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Comentário a “G. Canguilhem lector de politzer”: fazer justiça a Bergson”

O pensamento de Georges Politzer exerceu uma influência subterrânea, mas decisiva, no panorama do pensamento francês contemporâneo. O trabalho arqueológico do qual esse pensamento tem sido objeto, nos últimos anos,2 2 O mais significativo é o de Bianco (2016), mas são bastante dignos de nota os de Pardi (2007) e Politzer (2013). deixou bastante robusta tal tese. O caráter subterrâneo do impacto exercido não significa, entretanto, que seu nome tenha ficado ausente de relatos históricos sobre o desenvolvimento de experiências intelectuais das mais marcantes do período. Mas, mesmo não sendo um completo desconhecido, Politzer tampouco tinha sido assunto principal de comentários especializados mais aprofundados, até recentemente. Daí que o estudo de sua recepção exija uma atenção particularmente voltada para apropriações, tanto de suas estratégias de crítica quanto de conceitos oriundos de suas reflexões.

O texto dos professores Bilbao e Jofré pode bem se inscrever dentro desse conjunto de esforços que visam a explicitar, de maneira refletida e argumentada, os diferentes modos pelos quais o aparato conceitual politzeriano deixa traços e rastros em experiências intelectuais e correntes de pensamento. Em particular, o texto trata de como os posicionamentos canguilhemianos acerca da psicologia ressoam, a seu modo, aquelas críticas epistemológicas que Politzer pôs em circulação, no final dos anos 1920. E, a esse respeito, as investigações das quais o texto resulta são filosoficamente bem sustentadas, na medida em que não caem no equívoco de isolar a dimensão epistemológica envolvida na discussão sobre os fundamentos da psicologia de questões de ordem prática, como as implicações ético-políticas contidas em posturas presentes no interior da psicologia experimental ou da clínica - implicações para as quais Canguilhem sempre se voltou.

É, contudo, no ponto preciso desse entrecruzamento entre filosofia teorética e filosofia prática, entre epistemologia e axiologia, entre doutrina do conceito e filosofia da ação, que algumas dificuldades interpretativas presentes no texto aparecem. E isso ocorre num contexto bastante intrincado conceitualmente, ali onde Politzer está retomando o criticismo kantiano para opô-lo ao assim chamado espiritualismo bergsoniano. Os autores reiteram, com efeito, seguindo de maneira bastante fiel a letra dos escritos politzerianos, os elogios ao valor epistemológico do kantismo, bem como os ataques endereçados à suposta mistificação da interioridade pela qual o bergsonismo teria sido responsável. A marca desse kantismo adotado por Politzer só se deixa compreender adequadamente, segundo a leitura proposta, ao associarmos a antropologia pragmática ao idealismo transcendental da primeira Crítica, de sorte que estrutura categorial de uma psicologia realmente científica - a psicologia concreta - esteja devidamente articulada com seu objeto próprio, a saber, um ser que age e é capaz de valorar, um sujeito que não é alijado do ponto de vista de primeira pessoa, ao ser estudado por uma ciência.

O “eu penso” é então tomado com o emblema privilegiado de uma irredutibilidade da subjetividade do agente que a psicologia apregoada por Politzer seria ciosa em preservar. Entretanto, se as capacidades legiferantes ou instituintes do sujeito transcendental são condizentes com o horizonte de autonomia para o qual a consciência moral se direciona, isso não significa que o sujeito concreto, no momento em que está confrontado pelos impasses dramáticos de sua ação, possa ser considerado livre e instituinte. A passagem do Prefácio da Antropologia de um ponto de vista pragmático, que o texto cita, reforça essa identificação do sujeito com um “ser que age livremente”.

