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Resistência às mordaças: história e luta contra a opressão na literatura de Assis Brasil

Resistance to gags: history and combat against oppression in the literature of Assis Brasil

Resistencia a las mordazas: historia y lucha contra la opresión en la literatura de Assis Brasil

RESUMO

A literatura produzida pelo escritor Francisco de Assis de Almeida Brasil é plural nos seus estilos e temáticas, assumindo traços sociais, culturais e históricos diversos, atingindo, também, públicos e leitores variados. O presente estudo, assim, tem o objetivo principal de analisar o olhar de sua escrita, com simbologias e representações, sobre o regime militar brasileiro, por meio de seu livro Os que bebem como os cães, publicado em pleno período ditatorial, no ano de 1975. Metodologicamente, o estudo faz uma leitura analítico-interpretativa de sua literatura, especificamente da obra em destaque, relacionando-a com os debates históricos e historiográficos acerca das inter-relações entre história e literatura, com o foco no interstício histórico-social do regime militar brasileiro. O livro de Assis Brasil é tomado como um discurso que (re)cria a realidade, nos limiares entre a narrativa histórica e ficcional, com viés de registro, de denúncia e de reflexão.

Palavras-chave:
história; literatura; regime militar

ABSTRACT

The literature produced by the writer Francisco de Assis de Almeida Brasil is plural in its styles and themes, presenting several social, cultural and historical traits, and reaching different audiences and readers as well. Thus, this article aims at analyzing the viewpoint of his writing, with symbologies and representations, regarding the Brazilian Military Regime, especially in his book “Os que bebem como os cães”, published in the midst of the dictatorial period, in 1975. Methodologically, this study provides an analytical-interpretative reading of his literature, particularly of the aforementioned book, by linking it to the historical and historiographical discussion about the relations between History and Literature, with emphasis on the social and historical interstice of the Brazilian Military Regime. Therefore, the book of Assis Brasil is taken as a discourse that (re)creates reality, on thresholds between the historical and fictional narrative, presenting at the same time registration, complaint and reflection bias.

Keywords:
history; literature; military regime

RESUMEN

La literatura producida por el escritor Francisco de Assis de Almeida Brasil es plural em sus estilos y temáticas, asumiendo trazos sociales, culturales e históricos diversos, alcanzando, también, públicos y lectores variados. El presente estudio, así, tiene el objetico principal analizar la mirada de su escritura, con simbologías y representaciones, sobre el Régimen Militar brasileño, por medio de su libro Os que bebem como os cães, publicado en pleno periodo dictatorial, en el año 1975. Metodológicamente, el estudio hace una lectura analítico-interpretativa de su literatura, específicamente de la obra en destaque, relacionándola con los debates históricos e historiográficos sobre las interrelaciones entre Historia y Literatura, con el foco en el intersticio histórico-social del Régimen Militar brasileño. El libro de Assis Brasil es tomado como un discurso que recrea la realidad, en los umbrales entre la narrativa histórica y ficcional, con sesgo de registro, de denuncia y de reflexión.

Palabras clave:
historia; literatura; régimen militar

Introdução

Nada a temer Senão o correr da luta Nada a fazer Senão esquecer o medo Abrir o peito à força Numa procura Fugir às armadilhas da mata escura Longe se vai sonhando demais Mas onde se chega assim Vou descobrir o que me faz sentir Eu, caçador de mim

Sérgio Magrão /Luís Carlos Sá

Os significados e usos atribuídos à verdade ou à realidade permeiam os campos de discussão da filosofia, da história e da literatura, cujas discussões têm rendido inúmeros debates ao longo da história. Esses questionamentos acirram-se sobremaneira quando se colocam em cena as inter-relações existentes entre história e literatura, visto que, a priori, atribuir-se-ia à história a responsabilidade e o compromisso em produzir uma narrativa referenciada em fontes, enquanto que à literatura caberiam as esferas da invenção e da criação na emergência da narrativa ficcional. Embora não sigam essas atribuições de maneira tão segregada, e ambas as escritas sejam reconhecidas como narrativas que lidam com a subjetividade do escritor, a exigência de amparo nas fontes segue as orientações de Walter Benjamin quando ele declara que “o historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo” (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas - Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 209). O historiador, portanto, não pode prescindir do quadro de referencialidade que envolve seu ofício, seja na dimensão da teoria , seja na da metodologia.

Impulsionado por essas reflexões iniciais, o objetivo central deste estudo é compreender as interconexões entre a escrita do piauiense Assis Brasil1 1 Francisco de Assis de Almeida Brasil é natural de Parnaíba - Piauí (1932). Assis Brasil é um dos romancistas piauienses mais importantes na atualidade. Os gêneros explorados por esse autor são os mais variados, desde o romance, passando pelo conto, a novela e a crítica literária. Vive atualmente do ofício de escritor. De toda a sua obra, destacam-se dois ciclos: a Tetralogia Piauiense e o Ciclo do Terror (conjunto de obras que tratam de questões ideológicas, da violência e da natureza destrutiva do homem. Os outros livros são: O aprendizado da morte (1976), Deus, o sol, Shakespeare (1978) e Os crocodilos (1980)). No período da ditadura militar, decorrente do golpe de 64, foram instauradas algumas regras, dentre as quais a proibição de reuniões com mais de três pessoas e o discurso político nas universidades, além de censura à imprensa e substituição da Constituição pelos Atos Institucionais. Nesse contexto, Assis Brasil publicou a maioria de suas obras. e as ações repressoras do período do regime militar no país. Objetivou-se, também, analisar a sua narrativa nas relações entre história e literatura por meio de bases hermenêuticas ou interpretativas, bem como discutir a literatura produzida pelo escritor em suas aproximações entre história, arte, ficção, sociedade e política, no esteio das possibilidades do romance histórico.

O presente estudo, então, alicerçado nas inter-relações entre história e literatura, problematiza a obra de Assis Brasil, impulsado pelos aspectos inerentes à interpretação de sua escrita literária. Nesse ínterim, é fundamental lembrar que “historiadores ‘interpretam’, isto é, eles tentam conectar suas afirmações sobre o passado a uma subjetividade presente, assim como esperamos que os artistas literários façam. Nessa tarefa, literatura e história estão em estreita conjunção” (MEGILL, 2016MEGILL, Allan. Literatura e história. In: MALERBA, Jurandir(org.). História e narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. p. 265-272., p. 269). Não é preocupação imediata, das análises aqui oferecidas, apresentar “evidências” entre o texto literário e o mundo tido como real, ao passo que “é nos seus aspectos de evidência ou de justificação que a história e a literatura, ao que parece, mais se afastam” (p. 269).

De maneira análoga, a abordagem aqui levada adiante não intenta definir ou enquadrar a escrita do literato piauiense em um padrão ou tendência política para considerá-lo como um escritor adequado, perfeito ou subversivo. A intenção é, sobretudo, seguir a noção de que “a tendência política correta de uma obra inclui a sua qualidade literária, porque inclui a sua tendência literária” (BENJAMIN, 2017BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 84). O livro Os que bebem como os cães, publicado em 1975, em larga medida segue uma “tendência” de muitos livros escritos no período de sua publicação, que era a reflexão sobre a condição humana frente às inúmeras ações políticas de privação de liberdades e direitos.

Contudo, essa simplificação das especificidades de cada área não consegue dar conta dos horizontes nos quais ambas se têm lançado e aos quais os historiadores e literatos têm visualizado, sendo que a imbricação entre suas produções acentua a possibilidade de diversificação de cada área.

