 1147, 20 fev. 1835.
  • 10
    AMG. Sessão de 26 de março de 1835. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 1163, 30 mar. 1835.
  • 11
    AMG. Sessão de 18 de fevereiro de 1839. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 44, 18 mar. 1839.
  • 12
    AMG. Sessão de 27 de fevereiro de 1840. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 32, 15 mar. 1840.
  • 13
    AMG. Sessão de 4 de fevereiro de 1840. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 17, 7 fev. 1840; AMG. Sessão de 24 de fevereiro de 1840. O Universal. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 24, 13 fev. 1840.
  • 14
    LM. Lei n. 171 de 23 de março. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1840. A emancipação dessas povoações foi encampada por Francisco Vasconcellos, Miranda, Silva e Oliveira e Castro, residentes respectivamente em Ouro Preto, Mariana, Araxá e Montes Claros.
  • 15
    O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 148, 21 dez. 1840.
  • 16
    Não se sabe o resultado da eleição na vila de Queluz ou se Queluz possuía um colégio eleitoral.
  • 17
    O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 140, 2 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 141, 4 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 142, 7 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 143, 9 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 144, 11 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 145, 14 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 146, 16 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 147, 18 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 148, 21 dez. 1840; O UNIVERSAL. Ouro Preto: Tip. Universal, n. 151, 30 dez. 1840.
  • 18
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  • 19
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  • 20
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  • 21
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Editoras responsáveis: Hanna Sonkajärvi e Luiza Larangeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2022
  • Aceito
    23 Mar 2023
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