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Carta de Galileu a Ludovico Cardi de Cigoli em Roma

TRADUÇÃO

Carta de Galileu a Ludovico Cardi de Cigoli em Roma

Tradutor: Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento

Professor Assistente-Doutor do Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação - UNESP - 17500 - Marília - SP - Brasil

Ao Sr. Ludovico Cigoli.

Roma.

Ilustríssimo Sr. Patrono meu Obsequiosíssimo.

É tão falso que a escultura seja mais admirável que a pintura, pela razão daquela ter relevo e esta não, que, por esta mesma razão, chega a pintura a superar maravilhosamente a escultura porquanto o relevo que se percebe na escultura, ela não o mostra como escultura, mas como pintura. Me explico. Entende-se por pintura aquela capacidade de imitar a natureza com o claro e com o escuro. Ora, as esculturas terão tanto relevo quanto sejam tingidas de claro em uma parte e numa outra de escuro. E que isto seja a verdade, a própria experiência nô-lo demonstra; porque se expusermos à luz uma figura de relevo e a formos tingindo bem, ao tornar escuro onde é claro, até que a cor esteja toda unida, esta ficará de todo privada de relevo. Ao contrário, ainda mais admirável é de se julgar a pintura por, apesar de não ter ela nenhum relevo, se nos mostrar com tanto relevo quanto a escultura! Mas que digo eu: tanto quanto a escultura? Mil vezes mais, pois não lhe será impossível representar no mesmo plano não somente o relevo de uma figura que importe um braço ou dois, mas nos representará a amplidão de uma região e uma extensão de mar de muitas e muitas milhas. E aqueles que respondem que o tato demonstraria então o engano, na verdade parece estarem falando de pessoas débeis; como se as esculturas e pinturas fossem feitas para tocar-se, não menos do que para ver-se. Ademais, aqueles que apreciam o relevo das estátuas, creio com certeza que assim a façam crendo que com este meio possam estas mais facilmente enganar-nos e parecer-nos naturais. Ora, note-se este argumento. Daquele relevo que engana a vista, participa tanto a pintura como a escultura, ou até mesmo mais; posto que a pintura, além do claro e do escuro, que são por assim dizer o relevo visível da estátua, tem nela as cores na-turalissimas que faltam à escultura. Resta pois que a escultura supera a pintura naquela parte de relevo que está submetida ao tato. Mas, ingênuos os que pensam ter a escultura de enganar o tato mais que a pintura, sendo que por enganar entendemos o operar de tal modo que o sentido a ser enganado julgue aquela coisa não o que ela é, mas aquela que se quer imitar! Ora, quem acreditará que alguém, tocando uma estátua, creia ser ela um homem vivo? Certamente ninguém; e está de fato relegado a mau partido o escultor, que não tendo sabido enganar a vista, recorrer ao querer mostrar sua excelência com o querer enganar o tato, não percebendo que não somente o proeminente e o rebaixado (que são o relevo da estátua) estão submetidos a tal sensação, mas ainda o mole e o duro, o quente e o frio, o liso e o áspero, o pesado e o leve, todos indicios do engano da estátua.

Não tem a estátua relevo por ser larga, longa e profunda, mas por ser aqui clara e ali escura. E advirta-se, como prova disto, que, das três dimensões, só duas estão submetidas ao olho, isto é, comprimento e largura (o que é a superfície, que foi denominada epifania pelos gregos, isto é, periferia ou circunferência), porque, das coisas que aparecem e se vêem, não se vê outra coisa senão a superfície, e a profundidade não pode ser abarcada pelo olho, porque a nossa vista não penetra dentro dos corpos opacos. O olho vê portanto o comprido e o largo, mas não o profundo, isto é, a espessura não mais, Não sendo pois a profundidade exposta á vista, não poderemos abarcar de uma estátua nada além do comprimento e da largura; donde ser manifesto que não vejamos dela senão a superficie, que outra coisa não é senão largura e comprimento, sem profundidade. Conhecemos, assim a profundidade não como objeto da vista, por si e absolutamente, mas por acidente e referido ao claro e ao escuro. E tudo isto está na pintura não menos que na escultura, digo, o claro, o escuro, o comprimento e a largura; porém, o claro e o escuro são dados com propriedade à escultura pela natureza, e à pela pintura pela arte; portanto, ainda por esta razão, se torna mais admirável uma excelente pintura, que uma excelente escultura.