Por esse viés, é que o diálogo entre historiadores e críticos literários deve se aproximar, no sentido mesmo de buscar referências no tempo e no espaço como dimensões integrantes e fundamentais a ambas as narrativas. Dessa maneira, “nesse cruzamento que se estabelece entre a história e a literatura, o historiador se vale do texto literário não mais como uma ilustração do contexto em estudo” (PESAVENTO, 2005PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. 2. ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2005., p. 113), devendo o texto literário ser encarado como sendo um discurso revelador e (re)criador de realidades, tal qual a narrativa histórica. Daí a necessidade de Clio2 2 Clio é uma das nove musas da mitologia grega. Ela é a musa da história, em seus aspectos das relações sociais e políticas entre os indivíduos. e Calíope3 3 Calíope é a musa grega da poesia e musa da literatura de maneira em geral. andarem juntas nos desafios que levam aos caminhos do conhecimento da história do homem. É nesse âmbito que se podem observar as nuances do romance histórico, que, na perspectiva de Lukács (2011LUKÁCS, György. O romance histórico. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011.), é tomado não como a repetição dos grandes acontecimentos, mas como a ressurreição das experiências vivenciadas pelos sujeitos. E são tais experiências que são demonstradas, de forma simbólica, no livro de Assis Brasil.

É imprescindível admitir que, em consonância com o que advoga Ítalo Calvino, em uma obra literária, “vários níveis de realidade podem apresentar-se ainda que permaneçam distintos e separados, ou podem fundir-se, soldar-se, misturar-se, encontrando uma harmonia entre suas contradições ou formando uma mistura explosiva” (CALVINO, 2009CALVINO, Ítalo. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 368-369). Tais níveis não podem ser dissociados da realidade, referência à qual a narrativa de dada obra literária faz menção. Significa dizer que não se pode tomar a narrativa literária tão somente como algo que sirva como fonte, para confirmar hipóteses e teorias. O texto literário deve ser tomado em sua potencialidade de discurso e narrativa que também se debruça sobre a realidade, ao também visar (re)criar tal realidade.

Como ressaltou Marthe Robert (2007ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2007.), o romance assumiu aspectos tão imperialistas e universais que suas ligações com inúmeras ciências e saberes se tornaram parte de sua própria constituição como tal. E quando a verdade está inserida no universo dos acontecimentos políticos, sobretudo os de regimes autoritários? Os discursos de tais regimes são proferidos com o intuito de (re)inventar e legitimar uma realidade. Nesse sentido, a análise da obra de Assis Brasil justifica-se pela sua pertinência acadêmica e social no que tange às múltiplas ligações entre literatura, história e política, sobretudo pela atualidade do tema, e consequentemente do livro, visto que o país presenciou mobilizações acerca da formação da Comissão da Verdade, que tem entre seus propósitos tratar de crimes cometidos pela ditadura civil-militar implantada no Brasil a partir de 1964.

Alguns trabalhos discutem e analisam a obra Os que bebem como os cães com diferentes abordagens, mas o consideram, em linhas gerais, como romance histórico em seus aspectos políticos, sociais e de memória4 4 Trabalhos como RIBEIRO, 2014; CORRÊA, 2007e OLIVEIRA. .

A literatura é, então, encarada, como assevera Aldrin Figueiredo (1998FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Letras insulares: leituras e formas da história no modernismo brasileiro. In: CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo A. de M. (orgs.). A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 301-331., p. 301-331), como fonte de história e não como fonte para a história, assumindo seu papel importante como mais um discurso que (re)constrói e propõe denúncias da realidade. Vale ressaltar o que chama atenção Nicolau Sevcenko (2003SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras , 2003.) ao destacar que todo escritor possui uma liberdade “condicionada”, pois é influenciado por seu tempo e por seu espaço para criar. Não fosse assim, o próprio aspecto da legibilidade textual seria inexistente, visto que são os referentes que permitem ao leitor chegar às possibilidades de compreensão e de interpretação do texto. Por esse mesmo viés, Luiz Costa Lima (2006LIMA, Luiz Costa. História, ficçãoliteratura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.) destaca as inúmeras perguntas que cercam as relações entre a história e ficção, demonstrando que, enquanto a “verdade” não é preocupação primeira da ficção, a história toma a verdade como a condição para explicar e entender o passado.

Partindo desses pressupostos é que, para as reflexões teórico-metodológicas desse estudo, foram fulcrais as discussões realizadas por Walter Benjamin (1987BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas - Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. e 2017CALVINO, Ítalo. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.), Allan Megill (2016MEGILL, Allan. Literatura e história. In: MALERBA, Jurandir(org.). História e narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. p. 265-272.), Michel de Certeau (1999CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. e 2011CORRÊA, Alamir Aquino. “A morte dos que bebem como os cães”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 30. Brasília, jul.-dez. 2007, p. 119-130.), Hannah Arendt (2010ARENDT, Hannah. A condição humana.. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.), Marthe Robert (2007ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2007.) e Luiz Costa Lima (1995LIMA, Luiz Costa. Vida e mímesis. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. e 2006LOPES, José Leite. Tempo=espaço=matéria. In: NOVAES, Adauto(org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras , 2006. p. 167-176.), que discutem sobre as potencialidades e limites do fazer humano, literário e artístico, ora na dimensão psicológica, ora na dimensão laboral e na dimensão ficcional. Nas análises dedicadas às práticas e estratégias voltadas para o controle do corpo e da violência, a partir das percepções do corpo, estão direcionamentos propostos por Michel de Foucault (2009)CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999..

Nesse sentido, o livro Os que bebem como os cães remete ao período da ditadura no Brasil, e as cenas descritas na narrativa, em geral, fazem menção às práticas de tortura implantadas no país naquela época.

Por esse diapasão, é pertinente dizer que as torturas sofridas pelo personagem do livro estão imersas em uma política comum ao período no qual a obra foi escrita. As relações do torturado e de seus algozes estão detalhadas na obra como uma referência à política de tortura que regia grande segmento das forças armadas do país.

A partir dessas considerações, é mister dizer que o debruçar-se sobre o livro de Assis Brasil não se trata de uma análise de sua obra como uma produção estritamente literária, mas como uma expressão de um dos momentos mais obscuros da história do país. Trata-se, então, de “resgatar da sombra e do esquecimento os que estão por baixo, na hierarquia das posses e dos privilégios” (SILVA, 2005SILVA, Augusto Santos. O escritor exorta os seus concidadãos (ou o discurso político da ficção de Saramago). In: MARAGATTO, Isabel; GOMES, Renato Cordeiro(orgs.). Literatura, política, cultura (1994-2004). Belo Horizonte: EDUFMG, 2005. p. 13-56., p. 13). Mais que isso, dar voz àqueles que foram silenciados sob diferentes formas de violência, inclusive com a perda de suas vidas, dando-lhes a chance de entoar o seu “grito”, como sugere o literato Assis Brasil.

Além disso, vale destacar que, ao se promover aqui a aproximação entre história e literatura não se está excluindo ou negando o que é inerente ao próprio romance, que é sua característica central de ser ficção. É importante ressaltar isso porque “nada no romance é tão óbvio e ao mesmo tempo tão visível quanto o fato de ser ficção” (GALLAGHER , 2009GALLAGHER, Catherine. Ficção. In: MORETTI, Franco (org.). O romance: a cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 629-658., p. 629). No entanto, é possível extrair da narrativa ficcional seus elementos que mantêm ligação com o mundo exterior, com a história e com o tempo e é nessa extração que se propõe aqui analisar o livro Os que bebem como os cães.

