Resumo
O artigo investiga a consolidação de um empreendedorismo popular como identidade significativa nas periferias de São Paulo. O texto é produto de etnografia conduzida na zona sul da cidade entre 2017 e 2022. Dois perfis de trabalhadores por conta própria são analisados: um caso de empreendedorismo “fraco”, em que o ethos empreendedor pouco articulado se conjuga com o projeto familiar; e dois casos de empreendedorismo “forte”, em que seus protagonistas expressam o léxico característico do discurso empreendedor, porém com resultados diferentes segundo suas aspirações de distinção social. Para cada um dos três casos são analisadas as experiências em relação ao trabalho, à vizinhança, à educação e às perspectivas de mobilidade social.
Periferias urbanas; Cultura popular; Empreendedorismo; Classes sociais; Mobilidade social
Abstract
The article analyzes the possibility of consolidating popular entrepreneurship as a significant identity in São Paulo. The text is an outcome of an ethnography conducted between 2017 and 2022. Two profiles of self-employed workers are analyzed: a case of “weak” entrepreneurship, in which the little articulated entrepreneurial ethos is linked to a family project; then, two cases of “strong” entrepreneurship, in which their characters express the lexicon characteristic of entrepreneurial discourse, but with different results depending on the aspiration for social distinction. For each of the three cases, experiences in relation to work, neighborhood, formal and non-formal education and prospects for social mobility are analyzed.
Urban peripheries; Popular culture; Entrepreneurship; Social classes; Social mobility
Introdução
Este artigo explora diferentes impactos do discurso empreendedor, no caso, entre trabalhadores por conta própria, pequenos comerciantes e microempreendedores, reelaborando assim identidades populares. O objetivo é expor a formação de um empreendedorismo popular como identidade significativa nas periferias de São Paulo, analisando as diferentes etapas e processos através dos quais ele se apresenta nesses territórios. Frequentemente descrito apenas como ideologia e justificação da precarização das relações de trabalho1, analiso como indivíduos atribuem significado ao empreendedorismo segundo seus modos de vida e em relação às expectativas de reconhecimento que incorporam nas suas iniciativas empreendedoras.
Como pressupostos dessa ressignificação de identidades populares, fenômenos estruturantes ocorridos nos territórios urbanos nas últimas décadas criaram as condições necessárias para a generalização do discurso empreendedor em meio à incerteza crescente no âmago dos modos de vida tradicionais. Em cerca de cinquenta anos, consolidaram-se nas periferias de maneira imbricada: (1) a urbanização e as melhorias proporcionadas pela chegada de serviços públicos; e (2) a propriedade da casa autoconstruída, agora regularizada e valorizada (Caldeira, 2017). Para aqueles que sacrificaram tempo, dinheiro e bem-estar em nome da realização da segurança e da coesão da família, a casa própria é um símbolo do progresso alcançado e que permitiu aos filhos estender os estudos e adiar o ingresso na população economicamente ativa. Na perspectiva de voos mais altos, passam a incorporar um novo capítulo do “projeto do trabalhador”: a mobilidade de classe social2.
O momento subsequente, contudo, é atravessado por outras dinâmicas não totalmente previstas por indivíduos e famílias, sobretudo inerentes ao mercado de trabalho (Cardoso, 2008). O crescimento insuficiente da economia e da criação de empregos “de qualidade” no país na esteira da reestruturação produtiva impôs obstáculos aos jovens dos anos 2000, que viram frustrados seus planos de mobilidade através da formação escolar (Corseuil, Franca e Poloponsky, 2020; Fontes, 2022).
Diante desse cenário de poucas perspectivas, uma parcela daqueles que viveram esse período quando jovens passaria a desdenhar do mercado de trabalho (Costa, 2019). Junto do aumento da escolarização e da multiplicação de cursos de qualificação em todos os níveis (Georges, 2009), a realidade de sua precariedade constitutiva se combina com a indisposição desses indivíduos em se submeterem a baixos salários sem expectativa de crescimento profissional no mercado de trabalho convencional. Não se trata de exaltar o período anterior em que o fordismo alcançou muito poucos entre nós, mas de entendê-lo como um horizonte de mobilidade social dentro do projeto familiar, que, ao se extinguir, expõe dissonâncias entre pais e filhos. Como disse Vera Telles (2006, p. 176), no auge desse processo, “eles entraram num mundo já revirado, em que o trabalho precário e o desemprego já compõem um estado de coisas com o qual têm que lidar, e estruturam o solo de uma experiência em tudo diferente da geração anterior”3.
O empreendedorismo popular surge na esteira desse processo como imposições de modernização cultural4, renovando um ímpeto contínuo de destradicionalização e racionalização das sociedades capitalistas (Williams, 2011; Beck, 2011; Weber, 2004)5. É nessas brechas que os discursos associados ao empreendedorismo encontram ressonância, fazendo crescer no indivíduo uma nova cultura do trabalho avessa à solidariedade social (Machado da Silva, 2018), mas também restaurando seu desejo de autonomia e alcançando subjetividades debilitadas pelo sofrimento (Dejours, 1999; Illouz, 2007). Assim, o mundo popular se refaz e tece novas sociabilidades que robustecem vínculos de dependência familiar, e que ganham feição endógena à medida que o mundo exterior lhes parece mais ameaçador – o tipo de narcisismo que Christopher Lasch (1991, p. 51) percebeu como uma defesa “não apenas em condições objetivas de guerra econômica, taxas crescentes de crime e caos social, mas na experiência subjetiva de vazio e isolamento”.
