Resumo
Este artigo trata das articulações e mobilizações em defesa da trabalhadora ambulante Falilatou, migrante do Togo, acusada por um crime que não cometeu e com a vida enredada em um muito intrincado processo criminal. O caso terminou por mobilizar uma extensa rede sociotécnica sob a bandeira #LiberdadeParaFalilatou, que iria trazer a público as evidências de violação de direitos inscritas nos meandros desse processo, ao mesmo tempo que sinalizava a construção de um campo político articulado em torno de eventos críticos da violência do Estado. Em torno do “caso Falilatou” abre-se um feixe de questões que interessa aqui discutir. De um lado, as linhas de força estruturantes do universo popular se entrecruzam nessa história: a migração transnacional e sua inscrição nas tramas da cidade; a precariedade do trabalho ambulante engendrada entre esse ganho no dia a dia e a agressividade das formas de controle e fiscalização por parte das forças da ordem; o punitivismo inscrito nas operações policiais e nos meandros do processo criminal a que a togolesa responde, tudo isso eivado por agressivas práticas de racialização e preconceito contra migrantes não brancos. Por outro lado, a ampla rede de apoio que se constitui em defesa de Falilatou vai muito além da denúncia de uma injustiça. Trata-se de uma articulação entre coletivos diversos (movimentos negros, associações de migrantes, coletivos anticarcerários), organizações de defesa de direitos humanos, parlamentares, jornalistas e advogados ativistas, também pesquisadores. Em seus modos de atuação, uma rede sociotécnica, mobilizando diversos saberes e competências, recursos técnicos, institucionais e políticos, para produzir informações, construir provas e evidências das injustiças cometidas contra a togolesa, e torná-las públicas em fóruns diversos de debate e embates políticos, passando pelas mídias e redes digitais. O artigo se estrutura em quatro movimentos: (i) a trajetória de Falilatou, seu tempo biográfico em articulação com o tempo social e histórico de sua migração para o Brasil; (ii) sua incorporação no trabalho ambulante na cidade de São Paulo; (iii) a prisão e as instâncias pelas quais passa o processo criminal pelo qual Falilatou responde; (iv) as redes de apoio que se articularam em defesa de Falilatou, configurando um campo político em suas várias dimensões e desdobramentos.
Migrações transnacionais; Trabalho ambulante; Punitivismo; Redes sociotécnicas; “Corpos em aliança”
Abstract
This article deals with the mobilizations in defense of the street worker Falilatou, a migrant from Togo, accused of a crime she didn’t commit and whose life was entangled in a very intricate criminal process. The case ended up mobilizing an extensive socio-technical network under the banner #FreedomForFalilatou, which would bring to light the evidence of rights violations inscribed in the intricacies of this process, while at the same time signalling the construction of a political field articulated around events critical of state violence. The “Falilatou case” opens up a range of issues that are worth discussing here. On one hand, this story intertwines key structural elements of the popular sector: transnational migration and its integration into the urban fabric; the precarious nature of street vending, caught between daily earnings and the aggressive control and oversight by law enforcement; the punitive approach embedded in police operations and the complexities of the criminal process that the Togolese woman faces, all of which are marked by aggressive racialization practices and prejudice against non-white migrants. On the other hand, the broad support network that has formed in defense of Falilatou goes far beyond simply denouncing an injustice. It represents an alliance of diverse collectives (Black movements, migrant associations, anti-prison collectives), human rights organizations, parliamentarians, journalists, activist lawyers, and researchers. In their actions, this network functions as a socio-technical system, mobilizing various forms of knowledge and skills, as well as technical, institutional, and political resources to gather information, build evidence of the injustices committed against the Togolese woman, and make these public in various forums for debate and political contestation, including through media and digital platforms. The article is structured in four parts: (i) Falilatou’s life story, her biographical timeline in connection with the social and historical context of her migration to Brazil; (ii) her involvement in street vending in São Paulo; (iii) her arrest and the stages of the criminal process she is undergoing; (iv) the support networks that have rallied in her defense, forming a political field with its various dimensions and developments.
Transnational migrations; Street vending; Punitivism; Sociotechnical networks; “Bodies in alliance”
Os corres pela liberdade da migrante togolesa Falilatou
Qual foi o meu crime?
Estou sendo condenada porque sou negra, imigrante, africana.
Falilatou, 24 de outubro de 2023.
Falilatou, 43 anos, migrante do Togo, país do Golfo da Guiné, África Ocidental. Chegou ao Brasil em 2015. Trabalha como ambulante no mercado popular do Brás, região central de São Paulo. Foi presa em dezembro de 2020. Acusação: estelionato. A prisão aconteceu em meio à assim denominada Operação Anteros, uma das maiores operações da Polícia Civil a encarcerar número recorde de pessoas em menos de 24 horas. Conforme se soube depois, em grande parte dos casos, situações parecidas com de Falilatou: sabe-se lá por quais estratagemas, outros tantos migrantes recentes tiveram seus nomes e números de CPF surrupiados para abrir contas bancárias que iriam movimentar somas milionárias de dinheiro. No caso de Falilatou, as evidências da falcatrua não evitaram a prisão e acusação criminal. Como esclarece uma reportagem publicada em março de 2021 no jornal on-line Metrópoles,
Para a polícia, no esquema de estelionato, extorsão e lavagem de dinheiro, a refugiada atuava como “correntista”. Segundo a acusação, ela movimentou em cinco contas bancárias, de três bancos diferentes, R$ 1.035.000 – montante que pertenceria à organização criminosa. A prova apresentada foi uma assinatura com o nome da africana em letra cursiva, no formulário da abertura de conta. Acontece que Falilatou é analfabeta (Barbosa, 2021).
A acusação apoia-se em evidências nada críveis. A versão policial não tem a menor aderência com a vida que levava Falilatou nas ruas do Brás. A togolesa fazia corres para comprar e vender roupas no comércio de rua, um ganho garantido no dia a dia para o pagamento do aluguel de uma pequena quitinete e o sustento do filho que deixara aos cuidados de parentes em Lomé, capital do Togo. Ademais, as assinaturas em seus documentos pessoais não eram as mesmas expostas nas contas bancárias utilizadas pela acusação.