Ditas essas considerações iniciais, o presente artigo está estruturado, além da introdução e das considerações finais, em duas seções, seguindo discussões-chave: na primeira, faz-se um debate sobre traços entre o contexto histórico, político e social e o livro de Assis Brasil. Na segunda seção, realiza-se um estudo analítico-interpretativo da narrativa contida no romance aqui elencado como ponto de interlocução. Finaliza-se, assim, com algumas considerações sobre o lugar do texto e do escritor no universo histórico e literário, sobretudo nas nuances do que se convencionou chamar de romance histórico.

Aspectos históricos e traços narrativos em Os que bebem como os cães

O homem não pode, não tem o direito de violentar o seu semelhante: é apenas isso, simples como a água em sua fonte, como os pingos da chuva

Francisco de Assis de Almeida Brasil

A repressão foi intensa na época da ditadura militar, particularmente entre dezembro de 1968, quando foi promulgado o AI-5, e o início do processo de abertura política “lenta e gradual”, adotado pelo general Ernesto Geisel, a partir de 1975. Aparentemente, a fúria repressiva da ditadura insinuava querer estancar e suprimir - imediata e definitivamente - qualquer manifestação cultural que apresentasse o mais leve indício de significado crítico e político ou, ainda, uma natureza ideológica radicalizada. Censurou indistintamente obras diversas, provocando súbitas dilacerações ou doloridos silêncios em seus frágeis corpos; criou dificuldades objetivas para a circulação e a distribuição da maior parte delas, atacou a vida universitária e afetou gravemente o destino imediato de vários segmentos da produção cultural. Não bastasse isso, exerceu também árdua censura diária à imprensa. Todas essas ações influenciaram as maneiras de pensar e de agir da sociedade brasileira pelos desdobramentos que geraram no cotidiano nacional.

O objetivo da ditadura, em larga medida, era também o de calar a voz da sociedade e o de comprometer a qualidade da formação política, afetiva ou intelectual dos cidadãos. Movidos pela ânsia documental e pelo desejo de narrar a história recente que ainda, por força da opressão, não havia sido relatada, surgiram romances que hoje podemos chamar de “geração da repressão”. Esse estilo de romance documental, empenhado em denunciar as truculências e brutalidades da repressão política, foi adotado por muitos escritores e possibilitou o acesso a muitos acontecimentos que eram omitidos em outros meios de comunicação. O melhor exemplo disso, no universo literário piauiense, é o livro Os que bebem como os cães, de Assis Brasil.

Os que bebem como os cães deu a Assis Brasil o Prêmio Walmap, em 1975. É uma obra de cunho eminentemente político. Por meio dela, o autor denuncia o submundo da opressão vivida no período no cenário brasileiro. Embora não seja evidenciado o tempo em que transcorre a narrativa, fica implícito se tratar da ditadura civil-militar em vigência no Brasil, portanto, uma denúncia da condição de exceção no cenário político da época.

O enfoque principal é o personagem Jeremias. Professor de Literatura e de Artes, é preso por contestar o sistema vigente. A narrativa se inicia com o protagonista no cárcere, completamente dopado, vivendo em um cubículo escuro e com os braços algemados para trás (em condições animalescas para comer, fazendo suas necessidades fisiológicas na roupa). No pátio da cadeia, local do banho, observa o comportamento dos outros presos, que gritam os nomes de seus entes queridos e, por essa ousadia, são punidos pelos guardas com mordaça, para não se manifestarem mais. Com o passar do tempo, os presos cometem suicídio esfregando os pulsos num muro da prisão, acontecimentos que fazem com que, aos poucos, o personagem se lembre de sua identidade e de sua vida antes de ser preso e forçado a se contentar com as migalhas das refeições servidas raramente. Não se lembra de nada ligado à sua vida.

Assim, o enredo vai repetindo a monotonia de sua estada na prisão (A cela - O pátio - O grito) por 41 capítulos, inserindo o leitor no massacre psicológico sofrido pelo preso. Na cela, Jeremias vive em um clima de desorientação temporal, provocado pelas drogas que ingere nas refeições, dificultando-lhe a organização de seus pensamentos. Grande é o sofrimento de Jeremias, preso, faminto, em condições animalescas. Assis Brasil faz questão de enfatizar isso ao longo de várias passagens do romance, como se quisesse provocar no leitor as mesmas sensações angustiantes descritas na rotina de seu personagem, em uma narrativa provocativa e envolvente, que suscita múltiplas sensações em quem o lê.

A referência que Assis Brasil faz aos espaços no romance (o pátio e a cela) remetem às práticas e estratégias de controle, de política disciplinar a que os personagens de seu texto estão submetidos, possibilitando refletir sobre o papel dos espaços no disciplinamento do corpo e do comportamento humano, questões que têm sido adotadas ao longo da história da humanidade. Ao tratar desse tema, Michel Foucault esclarece como isso se desenvolve:

As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 37. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009., p. 142-143).

Sob esse prisma, esses espaços tentam, na lógica da vigilância e da punição, tornar o isolamento uma parte integrante da massificação. No caso da narrativa em análise, mesmo nos momentos em que os presos se aglomeram nos pátios, a privação dos gestos e das maneiras de suas disposições em fileiras os torna incomunicáveis. Nesse mecanismo de controle, o horário, o caminhar, o olhar, o corpo de maneira geral, são todos manipulados de tal maneira que a opressão seja internalizada, se não pela mente, pelo próprio corpo. O corpo era, em primeiro momento, o seu único interlocutor. Era por meio dele que começava a conhecer os espaços nos quais estava. O seu corpo era seu único instrumento para a compreensão das coisas:

Por quanto tempo cheirava a terra abafada pelo próprio corpo? Horas, dias - lembrou-se de que precisava comer ou urinar ou falar ou gritar, mas na verdade não tinha vontade de fazer coisa alguma, queria apenas permanecer na posição incômoda, como se estivesse em maratona para provar que o corpo podia resistir a tudo. Tentou se mexer, mas sentiu que o ombro direito, fincado no chão, estava dolorido - puxou o braço nas costas, e as algemas nos pulsos rasgaram a carne com um estremecimento: o silêncio foi interrompido com uma espécie de chiado - podia agora saber que sangrava, havia um novo odor no ar abafado - o sangue cheirava a barro, a ferro com ferrugem, cheirava a terra seca quando recebe as primeiras chuvas (BRASIL, 2010BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Os que bebem como os cães 7. ed. Teresina: Renoir, 2010., p. 13).

Sentir seu corpo, percebendo até onde iriam suas dores e movimentos, era uma de suas maneiras iniciais de sentir-se vivo, de resistir às opressões às quais lhe submeteram. O seu corpo era sua sinalização de poder individual. Era preciso comandar o próprio corpo, para não se perder na falta de identidade, na sua total submissão. O corpo era o único instrumento de resistência de que ainda dispunha, embora fosse também entendido assim pelo opressor, por isso ser alvo dos castigos e violações.

No entanto, em seus momentos de muita sofreguidão, depois de muito ser torturado pelos policiais e de ver os outros homens morrerem, o seu corpo já dava os sinais de sua tristeza, de sua fraqueza psicológica. Em sua cela, à espera para se lançar ao pátio e ao muro, para o sacrifício da própria vida como tantos já tinham feito, ele sente seu corpo esvair-se:

Os ombros, os braços, as mãos, que há muito haviam perdido a elasticidade, doíam mais agora - uma espécie de dormência ia tomando conta de seu corpo. Não se alimentara - tentara, sem resistir àquele prato diferente, que lhe fora mais um castigo do que um prêmio. Bebera alguns goles d’água no pátio e estava pagando por tudo - enfraquecia, embora ainda os sentidos estivessem em ativa avidez pelo real. O corpo cada vez mais fraco, acabaria perturbado e esquecido, massa acéfala e insensível, como se continuasse a ingerir o que o dopava: água ou alimento, ou ar poluído e grave da prisão (p. 126).

