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Memória humana e teatro

Human memory and theater

Resumos

A memória humana é essencial para a atividade teatral. Isso por um motivo óbvio: é ela que possibilita aos atores gravarem suas falas e ao público compreender a mensagem passada pela peça. Neste trabalho, investigamos as noções de memória propostas por Descartes, Hume e Kohonen. Para eles, a memória é imprescindível na obtenção e desenvolvimento do conhecimento. A nosso ver, o estudo da memória é de grande importância para o teatro, à medida que este não seria possível sem aquela.

Memória humana; teatro; conhecimento


The human memory plays an essential role in theatrical activity because it makes it possible that the actors record their lines and the public understands the message transmitted in the play. In this work, the notion of memory proposed by Descartes, Hume and Kohonen are investigated. For those thinkers, memory is indispensable to obtain and develop knowledge. In our opinion, the study of memory is of great importance for the theater, because the theater doesn't exist without memory.

Human memory; theater; knowledge


1 Graduanda do curso de Filosofia da UNESP/Marília. 1 Graduanda do curso de Filosofia da UNESP/Marília. Memória humana e teatro

Human memory and theater

Edna de Souza Alves1 1 Graduanda do curso de Filosofia da UNESP/Marília. ; Marcos Antônio Alves2 2 Doutorando do programa Interdisciplinar em Filosofia – UNESP – 17525-900 – Marília – SP.

RESUMO

A memória humana é essencial para a atividade teatral. Isso por um motivo óbvio: é ela que possibilita aos atores gravarem suas falas e ao público compreender a mensagem passada pela peça. Neste trabalho, investigamos as noções de memória propostas por Descartes, Hume e Kohonen. Para eles, a memória é imprescindível na obtenção e desenvolvimento do conhecimento. A nosso ver, o estudo da memória é de grande importância para o teatro, à medida que este não seria possível sem aquela.

PALAVRAS-CHAVE: Memória humana; teatro; conhecimento.

ABSTRACT

The human memory plays an essential role in theatrical activity because it makes it possible that the actors record their lines and the public understands the message transmitted in the play. In this work, the notion of memory proposed by Descartes, Hume and Kohonen are investigated. For those thinkers, memory is indispensable to obtain and develop knowledge. In our opinion, the study of memory is of great importance for the theater, because the theater doesn't exist without memory.

KEYWORDS: Human memory; theater; knowledge.

A memória humana é uma faculdade essencial para o bom desempenho do ser humano e, particularmente, na atividade teatral isso é notável. Uma vez que a memória possibilita aos atores gravarem suas falas, bem como à platéia "guardar" a mensagem passada pela peça teatral. Neste trabalho, pretendemos investigar a concepção de memória presente na tradição filosófica cartesiana e humiana, contrastando-as com a proposta por Kohonen.

O nosso objetivo não é fazer um trabalho de história da filosofia, mas buscar nessa história contribuições para a pesquisa atual a respeito da memória e, na medida do possível, investigar a relevância desse estudo para o teatro.

No que se segue, apresentaremos rapidamente a noção de memória proposta por Descartes (1955, 1982a, 1982b), Hume (1989), Kohonen (1987) e, finalmente, sua importância para a vida teatral.

Como veremos a seguir, embora Descartes não proponha uma definição conceitual precisa de memória, em alguns pontos de sua obra deparamos com a problemática de saber a origem e natureza dessa faculdade.

Descartes adota a hipótese representacionista da mente. Segundo ele temos idéias ou representações que propiciam o conhecimento. Mas, para que o processo cognitivo ocorra de fato, é imprescindível que o sujeito cognitivo possua uma memória capaz de armazenar dados por meio das entidades representacionais, tais como símbolos, regras, imagens etc.

Por outro lado, nem todas as idéias propiciam o conhecimento, por isso Descartes elaborou uma tipologia das idéias, dividindo-as em inatas, adquiridas e idéias fictícias.