Essas são contradições que alcançam a própria relação desses empreendedores com seus territórios. De modo que, ao se colocar como uma via alternativa de autorrealização, o empreendedorismo incorpora também o anseio de autonomia daqueles abandonados pela modernização, e, em hipótese que será explorada neste texto, permite um tipo de identidade adequada tanto ao anseio por autonomia quanto à resistência cultural, nos termos de Castells:
Para os atores sociais excluídos ou que resistem à individualização da identidade ligada à vida nas redes globais de poder e riqueza, as comunidades culturais de base religiosa, nacional ou territorial parecem ser a principal alternativa para a construção de significado em nossa sociedade. Essas comunidades culturais são caracterizadas por três qualidades principais. Elas aparecem como reações às tendências sociais predominantes, às quais se resiste em nome de fontes autônomas de significado. São, em um primeiro momento, identidades defensivas que funcionam como refúgio e solidariedade para proteger contra um mundo hostil e externo. São constituídas culturalmente, ou seja, organizadas em torno de um conjunto específico de valores cujo significado e compartilhamento são marcados por códigos específicos de autoidentificação: a comunidade de crentes, os ícones do nacionalismo, a geografia da localidade (Castells, 2010, p. 163, tradução minha).
Como indivíduos relegados às margens dos benefícios da modernização, estes conformaram sua identidade com base no que chamo de “vida sem salário”, um modo de vida que não se caracteriza apenas pela ausência de contratos formais, mas também pela incerteza econômica e transitoriedade entre empregos relativamente precários, imbricados em relações familiares, e que mostram uma economia moral guiada por ambições moderadas e cálculos não necessariamente monetários (Denning, 2010; Thompson, 1998; Scott, 1976; Costa, 2024b). Além disso, a vida sem salário reflete o individualismo da luta contra a pobreza, que tem tanto seu lastro histórico quanto reflexos presentes entre trabalhadores por conta própria e pequenos comerciantes (Cardoso, 2019; Souza, 1982). Os discursos empreendedores atravessam esses modos de vida ressignificando-os segundo os mesmos preceitos de racionalização; em outras palavras, colocam modos de vida em risco de “empreendedorização” com mais ou menos intensidade conforme se modifica uma noção essencial para a economia moral, a de mérito, que deixa de mensurar o valor da dedicação e do trabalho bem-feito. No discurso empreendedor dos coaches e dos livros de autoajuda, trata-se de uma retribuição rápida pela aquisição de certificados6.
Para abordar o empreendedorismo popular empiricamente, este artigo analisa atividades não assalariadas e seus modos de vida, resultado de etnografia conduzida entre 2017 e 2021 e de entrevistas aprofundadas com roteiro semiestruturado. Buscando apresentar um grupo representativo da pesquisa, são analisados neste artigo quatro personagens que incorporam esse ethos, porém com ambições e resultados diferentes. Primeiro, apresento um caso de empreendedorismo fraco: um casal de imigrantes baianos e trabalhadores autônomos que pouco faz uso da fraseologia em voga, mas que incorpora características essenciais da vida sem salário. As duas seções seguintes mostram dois casos de empreendedorismo forte: um jovem adulto que reproduz o discurso com eloquência a partir de certas prescrições, mantendo-se com certo êxito; e minha terceira personagem, que não apenas reproduz lugares-comuns, mas se apega ao empreendedorismo de maneira ideológica – ela, contudo, tem grandes dificuldades em sustentar seu negócio. Por fim, sistematizo nas conclusões os achados da pesquisa.
Empreendedorismo popular
Toni e Sueli: vida sem salário e projeto familiar
Toni e Sueli7 saíram do sertão baiano, no final dos anos 1990. Na zona rural de Euclides da Cunha, município de 56 mil habitantes, os dois permaneceram até a juventude trabalhando de sol a sol na colheita de milho, mandioca e feijão. Sueli estudava nas horas vagas. Toni, por volta dos doze anos, ia para a cidade lustrar sapatos e ganhar seu próprio dinheiro. Com dezoito anos ele seguiu em direção a São Paulo e trabalhou de tudo, “graças a Deus”. Comprou da irmã já instalada o “barraquinho” em Sapopemba e começou a namorar Sueli, iniciando uma nova etapa de vida que, na sua narrativa, foi de contínuo progresso.
Seu primeiro “trampo” foi vendendo chocolate nos arredores da estação Armênia do metrô, uma das mais movimentadas da cidade. Depois vendeu frutas no Centro, trabalhou de ajudante de cozinha (com carteira assinada), confecção, padaria, de motoboy, e finalmente como cabelereiro, sua ocupação atual, já há doze anos com seu próprio salão próximo a Heliópolis. Com tantas experiências de vida sem salário, surpreende a afinidade que Toni encontrou no ofício de cabeleireiro. Na época dessa descoberta, trabalhava em uma padaria no bairro do Cambuci, entre o centro e a zona sul, de frente para diversos salões onde fez alguns amigos, e guardou na memória. Algum tempo depois, já como motoboy na região da avenida Paulista, manteve o trabalho para uma administradora de condomínio durante o dia e deixou a pizzaria, para a qual fazia entregas à noite, para frequentar um curso de cabeleireiro no centro – de segunda a sábado, por três meses. Ele conta que seus primeiros passos na profissão foram bastante difíceis, mas enfatiza a experiência adquirida no dia a dia, já que o curso “é só pra saber como começar”.
Desde a aprovação da Lei 13.352 em 2016, conhecida como Lei do Salão Parceiro, cabeleireiros, barbeiros, manicures, esteticistas e maquiadores podem ser empregados como pessoas jurídicas (PJ), de modo que o salão-parceiro fica autorizado a reter uma porcentagem do serviço executado pelo profissional-parceiro, sem registrá-lo como funcionário. No caso de Toni, o repasse chegava a 40%. “Pessoas fracas desistem, porque ficam com medo”, diz. Mas sua perseverança demonstrou-se inabalável: depois disso foi para um salão melhor, até que juntou um dinheiro para montar seu próprio negócio. Hoje, atua como microempreendedor individual (MEI).