Em vários dias de confinamento, os sentidos como a visão, o tato e a audição estavam comprometidos, mas eram a eles que Jeremias se apegava para tentar compreender o que acontecia ao seu redor, na ânsia de resistir ao que parecia irreversível e inconteste. Tentava resistir à sua condição humana e às necessidades fisiológicas de um corpo faminto e sedento. Lembrava-se de que dentro dos amparos culturais havia uma natureza implacável. Mas, afinal, a cultura também não se assumira como tão ou mais implacável que a natureza? Visava tentar entender as razões de sua situação naquele momento:

A escuridão é ampla e envolvente.

O silêncio total, cortado apenas por aquele velho barulho que parte de seus ouvidos.

Sempre fora assim: quando em silêncio, em paz ou em expectativa, o zumbido voltava, em duração enervante, direto com a fala direta do policial: - Deixa as mãos dele algemadas.

Aos poucos, ia apalpando o escuro da cela, o silêncio da escuridão, o zumbido do próprio corpo - estava no chão frio: não era cimento nem tijolo, terra batida, úmida, mas não molhada ao ponto de ensopar sua roupa - os braços para trás das costas, os pulsos algemados.

Aos poucos, ia apalpando o chão com o corpo, de bruços, o rosto quase a tocar a areia: - sentia o cheiro da terra - uma terra velha e usada, com cheiro de mofo, com cheiro de urina - sentia as paredes, mesmo sem velas na escuridão: a opressão do cubículo estava em seu corpo, em seus poros. A posição era incômoda: as mãos nas costas, o corpo meio de lado, o rosto na areia fria.

- Deixa as mãos dele algemadas (p. 13).

Os policiais, em sua condição de carcereiros, como chama atenção Foucault, comunicam “um tipo de poder que a lei valida e que a justiça usa como sua arma preferida” (­FOUCAULT, 2009, p. 286). As leis estavam, no momento do regime ditatorial no Brasil, voltadas para o silenciamento de qualquer forma de manifestação contrária ao regime e, portanto, balizavam as ações de seus operadores que adotavam a violação do corpo como estratégia de controle da pessoa considerada contestadora. Era necessário “algemá-los”, imobilizá-los, amedrontá-los, intimidá-los, humilhá-los.

Além disso, o texto também apresenta outra semelhança com o que é relatado pelos presos políticos durante as décadas de vigência dos governos autoritários no país ao informar que não se tinha preocupação com qualquer integridade ou conforto dos presos, visto que até “(...) a ducha fria o fez urinar novamente nas calças” (BRASIL, 2010BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Ciclo do terror. Rio de Janeiro: Nórdica, 1984., p. 17). Como se não bastasse a água fria, o personagem ainda se deparava com outra situação, pois as privações eram muitas e as agressões multiplicavam-se:

A porta, a claridade que entra, os soldados que não podiam ser encarados, a presença da farda amarela, as botas luzidias, o metal das vozes.

- Tirem as algemas.

- Coloquem o esparadrapo.

Os ombros ainda estão doloridos, há ainda alguma coisa em seus pulmões, o ar opresso da respiração - o empurrão até a borda do tanque. Levanta os olhos: a fileira dos homens esfarrapados do outro lado, a água, o barulho da água. O banho. UMA VEZ POR MÊS.

Uma vez por mês.

Assustou-se. O vizinho de fila lhe dera a informação: o banho no pátio era apenas uma vez por mês. Aproveite, dissera ele. Mas entre a vez anterior, o prato de sopa, e outra vez no pátio, não deveria ter se passado mais do que um dia. Um mês. Impossível. Se isso era verdade, se passara um mês para voltar, então a noção de tempo, que tentara medir pelo conforto de seu corpo, estava errada (p. 25, grifo nosso).

A sensação do tempo, ou melhor, a temporalidade como a subjetivação que cada pessoa faz do tempo, estava comprometida pelas práticas de tortura do aprisionamento. O corpo que seria a sua única maneira de “medir” ou sentir o tempo, já não parecia lhe dar as respostas adequadas. Essa “confusão” sobre a medida do tempo, em parte, estaria relacionada à forte tendência de atribuir ao tempo noções simbólicas de aspectos evolutivos, a exemplo da expressão o “tempo passa”, referindo-se a processos contínuos e encadeados. Nessa concepção de tempo está, também, o “estabelecimento de uma relação, no seio de uma única e mesma sequência de acontecimentos, entre o que se produz ‘mais cedo’ e o que se produz ‘mais tarde’” (ELIAS, 1998ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 61).

Desse modo, qualquer acontecimento ou evento que comprometa as relações de tais produções cria a sensação de que o tempo está sendo experimentado em desordem. A experiência do tempo, em sua ligação com o corpo e com o espaço está em uma ligação direta entre o tempo e a matéria, a materialidade. Visto que “tempo, espaço e matéria são, pois, ideias que penetram o nosso conhecimento das coisas” (LOPES, 2006LOPES, José Leite. Tempo=espaço=matéria. In: NOVAES, Adauto(org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras , 2006. p. 167-176., p. 167) e do próprio tempo, controlá-las era, portanto, um mecanismo de subjugar o prisioneiro em todas as suas maneiras de sentir o seu corpo e de se situar no mundo e no tempo, e com isso, impedir qualquer fração de liberdade que se pudesse almejar.

O romance discute outra questão denunciada pelos opositores ao regime autoritário em vigência no Brasil desde 1964, como a violência praticada por entes do Estado contra os prisioneiros: a privação de direitos elementares. O direito básico à alimentação, por exemplo, era desconsiderado ou tratado de forma a igualar, segundo o autor, os presos a animais. Nesse sentido, “A porta grande não foi aberta, apenas uma portinhola embaixo, onde deixava algo parecido com um prato. A natureza sábia e cruel lhe transmitiu logo um cheiro diferente - um cheiro cálido, mas não identificador” (BRASIL, 2010BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Os que bebem como os cães 7. ed. Teresina: Renoir, 2010., p. 19). Mesmo diante dessa situação humilhante, Jeremias ansiava por comida “E esperou novamente que lhe trouxessem o prato, para que, como um cão, sorvesse a coisa quente e estranha. Os sentidos já pareciam viver em função disso: a mãe natureza, cruel e sábia” (p. 24, grifo nosso).

Buscando incessantemente manter a sanidade e compreender o que estava acontecendo, Jeremias começa a refletir sobre a própria vida e a razão de viver. Em um processo introspectivo, começa aos poucos a (re)descobrir alguns valores, como, por exemplo, a crença em Deus:

Oh, Deus - repetia. [...] O meu amor por Ti é novo, pois não Te conhecera antes [...]. Minha mãe, os entes que amei, ficaram na escuridão do mundo, perdidos, e eu Te achei na claridade desta cela. Peço que me equilibres os gestos e os pensamentos, assim como os gritos dos homens atormentados receberam a harmonia da Tua presença. Perdoa-me, Pai, por não Te haver conhecido antes. Perdoa este Teu servo rebelde e perdido (p. 46-47).

A aparente contradição de encontrar no alento da fé o conforto para tamanhos sofrimentos indica a vontade do autor em apresentar a fé como uma possibilidade de resistência à dor sofrida na prisão, que, graças à crença descoberta recentemente, a iluminara em contraposição ao mundo de trevas que vivenciava.