As idéias inatas estão relacionadas ao entendimento; elas não se originam nos objetos, nem dependem da vontade ou da experiência; são adquiridas do ente perfeito Deus. Por meio das idéias inatas, o sujeito cognitivo pode obter conhecimento apoiado em idéias claras e distintas.

As idéias adquiridas estão relacionadas a uma outra faculdade que é a sensibilidade; essas idéias são formadas a partir da experiência.

As idéias fictícias estão relacionadas a uma outra faculdade que é a imaginação. A imaginação associa, relaciona, diferentes idéias, inclusive aquelas que não encontram correspondentes na realidade.

Descartes desenvolveu uma estratégia de análise das idéias, bem como um método para o direcionamento do espírito, a fim de estabelecer princípios para construir uma ciência verdadeiramente racional. A sua estratégia de análise – conhecida como dúvida hiperbólica – tem por finalidade distinguir as crenças falsas ou dúbias do conhecimento certo e seguro. Ela permite pôr em dúvida todas as antigas crenças e rejeitar aquelas que apresentem qualquer elemento de dúvida. Ao final dessa investigação, espera-se encontrar alguma crença indubitável que resista a essa técnica. Caso haja uma tal crença, essa seria a pedra fundamental, a primeira verdade, que serviria de base a outras e assim sucessivamente, conforme a estratégia cartesiana (Descartes, 1982b, p.19).

No que diz respeito ao seu método para o desenvolvimento do raciocínio, Descartes dividiu-o em quatro etapas:

• A primeira consiste em considerar como verdadeiro somente as idéias que, pela razão, se mostrarem claras e distintamente, não podendo, portanto, em nenhuma ocasião ser colocadas em dúvida (ibidem, p.18).

• A segunda trata da divisão dos problemas. Para serem completamente estudados, cada problema (ou idéia complexa) deve ser dividido em subproblemas (ou idéias) mais simples (ibidem).

• A terceira etapa tem por objetivo ordenar, enunciando, os pensamentos de maneira a serem estudados gradualmente, do mais simples ao mais complexo. Descartes ressalta que é necessário, ao analisar problemas (ou idéias), seguir uma certa ordem, a fim de dar continuidade a cada análise, estabelecendo uma linha de raciocínio semelhante à da matemática: os problemas, de uma certa maneira, encontram-se relacionados; por essa linha é possível investigar até mesmo os problemas que se encontram ocultos (ibidem).

• A quarta etapa do método cartesiano, que para o nosso propósito é a mais relevante, aponta a necessidade de "de faire partout des denombremens fi entiers, & des reueuës fi generales, que ie fuffe affuré de ne rien omettre." (Descartes, 1982a, p.19)3 3 "fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir" (tradução nossa). . Essa etapa consiste, justamente, em ter o cuidado de não deixar de lado nenhum problema (ou idéia), evitando assim os erros. O zelo em fazer revisões possibilita a verificação da totalidade dos problemas, a fim de evitar equívocos em razão do descuido em não reexaminar algum problema existente.

Encontramos essa exigência da quarta etapa do método também em uma passagem das Meditações: "Mais il ne fuffit pas d'auoir fait ces remarques, il faut encore que ie prenne foin de m'en fouuenir" (ibidem, 1982b, p.17)4 4 "Mas não basta ter feito tais considerações, é preciso ainda que cuide de lembrar-me delas." .

A quarta regra do método, bem como a passagem, acima citada, confiam à memória o papel de auxiliar na exigência de precisão que torna possível a obtenção do conhecimento pleno, tão almejado por Descartes.

A importância da memória está, assim, no fato de que o conhecimento pressupõe a lembrança do encadeamento de idéias pelo sujeito cognitivo. O sujeito do conhecimento deve ter acesso às suas idéias quando desejar ou se fizer necessário.