A prisão da Falilatou aconteceu em plena pandemia de covid-19. A notícia de sua prisão veio a público apenas quatro meses depois. Em pouco tempo, o caso mobilizou uma extensa rede de apoio, composta por movimentos sociais de negritude, coletivos anticarcerários, coletivos de migrantes, organizações de defesa de direitos humanos, também grupos de pesquisadores, dando forma e ressonância à campanha então lançada “Liberdade para Falilatou”. O fato é que o caso de Falilatou abriu-se a vários questionamentos: a condição do cárcere na pandemia e as desigualdades plasmadas no acesso diferencial à vacina e cuidados preventivos; a situação dos trabalhadores ambulantes duramente atingidos pelas formas repressivas de controle no uso das ruas e espaços urbanos; a discricionaridade das forças policiais eivadas de racismo e preconceitos contra migrantes não brancos, o acesso à justiça e o funcionamento dos tribunais.
Este artigo busca percorrer os caminhos trilhados por Falilatou, colocando em foco o jogo de escalas inscritas nessa história e nas relações de poder que afetam a vida da população imigrante no fazer e habitar a cidade. Como nos ensina Revel (1998, p. 28), o que a experiência de um “indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global”. Ao tratar da história individual de Falilatou, buscamos desvelar um tempo e espaço social compartilhado por migrantes negros e trabalhadores ambulantes nas circunstâncias cotidianas do comércio de rua; as peculiaridades dessa história são reveladoras dos dispositivos de poder que engendram, para usar os termos de Judith Butler (2018), as “vidas precárias”, mas também da força política inscrita nos “corpos em aliança” em protesto contra a violência do Estado.
O artigo se estrutura em quatro movimentos: (i) a trajetória de Falilatou, seu tempo biográfico em articulação com o tempo social e histórico de sua migração para o Brasil; (ii) sua incorporação no trabalho ambulante na cidade de São Paulo; (iii) a prisão e as instâncias pelas quais passa o processo criminal pelo qual Falilatou responde; (iv) as redes de apoio que se articularam em defesa de Falilatou, configurando um campo político em suas várias dimensões e desdobramentos.
Histórias migrantes
Falilatou nasceu no Togo, país da costa oeste africana, fronteira com Gana, Benin e Burkina Faso. Denominada no período colonial de “Costa dos Escravos” no Golfo da Guiné, a região que hoje compreende os países de Benin, Togo e Nigéria foi uma das mais densamente povoadas do continente africano. Como o pai morava no país vizinho, Gana, ela foi criada apenas pela mãe junto com seus oito irmãos, que ajudavam no sustento da casa.
Em Lomé, cidade em que nasceu e cresceu, ainda criança começou a trabalhar como doméstica. Já adulta, passou a trabalhar no comércio de rua, vendendo comida e roupa no Grand Marché de Lomé. A migração sempre esteve em seus planos:
Quando eu trabalhava na feira, no Grand Marché, eu via os estrangeiros que compravam as coisas com a gente para ir vender em outros lugares. Desde a minha infância, eu tinha vontade de viajar e morar em outro país, eu queria lutar para viver outra história. Não queria que meu filho sofresse o quanto eu estava sofrendo, eu desde adolescente pensava isso, não queria sofrer e que meu filho sofresse como eu sofri. […] Não tinha lugar direito para dormir nem roupa para vestir, condições muito ruins. Tinha muito pouco recurso1.
O Brasil figurou como a primeira opção. O país sempre foi uma referência para ela e sua família. Referência que traz os sinais dos tempos do tráfico negreiro, mas também de circuitos de informações e trânsitos articulando ambos os países:
Eu conversava com ele (o pai), nossa raiz é de onde? […] Ele dizia que a avó dele era brasileira, que saiu fugida da América e voltou para Togo. Sempre assistia a novela brasileira também, eu gostava do Brasil. Então, eu quis vir para o Brasil para procurar vida boa, eu sofria muito de fome, de falta de roupa, não tive estudo. Isso tudo me dói e eu não queria que meu filho sofresse igual.
Por quatro anos, tratou de amealhar recursos no comércio de rua em Lomé para viabilizar a migração. Chegou ao Brasil em 2014. O destino era a cidade de São Paulo. Como muitos outros, foi atraída pelas promessas de emprego e de condições favoráveis de acolhida que então circulavam nos países de origem. Promessas não realizadas, como Falilatou logo iria descobrir. Seja como for, o fato é que as primeiras décadas dos anos 2000 foram anos em que o país se confirmou como destino de rotas migratórias vindas de vários países no cenário de um acirramento de políticas antimigratórias e endurecimento dos controles nas fronteiras dos países europeus (Quintanilha, 2024). A partir da década de 2010, aumenta sensivelmente o contingente de migrantes e refugiados no Brasil, incentivados pela informação de que as fronteiras brasileiras não se mostrariam inflexíveis para a entrada no país. A partir desses anos, a presença migrante torna-se evidência incontornável na paisagem paulista, sobretudo nas regiões centrais da cidade, no comércio de rua, nas lojas, serviços, restaurantes, nos circuitos culturais, nos pontos de encontro espalhados entre galerias e praças da região (Aguiar et al., 2022; Cortez, 2023) – uma presença multiforme que foi engendrando, no correr dos anos, tramas relacionais nas quais, como será visto a seguir, os percursos de Falilatou na cidade se inscrevem e com as quais também irão se compor.
Falilatou foi recebida no aeroporto por um amigo togolês. Como muitos migrantes recém-chegados a São Paulo, seu primeiro ponto de parada foi a Casa do Imigrante, gerida pela Missão Paz no bairro da Liberdade (Cortez, 2023), onde encontrou abrigo e recebeu apoio da assistência social para as primeiras providências – apesar de não ter nenhum domínio do português, em poucos dias já tinha o seu RNE (Registro Nacional de Estrangeiro) retirado junto à sede paulista da Polícia Federal, CPF, carteira de trabalho e um número ativo de celular. Logo de sua chegada, pôs-se a trabalhar. Por indicação de uma amiga africana, conseguiu seu primeiro emprego em São Paulo, como babá. Para receber seu pagamento, abriu uma conta bancária, no Banco Itaú. Logo depois, alugou um canto para morar em Sapopemba, bairro periférico da Zona Leste de São Paulo – queria ficar na vizinhança de um padre togolês, primo que ela chama de irmão, que sempre lhe prestou apoio e orientações, desde o início de seus percursos paulistas. Irmão-primo católico, ela própria batista. E foi da igreja batista local que também recebeu um apoio importante nos seus primeiros tempos na metrópole paulista: indicações de uma casa para alugar e a doação de todo o mobiliário necessário para quem estava começando vida nova: sofá, geladeira, fogão, cama, roupa de cama, além de uma cesta básica.