Com 41 anos no momento da entrevista, Toni não parece ter muitas queixas. Sua mudança para o Sudeste representou deixar o restante da família em Euclides da Cunha, mas ele mantém uma visita anual aos que lá ficaram. Sua adaptação à capital paulista, circulando entre ocupações mais ou menos precárias, é narrada com satisfação diante do que deixou para trás e do modo como identifica a metrópole como referência de um projeto de autorrealização. Hoje, usufruindo de alguma estabilidade, diz não ter dúvidas sobre a escolha que fez. “Foi bom, né? Todos que estão lá querem vir pra cá. Lá é difícil, véio! Lá é só sobreviver, pra comer mesmo, entendeu? Então todos que vão ficando rapazinho querem vir pra cá, trabalhar aqui. Conquistar suas coisas, né?”.
Há poucos anos saiu do aluguel e adquiriu apartamento próprio pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo) em Heliópolis, onde vive com Sueli e o filho de oito anos. “Mas é um lugarzinho bom, bem localizado, não é lá dentro do barulho, né?”, observa, depois de morar oito anos lá “mais pra dentro”, referindo-se à favela de mesmo nome. Conta com orgulho da realização do sonho do carro zero quilômetro, conquistado pelo próprio trabalho. “Graças a Deus aqui é assim, você trabalhar com honestidade, entendeu? Deus te abençoa, né? E ele tá vendo tudo o que a gente faz. E vai tudo dando certo”, declara.
Toni é quem profere o dito popular o sol brilha para todos, que se encontra no título. O contexto da fala mistura elementos típicos da vida sem salário na periferia, como a religiosidade popular e a recompensa àquele que trabalha duro, tudo salpicado por uma boa dose de moderação. Apesar de demonstrar certo incômodo com a nova concorrência e apontar para a falta de experiência dos mais jovens, seduzidos pela suposta facilidade de se aprender um ofício tradicional como o de cabeleireiro através de tutoriais no YouTube, Toni mantém sua dignidade ao não rebaixar o valor de seu trabalho. Contudo, entende que a situação econômica do país cria não apenas trabalho precário, mas também a demanda por ele.
Vou te dizer, aqui o corte é de 23 reais, ali o menino corta de 15 reais, entendeu? Tem muito cliente que vai pelo preço, e tem que ver a situação que nós tá também, né? Tem cliente meu que cortava comigo e agora tá indo cortar com ele. Também nunca fechei a cara pra ninguém, o sol brilha pra todos. Até porque tem gente que vem cortar o cabelo aqui, eu falo 23. “Pô, falaram que é 15…”. Eu falo “amigo, virando ali é 15, pode ir lá”. Eu indico pro cara, não tem problema. O sol brilha pra todos, entendeu? Tem cliente que vem de longe cortar comigo, que vem de Osasco, pega duas, três conduções. É maior fácil cortar o cabelo dele, mas ele sabe já, acostuma. Tem confiança. Graças a Deus, cara. Olha, eu posso dizer assim, que tudo o que eu tenho foi dessa profissão, entendeu? Realizei meu sonho, que era comprar um carro novo. Um carro quatro portas, vermelho, zero! [risos]. Em 2013 eu comprei ele. Um Prisma novo, nessa agência aqui. Paguei à vista, 42 mil. Falei: “Faça o boleto que eu vou pagar agora!” [risos]. Os vendedores gostam, né? (Toni, 2020).
Na região onde se situa o imóvel alugado, galpões de estocagem, pequenas empresas e botecos fornecem a clientela de Toni, que cobrava 23 reais o corte em meados de 2020. Por mais que ele absorva a legitimidade da concorrência, isso faz com que esquemas relativamente estabelecidos precisem mudar eventualmente. Esta é outra característica essencial de quem quer manter seu negócio: estar preparado para mudanças trazidas, no caso, pela dinâmica econômica do país. Como um ramo que se expandiu muito nos últimos anos, os salões e barbearias atraem uma imensa quantidade de jovens com pouca qualificação formal trabalhando em espaços muito reduzidos, exigindo de profissionais estabelecidos como Toni o rebaixamento do valor de seu trabalho, ou um investimento que lhe permita um atendimento distinto para se manter em um mercado que se pulveriza cada vez mais. Seu plano era “dar uma melhorada” no salão assim que a pandemia permitisse: “Vou mudar. Vou ver se acho um profissional pra trabalhar comigo que faça feminino, não tem ninguém aqui que faça feminino. Eu só faço homem, sou sozinho aqui”.
No salão simples, porém amplo e organizado, nada se destaca muito, com uma exceção: à primeira vista, uma extravagante bandeira dos Estados Unidos estendida sobre uma das cadeiras. Não era o caso, o que não arrefece a curiosidade: Toni havia comprado algumas semanas antes um par de capas, dessas que cobrem o cliente e protegem dos fiapos que caem durante o corte, e que tinham a famosa estampa de estrelas em fundo azul e listras vermelhas e brancas. Durante minha passagem pelo salão, vi seus dois clientes da manhã ensolarada cobertos pela bandeira estadunidense, tendo seus cabelos cortados deslizando sobre ela. A cena insólita combina aspectos ambíguos da cultura popular que tentei explorar com Toni.
Sua primeira explicação para o fato remete à solidariedade para com o colega que frequentemente passava no salão vendendo as tais capas e que Toni avaliou ser bom momento para ajudar. Mas por que escolher especificamente aquelas? Entre breves reflexões e gargalhadas, ele citou a moda das barbearias “retrô” que se identificam pelo totem em azul, branco e vermelho na fachada, mas percebeu meditando consigo mesmo que talvez esta não fosse uma justificativa suficiente. Assim, reconheceu: “Porque tudo de fora é mais bonito! Tudo de fora é melhor, né? Dos Estados Unidos. Não podia ser do Brasil? É complicado. Mas que é bonita, é. É chique, até o cliente gosta. Aí eu comprei logo duas”.
