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Caroline Knowles. Flip-flop: a journey through globalisation’s backroads

KNOWLES, Caroline. Flip-flop: a journey through globalisation’s backroads. Londres: Pluto Press, 2014. 224

No livro Flip-flop: a journey through globalisation’s backroads1 1 . Vale mencionar aqui que o livro de Caroline Knowles está prestes a ser publicado em português pela editora Annablume. , Caroline Knowles acompanha os processos de produção, circulação, consumo e descarte de chinelos através de um circuito específico que passa por cinco países em diferentes regiões do mundo. Essa trilha é percorrida para refletir sobre o processo de globalização com base em determinadas “plataformas de observação” que, sob o registro de situações empíricas, permitem um olhar crítico e oferecem outra perspectiva acerca da circulação global de objetos e pessoas.

Ao perseguir as pegadas da produção e circulação dos chinelos, Knowles propõe um projeto de pesquisa ambicioso, visto que sua ideia foi tanto acompanhar as trilhas pelas quais trafegam os objetos – inspirada na percepção de que os objetos têm biografias que vale a pena explorar para a compreensão do mundo social –, quanto revelar o conteúdo humano localizado espacial e socialmente em cada parte dessa circulação, que muitas vezes fica obscurecido nas análises da produção globalizada e da dinâmica das cadeias de valor.

A discussão se desenvolve a partir do debate com teóricos contemporâneos da mobilidade, como John Urry (2013) e Manuel Castells (1999)CASTELLS, Manuel. (1999), A sociedade em rede. Vol. 1: A era da informação, economia, sociedade e cultura. São Paulo, Paz e Terra.. A autora partilha do interesse em entender “as formas como as coisas se movem de um lugar para outro”; no entanto, observa que as análises sobre mobilidades são, em geral, muito teorizadas, mas frequentemente carecem de fundamentações empíricas, o que deixa escapar aspectos substanciais das negociações informais e morais, das disposições dos sujeitos e os condicionantes estruturais específicos de cada contexto social, que sempre balizam esses movimentos.

Assim, inspirada em autores como Arjun Appadurai (2008)APPADURAI, Arjun. (2008), A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói, Eduff. e Igor Kopytoff (1986)KOPYTOFF, Igor. (1986), “The cultural biography of things: commoditization as process”. In: APPADURAI, Arjun (org.). The social life of things: commodities in cultural perspective. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 64-91., e apresentando uma narrativa que articula geografias e biografias de pessoas e objetos, Knowles acompanha a trilha percorrida pela mercadoria chinelo, um objeto tão banal, mas que, justamente por sua banalidade – “chinelos são o primeiro passo para o mundo dos calçados” (p. 2) –, é capaz de revelar precariedades e desigualdades ao redor do mundo – “no século XXI, um bilhão de pessoas anda descalço” (p. 2). Nessa empreitada, a ideia de “trilha” não se refere simplesmente à rota percorrida pelos objetos, a atenção é o tempo todo voltada para as topografias, contextos político-econômicos e para as vidas que animam esse movimento e que são, simultaneamente, moldadas por ele.

A trilha do chinelo começa em um poço de exploração de petróleo no Kuwait, de onde provém a matéria-prima para a produção dos chinelos de plástico. Aqui, somos envolvidos por descrições sobre a geografia do país, procedimentos técnicos da extração do petróleo e reflexões sobre a história recente do Oriente Médio. A autora combina detalhada descrição sobre a dinâmica das plataformas petrolíferas com a reflexão sobre as vidas e as condições de trabalho daqueles envolvidos em diferentes posições hierárquicas nessa atividade, abordando temas como migração e a geopolítica do petróleo.

A bordo de um navio petroleiro, a trilha do chinelo segue para a Coreia do Sul, onde, numa instalação petroquímica em Daesan, o petróleo é transformado em plástico. Entre descrições minuciosas da atividade industrial ali desenvolvida e a apresentação de aspectos organizacionais da empresa, Knowles exibe cenas e cenários que nos fazem conhecer um pouco mais sobre aspectos culturais e socioeconômicos da Coreia do Sul, expondo questões de gênero e classe na medida em que observa como essas variáveis influem nas possiblidades de engajamento dos agentes na dinâmica da mobilidade global.