Passou a trabalhar em uma unidade do McDonald’s, localizada nas imediações do centro da cidade. Fazia de tudo – de limpar a cozinhar. Distante de seu local de moradia, era um trabalho muito penoso e desgastante para sua saúde. Buscou outros caminhos. Contando com o apoio de uma rede de amigos africanos, Falilatou foi então levada por uma amiga a trabalhar em uma galeria na região central da praça da República, a chamada “Galeria dos Africanos”, na rua Sete de Setembro. Era um serviço de “trancista”, muito comum na região, muito procurado e muito valorizado por migrantes africanas. Sem dominar o ofício, atuava como puxadora de clientes e ajudante geral. Foi então que travou amizade com uma migrante angolana que a levou para trabalhar no Brás. Foi através dessa amiga angolana que ela aprendeu os caminhos para se inserir no comércio ambulante da região em meio às regras implícitas e acordos tácitos na regulação dessas atividades, também as permissões e restrições impostas pelos poderes públicos na gestão desses espaços. Quais os pontos em que é possível trabalhar? Quais os horários? É preciso pagar alguma taxa? Para quem?
Para a compra das primeiras peças a serem revendidas, contou com o apoio generoso de uma amiga da Costa do Marfim, a quem Falilatou chama de irmã, que lhe repassou recursos necessários para a aquisição das mercadorias e equipamentos de trabalho. E assim, a partir de 2015, a togolesa passa a atuar como ambulante. Com a renda desse trabalho, pagava o aluguel de uma pequena quitinete no Brás e fazia remessas periódicas para custear a alimentação e a educação do seu filho, no Togo. Esperava trazê-lo para o Brasil e se esforçava em juntar dinheiro o suficiente para a compra da passagem.
O trabalho no corre
Brás, região central da cidade de São Paulo, é um ponto de concentração de um extenso e pujante mercado popular. Entre galerias, lojas e o comércio de rua circulam mercadorias vindas de vários cantos do planeta; comerciantes e empreendedores de nacionalidades diversas agenciam os circuitos transnacionais das trocas nas fronteiras incertas ou embaralhadas entre o formal e o informal, o ilegal e o legal, entre os protocolos legais-formais dos mercados e as negociações que se fazem em uma zona cinzenta em que esses binarismos perdem qualquer pertinência. No correr dos anos 2000 e mais intensamente nos últimos anos, o comércio popular do Brás tornou-se um polo de concentração de migrantes transnacionais – haitianos, senegaleses, angolanos, congoleses, bolivianos, venezuelanos e outras nacionalidades, conformando todo um circuito de trocas e interações múltiplas (Aguiar, 2024). Assim, Falilatou vende roupas, muitas delas compradas de fornecedores bolivianos que costuram as peças em oficinas espalhadas pela região. Com um carrinho, ela carrega suas mercadorias em grandes sacolas dispostas em uma pesada caixa de papelão, reforçada com fitas para não romper, sobretudo se precisar fugir, com agilidade e rapidez, dos controles e fiscalização dos poderes públicos.
Como muitos migrantes presentes no comércio de rua, Falilatou compartilha com trabalhadores ambulantes brasileiros a precariedade própria do corre, como eles próprios designam uma vida que se estrutura no fio da navalha, “vendendo o almoço para comprar a janta”, em meio à agressividade dos fiscais da prefeitura, à virulência das forças policiais e aos critérios excludentes de regulação desses espaços (Aguiar, 2024).
Falilatou se inseriu nessas franjas mais precarizadas do comércio popular. Ela não preenche os nebulosos e, para muitos, indecifráveis critérios para obtenção de autorização ou licença formal para o exercício do trabalho, licenças concedidas por meio de uma complicada burocracia e sob critérios cada vez mais restritos. Para o contingente crescente de recém-ingressantes nesse mercado, resta o corre – e é aqui que também se qualifica o sentido do termo: espécie de batalha cotidiana para escapar da repressão policial e do temido “rapa”, apreensão de mercadorias e equipamentos de trabalho. Muito frequentemente, o “rapa” mobiliza uma verdadeira operação de guerra em nome do “combate ao crime” associado ao comércio ambulante: Guarda Civil Metropolitana, inúmeras vans da equipe de remoção da prefeitura, além da Polícia Militar e seus batalhões de choque próprios da “guerra urbana”. Frente a essas operações do poder público, os trabalhadores do corre precisam fugir para algum outro canto a fim de garantirem seu pequeno comércio; quando não conseguem escapar, será preciso recomeçar do zero, muitas vezes contrair dívidas para obter novas mercadorias sem garantias de que não venham a perder tudo novamente. O corre também tem a ver com as artimanhas para lidar com as práticas de extorsão por parte de forças policiais e fiscais da prefeitura, por vezes camufladas na forma de taxas mensais pagas a uns e outros, também aos grupos que fazem a segurança privada em vários pontos da região. Os que não podem pagar por essa espécie de licença informal-ilegal para exercer o comércio de rua ficam ainda mais vulneráveis e expostos à violência policial, vivendo sob o risco de expulsão da região.
Não é fácil trabalhar sob o regime do corre. Carregando um pesado carrinho com as peças de roupa, Falilatou costumava abrir sua tenda no chão em pontos diversos em uma avenida da região. E como ela diz, “sempre tinha que fugir da fiscalização que nem louca, sempre tem que ficar alerta, parece que você é ladrão, mas só para vender a roupa para ganhar um pouquinho de dinheiro para sustentar a família”. Por sete vezes, ela conta, perdeu toda a sua mercadoria, um carrinho lotado de roupas comprado horas antes para a revenda. Prejuízo descomunal – “na primeira fiscalização eu perdi 8 mil, na segunda vez, 11 mil e pouco em mercadoria”.