E o autor prossegue descrevendo as inquietações que atormentavam seu protagonista. No pátio se depara com o autoritarismo dos soldados. A liberdade de expressão é cerceada por uma mordaça. Os presos, ao soltarem seus gritos de agonia, são amordaçados e impelidos brutalmente para seus cubículos, sofrendo ainda mais privações. O pátio, além de ser o momento de higiene, representa o contato com os outros homens, um anseio maior de liberdade ou, ao menos, daquilo que parecia lhe devolver traços da singularidade humana, em especial por meio do convívio com outros homens, mesmo que diante de condições tão indignas quanto a sua. No pátio “ia sentir novamente a claridade, ia sentir o sol, a água, e era bom também ouvir o grito daqueles homens esfarrapados” (p. 25).

O grito é o momento de desespero dos prisioneiros antes de retornarem para as celas, o pouco prazer usufruído nos substratos de liberdade está no pátio. É nesse espaço que se encontra o sol, o céu, a brisa a passar por seus corpos magros. Por isso, quando os soldados se aproximam para levar os presos para a cela eles se desesperam. As expressões que saem de suas entranhas representam valores afetivos distantes, como “mãe”, “Deus” e nomes de mulheres. Em vários momentos ouve-se o grito: “- Mamãe! - o homem berrou” (p. 18). É como se o personagem pudesse voltar a receber os cuidados da mãe - condição de protetora da prole. A vontade de reencontrar um ambiente de acolhida e de proteção é recorrente no texto.

Mas também é possível inferir que a mãe a quem se clama na narrativa literária pudesse ser a pátria, que mediante a configuração histórica enfrentada no país distanciara-se da condição de acolhedora, cuja proteção não mais era sentida pelos filhos aflitos diante de tantas dores e sofrimentos. Isso talvez possa ser percebido quando Jeremias demonstra não se lembrar desse colo materno - que remete à sua própria vida -, refletindo e se questionando: “Mas eu não posso me lembrar. Minha mãe. Onde ficara minha mãe, minha vida?” (p. 47). O tom de desolação é explícito e remete à falta de proteção sentida no contexto vivido.

A aflição aumenta quando o personagem começa a se dar conta de que a água e o alimento poderiam conter drogas para entorpecer os prisioneiros. Ele passa a adotar astúcias para resistir a isso: deixa de beber água do pátio e diminui a quantidade de sopa que toma, deixando o resto para os ratinhos que o visitam. Com os pés, faz um buraco para armazenar pingos da chuva que caem de uma goteira para matar a sede. Aos poucos, Jeremias vem se reconhecendo: lembra-se de seu nome e profissão; que era casado com Dulce (que o criticava por se envolver com questões políticas); que tinha uma filha, Cacilda (de longas tranças, desejando a boneca da avó); de sua mãe, Matilde (com uma expressão serena) e do pai (não nomeado, chamando-o de profeta, em alusão à Bíblia).

O momento auge dessa recordação é quando o personagem diz: “Meu nome é Jeremias” (p. 109). Isso foi fundamental para que começasse a compreender o que estava acontecendo. Lembrar-se de sua identidade foi importante para a sua própria localização espacial e social, pois era possível entender as razões de sua prisão, como se o autor quisesse dizer que a liberdade somente seria obtida se houvesse consciência de si e de sua condição histórica. Dessa forma, o seu lugar social, como diz Michel de Certeau (1999), possibilita visualizar os conflitos e disputas nas quais se inserem os sujeitos. Isso deu forças a Jeremias para demonstrar algumas ações de resistências, visto que “Fizera progresso em sua recusa em se alimentar. Não bebia a água do pátio, não comia a comida da cela” (BRASIL, 2010BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Os que bebem como os cães 7. ed. Teresina: Renoir, 2010., p. 110). A constatação do professor parece querer informar que era nocivo tudo o que lhe era oferecido para consumir pelos entes que representavam o governo.

A partir daí começa a compreender que os soldados amarelos representam a opressão e a perda da expressão de liberdade, com suas marchas cadenciadas, ordens ríspidas e autoritárias. A imagem que lhe chegava, em meio às suas percepções alcançadas pelo seu corpo, era a de que “As botas, as botas lá fora, como um reflexo, um relâmpago. A esperança do pátio, da volta - eles vêm vindo, marchando, firmes em sua autoridade e poder. Eles vêm vindo para contemplar a sua derrota, ou o seu desafio?” (p. 112). Todas essas ações e percepções começam a povoar as reflexões e sofrimentos de Jeremias, pois, contraditoriamente, na medida em que recobrava sua sanidade e sua consciência, após período de entorpecimento, aceitar aquela realidade se tornava algo extremamente insuportável.

Para além do pensar e do agir: os limiares da condição humana

De fato, a tortura procura produzir a aceitação de um discurso de Estado pela confissão de uma perversão: afinal, ao torturar sua vítima, o carrasco pretende reduzi-la a ser apenas isso, um lixo, a saber, o que o próprio carrasco, além de ser, sabe que é, mas sem confessá-lo (CERTEAU, 2011CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 197).

Em meio à busca por sua integridade mental, na tentativa de conseguir sua liberdade e de seus “companheiros” de prisão, Jeremias pretendia lançar um grito que pudesse animar os demais. Era preciso ter o apoio dos outros presos, que pareciam se deixar levar pelas torturas e não mais lutavam. O grito seria sua tentativa de ter a identificação com os demais, de fazer com que eles retomassem sua indignação, assim como ocorrera com ele:

Os olhos se fixaram nos homens do outro lado do tanque, e gritou ferozmente:

- Vivam, homens!

Duas mãos afogaram sua cabeça no tanque, e permaneceu assim, até sentir que se asfixiava - o corpo reagindo em convulsões. Bebeu um gole maior em sua angústia e achou que os olhos saltavam do seu rosto.

Foi solto e sentiu o corpo rolar pelo chão duro do pátio. Tossia e botava água pelo nariz e pela boca.

Duas botas reluzentes estavam próximas a seus olhos. A vista turva, nunca podia ver a cara daqueles homens fardados. Eles sempre ficavam em certa posição em que a luz impedia o detalhe de suas faces (BRASIL, 2010BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Os que bebem como os cães 7. ed. Teresina: Renoir, 2010., p. 73).

A perda de identidade parecia comum a todos. Os outros presos não se identificavam com nenhuma causa, não reagiam, não se viam mais como homens, não “viviam”, como ocorrera com o próprio Jeremias até que ele reconhecesse a si e à sua história após parar de consumir o que lhe era dado na prisão. Os torturadores não possuíam identidade, eram somente os homens de farda, que seguiam algum tipo de comando, ordens que diziam somente que eles deviam manter o controle dos presos, em franca alusão ao controle político vigente no Brasil durante a publicação da obra. A ausência de identidade dos algozes pode ser entendida como a referência a um cenário histórico em que há imprecisão em quem aciona os mecanismos da repressão, mas no qual se sabia quem a executava: homens de farda.

Nesse contexto, a única saída que o professor Jeremias vislumbrava era o seu grito, para romper aquele silêncio, aquela realidade que não tinha uma explicação. O seu ofício de professor era baseado na palavra, no diálogo e na permuta de ideias, dos quais agora encontrava-se privado.

A falta de diálogo constante entre os presos também incomodava Jeremias, pois a proibição de conversas entre eles fazia parte das estratégias de contenção de rebeliões. O grito era um dos poucos momentos nos quais se podia ouvir a voz um do outro, mesmo que fosse sussurrando uma só palavra, geralmente a palavra “mamãe” ou o nome de uma mulher, a mulher amada. O grito era um momento de lucidez e de humanidade. Por isso,

O grito era a única realidade ali - um desabafo, um equilíbrio de emoções, uma esperança, o sinal de uma vida já vivida. Podia sentir isso: e passou também a viver em função dos gritos, assim como tinha até então vivido em função do prato quente de sopa.