Nesse ponto, a globalizada produção do plástico bifurca-se: materiais de alto valor agregado seguem para a produção de bens mais sofisticados; enquanto os granulados plásticos de baixo valor são encaminhados a trilhas secundárias, direcionados para a produção de artigos mais baratos, como chinelos. A autora segue esse segundo caminho, que a leva em direção à China.

Na cidade chinesa de Fuzhou, Knowles acompanha a produção dos chinelos a partir dos granulados plásticos enviados de Daesan. Articulando as precariedades e oportunidades que marcam as vidas na “cidade de plástico” (p. 62) com a dinâmica da industrialização, urbanização e desenvolvimento chinês nas últimas décadas, a autora observa a complexidade dos circuitos industriais chineses. Universo especialmente heterogêneo quando se trata da produção dos chinelos, mercadoria cuja simplicidade favorece a criação de fábricas com distintas capacidades de investimento, desde a precária produção domiciliar até grandes indústrias. Aqui, a autora lança luz sobre as jornadas de sujeitos inseridos em diferentes posições na estrutura socioeconômica de Fuzhou, o que conduz a considerações sobre a transformação rural chinesa, migração, educação e expectativas traçadas nas possibilidades de mobilidade geográfica e social dos trabalhadores com os quais ela esteve em contato.

Saindo da China, a trilha do chinelo segue para diferentes partes do mundo. Respeitando uma linha metodológica focada na “matriz de rotas possíveis em constante expansão” e “nos maiores volumes de chinelos” (p. 118), a pesquisa chega à Etiópia, país com crescente demanda por calçados baratos. Antes disso, porém, a trilha passa por territórios da Somália, e aqui fica evidente que muito se perde na compreensão das mobilidades globais se ficamos detidos apenas nos circuitos “oficiais”. Nas rotas de passagem entre a Somália e a Etiópia, a autora demonstra a porosidade das fronteiras e a interdependência entre aquilo que é classificado como formal/legal e as estratégias e práticas percebidas como ilegais/informais. Nas palavras da autora:

Os sistemas oficiais envolvem elementos não oficiais, assim como sistemas não oficiais envolvem aspectos oficiais. Logo, ambas as rotas não são sistemas totalmente distintos de trajeto e destino. […] Sistemas oficiais e não oficiais se enredam no início e no fim da cadeia de transporte, borrando os limites entre eles (pp. 128-129).

Os chinelos enviados da China passam pela Somália e, através de rotas oficiais ou secundárias, chegam então à Etiópia. A trilha segue para um grande mercado em Adis Abeba (Mercato), cuja importância é destacada, visto funcionar não apenas como um espaço de vendas, mas também como uma espécie de centro gravitacional em torno do qual circulam muitas vidas em Adis Abeba e arredores. Aqui os chinelos encontram os pés dos consumidores, e este poderia ser o fim da trilha dessa mercadoria. No entanto, Knowles leva o globalizado circuito do chinelo além. Percorre o cotidiano de vidas etíopes e reflete sobre os usos dos calçados, as desigualdades e as mobilidades que eles revelam.

Por fim, quando os chinelos são descartados, a autora observa seu destino num grande lixão na periferia da capital etíope. Em vez de apenas um espaço de rejeitos, o fim de uma grande cadeia, é retratado um lugar onde centenas de pessoas ganham suas vidas coletando no lixão qualquer coisa que possa ser vendida, extraindo renda daquilo que para outros é simplesmente lixo. Mesmo os chinelos, inutilizáveis enquanto calçados, podem ser reaproveitados em projetos de produção energética a partir do lixo. A jornada do chinelo, então, termina para que outra trilha seja iniciada.