Mal havia se estabelecido no comércio de rua, em 2016 foi apreendida pela Polícia Civil na porta de sua casa, sob suspeita de uma oficina clandestina de costura. Foi abordada quando estava saindo para trabalhar com seu carrinho cheio de peças de roupa – rasgaram a sacola, tomaram uma bermuda adidas falsificada como prova de pirataria, arrombaram a porta da casa, não encontraram a tal oficina pirata, mas assim mesmo ela foi levada para a delegacia. Depois de muito choro e protesto nervoso, liberaram a mercadoria apreendida. O desespero não era por menos: uma semana antes, agentes da Polícia Militar haviam arrombado sua casa e levado toda sua mercadoria:
[…] a PM, eles têm alguém que vigia a gente, eles arrombam a porta, entram nas casas dos africanos, até geladeira nova de africano, eles fazem roubo mesmo. Eles entram na casa da gente, não é só na rua. A PM roubou há pouco tempo a geladeira e a TV de um africano. Comigo, única coisa que a PM fez foi levar a mercadoria…
Para trabalhar, a ajuda e a solidariedade dos colegas são importantes e estratégicas no funcionamento do comércio de sua.
[…] quando a gente está trabalhando, a gente se ajuda. Por exemplo, se alguém chega ali, não tem lugar direito, a gente arruma um espacinho. E os amigos na rua se ajudam, se uma pessoa vai no banheiro, o outro toma conta ou vende por ele. Quando um sai, já chama para ocupar o espaço… muita solidariedade tem entre os vendedores…
Sobretudo, é preciso conhecer algo como a cartografia política do mercado popular: os atores, os “donos” de ponto, os acordos prescritos na rua, onde obter mercadorias, com quem falar para “pedir autorização” para se instalar em um ponto ou outro, os lugares ainda não loteados informalmente, a cobrança de taxas para os grupos que administram informalmente a distribuição dos pontos de comércio (cooperativas de comerciantes, grupos de segurança privada).
Mas é também nessa batalha cotidiana do corre que se formam “redes de confiança” (Tilly, 2010) por onde essas informações circulam e por onde também são agenciadas formas de apoio, solidariedade e estratégias para contornar ou se opor aos desmandos dos poderes públicos e a essa espécie de “guerra urbana” que enfrentam em suas atividades rotineiras. Foi assim que Falilatou conseguiu se instalar no comércio de rua. Ambulante desde os tempos no Togo, foi no corre no Brás que a trabalhadora encontrou saídas imediatas para seu sustento face aos inúmeros infortúnios que acometem as/os ambulantes na região. São essas redes construídas e fortalecidas entre os trabalhadores que forneceram os caminhos para a obtenção de mercadorias, informações, rotas de fuga e mapeamento do rapa, também a ação solidária para dar apoio a parceiros de infortúnio que perderam tudo em um rapa, que foram atingidos pela virulência da repressão policial, que foram presos em uma operação policial sob acusação de crime de pirataria ou então “desacato à autoridade” quando resistem à apreensão de suas mercadorias.
Falilatou participava desses agenciamentos dos quais depende o funcionamento do comércio de rua. É nesse corre e nessas alianças que ela, como todos e todas, “fazem cidade” por via de uma trama de relações e interações, redes de confiança pelas quais a batalha diária pela sobrevivência aciona os códigos que regem o comércio de rua, códigos compartilhados entre os pares, seja para trabalhar, seja para resistir. Falilatou participou deste “fazer mundo” até as vésperas do Natal pandêmico de 2020, quando teve seu cotidiano duramente interrompido.
A prisão e processo criminal
Na madrugada da quarta-feira de 15 de dezembro de 2020, voltando para casa com as compras de mercadorias que iria vender mais tarde, Falilatou foi alertada por um amigo senegalês: sua quitinete fora invadida pela polícia. Achou que se tratava de uma outra investida da PM em sua casa. Para seu espanto, o amigo esclareceu que a operação fora realizada pela Polícia Civil. Chegando em casa, deparou-se com a porta arrombada e selada com uma fita branca, bloqueando o acesso. O apartamento estava todo revirado. O dinheiro que possuía, R$ 1.400,00, estava no mesmo lugar, mas parecia ter sido mexido, talvez recontado pela Polícia. A togolesa notou dois recados em seu celular: a proprietária do imóvel e uma vizinha tentaram avisá-la. Todos confirmavam que a Polícia Civil portava uma foto sua e a buscava por todos os cantos.
Sem entender a razão de tanto alvoroço, ela chamou o padre togolês, a amiga-irmã da Costa do Marfim e a proprietária do apartamento para acompanhá-la até a delegacia mais próxima em busca de informações sobre o que estaria acontecendo. Foram horas aguardando ser recebida. Nesse meio-tempo, uma mulher se apresentou como advogada, oferecendo seus serviços pois, assim disse, em breve ela seria presa. Indignada com a abordagem da advogada, tentava compreender o que estava acontecendo. O desespero aumentava conforme o tempo passava.
Depois de horas de espera, já escoltada por policiais, é convocada pelo delegado a entrar em sua sala. Separada a togolesa dos amigos que a acompanhavam, o delegado a apresentou a outras três acusadas de serem suas comparsas, também retidas – duas brasileiras, uma francesa. Falilatou seguia indagando as razões de sua casa ter sido arrombada. Ainda não compreendia que estava sendo presa: “Chefe, eu não sei por que estou aqui. Não sei por que arrombaram minha casa. Estou sendo presa? Por favor, explica para mim! Em meu país, antes de matar a galinha, você tem que dar água para ela beber”. Foi então levada para outra sala, onde lhe disseram que seria presa por estelionato. Falilatou nada sabia sobre processos e código penal, menos ainda da forma como a justiça brasileira opera ou os significados dos termos do direito brasileiro. “Sou analfabeta, não entendo direito português. O que é estelionato? O que é lavagem de dinheiro? Explica para mim!”, suplicava a togolesa ao delegado. Em tom de chacota, o oficial dizia que ela sabia muito bem as razões de estar na delegacia. Em nenhum momento lhe foi oferecido um tradutor para algum dos idiomas falados em seu país origem, o francês ou o inglês. O nervosismo tornava a comunicação ainda mais difícil para uma migrante com pouco domínio do português.