E o grito seria uma nova etapa temporal de seu cárcere - o tempo de seu corpo, de suas emoções limitadas entre as quatro paredes escuras.

E, embora sabendo que não podia gritar, dizendo o nome de quem quer que fosse, aguardava sobressaltado que os homens acabassem suas pequenas tarefas e começassem a berrar. Eles sabiam que cada um poderia dizer apenas um nome ou proferir uma exclamação - o esparadrapo brutal vinha duro como um coice, para selar-lhes os lábios. Mas insistiam e talvez até morressem por aquele momento (p. 27).

Ele não se conformava com tal circunstância de brutalidade. Por várias vezes, seus opressores ameaçaram: “Se gritar, vai apodrecer lá dentro” (p. 74). Não era permitida qualquer manifestação de humanidade: gritar por ajuda, gritar com a intenção de pedir explicações ou com o intuito de despertar levantes nos demais presos era terminantemente proibido, pois comprometia a “ordem” que se intentava impor pela força.

Nas estratégias de tortura havia as “negociações”, as trocas. Ele teria de escolher manter o grito ou ter o direito ao pátio, que era o único momento no qual podia sair das condições subumanas da cela. O pátio era o símbolo de uma liberdade condicionada, de uma liberdade falseada, mas mesmo assim, ainda era liberdade. Ficava, então, a se questionar o que fazer:

O grito em troca do pátio, daquela pequena liberdade - o ar, a luz, a presença dos outros, o contato do corpo com a água, os pés na laje fria - o contato com os outros homens, mesmo em silêncio, em murmúrios.

O grito em troca de pequenos confortos do corpo.

Mas o grito seria um novo conforto revificador, uma esperança - o amor, a paz, Deus - o grito lhe transmitia as coisas que poucos homens atingiam só quando se sacrificavam.

Estava certo disso agora: o grito, o seu grito seria o seu sacrifício pelos outros homens, por si próprio, embora tivesse que pagar na própria carne a audácia por querer mostrar que não tinha medo e podia se revoltar (p. 74).

Contudo, a fraqueza física, bem como o medo (in)consciente, o impediram por vários momentos. Mesmo assim, ainda fora da cela, continuava a refletir sobre

O grito em troca de pequenos confortos e a esperança de despertar os homens para a sua própria condição de torturados e ofendidos.

E levantou a cabeça resoluto, vivaz, feliz, e gritou um grito de seu âmago, como se fosse a última coisa que faria:

- Vivam, homens!

E mais alto:

- Vivam, homens, pelo amor de Deus! (p. 74).

Alguns dos homens esboçaram o mesmo grito, então começou a correria, na qual os policiais agiram com pancadas e levando todos que podiam para suas respectivas celas. A cena se repetiu, dessa maneira, por várias vezes e em todas as oportunidades, em sua pequena liberdade, ele fazia uso de seu grito:

Ainda estava livre e tentou um novo grito:

- Vivam, homens!

O atropelo se acentuou em suas costas: sentiu a pancada na boca e a voz autoritária:

- Não come hoje de noite (p. 85).

Naquele instante, Jeremias percebeu que o silêncio dos demais homens não se dava pela indiferença, mas pela repressão que sofriam constantemente. Eles simplesmente não queriam sentir mais as agressões que Jeremias sentia agora. Além disso, também não queriam ser privados da necessidade básica da alimentação. Pretendiam viver, pelo menos se alimentando. Os algozes do professor sabiam que a truculência física sozinha não era o suficiente para afugentar os lampejos de liberdade que acometiam Jeremias. Ao lado disso, alertavam-no de que não teria o direito ao jantar. Eles poderiam simplesmente não dar a refeição a ele, mas isso seria algo repentino. A tortura se configurava, também, no fato de que ele havia sido avisado e que, até a hora do jantar, ele ficaria na certeza de que a comida não lhe seria servida.

O medo e a indignação à fome e à privação torturavam-no tanto quanto a violência corporal sofrida, pois também eram uma forma de tortura. Jeremias compreendia isso, visto que “a maneira como agiam os guardas, o que diziam, tudo parecia fazer parte de um plano - havia uma ironia no ar, um sarcasmo em relação às vidas que se feriam” (p. 85-86). Os guardas sabiam que estavam lidando não somente com corpos. Estavam lidando com vidas e que tais vidas eram o bem mais inconteste daqueles homens. No seio da cultura ocidental, quando se passa a ter a vida como centralidade a partir das perspectivas do cristianismo, “a vida na Terra passou também a ser o bem supremo do homem” (ARENDT, 2010ARENDT, Hannah. A condição humana.. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., p. 395).

Jeremias era, como os demais, a figura torturada. Estava em choque, pois que realidade era aquela? Quem delegou àqueles guardas autoridade tal que lhes permitisse agir daquela maneira? Nesse sentido, Jeremias vai compreendendo que “o torturado fica surpreendido por deparar-se com uma lei inesperada para ele; de fato, finalmente, não lhe é solicitado para declarar como verdadeiro o que ele considera como falso” (CERTEAU, 2011CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 198). A instabilidade jurídica é um dos acionadores de sistemas políticos autoritários, nos quais os julgamentos passam a ser tendenciosos, o que compromete letalmente os princípios que norteiam o sistema jurídico democrático. Tudo isso acontecia ao passo em que Jeremias, meio atordoado por ainda nem se lembrar do próprio nome, via-se enfileirado, seguindo os comandos de disciplina dos guardas que o mandavam marchar de um lado para outro.

No momento no qual ficavam todos perfilados em frente às suas celas, Jeremias sentia um universo de sensações: medo, angústia, tranquilidade, alívio, esperança. Tinha medo de nunca mais sair daquela cela, de não caminhar, de não sentir, por alguns instantes, rufos da brisa ou o ardor dos raios do sol. Sentia um certo alívio e esperança, pois pensava que, enquanto estivesse na cela, estaria “protegido” de outras agressões. Enquanto a cela es­-tivesse fechada, estaria separado dos socos e pancadas dos guardas. Parecia loucura sentir esperança em meio àquela situação, mas era a esperança que os mantinham vivos e relativamente conscientes.

Em todo instante, na cela ou no pátio, Jeremias procurava manter-se lúcido. Estava sempre pensando sobre o que estava acontecendo e sobre o que poderia acontecer. Ele sabia que nem tudo o que ele pensava poderia ser expresso, ele não poderia se manifestar. Sentiu isso literalmente na pele, quando tentou insuflar seus “companheiros” e foi brevemente espancado e ameaçado de ficar sem refeição. Agir seria a reação primeira em respostas às violências às quais estava sendo submetido. Como destaca Hannah Arendt (2010ARENDT, Hannah. A condição humana.. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.), em condições de liberdade política, o pensamento é uma atividade humana das mais possíveis e marcantes do homem moderno e pós-moderno.

O pensamento é, em larga medida, a expressão da própria liberdade, mas, “ao contrário do que correntemente se supõe sobre a proverbial independência dos pensadores em sua torre de marfim, nenhuma outra capacidade humana é tão vulnerável; e é realmente muito mais fácil agir do que pensar em condições de tirania” (BRASIL, 2010BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Os que bebem como os cães 7. ed. Teresina: Renoir, 2010., p. 406). Jeremias percebia tal vulnerabilidade, pois do que adianta pensar, se não lhe era permitido demonstrar os pensamentos? O agir, em tais condições de privação, é um agir que não reflete pensamentos, sobretudo pensamentos de insurreição ou de questionamento. A “liberdade” das ações é condicionada e vigiada. Agir conforme as regras, sendo que a disciplina seria a garantia de integridade parcial do indivíduo.