Nesse sentido, a centralidade da noção de drama parece contrastar enfaticamente com esse modo de alinhavar as influências kantianas de Politzer; afinal, se é verdade que, do ponto de vista pragmático, investiga-se “o que ele [o ser humano] faz de si mesmo”, uma psicologia concreta deveria ser capaz de explorar as maneiras catastróficas pelas quais os sujeitos agem e suas consequências derrisórias ou, ainda, as formas pelas quais, em suas ações, padecem do que vêm a fazer de si mesmos. Sem levar em conta elementos valorativos no âmbito do vivido,3 3 Politzer trata desse âmbito da experiência singular na figura do relato, ou narrativa, que o sujeito elabora. Mas seria importante considerar se isso não coloca ainda mais dificuldades nessa aproximação com a Antropologia de Kant, a qual parece ser bastante alheia a práticas terapêuticas de talking cure, como a psicanalítica. fica difícil imaginar como Politzer evitaria ter de recorrer a uma subsunção simples e direta da psicologia dentro de uma antropologia nos moldes kantianos. Essa tensão que se passa no ato é, aliás, destacada por Foucault como um ponto no qual Kant reconhecia haver uma “grande dificuldade” para não recair numa cisão do eu.4 4 “C’est là, Kant le reconnaît, une « grande difficulté » : mais il faut garder à l’esprit qu’il en s’agit pas d’un « doppeltes Ich », mais d’un « doppeltes Bewußtsein dises Ich ». Ainsi le Je conserve son unité, mais s’il vient à la conscience ici comme contenu de perception, là comme forme du jugement, c’est dans la mesure où il peut s’affecter lui-même, étant, en un seul et même acte « das bestimmende Subjekt » et « das sich selbst bestimmende Subjekt ».” (FOUCAULT, 2008, p. 23). Em outra chave teórica, mas apontando para uma dificuldade similar, Adorno pondera que, “[...] sem qualquer relação com uma consciência empírica, com a consciência do eu vivo, não haveria nenhuma consciência transcendental.” (2009ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009., p. 159).5 5 Ao menos alguns dos problemas que Adorno levanta com respeito ao pensamento kantiano concernem igualmente ao kantismo de Politzer. Ora, a separação entre as esferas do transcendental e do empírico reedita, na esfera subjetiva, a dominação da natureza que está no cerne do esclarecimento, implicando uma negação do pulsional. “The attempt to isolate subjectivity from the empirical categories of psychology from which it draws its substance and to define it as a superior mode of being leads to a denial of the instinctual elements that are part of the subject and that constitute the genetic precondition of all knowledge.” (ADORNO, p. 193) Logo em seguida, ainda na mesma aula, Adorno indica como a crítica da psicologia racional é uma forma pela qual Kant teria liberado a psicologia de um fardo metafísico, de modo a permitir que ela se torne científica. O inesperado é que Kant apareceria aí, então, justamente como uma espécie de fundador justamente da psicologia clássica, que Politzer tão eloquentemente execra. (“We may add without exaggerating that the parts of Kant that can be seen to be the most advanced expression of the Enlightenment are those in which - despite his radical separation of the transcendental sphere from that of psychology - he turns psychology into an empirical science and in which he largely concedes that the realm of psychology is governed by the laws of cause and effect.” [id., ibid.])

Por outro lado, toda a mobilização crítica direcionada contra Bergson, nos diversos escritos politzerianos, talvez não deva ser tão imediatamente tomada em seu valor de face. Como já mostrou, de forma precípua e convincente, Bento Prado Jr., esse arsenal utiliza, de maneira astuta, “[...] o melhor argumento da filosofia dominante para um projeto que lhe é essencialmente adverso.” (2005PRADO JR., Bento. Georges Politzer: sessenta anos da Crítica dos fundamentos da psicologia. In: FULGENCIO, Leopoldo; SIMANKE, Richard Theisen (org.) Freud na filosofia brasileira. São Paulo: Escuta, 2005. p. 33-49., p. 44). Ora, rejeições ao abstracionismo da psicologia são encontradas em momentos cruciais da obra de Bergson, bem como a centralidade de categorias com inequívoco teor concreto, no sentido preciso em que esse conceito está aqui em discussão.6 6 Esse é o caso, por exemplo, do conceito de personalidade, minuciosamente trabalhado por Verdeau (2010).

Longe de querer diminuir a importância das críticas, o que se quer colocar em relevo aqui é o modo pelo qual um rótulo como o de espiritualismo soa como uma leitura datada e redutora. Ressaltar isso seria importante, sobretudo porque pode ajudar a compreender melhor os matizes e as nuances contidos nas relações que a filosofia de Canguilhem guarda, com relação à de Bergson. Mesmo reconhecendo sua potência, ele está muito longe de simplesmente subscrever as críticas politzerianas. Faria sentido talvez pensar em diferentes regimes do concreto aí em questão? Tais reflexões surgiram a partir da leitura do texto de Bilbao e Jofré (2023BILBAO, Alejandro; JOFRÉ, Daniel. Canguilhem lector de Politzer”: fazer justiça a Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 3, p. 53-74, 2023.), ao qual este comentário se direciona.