Ao final, entendeu que seria presa. Situação desesperadora: naquela manhã, todo o seu dinheiro investido em mercadorias que não seriam vendidas, recursos que tampouco poderiam ser enviados ao filho. Tentou, sem sucesso, convencer o delegado a deixá-la livre ao menos por mais alguns dias. O mandado de prisão seria cumprido, de imediato:
Eu disse ao delegado que naquele dia eu tinha comprado muita roupa ainda para vender nesses últimos dias de véspera de Natal, que eu tinha que trabalhar para mandar dinheiro pro meu filho, todo meu dinheiro eu investi em mercadoria e não tinha vendido ainda. Eu pedi para ele deixar eu trabalhar mais esses dias, insisti para que não me prendesse, eu disse que iria ficar no meu endereço, que eles poderiam bloquear meu passaporte, meu RG, tudo. Podiam pegar tudo meu, mas deixar minha liberdade para trabalhar, eu precisava mandar dinheiro para minha família. Mas ele disse que não, que tinha o mandado para me prender e que ele tinha que prender…
Acusada de movimentar cinco contas bancárias, em três bancos diferentes, para lavagem de dinheiro, Falilatou empenhou-se em provar não ter nenhuma relação com essas contas, mostrou o celular ao policial e indicou ser correntista apenas do Banco Itaú. O delegado passa a inquirir a migrante, pergunta quantas casas e carros ela possuía, se tinha marido ou namorado, se emprestara as contas para alguém, entre tantas outras perguntas. Ela responde que é trabalhadora, que paga R$ 800,00 de aluguel e que eles tinham entrado em sua casa e visto com os próprios olhos quais bens possuía – tudo muito longe das posses mencionadas. Tentou convencer o delegado de que suas posses eram fruto de doações e de seu trabalho no comércio de rua, no Brás. Disse ter medo da violência urbana e que, por isso, não saía, a não ser para trabalhar ou ir à igreja aos domingos. Tampouco teria recursos para gastar em outro tipo de vida social, já que a maior parte de suas economias eram convertidas em remessas financeiras para custear as despesas básicas do filho no Togo, e relatou que estava economizando para trazê-lo a São Paulo, queria propiciar outra vida ao menino. Ela rogava que as acusações não faziam sentido.
[…] Daí esse chefe da polícia disse a outro oficial que eu estava mentindo. Ele me pressionava para que eu falasse outra coisa. Eu dizia a ele que não era burra, que se eu fosse culpada eu teria fugido, não teria ido me entregar. Eu estava lá porque eu não tinha nada a temer. Veio então outro chefe, me acalmou, me deu água. Eu estava nervosa, mas eu não gritava. Eu sei que a polícia tem que ser respeitada, sempre respeitei a polícia. Naquele dia foi assim, daí eles me prenderam. Eles disseram que eu tinha conta no Banco do Brasil, eu disse que nunca tinha aberto conta no Banco do Brasil, ele disse que eu tinha quatro contas, mas eu disse que só tinha no Itaú. Eu dei meu celular na mão dele para provar. De lá saí presa sem saber direito a que respondia. Fui levada para outra delegacia e depois para a PFC [Penitenciária Feminina da Capital].
Em tempos pandêmicos, as Audiências de Custódia foram suspensas. Sem direito de defesa, Falilatou foi transferida para outra delegacia – partilhou a cela com outras cinco mulheres, apenas um colchão esparramado no chão. Conseguiu passar o endereço da delegacia para o padre togolês, que, logo em seguida, entrou em contato com o ProMigra – “Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes”, vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Por meio do ProMigra, um advogado pro bono se prontificou a fazer o trabalho de sua defesa e assistência jurídica. A essas alturas, Falilatou já havia sido transferida para a Penitenciária Feminina da Capital (PFC).
* * *
Falilatou foi incriminada e presa no âmbito da Operação Anteros, coordenada pela Divisão Especializada de Investigações Criminais (Deic) da região de Presidente Prudente e por outros departamentos da Polícia Civil de São Paulo, além de Polícias Civis de outras seis unidades federativas. Falilatou era acusada de participar de uma organização criminosa transnacional que teria extorquido mais de R$ 24 milhões com falsos namoros virtuais, o que a polícia denominou de “estelionato emocional”.
Conhecida como uma das maiores operações policiais do país, a Anteros desbaratou um esquema de fraudes on-line, em que perfis falsos eram utilizados em sites de relacionamento e nas redes sociais para aplicar golpes. De acordo com o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), aproximadamente 2 mil pessoas foram prejudicadas pela organização, que poderia ter lucrado mais de R$ 100 milhões com as investidas. Entre os 115 investigados presos, estava Falilatou e tantos outros migrantes da Ásia, da Europa e principalmente mulheres negras da África subsaariana, acusadas de serem correntistas da organização.
Segundo a acusação, a refugiada teria movimentado R$ 1.035.000,00 – montante que pertenceria à organização criminosa – em cinco contas bancárias de três bancos diferentes. A prova apresentada consistia em uma assinatura em letra cursiva com o nome da togolesa no formulário de abertura de conta. O Ministério Público aventava que os correntistas ganhavam de 3% a 7% do valor que passava pelas contas.
Essa gigantesca operação foi conduzida na comarca de Martinópolis, cidade do interior paulista, na divisa com o Paraná. Nessa cidade a investigação teve início. E para lá Falilatou foi depois transferida, confinada em uma instituição carcerária da cidade. Trata-se de pequeno município que sequer conta com Defensoria Pública, deixando diversos acusados nas mesmas condições que Falilatou, sem direito à defesa.
O processo criminal tramitava na 1ª Vara Judicial de Martinópolis2. Um processo que contava com 20 mil páginas na etapa inicial dificultava o primeiro mapeamento da situação das acusadas no processo criminal. O diagnóstico inicial realizado pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) apontou que, de um total de 210 pessoas acusadas, 140 eram mulheres, vindas de países como Angola, África do Sul, Haiti, Tailândia e Venezuela. Entre os acusados, 115 estavam presos, dentre eles ao menos 89 seriam imigrantes, a maioria mulheres originárias de países africanos, tal qual Falilatou (Mantovani, 2021).