Seu pensamento o fazia sentir novas experiências. Sua relação com as coisas, com os espaços e com o próprio corpo era modificada. Ao entrar na cela, sentia-se cada vez mais “acostumado”, pois o espaço já se tornava lugar, não de pertencimento, mas de reconhecimento. Qualquer sinal que indicasse que estava vivo era motivo de apaziguamento, mesmo que passageiro. Assim era em seu contato com a cela quando

Deixou-se sentar aos poucos, até sentir o chão úmido. A aspereza da roupa nova estava em seu corpo, o molhado da água, e se achou com certo conforto, uma certa paz - a inércia também era um entorpecimento, uma derrota (p. 87).

A umidade, a aspereza, o molhado... sensações que o faziam ter a certeza de que estava vivo. Aquilo que era sinônimo de sofrimento e humilhação, agora tornava-se símbolo de sobrevivência. Um “entorpecimento” que o fazia pensar, também, que a derrota existia, visto que a tirania parecia ter vencido a liberdade. Essa verdade sentida em seu corpo o credenciava a pensar na certeza de que a liberdade se constitui em todos os detalhes da vida, de que a liberdade é muito mais prática do que um conceito abstrato de cunho filosófico.

Até sua percepção do tempo é transformada, visto que o tempo demarcado pelos horários do trabalho e da casa estava diluído nas incertezas do vazio da prisão. “O tempo. O tempo formado pelo meu jejum. O tempo passa e o sinto mais perto e cruel - o tempo da lucidez mais palpável, a espera mais prolongada e objetiva” (p. 110). O tempo do romance é ficcional e psicológico. É o narrador onisciente (em terceira pessoa) que nos mostra os conflitos e as revelações interiores do protagonista.

Tais descobertas é que se integram à trama, juntamente com a vida na prisão, cuja in­fluência sobre o personagem é tão intensa que demarca a maneira de se ver e de se pensar no tempo. Suas referências eram outras naquele instante: o tempo do pátio e da cela. Tempo esse que era coordenado pelos apitos e gritos dos guardas que diziam como e para onde andar. Naquela nova e depressiva realidade,

O tempo custava agora a passar. Estava sentindo isso pela primeira vez: o tempo custava a passar. Comera pouco, bebera pouco, e o entorpecimento cedera à consciência - o real se manifestava mais nítido, e iria sofrer por isso, sabia, mas sofreria o passar dos minutos e das horas que poderia alcançar. A espera, enervante ou não, mas sem aqueles saltos no espaço, no vazio (p. 88).

O tempo, como categoria mental, social e histórica era o elemento norteador da sensação de racionalidade de Jeremias. A perda das referências de tempo também se configura como a perda de traços da identidade do indivíduo. Em meio à consciência que se restabelecia, outros delírios se misturavam aos pensamentos da realidade. Talvez como uma forma de se manter são, como uma fuga mental para outro tempo, para outra realidade, certamente, uma reelaboração do tempo mediante as angústias sentidas e as ameaças que o afligiam.

Daí seus lampejos de memória, que o faziam lembrar, de maneira confusa, de momentos com sua mãe, Matilde, como uma forma de resistir ao tempo vivido. Em suas tentativas de compreender a realidade na qual fora imerso naquele instante, começou a considerar que “talvez fosse melhor assim, já havia pensado nisso - o entorpecimento dos sentidos, da mente, o seu passado em ligeiros fragmentos, talvez contribuísse, para que não se desesperasse numa longa espera por nada” (p. 89).

Sua busca por consciência e por sua própria humanidade/humanização o fez observar atentamente os ratos que frequentavam constantemente sua cela. Os ratos eram, para ele, a sua referência entre a sua condição humana e a perda de identidade, de humanidade, em um cenário em que essas características eram ameaçadas a todo instante. Isso provocava nele profundas reflexões sobre o direito à vida e sobre a amplitude da condição de estar vivo, pois, para ele,

Os ratos não eram simples autômatos irracionais, programados para a sobrevivência, para a procriação. Havia algo além da necessidade física de um pequeno animal, de um grande animal - dois deles viviam ali na semiescuridão de uma cela, existindo sob o impulso primordial de sua natureza, que não era apenas um feixe de células e de nervos (p. 130).

Essa simples constatação o tranquilizava, pois lhe parecia como a tomada de raciocínio lógico, da racionalidade que, a priori, aquela situação de privação havia lhe castrado. Isso, ao invés de provocar nele o imobilismo, parecia alimentar seu desejo em permanecer vivo e, estranhamente, possibilitado a ele certa tranquilidade:

Sentiu-se mais tranquilo com os últimos pensamentos - os ratinhos eram seus companheiros: no ar que respiravam, num sentimento que acalentavam - alguma coisa maior, além daquele prato fumegante. Além daquele prato - e seus olhos estavam cravados nele, bem no meio da cela, envolto no mistério de sua aparição silenciosa. O aço em seu reflexo repetido, o fumo que o encobria em estranha espiral (p. 130-131).

Sua consciência se manifestava não pela saciedade ocasionada pela comida e pela água, mas pela compreensão da magnitude da vida, derivada do convívio com os roedores. Aliás, era uma estratégia de seus opressores: deixar o corpo exausto, faminto e sedento, para que o foco do preso se perdesse com os pequenos, mas elementares, momentos de prazer e satisfação. A comida e a água funcionavam como uma espécie de entorpecente, que fazia parte das ações de animalização das pessoas, relegando-as às necessidades básicas e comuns a qualquer animal: o comer e o beber.

A racionalidade por ele recuperada se dava com a compreensão de que o tempo se manifestava de maneiras diferentes, eram temporalidades diferentes. Dessa maneira,

Não se deixara entorpecer pela água do tanque ou pela comida, mas seus pensamentos - a volta àquele sótão - tinham sido também um antídoto para o tempo, para a realidade circunvizinha. Sofria com o tempo que não passava em seus sentidos, sofria com a abstração forçada, ou com a simples fuga para regiões que não mais alcançava. Estava sendo dilacerado (p. 131).

“Estava sendo dilacerado”. Esta é uma das expressões mais significativas de seu sofrimento, da violência que sofria pelas privações a que era submetido. Não uma violência unicamente física, pela punição de seu corpo que o restringia à cela e ao pátio. Era a violência que limitava o pensamento, seja pela oferta de água ou alimento que o dopava, seja pelos limites da compreensão do que estava em volta, do que acontecia. Isso começava a tirar-lhe as demonstrações de sua sensatez, embora passasse a encontrá-la em um lugar inesperado.

O auge desse dilaceramento está em sua resignação, em sua resistência ao sofrer. Não suporta mais a humilhação vinda dos policiais. Não aceita que seu corpo seja tão privado de liberdade. É preciso se juntar aos muitos que já haviam feito seu sacrifício. Ele começava a compreender que, em meio ao terror da tortura, “a morte dos homens poderia também significar uma reação, uma revolta mais firme, com a cor do sangue e do sacrifício. Eles se deixavam morrer ou se matavam em busca de um alvo, um fim a alcançar” (p. 77). Aquilo que parecia ser o fim, passa a ser entendido como uma resistência e uma reação contra todo autoritarismo a que se estava submetido.

No pátio, a saída seria o muro. Logo o muro, que tem a função de delimitar a fronteira entre a prisão e a liberdade oferecida pelo mundo exterior. Naquele instante, sob a constatação a que chegara, o muro seria a ferramenta de liberdade para Jeremias. Certo disso, o professor:

Esfrega com certo fervor os pulsos no muro, uma, duas, dez vezes, e vê o sangue saltar para suas mãos e respingar em seu rosto. O sangue generoso como a água do tanque, continua a tingir o muro, mais e mais, o trabalho se realiza, a sua tarefa.