O livro de Caroline Knowles poderia ser enquadrado junto a uma série de outros trabalhos produzidos no campo das Ciências Sociais que buscam examinar o processo de globalização a partir de uma perspectiva alternativa, olhando para movimentos que escapam dos grandes circuitos oficiais de circulação de pessoas e mercadorias ao redor do mundo (Portes, 1997PORTES, Alejandro. (1997), Globalization from below: the rise of transnational communities. Princeton, Princeton University. Disponível em http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.385.2857&rep=rep1&type=pdf, consultado em 15/8/2017.
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; Tarrius, 2002TARRIUS, Alain. (2002), La mondialisation par le bas: les nouveaux nomades des économies souterraines. Paris, Balland.; Peraldi, 2007PERALDI, Michel. (2007), “Economies criminelles et mondes d’affaire à Tanger”. Cultures & Conflits, 68: 111-125.; Ribeiro, 2010RIBEIRO, Gustavo Lins. (2010), “A globalização popular e o sistema mundial não hegemônico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 25 (74): 21-38.; Pinheiro-Machado, 2011PINHEIRO-MACHADO, Rosana. (2011), Made in China:(in)formalidade, pirataria e redes sociais na rota China-Paraguai-Brasil. São Paulo, Hucitec.). Esse giro no olhar sobre a globalização passa inclusive pela criação de novos conceitos que buscam conferir inteligibilidade a esses movimentos, como “globalização por baixo” (Portes, 1997PORTES, Alejandro. (1997), Globalization from below: the rise of transnational communities. Princeton, Princeton University. Disponível em http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.385.2857&rep=rep1&type=pdf, consultado em 15/8/2017.
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; Tarrius, 2002TARRIUS, Alain. (2002), La mondialisation par le bas: les nouveaux nomades des économies souterraines. Paris, Balland.), “globalização popular” e “sistema mundial não hegemônico” (Ribeiro, 2010RIBEIRO, Gustavo Lins. (2010), “A globalização popular e o sistema mundial não hegemônico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 25 (74): 21-38.), para citar alguns.

Knowles, por sua vez, desenvolve a perspectiva de olhar a globalização através daquilo que ocorre fora dos holofotes por meio da noção de “estradas secundárias da globalização” (p. 191). A proposta é então observar, descrever e refletir sobre as mobilidades que se dão em rotas alternativas aos circuitos hegemônicos. Não há, porém, como a autora destaca, uma distinção conceitual entre estradas principais e secundárias, uma vez que, como mencionado, ambas as rotas se cruzam constantemente, inclusive em processos interdependentes. Sendo assim, a opção por percorrer as estradas secundárias se justifica na medida em que estas revelam movimentos, situações e estratégias que são menos evidentes quando se têm em mente apenas os circuitos oficiais, expondo assim os processos de globalização como mais recheados de tensões e contradições do que se costuma pensar.

Ao destacar o peso que a descrição empírica ocupa na narrativa e na elaboração do livro, pode-se supor que a proposta não tem maiores ambições teóricas. Ao contrário, advoga-se justamente por mais substancialidade empírica na produção de novas teorias sobre a globalização, sendo teoria entendida como a “reflexão sobre processos múltiplos e as conexões entre eles” (p. 187). No entanto, a proposta teórica de Knowles não passa pela construção de grandes quadros abstratos, ao invés disso é sugerida a elaboração de “concepções mais modestas e úteis” (idem).

Assim, recuperando o debate com os teóricos da mobilidade, a autora tece uma crítica à abstração contida na ideia de “fluxo”, tal como tratada por Urry (2013). Se, por um lado, Urry constata um novo contexto de intensa mobilidade, em que as pessoas, objetos e informações fluem numa velocidade impressionante, Knowles observa que essa ideia de fluxo sugere uma “facilidade irreal” com a qual se realizariam esses diferentes movimentos:

Ao invés de fluir, pessoas e objetos se chocam desajeitadamente ao longo dos caminhos que criam enquanto avançam. Eles esbarram uns nos outros, esquivam-se, param e avançam; contornam obstáculos, recuam e seguem em novas direções, movidos por diferentes lógicas de cruzamentos. Os emaranhados de mobilidades que compõem o mundo social têm suas próprias trajetórias, geografias e conexões, e eles se movem com diferentes velocidades, impulsionados por lógicas contraditórias. (pp. 7-8).

Nesse sentido, a autora propõe que para compreender o tecido social da mobilidade é necessária a elaboração de ferramentas menos abstratas do que conceitos como “fluxo” ou “escape”. É com essa intenção que ela aposta no ganho analítico do conceito de “jornada” (journey). “Jornadas são sequências de movimentos episódicas e contínuas definidas temporalmente” (p. 8) – e, como fica evidente no destaque dado aos elementos geográficos, são definidas também espacialmente. Enquanto ferramenta analítica, o conceito de jornada é mobilizado para revelar fragmentações e mundos sociais ocultos, expondo tensões e negociações na medida em que posiciona os movimentos naquilo que eles têm de específico – “quem, o que, onde, como e por quê” (idem).