A operação escancarou inúmeras facetas dos modos operatórios do dispositivo jurídico-penal, nas várias fases pelas quais o processo todo passou. Já nas delegacias, a denegação do direito à tradução e a ausência do acionamento dos consulados pelas autoridades policiais dificultaram aos acusados compreender o que estava se passando e como poderiam se defender, uma vez que muitos não possuíam domínio da língua portuguesa, menos ainda dos códigos e leis brasileiras. O processo corre em uma vara onde sequer há defensoria pública, obstando o acesso à justiça pública. Além disso, o direito de defesa foi prejudicado em razão da “falta de individualização da conduta no processo”, expressão jurídica mobilizada pelos advogados que, depois, analisaram o processo. Isto é, não se realizou investigação individual de cada uma das pessoas acusadas. Nos termos do processo, definiram-se grandes grupos de categorias em que os réus eram classificados sob tipificações penais generalizadas – independente do papel de cada um no esquema criminoso, foram todos acusados dos mesmos crimes: extorsão, estelionato e lavagem de dinheiro (Mantovani, 2021). Sob a mesma régua, os chefes e responsáveis pelo esquema criminoso e essas centenas de pessoas incriminadas por conta do uso fraudulento de seus nomes e documentos. De uma ponta a outra, violação de direitos e princípios consagrados na Constituição Federal, também no Estatuto dos Refugiados e na Lei de Migração.
O fato de esse processo envolver tantos migrantes, sobretudo mulheres de origem africana, não é um acaso. Com certeza, um cálculo bem pensado por parte da organização criminosa em suas operações do tal “estelionato emocional”: fazer uso do nome e de documentos de pessoas em uma situação de fragilidade no contexto brasileiro, com pouco domínio da língua, menos ainda das possíveis armadilhas sob códigos e rotinas burocráticas de instituições e agências bancárias, com poucas chances de defesa, denúncia improvável dos usos fraudulentos de seus nomes e documentos e, mais ainda, alvos privilegiados no caso de um possível processo criminal. Foi o que aconteceu. No andamento do processo, desde o seu início, essa fragilidade foi ainda mais reforçada sob a lógica jurídica de construção das provas criminais que pesam sobre todos.
Já na delegacia, tal como aconteceu com Falilatou, as evidências do disparate da acusação sequer foram levadas em conta – o que importava era algo como a lógica autoconfirmatória de uma acusação já formulada, um mandado de prisão já emitido, uma operação policial já em andamento, um julgamento prévio já definido, eivado de racismo e preconceito contra migrantes africanos. No andamento do processo, as circunstâncias individuais de cada um submergem sob a “ficção da lei” por via da construção jurídica das peças acusatórias, provas e narrativas do “Grande Crime” (Das, 2020), que acionava uma grande operação policial e movimentava a burocracia judicial, nas várias instâncias pelas quais corre o processo criminal. Era preciso manter essa engrenagem policial-punitiva em funcionamento.
Em 9 de agosto de 2023, a juíza titular da vara de Martinópolis condenou Falilatou a onze anos e três meses de prisão. Na sentença, a juíza reconhece que deixou de levar em consideração a condição de Falilatou como ré primária, sem antecedentes criminais, e afirma não constar dos autos informações sobre a “personalidade” da denunciada:
O acusado é primário, sem antecedentes. A conduta social não foi suficientemente apurada. Não há nos autos informações suficientes a respeito da personalidade do denunciado, razão pela qual deixo de valorá-la (Trecho da sentença, Juíza Renata Esser de Souza – 2ª Vara Judicial de Martinópolis, 9 de agosto de 2023).
Em nenhum momento de sua decisão, a juíza considerou as provas sobre a realidade da togolesa enquanto trabalhadora ambulante no Brás e os reiterados pedidos de realização de perícia grafotécnica juntados pela defesa no processo. Na sentença, a juíza afirma que a alegação de nulidade do processo criminal pela defesa não prospera, pois, em seu entendimento, a ausência de intérprete não produziu prejuízo à Falilatou, apesar de ser um direito previsto em lei.
Nos meses transcorridos entre a prisão e sua condenação muita coisa aconteceu. Falilatou responde ao processo em liberdade, aguardando resultado de recursos impetrados pelos advogados pro bono que assumiram sua defesa.
Costurando redes, os corres pela liberdade na Justiça
Logo que a notícia da prisão de Falilatou veio a público, articulou-se uma ampla rede de apoio à togololesa, lançando a campanha #LiberdadeParaFalilatou. Mais um lance de uma rede que vinha se articulando já havia alguns anos em apoio a migrantes vítimas de discriminação racial e violência policial, sob a bandeira “Vidas Imigrantes Negras Importam”, por influência do movimento negro americano “Black Lives Matter” e do Movimento Negro Unificado (MNU) (Côrtes, 2023; Quintanilla, 2024). Além de uma equipe jurídica que se voluntariou de forma pro bono, vários coletivos se mobilizaram (da negritude, anticárcere, indígenas, feministas e dos trabalhadores ambulantes), organizações de direitos humanos, com destaque para o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), advogadas/os, pesquisadoras/es, parlamentares, jornalistas, além de coletivos culturais africanos. Em seus modos de atuação, uma rede sociotécnica, mobilizando competências diversas e recursos político-institucionais para produzir informações, construiu provas e evidências das injustiças cometidas contra a togolesa (e outros tantos incriminados nesse processo), para deslindar os caminhos tortuosos pelos quais o processo transita, a fim de definir os recursos possíveis para a defesa entre os trâmites jurídicos. Também para a construção de um campo político que desse ressonância ao caso. Em plena pandemia, a rede se reunia virtualmente para analisar os aspectos jurídicos do processo e seus desdobramentos. E deliberar pela importância de se transitar dos tribunais para o debate político.