Descobre-se de joelhos e suas mãos não mais alcançavam a última mancha, mas a sua cor rubra está ali, esmaecida ou por fenecer, completa e uniforme - para os que saberão vê-la e senti-la: o esforço dos homens, o seu tributo.

O sangue escapa-lhe das veias como uma pequena torrente - uma poça se forma no chão, no pé do muro, e tenta se lembrar quando gritou pela última vez por sua mãe (p. 146-147).

Com essa ação, Jeremias faz um tributo aos presos que, anteriormente a ele, tomaram a mesma atitude. Em seus pensamentos, as muitas manchas no muro deveriam significar algum recado, alguma mensagem daqueles homens para seus entes queridos. Naquele instante, Jeremias também se lembra de seus familiares, pensando que os laços de amor e fraternidade devem existir em algum lugar e que são eles que devem reger o mundo. O suicídio não era visto por ele como sinônimo de fraqueza, mas sim como a única ferramenta de que os presos dispunham para resistirem, como uma “tática do fraco” (CERTEAU, 1999).

Ao seguir esse percurso, acreditava tornar-se detentor do poder e do controle do próprio corpo. A disputa de poderes se dava não mais na escala do poder macro, na esfera das instituições. O poder agora era disputado no nível da circunstância micro, pois comandar o próprio corpo, fazer a opção pelo sacrifício era não deixar o corpo ser mutilado por aqueles que detinham o poder da tortura. Sua maior - talvez a única - manifestação de liberdade naquelas circunstâncias de privação de liberdades.

Considerações finais

Os que bebem como os cães, mais que um romance de alcance e bases unicamente ficcionais, é um registro narrativo que apresenta possibilidades várias de visualização de uma temporalidade, ou de temporalidades e de memórias de um tempo. Temporalidade cortada pelas práticas autoritárias do regime ditatorial vigente no país, que teve suas marcas em todo o território nacional. O livro de Assis Brasil junta-se aos inúmeros textos, imagens, figuras, personagens e imagens que revelam os traços delirantes do regime político. O romance sinaliza, também, para a atenção que o autor dedicou à configuração histórica que ia além do território nacional, o que o enquadra como um texto de características universais, nas quais a condição humana é foco principal.

O livro de Assis Brasil também demonstra as sensações e sentimentos ocasionados pelos impactos do regime ditatorial em território piauiense. Aponta para a mescla entre a ficção e o real. Literatura e história, ficção e realidade entrecruzando-se nas narrativas das memórias de um período de extrema violência contra a individualidade e a liberdade. Os principais resultados de análise do estudo demonstram que o romance do escritor nascido na cidade de Parnaíba, no Estado do Piauí, lança inúmeras pistas para a visualização das práticas ditatoriais em território piauiense, além de permitir o vislumbre não somente das ações dos entes estatais, mas também das manifestações de resistência.

Tais resultados ainda têm apontado para indícios de que tal romance deve ser percebido, lido e analisado também como um significativo romance histórico, ampliando as classificações da crítica literária, que não o enquadra como tal. Vale destacar que, pela universalidade do tema, ligado a todo e qualquer regime ou prática totalitária, o livro Os que bebem como os cães também pode ser tomado como um texto que desperta as reflexões sobre as políticas e ações de governos e regimes políticos, inclusive em diferentes espacialidades e temporalidades. Mas também trata de como as pessoas agem diante disso, seja na condição de aliado - como os “homens de farda” - ou na condição de oponente - como Jeremias e seus colegas de prisão.

Diferentemente do que classifica a crítica literária nacional e local, consideramos que esse romance é sim de caráter histórico, pois apresenta indícios de um período no qual o silêncio e a dor eram símbolos e marcas constantes de sua configuração histórica. Desconsiderar esse romance como tal é vilipendiar a própria memória desse fatídico episódio da história nacional e a validade desse romance para suscitar a reflexão sobre tal momento, bem como sobre situações em que o autoritarismo colide com os direitos civis, entre os quais, sobressai-se o direito à vida - em toda a sua extensão.

Ensinar, sensibilizar e possibilitar a reflexão e a indignação contra as práticas que foram executadas ou autorizadas por governos de exceção - como as tratadas no livro - contribui para que o presente compreenda, a partir de textos como o de Assis Brasil, os riscos que corre a democracia do país que tem o mesmo nome deste autor, toda vez em que se aceitam ações que avancem contra as garantias constitucionais conquistadas historicamente, e mais, permite explicitar que as violências cometidas contra o professor Jeremias podem avançar contra qualquer um, em especial contra aqueles que se interponham contra os interesses das forças arbitrárias, sobretudo os que ousarem ignorar que a democracia não é um dado preestabelecido, mas um constructo histórico.

Os que bebem como os cães é um livro que imprime certas imagens da condição humana assemelhada à vida animal e remete o leitor para envolver-se com essa condição. O homem perde sua racionalidade, buscando a sobrevivência em meio às práticas de privação dos direitos básicos como o da verdade e da liberdade, nem que para isso precise adotar na narrativa literária medidas extremas contra a própria existência material do personagem central. As dores do professor Jeremias passam a ser compartilhadas por todo aquele que ler esse romance e se disponha a fazê-lo com os olhos e demais sentidos voltados à nossa história.

Referências

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  • BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas - Magia e técnica, arte e política São Paulo: Brasiliense, 1987.
  • CALVINO, Ítalo. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
  • CERTEAU, Michel de. A escrita da história Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
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  • 1
    Francisco de Assis de Almeida Brasil é natural de Parnaíba - Piauí (1932). Assis Brasil é um dos romancistas piauienses mais importantes na atualidade. Os gêneros explorados por esse autor são os mais variados, desde o romance, passando pelo conto, a novela e a crítica literária. Vive atualmente do ofício de escritor. De toda a sua obra, destacam-se dois ciclos: a Tetralogia Piauiense e o Ciclo do Terror (conjunto de obras que tratam de questões ideológicas, da violência e da natureza destrutiva do homem. Os outros livros são: O aprendizado da morte (1976), Deus, o sol, Shakespeare (1978) e Os crocodilos (1980)). No período da ditadura militar, decorrente do golpe de 64, foram instauradas algumas regras, dentre as quais a proibição de reuniões com mais de três pessoas e o discurso político nas universidades, além de censura à imprensa e substituição da Constituição pelos Atos Institucionais. Nesse contexto, Assis Brasil publicou a maioria de suas obras.
  • 2
    Clio é uma das nove musas da mitologia grega. Ela é a musa da história, em seus aspectos das relações sociais e políticas entre os indivíduos.
  • 3
    Calíope é a musa grega da poesia e musa da literatura de maneira em geral.
  • 4
    Trabalhos como RIBEIRO, 2014RIBEIRO, Luiz Antonio. A memória como corpo animal em “Os que bebem como os cães”. CONTINTER 3. Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de out.2014, n. 3, v. 19, p. 229-243.; CORRÊA, 2007OLIVEIRA, Andrey Pereira de. A razão embotada: estruturas repressoras em Os que bebem como os cães, de Assis Brasil. Disponível em: Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=analise+de+os+que+bebem+como+os+caes+de+assis+brasil&ei=Yb3TW8ubFISZwgS_uKLoBQ&start=10&sa=N&ved=0ahUKEwiL0NmjuqXeAhWEjJAKHT-cCF0Q8tMDCHI&biw=1366&bih=636 . Acesso em:18 set. 2018.
    https://www.google.com.br/search?q=anali...
    e OLIVEIRA.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2018
  • Aceito
    20 Mar 2019
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