Embora considerada indispensável no processo de aquisição e desenvolvimento do conhecimento, a memória parece não fazer parte da lista de características essenciais do sujeito cognitivo, como notamos no seguinte trecho das Meditações: "Mais qu'eft-ce donc que ie fuis? une chofe qui penfe. Qu'eft-ce qu'vne chofe qui penfe? C'eft à dire une chofe qui doute, qui conçoit, qui affirme, qui nie, qui veut, qui ne veut pas, qui imagine auffi, & qui fent" (ibidem)5 5 "Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que imagina também e que sente" (tradução nossa). . Nessa passagem, caracterizadora do sujeito cognitivo, parece não haver lugar para a memória. Notase que Descartes ao caracterizá-lo não faz referência à lembrança como uma de suas faculdades.

Pela estratégia de análise, bem como pelo método para o direcionamento do espírito, Descartes almeja chegar a um princípio fundante do conhecimento. A certeza de sua existência como ser pensante será o princípio da filosofia que buscava. Pois, para esse filósofo, a verdade "penso, logo existo" nem mesmo os céticos podem abalar, constituindo essa uma primeira certeza. Isso porque não se pode razoavelmente duvidar da existência do ser que esteja duvidando.

O que, de fato, garante a verdade dessa proposição (penso, logo existo) é a evidência clara e distinta de que para pensar é necessário existir. Essa proposição satisfaz a primeira regra do método: tudo o que se percebe clara e distintamente à luz da razão deve ser aceito como verdadeiro.

Nesse contexto, Descartes admite que a certeza de sua existência, cuja essência ou natureza consiste somente em pensar, independe da existência de um corpo, pois mesmo considerando a hipótese da nãoexistência dos corpos, isso não seria o bastante para anular a existência da dúvida que se instalara no ser pensante.

Dessa forma, a teoria cartesiana propõe que o ser humano seja composto por duas partes distintas e independentes: o corpo, concebido como uma máquina, regido por leis da física, e a alma que não é mecânica e nem regida por leis da física, mas possui propriedades como pensar, imaginar, sentir etc.

Cabe à alma, entendida por Descartes como uma substância imaterial, todas as propriedades cognitivas do sujeito; quanto ao corpo, esse é relegado a um segundo plano e constituirá fonte de enganos.

Embora defenda a completa distinção entre a alma e o corpo, Descartes não nega a relação existente entre essas duas substâncias. Relação essa mediada pela glândula pineal (espécie de sede da alma).

Coloca-se aqui um problema, pois a glândula pineal nada mais é do que uma substância material, parte constituinte do corpo e, sendo a alma imaterial, como se explica que esta precise de uma sede para se alojar.

Descartes vai mais além, propondo que alma não esteja apenas "ligada" ao corpo, mas que também exerça sobre ele uma espécie de poder. Quando desejamos lembrar algo, por exemplo, o nosso desejo

fait que la glande se penchant successivement vers divers costez, pousse les esprits vers divers endroits du cerveau, jusques à ce qu'ils rencontrent celuy où sont les traces que l'objet dont on veut se souvenir y a laissées. Car ces traces ne sont autre chose sinon que les pores du cerveau, par où les esprits ont auparavant pris leur cours, à cause de la presence de cet objet, ont acquis par cela une plus grande facilité que les autres, à estre ouverts derechef en mesme façon, par les esprits qui vienent vers eux: En sorte que ces esprits rencontrant ces pores, entrent dedans plus facilement que dans les autres: au moyen de quoy ils excitent un mouvement particulier en la glande, lequel represente à l'ame le mesme objet, & luy fait connoistre qu'il est celuy duquel elle vouloit se souvenir. (Descartes, 1955, p.97)6 6 "faz que a glândula, inclinando-se sucessivamente para diversos lados, impila os espíritos para diversos lugares do cérebro, até que encontrem aquele onde estão os traços deixados pelo objeto de que queremos nos lembrar; pois esses traços não são outra coisa senão os poros do cérebro, por onde os espíritos tomaram anteriormente seu curso devido à presença desse objeto, e adquiriram, assim, maior facilidade que os outros, para serem de novo abertos da mesma maneira pelos espíritos que para eles se dirigem; de sorte que tais espíritos, encontrando esses poros, entram neles mais facilmente do que nos outros, excitando, por esse meio, um movimento particular na glândula, que representa à alma o mesmo objeto e lhe faz saber que se trata daquele do qual queria lembrar-se" (tradução nossa).