Foi lançado um manifesto on-line pela liberdade da togolesa, que em poucos dias teve uma adesão massiva de assinaturas. O manifesto com sua extensa lista de assinaturas foi utilizado como recurso judicial de defesa, junto com a certidão de nascimento do filho e a comprovação de que o garoto era dependente da mãe. Articulou-se o apoio parlamentar para dar ressonância ao caso e construir condições para uma possível pressão política junto aos juízes encarregados do caso. A bancada da então deputada estadual Erica Malunguinho mobilizou seus assessores para compor essa rede, fazendo uso dos recursos políticos e jurídicos próprios do legislativo para contribuir no deslindamento dos meandros do processo e também para dar ressonância pública e maior envergadura à campanha (Aguiar et al., 2022). Uma audiência pública foi realizada sob a presidência do vereador Eduardo Suplicy (PT). Depois, em 31 de maio de 2021, o caso de Falilatou foi discutido em reunião extraordinária na Comissão de Direitos Humanos, também sob a presidência do vereador Suplicy, da qual participaram representantes do Conselho Municipal de Imigrantes e a Ouvidoria da Polícia do Estado, também pesquisadores da USP3. Entre os encaminhamentos aprovados, a elaboração de um ofício dirigido ao juiz responsável pelo processo de Falilatou, além de um outro documento que expunha evidências da violação ao direito de defesa de outras mulheres migrantes presas na Operação Anteros. O vereador, por sua vez, empenhou-se em agendar uma reunião, também virtual, com o juiz da vara judicial de Martinópolis4.
Em meio a essas iniciativas, um ponto de virada a favor de Falilatou aconteceu a partir da reportagem “Prisão de refugiada em megaoperação policial mobiliza entidades e parlamentares”, publicada pela jornalista Flávia Mantovani na Folha de S.Paulo em 10 de junho de 2021. Mais uma iniciativa, bem-sucedida, da campanha. No dia seguinte, a Justiça, tanto na primeira instância quanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ), decidiu que Falilatou poderia responder ao processo em liberdade.
A decisão foi largamente veiculada pelas redes sociais e comemorada pelos atores envolvidos. Em 16 de junho de 2021, Falilatou deixou a prisão. Foi recepcionada com aplausos pelos amigos e o advogado de defesa. Também por inúmeros rostos que ela sequer havia visto antes, mas com os quais vínculos afetivos foram construídos no correr desses meses e nos outros que então se seguiriam. Emocionada, Falilatou agradecia a todos – “muito obrigada a todos que lutaram por mim”. Enrolada em uma bandeira de Togo e vestindo um casaco do movimento Black Lives Matter (BLM) com o qual havia sido presenteada, a togolesa deixou a prisão depois de seis meses de encarceramento.
Iniciava-se então outra fase da campanha, agora por “Justiça e Reparação”. O processo estava em andamento, e eram várias as sequelas deixadas por esses meses de prisão, além da insegurança face a uma acusação criminal de desfecho incerto. Na prisão, não foi possível enviar as remessas periódicas ao filho, no Togo. A campanha em defesa de Falilatou desdobrou-se no esforço, bem-sucedido, de mobilizar recursos para trazer o garoto de doze anos para junto da mãe.
Recomeçar a vida não seria nada fácil. Com a saúde debilitada, estava tudo muito incerto. A volta ao trabalho ambulante estava comprometida pelos tempos pandêmicos e recrudescimento da repressão aos ambulantes que se arriscavam nas ruas da cidade (Quintanilha e Aguiar, 2024; Aguiar, 2024). Sobretudo, a angústia face a um processo em andamento. O risco da prisão não estava descartado. E não era fácil lidar com o estigma de uma acusação criminal.
[…] Eles sujaram meu nome, bloquearam minha conta, pegou meu passaporte também. Eles sujaram meu nome. Isso não é bom para estrangeiro, nem para brasileiro. Por que eles fazem isso? (citação)
No momento em que este artigo está sendo escrito, Falilatou segue respondendo ao processo em liberdade, aguardando a decisão sobre os recursos impetrados pelos seus advogados contra a condenação prescrita na Vara Criminal de Martinópolis, em agosto de 2023.
Redes sociotécnicas em movimento, “corpos em aliança”
Em outubro de 2023 foi organizada uma nova Audiência Pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – Alesp, com o apoio da Frente Parlamentar para Promoção da Igualdade Racial, em Defesa dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais. Na pauta, a violação dos direitos humanos das mulheres incriminadas na Operação Anteros, exposta nas minúcias dos processos criminais: desde a ausência de intérpretes nas delegacias até o desrespeito ao direito à individualização da acusação e da pena, sob a lógica de um processo em que as pessoas estavam sendo julgadas em “lotes” nas várias instâncias em que o processo tramita. Falilatou compôs a mesa dos convidados. Expôs suas dificuldades como trabalhadora ambulante, como negra, como africana no Brasil. Em 3 de dezembro de 2023, junto com outras testemunhas da violência do Estado contra pessoas negras, Falilatou foi ouvida em audiência organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em São Paulo. Uma iniciativa mediada pelo “Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Promoção de Justiça e Igualdade Racial na Aplicação da Lei” (EMLER, sigla em inglês)5.
A prisão e a condenação de Falilatou teriam sido apenas um “caso menor” em meio a miríades de outros que nem sequer ganham registro nas páginas policiais da imprensa, não fossem os “sensores críticos” dessa rede de apoio e que captaram o que havia de importante nessa história (Aguiar et al., 2022). A importância do campo político construído por essa ampla rede sociotécnica mobilizada em torno de um “caso menor” é algo a ser visto sob vários registros
A transfiguração de um caso singular, uma história individual, em pauta de debate público não é coisa simples. Não basta a denúncia indignada. Foi preciso muito trabalho, em várias frentes. De partida, advogados de defesa empenhados em reconstituir fatos e circunstâncias, além do uso de suas prerrogativas para ter acesso a autos e deslindar os meandros intrincados de um processo difícil. A competência de jornalistas aliados na elaboração de reportagens investigativas, contundentes e convincentes na reconstrução das arbitrariedades contidas nos fatos relatados. Os recursos políticos e institucionais mobilizados por parlamentares para dar ressonância pública ao caso e acelerar possíveis soluções. O poder de mobilização dos vários coletivos militantes e suas respectivas pautas, fazendo ressoar essa história em suas áreas de atuação. Pesquisadores que acompanharam todos os lances desse processo e buscaram reconstituir cronologias e circunstâncias da vida, do trabalho e da prisão da togolesa6. E a cada momento, sempre, o empenho partilhado em construir condições para que Falilatou desse seu próprio testemunho e fazer desse testemunho a peça-chave da denúncia e exigência de justiça. No transcorrer dos meses, nessas várias frentes de atuação, informações e evidências foram trabalhadas e elaboradas como provas das arbitrariedades contidas em cada passo desse processo e nos meandros da justiça criminal. Informações e evidências que ganhavam ressonância pública em espaços de debate e divulgação, das audiências públicas a fóruns políticos ou acadêmicos, passando pelas mídias e redes digitais.
