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A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro

RESENHAS

Paula Vedoveli

Mestranda no IRI - PUC-Rio e bacharel em História na UFRJ

João Marcelo Ehlert Maia, A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008, 223 pp.

A análise de produtos culturais, especialmente de textos e ideias, está longe de constituir um campo epistemológica e metodologicamente homogêneo ou, no mínimo, consensual. Nas diversas áreas do conhecimento que se dedicam a analisar a relação entre texto, autor e contexto, como a sociologia, a história e a crítica literária, podemos observar um continuum no qual em um de seus extremos estaria hipoteticamente localizado o contextualismo, ou o reducionismo ao chamado "contexto", e no outro teríamos variações, de um lado, da autonomia do autor (em geral, perspectivas associadas à genialidade do indivíduo e informadas por alguma filosofia da história essencialista) e, de outro, da autonomia do texto, como sistemas de signos fechados ou como sistemas que emergem da intertextualidade.

Assim, um estudo que se pretenda uma análise do pensamento social informada sociologicamente, se bem-sucedido, constitui-se em uma importante contribuição para os debates que em muito se pautam pela disputa acerca da proeminência de um dos eixos desse tripé. Para essa proposta os riscos são muitos; afinal, como analisar o pensamento de um autor sem: a) reduzi-lo à explicação de um determinado contexto que informaria e conformaria as preocupações e as soluções dos autores, tornando suas ideias funções do meio; b) torná-lo uma função da individualidade do autor, apelando para variantes de um individualismo ontológico essencialista; e c) ignorar essas duas variáveis e afirmar a total independência do texto, numa perspectiva que desmonta a autoria e a historicidade das ideias?

De certa forma, o livro A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro, de João Marcelo Ehlert Maia, é uma tentativa de resposta a tais dilemas que continuarão a ocupar, indefinidamente, as mentes de estudiosos de textos, imagens e demais produtos culturais. Preocupado em analisar o lugar do espaço nos escritos de Euclides da Cunha e Vicente Licínio, engenheiros e escritores republicanos, o primeiro desafio de Maia é não se render completamente a uma hermenêutica internalista, como a de Gadamer

A resposta para essa proposta de análise do pensamento social informada sociologicamente está em entender o espaço como categoria simbólica e discursiva, cujos limites e possibilidades estão delineados nas experiências que constituiriam o ethos de seus autores. Assim, o espaço não é meramente uma variável cientificista que determina o comportamento dos atores, mas o lugar da imaginação, sítio de possibilidades e ideia-força que orienta, para o pensamento de Euclides e de Vicente Licínio, concepções de modernização e de processos civilizatórios que se distanciariam do tradicional modelo europeu.

Entender a configuração do espaço simbólico, por sua vez, depende da compreensão do ethos que anima tais personagens a mobilizar essa categoria e a fazer dela um eixo constitutivo de suas propostas políticas. Nesse sentido, o que pode informar a configuração de tais ethos que não a recorrência a qualidades subjetivas e individualistas, muitas vezes sublinhadas por biógrafos? Novamente, a solução encontrada por Maia - fruto de seu diálogo com os trabalhos de Maria Alice Rezende de Carvalho

A escolha seria ingrata caso Maia não conseguisse de fato demonstrar que o mundo dos engenheiros conforma sensibilidades - o que ele adequadamente denomina de experiências sociais e intelectuais; em seu argumento, fica especialmente claro o papel do positivismo na formação individual e no entendimento de Euclides e de Vicente Licínio como agentes organizadores de sua sociedade, fato que faz Maia cunhar o termo "americanismo positivista" de forma a demonstrar a ligação entre esse código moral e a busca pelo desenvolvimento de traços americanos no Brasil republicano. Da mesma forma, é decerto relevante a constatação de que os engenheiros como grupo não se encaixavam confortavelmente na hierarquia social da Primeira República, que priorizava os bacharéis oligarcas e não necessariamente os self-made men americanistas, e essa situação se expressava na manipulação do espaço como categoria que abria possibilidades de uma modernização que não necessitava referenciar-se a uma tradição essencialista da história brasileira e, com isso, não reificava seu arranjo social.

O brilhantismo dessa escolha teórica - que de fato se apresenta como uma alternativa bem-sucedida aos dilemas já enunciados - não pode ser necessariamente estendido a toda e qualquer análise do pensamento social, nem tomado em termos absolutos. Isso aceitando que falar em inscrição sociológica e experiências sociais e intelectuais é uma opção que atenua determinismos de contexto e de autoria, mas não é uma solução formatada para aplicação e estudos de casos - pelo contrário, seu emprego pode ser sinuoso, pois quais fontes devem ser utilizadas para caracterizar o ethos dos pensadores ou, mesmo, que tipos de dados são suficientes para caracterizar essas experiências que constituem os caminhos dados às ideias dos autores?