O relato sugere que em seu ethos de trabalhador autônomo há um desejo de sucesso arraigado no individualismo popular, o qual tanto ele quanto seus concorrentes perseguem, e cuja expressão soberana é o sonho americano, substituído nesse caso pela vida em São Paulo, mais próximo de sua realidade, assim como os cortes de cabelo da moda que Toni enaltece são os dos cantores sertanejos e dos jogadores de futebol, símbolos contemporâneos de sucesso. Apegado a essa combinação de ambição com realismo, sua finalidade não é enriquecer, mas viver bem, resumida em um apartamento próprio, um carro, um dia de lazer por semana e uma visita anual aos parentes distantes.
Trata-se novamente de um senso prático que o prende à terra firme, um objetivo palpável que, com perseverança, é possível alcançar. Evidentemente que a própria ideia de que “tudo que vem de fora é melhor”, dita de maneira tão peremptória, aplica a esse senso prático uma descrença quanto ao país real, que pode ser paralisante, entorpecedor, estreitando ao indivíduo e à família o horizonte de expectativas. A saúde é garantida pela frequência matinal à academia e por um plano de saúde privado. De público, só a escola do filho, que se depender de Toni será cabeleireiro como o pai.
Pontuando frequentemente seus pensamentos com a expressão “é complicado”, Toni, contudo, lida com a vida de maneira bastante simples. Não gosta de fazer dívidas, nem de pagar aluguel. Trabalha de segunda a sábado, e no domingo faz a faxina do salão, antes de ir para o futebol. Sua rotina se intensifica conforme a semana vai terminando, culminando no sábado, dia em que aponta sentir mais cansaço, mas não chega a reclamar. Pelo contrário, justifica o futebol de domingo não pelo lazer, mas porque “nessa profissão, você tem que se cuidar, senão a barriga cresce muito”, sugerindo que, por mais que passe muito tempo no salão, não chega a ser uma rotina muito exigente.
A fuga do trabalho exaustivo, mesmo quando implica perda de direitos trabalhistas, não é facilmente admitida por autônomos que deixaram voluntariamente a segurança da CLT, já que isso escapa à narrativa da ascensão pelo trabalho duro. Mas é essa revelação que emerge de certas decisões, que alguns caracterizam como pela qualidade de vida. Toni demonstra ter muita consideração por Sueli – apesar de parecer não ajudar muito nas tarefas domésticas. Ele fala com orgulho da esposa, destacando justamente o quanto ela é “guerreira”, enumerando as tarefas que ela acumula ao longo do dia, com e sem remuneração – as faxinas eram sua principal fonte de renda na época da entrevista. Por vezes, passa inclusive a impressão de que acha que seu trabalho é menos intenso que o dela, e a respeita por isso.
Assim como o marido, a trajetória de Sueli no mundo do trabalho, que começa aos quinze anos na roça de Euclides da Cunha, a faz valorizar o presente: afirma que gosta da “correria” de São Paulo, onde pretende viver a vida toda, e que não aguenta muito tempo de visita aos parentes no sertão, porque acha “tudo muito parado”.
A centralidade do trabalho na vida dessas pessoas é absolutamente incontornável, mas a sujeição ao trabalho intenso, não necessariamente. O caso de Sueli é ainda mais contundente nesse aspecto: trabalhou por doze anos em um restaurante de shopping da zona oeste até chegar a gerente; depois de quatro anos na função, pediu as contas por causa do estresse. “Depois que meu filho nasceu, eu não tinha tempo nenhum pra ele, então eu preferi sair de lá e ficar assim, como a gente fala, fazendo bicos, né? Pra poder ter mais tempo pra ele”, conta ela. Na época, trabalhava seis dias por semana, com um domingo de folga por mês. Sua primeira opção para não ficar sem renda nenhuma foi tentar a profissão do marido. Fez o curso de cabeleireira e ficou na área por um ano, tempo suficiente para perceber que trabalhar por conta própria pode ser ainda mais difícil.
Por que você não continuou no ramo de cabeleireiros?
Porque a gente se ilude, né? [risos] A gente pensa que o ramo de cabeleireiro é um ramo bom, que dá uma boa renda. Na verdade, não. Se você tiver seu próprio salão até vai, mas pra trabalhar pros outros, não. A gente trabalha 12 horas por dia e no final do mês o dinheiro não dá pra pagar as contas [risos], aí eu acabei saindo por isso também, porque a renda não tava mais sendo suficiente, era pouca, porque não tem salário fixo, é só o que você faz (Sueli, 2020) .
É uma encruzilhada onde vivem os trabalhadores pobres, mas não tão pobres, caminhando sempre sobre uma corda bamba em que precisam escolher entre estabilidade, rendimentos e qualidade de vida, e dificilmente conseguindo conciliar tudo ao mesmo tempo. No ramo da estética, Sueli aprendeu que a contratação por PJ não passa de uma subordinação disfarçada, de ritmo mais intenso e com ainda menos garantias. Para Toni, ainda jovem, sem filhos e sem qualificação formal, foi tolerável até conseguir o próprio salão, mas Sueli não estava nesta situação quando mergulhou na roda-viva. Cabe notar ainda que, para além da questão financeira, a escolha de Sueli seria incompreensível para a tese da racionalidade neoliberal também pela renúncia ao valor simbólico com que seu trabalho era percebido, sobretudo em comparação com a atividade de faxineira que passou a exercer afinal e que carrega um significativo estigma de subordinação e humilhação (Castro, 1992). Sucesso não é o seu critério.