Trata-se de uma rede sociotécnica composta por diversos saberes e competências, recursos técnicos, institucionais e políticos, tudo isso colocado em movimento em torno de eventos críticos de injustiça e violência, para trabalhar evidências, construir provas da responsabilidade do Estado nessas situações e torná-las públicas em fóruns diversos de debate e embates políticos (Weizman, 2017). É uma rede rizomática, poderíamos dizer, que se compõe conforme as situações e circunstâncias, que se faz e desfaz para se compor em outro momento com novas conexões, outras pautas, outros agenciamentos práticos, de acordo com exigências de momento (Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho, 2020). Cada uma de suas “peças” carrega histórias, experiências acumuladas no correr dos anos, com suas respectivas capilaridades e suas redes de aliados e, sob diagramas diferenciados, com suas conexões com o mundo social, com instituições políticas, com ONGs, com centros de pesquisa e universidade. Daí a densidade política inscrita nessas articulações.
É isso que se pode perceber ao reconstituir o “caso Falilatou”: a rede “Vidas Negras Migrantes Importam” deu o sinal de partida, ela própria uma rede rizomática, composta por coletivos migrantes, grupos de defesa dos direitos humanos, jornalistas e advogados ativistas, centros de pesquisa, que se colocam em movimento em torno de situações de violência contra migrantes transnacionais, contando com uma já consolidada – e reconhecida – experiência desses embates no correr dos últimos anos (Quintanilha, 2024; Aguiar et al., 2022). Em torno da prisão de Falilatou, as linhas de força dessa movimentação foram traçadas pela articulação entre coletivos migrantes, coletivos negros, associações de trabalhadores ambulantes e coletivos anticarcerários. Cada qual com suas experiências, com suas pautas e repertórios, que condensam seus respectivos percursos políticos, mas que circulam e entram em ressonância uns com outros na própria medida em que dizem respeito a dimensões estruturantes do mundo social. Não por acaso, nos fóruns públicos em que a história de Falilatou passou a reverberar, o seu “caso” tornou-se especialmente revelador dos modos pelos quais dispositivos de poder engendram a precariedade de vidas afetadas pelas circunstâncias do trabalho precário, pela violência policial, pelo punitivismo e políticas de encarceramento em massa, tudo isso atravessado por práticas de racialização e xenorracismo contra corpos negros não brasileiros (Aguiar et al., 2022).
Essas redes sociotécnicas se inscrevem e ao mesmo tempo constroem espaços políticos de articulação de coletivos diversos – nos termos de Butler (2018), o campo político dos “corpos em aliança”. Recuperando o que dissemos em texto anterior:
Violência estatal e precariedade das vidas e formas de vida, dois eixos de uma experiência partilhada e que pode se desdobrar em esferas de articulação – nos termos de Butler, dos corpos em aliança. Esferas públicas de manifestação dos corpos afetados pela violência estatal e atravessados por uma condição comum de precariedade – precariedade politicamente induzida por dispositivos de despossessão que tendem a desfazer as redes de relações e de proteção das quais dependem as possibilidades de vida. Nas dimensões performáticas de suas formas públicas de aparecimento e protesto, diz a autora, está se colocando a vida passível de ser vivida no primeiro plano da política (Aguiar et al., 2022).
A vida passível de ser vivida projetada no primeiro plano da política: essa é a questão posta e exposta na história de Falilatou e que condensa, em sua singularidade, miríades de conflitos que atravessam o mundo social. É questão posta no cenário de nossas cidades, e mundo afora (Grupo Cidade e Trabalho, 2020; Aguiar et al., 2022).
Referências Bibliográficas
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1
. Ao longo deste artigo, todas as citações diretas da togolesa foram retiradas de uma mesma entrevista concedida a Tiago R. Côrtes, um dos autores deste artigo, realizada em 9 de julho de 2021.
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2
. A acusação partiu das investigações da Operação Anteros, uma megaoperação da Polícia Civil conduzida pela Seccold – Setor Especializado de Combate aos Crimes de Corrupção, Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro da 1ª Delegacia de Investigações Gerais de Presidente Prudente/SP.
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3
. Assim como nas audiências públicas, os autores desse texto participaram de todos esses eventos.
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4
. Como já mencionado, tanto a prisão quanto as mobilizações articuladas na primeira fase da campanha pela liberdade de Falilatou aconteceram durante a pandemia da covid-19. Parte significativa das ações foram realizadas de forma virtual.
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5
. Constituído em 2021 como uma das ações após o assassinato de George Floyd dos Estados Unidos, o EMLER é um mecaismo das Nações Unidas que tem como objetivo fazer recomendações para garantir acesso à justiça, a responsabilização e a reparação por violação dos direitos humanos. Sobre essa audiência, e a visita de doze dias do EMLER ao Brasil, entre 27 de novembro e 8 de dezembro de 2023, https://fronteirascruzadas.com.br/denuncia-de-violacoes-contra-falilatou-estelle-sarouna-e-levada-a-onu/.
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6
. Na qualidade de pesquisadores qualificados, três dos autores deste artigo participaram de todas as audiências e fóruns públicos realizados no correr de todo esse processo. Estes esforços de registro e análise em tempo real para produzir uma narrativa crítica sobre os desdobramentos desse processo criminal, no contexto mais amplo de criminalização da migração, estão refletidos nas teses de doutorado dos autores (Quintanilha, 2024; Aguiar, 2024; Côrtes, 2023) e no artigo colaborativo publicado no Le Diplomatique Brasil (Aguiar et al., 2022).
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Editora
Ana Paula Hey
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Set 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2025
Histórico
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Recebido
02 Out 2024 -
Aceito
10 Dez 2024