Nas Paixões da alma, Descartes relata, brevemente, a maneira pela qual nos lembramos de determinadas coisas. A memória é aí entendida como uma atividade do cérebro.

A memória, de acordo com o exposto, consiste apenas num mecanismo cerebral, cujo funcionamento está na dependência das ações da alma, ou seja, às suas vontades.

Ao caracterizar a memória como um mecanismo cerebral, uma vez reconhecida a necessidade da memória no processo de aquisição e desenvolvimento do conhecimento, bem como a necessidade do corpo para ativá-la, parece estranho que Descartes tenha considerado o corpo uma fonte de enganos.

Outra questão a ser levantada é o fato de Descartes não enumerar a memória na lista das características essenciais do eu pensante, embora a tenha considerado indispensável no processo do conhecimento.

Talvez, Descartes, apesar de não especificar claramente, reconhecesse a existência de duas espécies de memórias presentes no sujeito cognitivo: a primeira seria aquela pertencente à própria natureza do sujeito e permitiria a este selecionar as informações, inclusive aquelas das idéias inatas; a segunda seria apenas um mecanismo cerebral, encontrada até em animais irracionais, como, no papagaio que consegue memorizar palavras e repeti-las mecanicamente.

Com efeito, isso são meras especulações. Descartes, ao longo de sua obra, apenas aponta a importância da memória, não fazendo estudo algum diretamente a seu respeito.

Ao contrário de Descartes que defende o dualismo e a possibilidade de chegarmos ao conhecimento de verdades absolutas por meio das idéias inatas (idéias pertencentes à própria natureza humana), Hume é um cético. O empirismo humiano centra a solução do problema do conhecimento – preocupação em desvendar a origem das idéias que propiciam o conhecimento, bem como a garantia da correspondência entre essas idéias e a realidade exterior – sobre a faculdade da sensibilidade.

Hume, em suas investigações a respeito da sensibilidade, constata que as percepções estão divididas em duas classes: impressões e idéias. As impressões constituem a percepção imediata da realidade exterior, ao passo que a idéia é a lembrança de tal impressão. As idéias, portanto, segundo a visão empirista humiana, são entendidas como representações da memória e da imaginação que fazem uso dos dados sensoriais.

Ao contrário de Descartes, que defende a hipótese de que as idéias claras e distintas por si só já garantem a existência de um correspondente destas na realidade material, Hume exige de cada idéia uma impressão direta da realidade que lhe corresponda. Segundo Hume, se nunca tivéssemos visto um cavalo, jamais poderíamos imaginar um unicórnio. Isso porque, na visão empirista, as idéias são obtidas pelo contato do nosso aparato sensório com os objetos da experiência.

A mente, utilizando-se da imaginação, forma idéias complexas que não encontram correspondentes na realidade física, ou seja, que não existem na natureza, como o citado exemplo do unicórnio. Dessa forma, surgem as noções falsas que nos confundem, apresentando-nos um mundo ilusório.

Para distinguir as idéias ilusórias das não-ilusórias, Hume constituiu um método. Esse método consiste em verificar de que impressões surgiu cada idéia. Para isso, primeiramente, é necessário decompor as noções complexas em suas noções simples constituintes. Não encontrando uma noção que corresponda à idéia, esta deve ser rejeitada, tomada como falsa (Hume, 1989, p.27). Pois cada idéia, necessariamente, deve ter um correspondente nos objetos ou eventos que lhe deram origem, para ser aceita como verdadeira.

De acordo com Hume, o conhecimento está intimamente ligado à confiabilidade adquirida pelo hábito. Esse filósofo argumenta que, embora não tenhamos uma base estritamente lógica que sustente a nossa crença comum a respeito da regularidade da natureza, o hábito, apesar de não garantir a verdade, nos persuade a confiar em tal regularidade.