Aquilo, pois, dito pelos escultores, que a natureza faz homens de escultura e não de pintura, respondo que ela os faz não menos pintados que esculpidos, porque ela os esculpe e os colore, porém isto revela a imperfeição deles e é coisa que rebaixa grandíssima mente o valor da escultura, porquanto mais os meios com os quais se imita estão longe das coisas a imitar, tanto mais a imitação é maravilhosa. Antigamente era muito mais. apreciado aquele tipo de comediantes que só com os movimentos e com os gestos sabiam recitar uma história ou fábula inteira, do que os capazes de com viva voz exprimirem-na em tragédia ou em comédia, por usar aqueles um meio diversíssimo e um modo de representar em tudo diferente das ações representadas. Não admiraremos muito mais um músico que, cantando e representando as queixas e as paixões de um amante nos movesse a compadecer-nos dele, do que se o fizesse chorando? E isto por ser o canto um meio para exprimir as dores e as lágrimas, não só diverso mas contrário, e o pranto semelhantíssimo. E muito mais o admiraremos se, calando, só com o instrumento, com rudezas e acentos musicais patéticos, fizesse isto, por serem as cordas inanimadas menos aptas para revelar os afetos ocultos de nossa alma do que a voz narrando-as. Por esta razão, portanto, que maravilha será imitar a natureza escultora com a própria escultura e representar o proeminente com o próprio relevo? Nenhuma certamente, ou pouca; e imitação artificiosíssima será aquela que representa o relevo no seu contrário, que é o plano. Maravilhosa, portanto, por tal respeito, se torna mais a pintura que a escultura.

Depois, o argumento da eternidade não vale nada, porque não é a escultura que faz eterno os mármores, mas os mármores fazem eternas as esculturas; mas este privilégio não é mais seu do que de uma áspera pedra; se bem que tanto as esculturas como as pinturas estejam talvez igualmente sujeitas a perecer.

Acrescento que a escultura imita mais o natural tangível e a pintura mais o visível; pois que, além da forma, que tem em comum com a escultura, a pintura acrescenta as cores, objeto próprio da vista.

Finalmente, os escultores sempre copiam e os pintores não; e aqueles imitam as coisas como elas são e estes como elas aparecem. Mas, porque as coisas são de um só modo e aparecem de infinitos, torna-se-lhes por isto sumamente acrescida a dificuldade para atingir a excelência da sua arte. Dai a excelência na pintura ser mais admirável do que na escultura.

Assim, por ora me ocorre, poder V.S. responder às razões desses fautores da escultura que me foram comunicadas esta manhã pelo nosso Sr. Andrea por ordem de V.S.. Mas eu, no entanto, lhe aconselharia a não se adentrar mais com esses nesta contenda, parecendo-me que ela esteja melhor como exercício de espirito e de engenho entre aqueles que não professam nem uma nem a outra destas duas artes verdadeiramente admiráveis, quando são praticadas com excelência; uma vez que V. S. na sua própria se tornou de tal modo digno de glória com as suas telas quanto o nosso divino Miguel Angelo com os seus mármores.

E aqui cordialissimamente lhe beijo as mãos e lhe rogo que continue a conceder-me a sua amizade e ainda a observação das manchas solares.

De Florença, 26 de junho de 1612

De V.S. Ilustríssima Obrigadissimo

Servidor Afetuosissimo

Galileu Galilei.

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    Tivemos acesso à resenha de Koyré através de sua versão espanhola (4).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Jan 1981
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