De todo modo, apesar de multiplicar as atividades nas quais trabalhava, incluindo também bicos de costura, Sueli não é de reclamar muito. Diz que trabalha por volta de sete horas por dia, evidentemente sem contar as tarefas domésticas: “aí consigo ficar com meu filho, consigo trabalhar, consigo ver minhas coisas em casa também”. Aceita com resignação que a mudança da CLT para o trabalho autônomo não foi boa financeiramente, mas acha que compensa pelo tempo que aproveita com o filho. A entrevista, por sinal, foi interrompida diversas vezes pelo garoto, que recebia sempre uma reprimenda quando pedia a senha do telefone celular dela – cabe assinalar que estávamos naquele momento em meio à pandemia de covid-19, e as escolas continuavam fechadas. Quando com um resmungo ele se afastava, Sueli dava um discreto sorriso.
A consideração sobre o trabalho doméstico ser dividido de maneira desigual entre o casal, assim como o fato de ela ter descartado um emprego registrado, não é rejeitada por Sueli, mas também não lhe causa estupor, porque sua prioridade não é a sua vida profissional, mas sim a família, lugar em que as peças se encaixam, que lhe provê a segurança de uma vida estável. Por isso o empreendedorismo de Toni e Sueli está subordinado, antes de tudo, ao projeto familiar. Contudo, seu futuro imaginado está atrelado ao ideal de autonomia e de vida digna em que ele finca raízes:
Eu não pretendo enricar, mas que você tenha o mínimo de conforto, o mínimo de conforto eu pretendo ter, né? Pra poder dar pra sobreviver bem, não precisar ficar tão apertada, mas não tenho pretensões milionárias não, que é bom se manter com o pé no chão. Tem que ter expectativas que você consiga cumprir, não uma coisa que seja impossível, né? Então, as metas têm que ir subindo devagar, você vai colocando metas pequenas e conforme você for melhorando, você vai colocando uma coisa mais alta. Mas por enquanto a meta é essa: conseguir sobreviver sim do meu comércio, mas sem expectativa de ser rica com isso. Viver com o mínimo de conforto possível (Sueli, 2020).
O empreendedorismo deles não se articula discursivamente e atravessa seu projeto familiar de maneira fraca, porém marcante. Mesmo que não tenha sistematizado esses discursos em cursos de formação ou “coaching”, Toni nota pelo movimento da concorrência no bairro que ações inovadoras, muito mais do que reduzirem o valor monetário do seu trabalho, se mostram fundamentais para não ser superado pelos demais, que se “preparam”, aí sim, pelas novas tecnologias de informação. Assim, o alcance desses discursos nos territórios populares de São Paulo se realiza por uma infinidade de mecanismos subjetivos.
Diego: a escolha pelo empreendedorismo
Nos interstícios entre os enclaves fortificados de Santo Amaro, alguns pontos de comércio popular se mantêm em plena atividade, como o calçadão do largo Treze de Maio. Com 36 anos, Diego abriu nas proximidades sua loja de presentes em plena pandemia. E não era a primeira: ele tem mais três comércios no periférico Jardim Ângela, próximos de onde mora – uma loja de roupa, uma floricultura e outra de presentes, como a que visitei.
A loja de Diego foi resultado de “ousadia e planejamento”, como define. Segundo ele, em Santo Amaro não há muita concorrência no seu ramo, pois “os atacados e varejos só têm no centro, então por tudo que eu estudei e planejei, acredito que não tem como dar errado”. De fato, pelo menos até o momento da entrevista, Diego afirmava ter aumentado seu faturamento durante a pandemia, vendendo pelo WhatsApp e pelo Facebook enquanto suas outras lojas permaneciam fechadas. Ele mesmo fazia as entregas, até cinco quilômetros distantes. Acostumado com a carência do Jardim Ângela, a cerca de nove quilômetros dali, Diego experimentava uma sensação de ascensão social proporcionada pelo convívio em um bairro mais central, onde os salários são mais altos e o público mais impessoal, para quem ele vendia seus produtos a preço mais caro e sem pechincha. “Hoje nós temos um produto aqui a 100 reais, a pessoa paga tranquilamente e raramente pede desconto. Lá o mesmo produto eu tenho a 70 reais e a pessoa pede desconto ainda, então o valor agregado é muito pouco em bairro”, comenta.
Há cerca de cinco anos, ele deixara seu emprego de gerente na loja de uma conhecida rede de assistência técnica e produtos automotivos, onde tinha a carteira assinada. Diego diz que já tinha o empreendimento “engatilhado”, pois viu nele uma “capacidade maior” do seu conhecimento. Ele é formado em Recursos Humanos, com pós-graduação em Psicologia na mesma universidade privada localizada ali perto, no largo Treze. Completou seus estudos sem nenhuma bolsa ou financiamento por escolha própria, ainda que tivesse condições de pleiteá-los. Apesar de não exercer a profissão, acredita que sua formação universitária é fundamental para lidar com pessoas e conhecer futuros parceiros; além do mais, valoriza o conhecimento adquirido, pois este “ninguém tira”.
Não vou te dizer que ser comerciante é melhor, porque você trabalha três vezes mais, você não tem férias, não consegue descansar direito. Na empresa que eu estava, realmente o meu salário era bom, mas só que eu sentia que eles não me valorizavam da forma que eu sentia que eu deveria ser valorizado, era para eu estar em um patamar e eu estava em outro e não por falta de conhecimento (Diego, 2020).