Ao encontrarmos apoio numa tendência psicológica – o hábito –, parece claro que não há, segundo essas considerações, possibilidades de obtermos o conhecimento de verdades absolutas. O que podemos obter é apenas um conhecimento provável, dependente da continuidade da regularidade da natureza.

Notamos aqui que o sujeito cognitivo depende da memória para armazenar e estruturar informações necessárias como aquelas referentes a repetição de fenômenos. Essas informações são necessárias para a criação, por exemplo, das chamadas "leis naturais". Apesar de não podermos atribuir, racionalmente, a perpetuidade a essas leis, elas apresentam grande possibilidade de permanecer existindo pelo menos por longo tempo, possibilitando assim o desenvolvimento do conhecimento científico.

Sendo assim, o sujeito do conhecimento humiano não é mais o sujeito da certeza, possuidor do conhecimento de verdades últimas e plenas, como pretendia Descartes; seu conhecimento funda-se na experiência, mais especificamente, nas crenças geradas pelos hábitos.

De qualquer forma, o hábito é um dos elementos indispensáveis na obtenção e desenvolvimento do conhecimento e depende da memória, uma vez que o sujeito cognitivo não perceberia a repetição dos fenômenos que origina o hábito se não a possuísse.

A noção de um "eu", tão importante para a filosofia cartesiana, é, para Hume, mais uma noção complexa. Tal noção, embora empregada constantemente, deve ser investigada utilizando-se do método de análise das idéias por ele estabelecido. Como visto anteriormente, de acordo com o método de análise humiano, primeiramente devemos perguntar se a noção de um "eu" é simples ou complexa. Por meio da análise cuidadosa dessa pergunta, Hume (1962) nos conduz à conclusão de que tal noção é complexa. Isso porque verificamos que há uma diversidade de elementos que, de certa maneira, constituem o que reconhecemos por um "eu", ou seja, por uma personalidade.

Após constatarmos que a noção de um "eu" é uma noção complexa, temos que verificar também se a tal noção existe uma impressão correspondente. Mesmo investigando cuidadosamente, não a encontramos.

Fica então a pergunta: o que de fato caracteriza a identidade de uma pessoa? Como explicar que pessoas distintas em diferentes etapas do tempo possam ser identificadas como a mesma pessoa? Esse é o conhecido problema da identidade pessoal, discutido por diversos filósofos em diferentes épocas e lugares, em aberto até nossos dias.

Para Hume não há identidade, mas sim uma ilusão de identidade. Temos apenas a sensação de um "eu".

A sensação de que a personalidade possui um núcleo constante e imutável não encontra um correspondente em nenhum dado externo que poderia, eventualmente, ter lhe dado origem. A noção de um "eu" é composta por uma infinidade de impressões isoladas que não podem ser vivenciadas simultaneamente e não estão conectadas a não ser pela pela memória. Ao que parece, a memória está diretamente ligada à identidade. Ela ocupa um lugar de extrema importância na formação da sensação de uma identidade pessoal.

Além disso, as pessoas cotidianamente necessitam da memória que lhes garante uma base firme para viver e comportarem-se inteligentemente.

Dessa forma, a memória é um dos componentes centrais da inteligência, mas, por outro lado, não basta possuir memória, é preciso que as informações nela contidas sejam espontaneamente utilizadas, de acordo com um critério apropriado de relevância, para que o comportamento do sujeito possa ser identificado como inteligente.

Ao contrário do que pensam os filósofos já citados, pesquisadores atuais como Kohonen acreditam que a memória pode ser explicada simplesmente pela relação entre os neurônios.