Mesmo no trabalho criterioso e muito bem informado de Maia, o leitor pode sentir falta de uma análise mais detalhada das tradições intelectuais e das redes de sociabilidade que envolvem os intelectuais do período, de forma a entender como os exemplos de Graça Aranha, Ronald de Carvalho e dos simbolistas cariocas se associam às experiências de Euclides e Vicente Licínio para além da apresentação de alternativas ao uso da categoria da terra em suas chaves de pensamento. Tal detalhamento poderia ser importante para entendermos os distintos usos da categoria terra entre esses três grupos e sua relação com os projetos políticos que os animariam - o fato de Graça Aranha e Ronald de Carvalho serem diplomatas de alto escalão, por exemplo, certamente pode estar relacionado com as ambiguidades que Maia aponta na utilização da categoria terra na fundação da tradição para o pensamento desses autores.

Por outro lado, a densidade das perguntas e dos argumentos desenvolvidos ao longo do livro o tornam um trabalho semelhante a um tecido muito bem trançado, cuja densa trama denota sua coerência e consistência. Ao mesmo tempo em que temos uma série de perguntas sendo respondidas ao longo da obra, que ajudam a construir o argumento principal do autor, tais questionamentos só são passíveis de serem feitos e satisfeitos dada a capacidade de Maia em utilizar trabalhos inscritos nos registros de diversas disciplinas, com a clareza de que o seu objeto requer um estudo interdisciplinar, não restrito necessariamente às matrizes sociológicas. A maestria com que Maia faz uso dessas diversas contribuições é central para a construção de seu argumento e torna difícil redigir críticas pautadas pelo desconhecimento de autores ou pelo uso inadequado de tais referências.

Contudo, e mesmo que os pontos positivos desse arranjo superem uma ou outra defasagem, a densidade da trama do livro às vezes pode dificultar a compreensão, principalmente por dois motivos. Em primeiro lugar, porque muitas vezes o sentido da narrativa não é evidente para o leitor, isto é, a concatenação de capítulos e problemas pode fugir à percepção do leitor que, como eu, se pergunta a função da análise dos escritos de Graça Aranha, Ronald de Carvalho e dos simbolistas cariocas para o estudo dos textos de Euclides e Vicente Licínio, questão que só se torna mais clara ao longo dos dois capítulos finais e, mais especificamente, na conclusão. Tal fato gera certa ansiedade ao leitor que sabe estar sendo conduzido mas não tem clareza da trajetória, dado que, especialmente, a pergunta central está diluída e não é explicitada no texto, o que permitiria a subordinação dos outros questionamentos realizados ao longo dos capítulos. Esse traço não questiona a imponência da obra, apenas pede paciência aos leitores mais inquietos.

O segundo ponto refere-se a temas centrais à argumentação e que só aparecem definidos após larga utilização no texto. Isso não significa que não haja clareza conceitual; pelo contrário, em muitos momentos Maia preocupa-se em definir conceitos como "sociedades periféricas", "força da terra" e "Rússia Americana" - este último, pilar da conclusão do livro. O leitor tem que estar atento ao fato de que as ideias de americanismo e americanidade, largamente utilizadas ao longo do trabalho, só encontram definição parcial no capítulo dedicado a Vicente Licínio, quando Maia discorre sobre o americanismo no pensamento latino-americano. Isso, contudo, não erradica as ambiguidades próprias a essas ideias, que são também associadas às diversas propostas de modernização e que, por sua vez, encontram sugestões de caminhos civilizatórios distintos na manipulação da categoria da terra por Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Euclides da Cunha e Vicente Licínio.

Essas pontuações ao texto de Maia, entretanto, não obscurecem a importante contribuição que sua tese de doutorado - hoje transformada neste livro - adicionou às ciências sociais, especialmente à área de estudos sobre textos e pensamento social brasileiro. Entender a terra como espaço simbólico e espaço de invenção foi fundamental para desvelar as propostas de modernização e civilização encontradas nos livros e ensaios de Euclides e Vicente Licínio, e como tais ideias poderiam estar associadas a uma vontade organizadora proveniente da absorção do positivismo como código moral e da afeição que os autores demonstravam por um americanismo propulsor de um tipo de modernização que, para tanto, superava as tensões com a tradição iberista - ambíguas para Graça Aranha e Ronald de Carvalho.