Para Diego, a formação universitária representou um ganho de autoestima que, por ora, o impulsiona para empreender com uma confiança notável. É difícil para ele explicar por que ser comerciante seria melhor do que a estabilidade que tinha antes como gerente, bem empregado em uma empresa de porte médio consolidada no mercado. Ele não se sentia valorizado, o investimento no seu capital humano não estava dando o retorno que ele imaginava. Diego não queria apenas se manter competitivo e empregado, ele buscou um tipo de satisfação pessoal que o trabalho subordinado não era mais capaz de lhe prover. Assim, colocou em prática uma das características principais de um sujeito empreendedor: não se acomodou e assumiu riscos, mas com um pé na realidade que o cerca, não o fez sem antes se precaver.
Assim, a despeito da crítica ao hábito da pechincha entre seus clientes do Jardim Ângela, é lá que ele tem o seu negócio mais consolidado, e onde não renuncia a certa austeridade quando opta por fazer as próprias entregas. Santo Amaro, por outro lado, anima seu ego e materializa seu futuro imaginado como empreendedor reconhecido, mas ainda não lhe garante isso. Diego colhe os primeiros resultados de seu ímpeto, planejando com cuidado, mas sem deixar de vislumbrar a valorização que acredita merecer. A reivindicação do mérito, por sinal, não lhe ocorreu a partir do que aprendera nos seus cursos, mas do que eles em si acrescentaram ao seu capital humano, uma comprovação desse mérito.
Keila: empreendedorismo como distinção social
Keila, segundo caso de empreendedorismo forte, também se preocupa com isso. Ela atuava no ramo da estética e arrendara há cerca de um ano um sobrado localizado na Chácara Santo Antônio, entre restaurantes chiques e edifícios corporativos, e lutava muito para mantê-lo funcionando na companhia de uma profissional-parceira. Bem diferente da realidade que via no Campo Limpo, bairro periférico onde cresceu e ainda mora com as filhas e o marido; também tinha ali um estabelecimento comercial antes.
Com apenas 31 anos, Keila esbanja a astúcia de quem começou a trabalhar cedo, teve três filhos, sendo que a primeira nunca conheceu o pai biológico, e já há alguns anos toca seu próprio negócio conciliando-o com cursos de beleza e uma graduação paralisada durante a pandemia. Seu sorriso largo transmite um notável otimismo que contrasta com as dificuldades que vinha passando, sobretudo por conta das medidas de isolamento, o que significava menos clientes. Mas ela é dedicada, está convencida do ofício que escolheu e tem ambições que não espera que caiam do céu. Suas opiniões revelam também uma descrença que lhe veio precocemente. Acredita em si mesma e na família, tem os próprios pais como inspiração, não é muito chegada à vizinhança do Campo Limpo e carrega uma religiosidade moderada de quem foi criada católica, passou pela umbanda e pelo pentecostalismo, mas concluiu que tem uma “comunicação muito forte com Deus”, e isso lhe basta por ora.
Sua trajetória no mundo do trabalho, até se encontrar no ramo da estética, foi no setor de call center, onde trabalhou por nove anos até que não aguentou mais a rotina estressante e a insatisfação pessoal. Apesar de poupar as empresas em que trabalhou, ela admite que seus horários eram sempre milimetricamente calculados e exaustivos; mas, demonstrando que apreendeu bem a lógica empreendedora, afirma que “o problema não era a empresa. Hoje eu percebo que o problema era eu, porque eu não gostava daquilo que eu fazia”. À época, Keila já tinha feito um curso de depilação de sobrancelhas e colocou na cabeça que faria isso para a vida.
Começou um curso técnico de estética nas proximidades da sua casa, no vizinho Capão Redondo, e continuou sua busca por qualificação enfileirando uma especialização atrás da outra, enquanto trabalhava nos salões do bairro, “e aí percebi que aquilo tava pouco pra mim […] quando eu voltava não tinha esse retorno do pessoal do bairro, e não porque as pessoas não podem pagar, é porque as pessoas valorizam os profissionais de fora”. Com família e contas a pagar, Keila se aplica especialmente nas lições práticas da vida e do ofício: “a mão na massa”, o retorno garantido, o custo-benefício – valores e preceitos que o empreendedorismo fortalece.
Essa lógica empreendedora Keila carrega para ambas as direções da sua vida, a pessoal e a profissional, em que, como em uma casa de espelhos, se reflete o senso prático de uma na outra. Seu curso de fisioterapia, que estava trancado naquele momento, seguiu o mesmo critério: a escolha pela estética não foi uma profunda elucubração sobre seus talentos e sonhos, mas sim baseada nas necessidades do aqui e agora, nas quais ela pôs em prática sua experiência como irmã, como mãe e como mulher independente. Uma identidade que funciona para ordenar ao mesmo tempo a vida doméstica, a relação conjugal, seus julgamentos sobre feminilidade e a ética empreendedora. Como síntese desse raciocínio, ela menciona o clássico samba-canção “Ai, que saudades da Amélia” como a representação que uma mulher empreendedora como ela deve rejeitar. “Eu sempre falo que tem mulher que é Amélia, que não gosta de empreender, e tem as empreendedoras que não gostam de ser amélias.”