Com o advento de novas áreas de pesquisa, como as neurociências, grande parte dos fenômenos mentais, antes atribuídos a uma alma ou a uma mente imaterial, passaram a ser entendidos como constituintes do cérebro. Sobre a memória, diversas pesquisas mostraram que lesões cerebrais causam variações nessa faculdade do indivíduo (Greenfield, 2000). O tipo de problemas referentes à memória depende do lugar e da quantidade de neurônios afetados. Em alguns casos, as pessoas tornaram-se incapazes de lembrar eventos ocorridos em uma determinada fase recente de sua vida, mas podiam lembrar-se de fatos ocorridos na infância, por exemplo. Outras pessoas tornaram-se incapazes apenas de memorizar nomes ou números. A observação do cérebro dessas pessoas revelou que a área danificada era distinta.

Apoiados nesses estudos, pesquisadores como Kohonen propuseram algumas teorias nas quais o cérebro tem um papel fundamental na explicação da natureza da memória. Para eles, a memória depende do estabelecimento de certas relações entre neurônios. Quanto mais estimulamos determinadas associações neuronais, melhor será a capacidade de memorização. Essa memória mecânica pode proporcionar conhecimento, ao contrário do que pensava Descartes.

Embora as pesquisas realizadas pelas neurociências revelem algo menos discursivo sobre a memória, ainda não dispomos de uma descrição exata dessa faculdade. As lesões cerebrais apontam problemas com a memória, mas não proporcionam uma explicação satisfatória do mecanismo de funcionamento da memória.

As noções de memória propostas até o momento não nos permitem ter um conhecimento seguro da natureza dessa faculdade. Uma vez que há uma participação inegável e imprescindível da memória no processo do conhecimento, o estudo da sua natureza é de grande importância. A nosso ver, a relevância desse estudo para o teatro é que o conhecimento da natureza da memória pode proporcionar métodos eficazes para a memorização de textos. Assim, o problema do esquecimento poderia ser evitado, assegurando que o ator exprima correta e completamente sua mensagem. Além disso, é justamente por meio da memória que a platéia pode captar a mensagem teatral, transformando-a em conhecimento, aplicável, até mesmo, à melhoria da própria vida.

  • DESCARTES, R. Les passions de l'âme Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1955.
  • ______. Discours de la méthode. In: ______. Oeuvres de Descartes Librairie Philosophique J. Vrin, 1982a.
  • DESCARTES, R. Meditations. In: ______. Oeuvres de Descartes. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1982b.
  • GREENFIELD, S. O cérebro humano: uma visita guiada. Trad. A. Tort. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
  • HUME, D. On human nature and the understanding New York: Collier Books, 1962.
  • ______. Investigaçăo sobre o entendimento humano Trad. Artur Mourăo. Lisboa: Ediçőes 70, 1989.
  • KOHONEN, T. Self Organization and Associative Memory. Berlin: SpringerVerlag, 1987.
  • 1
    Graduanda do curso de Filosofia da UNESP/Marília.
  • 2
    Doutorando do programa Interdisciplinar em Filosofia – UNESP – 17525-900 – Marília – SP.
  • 3
    "fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir" (tradução nossa).
  • 4
    "Mas não basta ter feito tais considerações, é preciso ainda que cuide de lembrar-me delas."
  • 5
    "Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que imagina também e que sente" (tradução nossa).
  • 6
    "faz que a glândula, inclinando-se sucessivamente para diversos lados, impila os espíritos para diversos lugares do cérebro, até que encontrem aquele onde estão os traços deixados pelo objeto de que queremos nos lembrar; pois esses traços não são outra coisa senão os poros do cérebro, por onde os espíritos tomaram anteriormente seu curso devido à presença desse objeto, e adquiriram, assim, maior facilidade que os outros, para serem de novo abertos da mesma maneira pelos espíritos que para eles se dirigem; de sorte que tais espíritos, encontrando esses poros, entram neles mais facilmente do que nos outros, excitando, por esse meio, um movimento particular na glândula, que representa à alma o mesmo objeto e lhe faz saber que se trata daquele do qual queria lembrar-se" (tradução nossa).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Set 2008
    • Data do Fascículo
      2001
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