Contudo, a surpresa - ou o grande salto argumentativo do texto - encontra-se no desenvolvimento da ideia da "Rússia Americana". Afirmando que a manipulação da categoria do espaço por esses pensadores da Primeira República possibilitaria uma nova cartografia intelectual que aproximava o Brasil de outras sociedades periféricas, isto é, de organizações sociais cujo desenvolvimento não se pautou pelo padrão europeu, Maia demonstra o quanto o principal eixo comparativo foi firmado diretamente com a experiência russa. No caso de Euclides, porque a Rússia exemplificava o seu argumento da transfiguração da barbárie, da ocupação de terras por meio de povos que conseguissem adaptar-se lentamente aos desígnios da "força da terra", problema que o padrão civilizatório litorâneo não conseguia resolver. Já no caso de Vicente Licínio, porque a intelectualidade russa exprimia, segundo seu ponto de vista, os mesmos problemas de marginalização e inadequação que Licínio estaria apresentando como engenheiro periférico e escritor, os quais possivelmente seriam solucionados com o recurso a um americanismo fordista, como bem aponta Maia.

Afinal, a nossa "Rússia Americana" serviria para resolver um problema que Maia entende como fulcral para a nossa modernidade, colocado nas primeiras páginas de sua Apresentação: "Qual é o lugar do Brasil em um contexto internacional que parece rearranjar as tradicionais geografias que estruturavam a divisão 'centro-periferia' e permitir a emergência da Rússia, da China e da Índia, para ficarmos apenas em três regiões, até aqui bem pouco incorporadas ao nosso campo de observação?" (p. 9).

Ao entendermos que essa Rússia Americana se apresenta como uma matriz civilizatória alternativa e não essencialista, isto é, não presa a uma narrativa ontológica da tradição e a códigos morais que a informariam, a resposta não deixa de aparecer nas últimas páginas de sua Conclusão. Nesse ponto, Maia é direto e faz jus aos pensadores a que se reporta: "Na matriz construída a partir de uma sociologia da terra, desenhada por dois peculiares engenheiros, estaria uma pista para o reencontro do Brasil com uma experiência intelectual e política que se abre para o mundo moderno e alarga o universo da imaginação modernista. Este parece ser o caminho mais instigante para articular a questão nacional e os dilemas da civilização contemporânea" (p. 206).

Maia demonstra, assim, que o estudo do pensamento social brasileiro não deve restringir-se a análises historicistas que circundam o autor em seu tempo. Recuperar os pensadores brasileiros é, portanto, uma maneira de aumentar a nossa capacidade de reflexão sobre os questionamentos contemporâneos, incorporando perspectivas, abordagens e propostas construídas em outro tempo, certamente, mas cujas problemáticas parecem manter-se vivas em tempos modernos.

Dadas as impressionantes contribuições teóricas e empíricas e a grande qualidade analítica do livro A terra como invenção - resultado da primeira tese de doutorado a ganhar o prêmio da prestigiosa editora Jorge Zahar -, podemos esperar para o futuro importantes contribuições de João Marcelo Maia para a compreensão do pensamento social brasileiro.

Notas

  • 1 Hans Georg Gadamer, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica Petrópolis, Vozes, 2003.
  • 2 Quentin Skinner, As fundações do pensamento político moderno São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
  • 3 Michel De Certeau, A escrita da história Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982.
  • 4 Maria Alice Rezende de Carvalho, O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil Rio de Janeiro, Revan, 1998.
  • 5 Luiz Werneck Vianna, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil Rio de Janeiro, Revan, 2004.
  • 1
    , ou a um contextualismo histórico, como o de Skinner
  • 2
    , mas postular uma abordagem que não entenda o espaço apenas como entidade geográfica e sim como categoria capaz de concatenar problemas sociais mais amplos e de entender suas ressignificações em associação com as experiências sociais e intelectuais de seus autores, em uma perspectiva que incorpore o lugar social
  • 3
    de forma constitutiva sem tornálo determinante em demasia.
  • 4
    e de Luiz Werneck Vianna
  • 5
    está em entender a inscrição sociológica dos autores por meio de sua formação educacional e do
    ethos que essa formação e consequente escolha de profissão acarretam em termos de forma de pensar e de
    status social. Tornam-se, portanto, informações essenciais entendermos o lugar social dos engenheiros na Primeira República e os traços que essa profissão induz no caráter do indivíduo - no caso, constituição do positivismo como código moral, afeição ao americanismo e tendência a se entender como agente organizador da sociedade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Fev 2010
    • Data do Fascículo
      2009
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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