Keila está “engajada no MEI” e com o discurso afinado com o ethos empreendedor. Não disfarça as dificuldades que passa, mas na conversa elas não aparecem de imediato. Há de início o elemento familiar, que justifica sua busca por autonomia, por fazer os próprios horários e ter mais tempo para os filhos. “Eu queria ser dona de mim, só que não é tão bonitinho assim”, conta com a melancolia entrecortada por altas gargalhadas, tecendo formulações que não costuma fazer no seu dia a dia. “Dá uma sensação de autonomia com os desafios, então eu gosto de empreender.” De modo que, convidada a elaborar suas dificuldades, ela relativiza a responsabilidade individual, como quando sugere ter feito tardiamente um curso de finanças que poderia ter lhe dado melhores condições de administrar seu salão. “Eu acho que aqui no Brasil a educação financeira tinha que vir desde o ensino fundamental, mas o governo não quer que o brasileiro seja inteligente, então…”
Qual é o cálculo, então, que rege seu destino? Qual é a razão que a governa, se até mesmo seu emprego no call center não parecia, nas suas palavras, tão ruim, na medida em que garantia bons benefícios, além das vantagens próprias da carteira assinada? E mesmo na sua trajetória por conta própria, são escolhas em que, do ponto de vista econômico em sentido estrito, não encaixam suas peças. Por exemplo, ao explicar por que quis deixar de atender no Campo Limpo, seu dedo aponta para a clientela, que na periferia gosta de pechinchar e reclamar do valor do serviço, enquanto na Chácara Santo Antônio há uma etiqueta que não permitiria esse tipo de atitude – à diferença de Diego, contudo, que preferiu manter seu negócio na periferia aberto. Mesmo assim, ela sabe “que os salões do bairro [Campo Limpo] normalmente no final de semana estão bombando. Aqui, final de semana você pode abrir que você não atende, basicamente não tem público pra cair no final de semana”, conta. Mas o fato é que ela tem menos clientes no bairro de classe média alta e seus custos são maiores, e mesmo o golpe causado pela pandemia não parece motivo suficiente para recomeçar.
Richard Sennett (2012, p. 24) vê na cultura que proclama mudanças de curto prazo, em seu caráter episódico e fragmentário, um “teste de caráter” em que “o importante é fazer o esforço, arriscar a sorte, mesmo quando racionalmente se sabe que está condenado a fracassar”. A sensação de desvalorização diante do tamanho que a ambição de Keila alcançou é o que torna voltar a atender no seu bairro periférico uma alternativa quase insuportável para ela. A crença no empreendedorismo, que partiu da realidade exaustiva do call center combinada com as promessas de mobilidade social pela busca contínua de qualificação profissional, a colocou num beco sem saída. A ideologia do empreendedorismo manipula essas ansiedades e as administra com pequenas vitórias que reforcem sua miragem de inevitabilidade (Jameson, 1992).
Para Keila, o investimento no seu capital humano só terá retorno quando ela vencer entre as mulheres elegantes que atendia na Chácara Santo Antônio, e assim concretizar seu futuro imaginado de sucesso. Não é mais possível voltar atrás sem frustrações maiores, retroceder para o lugar que seu novo ethos recodificou como degradado e indigno de seus esforços de formação. Sua percepção parecia demasiadamente sustentada pelo merecimento que acreditava ter e pelos primeiros sinais de inadequação com a possibilidade da derrota, um estágio ainda mais profundo do que revelava, por exemplo, o caso de Diego.
Curiosamente, esse ethos reúne a idealização de uma tradição sitiada junto de um articulado discurso de empoderamento feminino que, no caso de Keila, não são excludentes, pois ambos são diferentes expressões de narcisismo e da sombra que ele projeta sobre o desejo humano legítimo de autonomia, cujo resultado é o ressentimento.
Considerações finais
Nos últimos anos, o Brasil tem atravessado uma série de acontecimentos dramáticos que combinaram crises políticas e econômicas, além da emergência sanitária causada pela pandemia de covid-198. Umas das consequências disso foi o crescimento do empreendedorismo, tanto como alternativa ao desemprego e ao desalento, quanto como uma utopia de liberdade individual, em que uma promessa de fuga do sofrimento do trabalho surge da precariedade constitutiva do mercado de trabalho nacional (Costa, 2024a; Dejours, 1999)9.
Este texto descreve as experiências de trabalhadores sem salário que atingiram certa estabilidade – Toni, Sueli e Diego, sobretudo – e eventualmente vislumbram objetivos maiores. Meus interlocutores se apegam a um individualismo cravado na cultura popular, em que senso prático e pés firmemente fincados na terra condicionam suas opções a metas palpáveis. Esse ethos do trabalho duro e paulatino define o êxito, que será alcançado um passo por vez. Evidentemente, quando se atua dentro de margens muito estreitas, a possibilidade de um passo em falso é considerável, relembrando a todo momento como uma parte de seus destinos não se encontra sob seu controle.
Toni e Sueli tiveram escassa qualificação formal, alimentam ambições modestas e elaboram suas experiências sem hipérboles. Não se referem ao empreendedorismo de maneira sistematizada, mas exibem um ethos arraigado à economia moral da vida sem salário ao rejeitarem a rotina exaustiva e a subordinação implícitas à carteira assinada. Toni encontrou parcerias entre outros autônomos, e Sueli tira sua renda principal das faxinas, ofício socialmente visto como subalterno. Esse casal de imigrantes, apesar disso, espelha as transformações contemporâneas nos modos de vida das periferias, pois suas aspirações ressignificam o “sonho da casa própria” dentro de enclaves fortificados e refletem sobre o sucesso exaltando símbolos inequívocos – o sonho americano, cantores sertanejos e jogadores de futebol etc. O caso deles espelha com bastante sutileza a forma como o empreendedorismo penetra na vida sem salário sem que discursos elaborados pelo “neoliberalismo” sejam necessários. Nos territórios populares de uma grande metrópole como São Paulo, empreendedores populares percebem, por exemplo, através da nova concorrência no bairro as exigências para que “inovem”. Às barbearias com estética americanizada, Toni responde com suas capas em vermelho, branco e azul.