Desse modo, em cada parte da trilha do chinelo são destacadas jornadas humanas que produzem na prática a globalização, como as experiências de trabalhadores migrantes e de um geólogo alto funcionário de uma empresa petrolífera no Kuwait; as ambições e constrangimentos de uma funcionária da fábrica petroquímica da LG, em Daesan; as condições de vida de um casal chinês que trabalha em uma fábrica de chinelos em Fuzhou; as estratégias de um jovem que opera o contrabando de mercadorias entre a Somália e a Etiópia; ou as dificuldades da vida em Adis Abeba, reveladas seguindo as pegadas dos precários calçados de uma senhora etíope.

Por vezes, ao longo da narrativa, os condicionantes estruturais quase parecem ficar em segundo plano, dado o protagonismo adquirido pela análise das “habilidades de navegação dos sujeitos”. Contudo, as jornadas são logo reposicionadas nas paisagens e contextos que balizam as diferentes experiências, tornando possível o reconhecimento das possibilidades e múltiplas precariedades (sempre localizadas) abertas pelo processo de globalização. O conceito de jornada ajuda então a identificar regularidades no mundo social ao mesmo tempo que bagunça classificações com os retratos minuciosos de pessoas, lugares, tempos e espaços. Nesse sentido, olhar para as jornadas se mostra uma estratégia promissora, ao iluminar vidas e lugares apontando para especificidades que grandes categorias como classe, raça e gênero não podem alcançar.

Assim como as jornadas que Knowles revela são engrenagens que colocam a globalização em movimento, reflexões sobre sua própria jornada como pesquisadora aparecem ao longo do livro, expondo obstáculos, limites de acesso, negociações e sua própria habilidade de navegação, que possibilitaram a construção desse retrato da globalização.

A autora reconhece as particularidades da trilha do chinelo percorrida, observando que “rotas distintas exibiriam paisagens distintas e vidas vividas em diferentes circunstâncias” (p. 118). Mas ao seguir uma rota específica, a intenção não é simplesmente mostrar por onde as mercadorias circulam globalmente, e sim justamente apontar as fragilidades do processo de globalização e das teorias sobre globalização.

Acompanhando Knowles pelas estradas secundárias, deparamos com uma globalização que é menos coerente e previsível do que sugere a imagem dos circuitos oficiais; ao invés disso, a circulação global de mercadorias e pessoas aparece marcada por contingências, improvisos e hesitações. E é nesse aspecto que o livro surge como uma importante contribuição para os estudos sobre globalização, na medida em que não descarta outras teorias, mas traz elementos para uma concepção mais conflituosa e multifacetada dos movimentos globais.

Referências Bibliográficas

  • APPADURAI, Arjun. (2008), A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural Niterói, Eduff.
  • CASTELLS, Manuel. (1999), A sociedade em rede Vol. 1: A era da informação, economia, sociedade e cultura. São Paulo, Paz e Terra.
  • KOPYTOFF, Igor. (1986), “The cultural biography of things: commoditization as process”. In: APPADURAI, Arjun (org.). The social life of things: commodities in cultural perspective. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 64-91.
  • PERALDI, Michel. (2007), “Economies criminelles et mondes d’affaire à Tanger”. Cultures & Conflits, 68: 111-125.
  • PINHEIRO-MACHADO, Rosana. (2011), Made in China:(in)formalidade, pirataria e redes sociais na rota China-Paraguai-Brasil São Paulo, Hucitec.
  • PORTES, Alejandro. (1997), Globalization from below: the rise of transnational communities Princeton, Princeton University. Disponível em http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.385.2857&rep=rep1&type=pdf, consultado em 15/8/2017.
    » http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.385.2857&rep=rep1&type=pdf
  • RIBEIRO, Gustavo Lins. (2010), “A globalização popular e o sistema mundial não hegemônico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 25 (74): 21-38.
  • TARRIUS, Alain. (2002), La mondialisation par le bas: les nouveaux nomades des économies souterraines Paris, Balland.
  • URRY, John. “Sociologia móvel”. In: LIMA, Jacob (org.). Outras sociologias do trabalho: flexibilidades, emoções e mobilidades São Carlos, UFSCar, pp. 43-72.
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    . Vale mencionar aqui que o livro de Caroline Knowles está prestes a ser publicado em português pela editora Annablume.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2017
  • Aceito
    19 Out 2017
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