Referências

  • ADORNO, Theodor W. Kant’s Critique of Pure Reason. Stanford: Stanford University Press, 2001.
  • ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
  • BIANCO, Giuseppe (dir.) Georges Politzer, le concret et sa signification: Psychologie, philosophie et politique. Paris: Hermann, 2016.
  • BILBAO, Alejandro; JOFRÉ, Daniel. Canguilhem lector de Politzer”: fazer justiça a Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 3, p. 53-74, 2023.
  • FOUCAULT, Michel. Introduction à l’Anthropologie. Paris: Vrin, 2008.
  • PARDI, Aldo. Il sintomo e la rivoluzione: Georges Politzer crocevia tra due epoche. Milão: Manifestolibri, 2007.
  • POLITZER, Michel. Les trois morts de Georges Politzer. Paris: Flammarion, 2013.
  • PRADO JR., Bento. Georges Politzer: sessenta anos da Crítica dos fundamentos da psicologia. In: FULGENCIO, Leopoldo; SIMANKE, Richard Theisen (org.) Freud na filosofia brasileira. São Paulo: Escuta, 2005. p. 33-49.
  • VERDEAU, Patricia. La personnalité au centre de la pensée bergsonienne. Louvain: Peeters, 2010.
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    O mais significativo é o de Bianco (2016BIANCO, Giuseppe (dir.) Georges Politzer, le concret et sa signification: Psychologie, philosophie et politique. Paris: Hermann, 2016.), mas são bastante dignos de nota os de Pardi (2007PARDI, Aldo. Il sintomo e la rivoluzione: Georges Politzer crocevia tra due epoche. Milão: Manifestolibri, 2007.) e Politzer (2013POLITZER, Michel. Les trois morts de Georges Politzer. Paris: Flammarion, 2013.).
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    Politzer trata desse âmbito da experiência singular na figura do relato, ou narrativa, que o sujeito elabora. Mas seria importante considerar se isso não coloca ainda mais dificuldades nessa aproximação com a Antropologia de Kant, a qual parece ser bastante alheia a práticas terapêuticas de talking cure, como a psicanalítica.
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    “C’est là, Kant le reconnaît, une « grande difficulté » : mais il faut garder à l’esprit qu’il en s’agit pas d’un « doppeltes Ich », mais d’un « doppeltes Bewußtsein dises Ich ». Ainsi le Je conserve son unité, mais s’il vient à la conscience ici comme contenu de perception, là comme forme du jugement, c’est dans la mesure où il peut s’affecter lui-même, étant, en un seul et même acte « das bestimmende Subjekt » et « das sich selbst bestimmende Subjekt ».” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Introduction à l’Anthropologie. Paris: Vrin, 2008., p. 23).
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    Ao menos alguns dos problemas que Adorno levanta com respeito ao pensamento kantiano concernem igualmente ao kantismo de Politzer. Ora, a separação entre as esferas do transcendental e do empírico reedita, na esfera subjetiva, a dominação da natureza que está no cerne do esclarecimento, implicando uma negação do pulsional. “The attempt to isolate subjectivity from the empirical categories of psychology from which it draws its substance and to define it as a superior mode of being leads to a denial of the instinctual elements that are part of the subject and that constitute the genetic precondition of all knowledge.” (ADORNOADORNO, Theodor W. Kant’s Critique of Pure Reason. Stanford: Stanford University Press, 2001., p. 193) Logo em seguida, ainda na mesma aula, Adorno indica como a crítica da psicologia racional é uma forma pela qual Kant teria liberado a psicologia de um fardo metafísico, de modo a permitir que ela se torne científica. O inesperado é que Kant apareceria aí, então, justamente como uma espécie de fundador justamente da psicologia clássica, que Politzer tão eloquentemente execra. (“We may add without exaggerating that the parts of Kant that can be seen to be the most advanced expression of the Enlightenment are those in which - despite his radical separation of the transcendental sphere from that of psychology - he turns psychology into an empirical science and in which he largely concedes that the realm of psychology is governed by the laws of cause and effect.” [id., ibid.])
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    Esse é o caso, por exemplo, do conceito de personalidade, minuciosamente trabalhado por Verdeau (2010VERDEAU, Patricia. La personnalité au centre de la pensée bergsonienne. Louvain: Peeters, 2010.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2023
  • Aceito
    25 Maio 2023
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