Diego e Keila, por sua vez, têm discursos mais articulados e introduzem em suas formas de expressão prescrições típicas dos manuais de autoajuda. Diego, por sinal, tem formação em Psicologia, que afirma ser útil em sua relação com os clientes. Keila, além disso, ostenta seu empoderamento feminino e tem a ambição de se vender para fora da periferia. Contudo, mesmo quando o discurso empreendedor forte desses personagens se emparelha com a fraseologia neoliberal – esta, por sinal, globalizada pelas tecnologias de comunicação, como observa Appadurai (1996) –, não é o cálculo monetário que os motiva, e sim a busca por reconhecimento. Pode-se argumentar que a incapacidade de lidar com o fracasso é uma consequência subjetiva do neoliberalismo. Conforme discutimos ao longo do artigo, é a partir do narcisismo que esses comportamentos podem ser mais bem interpretados, na medida em que ele funciona como uma capa protetora contra um mundo suspeito, fazendo com que certas decisões pareçam incoerentes sob um ponto de vista econômico em sentido estrito.
Seria injusto, no entanto, não reconhecer que, justamente em situações de profunda incerteza, em que apenas a mera reprodução social parece fazer sentido econômico, a expectativa por um futuro melhor é um ativo vital, esperança afinal contida na expressão “o sol brilha para todos” e que impulsiona o empreendedor popular. É essa a astúcia do discurso empreendedor nesses momentos de crise e que o faz sobressair diante da tradicional vida sem salário: ele interpela necessidades reais das pessoas não como uma distração vazia ou mera “falsa consciência”, mas transformando ansiedades em presença efetiva na cultura popular para serem posteriormente “administradas” pelas próprias mercadorias que o capitalismo fornece – literatura de autoajuda e qualificações profissionais, por exemplo (Jameson, 1992; Boltanski e Chiapello, 2009).
Como aponta Hall, não é plausível no mundo contemporâneo imaginar uma cultura de classe totalmente apartada da dominação cultural. Para ele, há uma luta ao longo da história pelas formas da cultura, das tradições e dos modos de vida do povo, pois a reestruturação para uma nova ordem sob o capital impõe um processo contínuo de “reeducação”. Assim, “não existe uma camada separada, autônoma e ‘autêntica’ da cultura da classe trabalhadora a ser encontrada”, diz Hall (1981, p. 229, tradução minha). No cerne desses modos de vida, portanto, está uma relação sempre ambígua entre os preceitos da modernidade e a cultura popular, que se resolve bastante bem na ambição modesta de Toni e Sueli e no tino empreendedor de Diego, que vê no popular sobretudo oportunidades de negócios.
A vida sem salário é o chão em que essa luta entre submissão e resistência ocorre: a despeito de quem tem conseguido maior êxito, meus quatro interlocutores veem obstáculos e inimigos que precisam superar. A identidade empreendedora lhes restabelece a dignidade, mas tanto Keila como Diego parecem prisioneiros do descontentamento com o que veem como desvalorização do seu mérito. Keila especialmente parece disposta a mais sacrifícios para fazer parte de um estilo de vida distante de sua origem popular e demonstra grande apreço por marcas de distinção social (Bourdieu, 2007), isto é, o bairro elegante e a possibilidade de frequentar espaços de prestígio – expectativas que não se sustentam no mero cálculo e que, até o momento, lhe causavam grande sofrimento pelas oportunidades escassas e pelo risco de ter que dar passos para trás.
Justamente quando o discurso empreendedor se torna essencialmente ideológico e aplaca o interesse na realidade social da periferia ou da comunidade de origem, caso de Keila, é que ele mostra seu caráter francamente meritocrático, narcisista e potencialmente autodestrutivo. O empreendedorismo se revela então como o que é, um sintoma do sobrevivencialismo descrito por Lasch (1991) e de uma sociedade de indivíduos presos à própria necessidade de satisfação.
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2
. De acordo com Feltran (2011), o projeto do trabalhador foi constituído e sustentado por moradores destes bairros durante as décadas de 1970 e 1980, e consistia na ascensão social via participação em movimentos sociais, autoconstrução da moradia e trabalho fabril.
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3
. Um interlocutor desta pesquisa, gestor de uma organização social que promove cursos de empreendedorismo, me explicou nos seus termos que “a cultura das famílias na periferia ainda não é empreendedora” (Costa, 2024a; 2024c).
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4
. Eu me amparo na definição de Hall, para quem não existem “culturas” separadas e ligadas, em uma relação historicamente fixa, a classes específicas. Por sua vez, a cultura popular refere-se à “cultura dos oprimidos, das classes excluídas: é a esta área que nos remete o termo ‘popular’” (Hall, 1981, p. 238).
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5
. Como observou Blokland (2003), a percepção de Weber sobre a modernização não a via como uma transição unilinear entre os valores e a razão instrumental, mas percebia a multiplicidade das mudanças nas relações sociais.
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6
. Como observa Martelli (2010, p. 217), se por um lado o fenômeno da autoajuda aumenta o fardo do indivíduo na busca de sua própria cura, “numa sociedade em que a regra é a busca pela satisfação de prazeres momentâneos, a autoajuda ganha espaço considerável, pois responde questões individuais de forma simples e rápida dando a sensação de que é viável alcançar as mudanças desejadas num curto espaço de tempo”.
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7
. Os nomes dos interlocutores foram alterados para resguardar sua privacidade.
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8
. Segundo o IBGE, às vésperas do início da pandemia de covid-19, a taxa de desemprego estava em 11%; o país terminaria 2019 com 19,4 milhões de trabalhadores por conta própria na informalidade, quase 2% a mais do que em 2018. Já o número de microempreendedores individuais saltou de 7,7 milhões para 9,4 milhões em um ano.
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9
. Como observa Thiago Canettieri (2024), a compreensão do papel das periferias na reprodução das relações sociais capitalistas parte de uma “integração negativa”, em que sua inserção no sistema do capital ocorre pela exclusão das formas básicas de sociabilidade do valor, embora ainda seja determinada por elas.
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Editor
Alexandre B. Massella
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Set 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2025
Histórico
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Recebido
29 Out 2024 -
Aceito
13 Fev 2025
