Resumo
Os mercados populares são marcados por intensos jogos de poder e de interesses. Aqui são conformadas e disputadas formas de controle, coerção e vigilância, por vias legais e extralegais, acionando no mesmo passo dispositivos agressivos de extração de renda por via da transação de mercadorias políticas e seus avatares, e que também compõem, e se compõem, com os circuitos das riquezas em disputa (Tilly, 1996). Este é o cenário de conflitualidade latente ou aberta em que os trabalhadores que resistem acionam redes de confiança e recursos de ação frente às disputas travadas em torno da lógica de funcionamento dos mercados populares e das formas de governo desses territórios, sobretudo sob o impacto da gestão diferencial da pandemia.
Mercados populares; Ilegalismos; Cidade; Trabalho
Abstract
Popular markets are distinguished by intense power struggles and games of power. Here, forms of control, coercion, and surveillance are both established and contested, by way of legal and extralegal means, while simultaneously activating aggressive mechanisms for income extraction along the transaction of political commodities and their avatars, which also constitute, and are constituted, by the circuits of wealth in contention (Tilly, 1996). This is the scenario of latent or overt conflict in which workers, who resist these dynamics, activate networks of trust and tactics in response to the disputes surrounding the operational logic of popular markets and the governance of these territories, especially under the impact of differentiated pandemic management.
Popular markets; Illegalisms; City; Work
Introdução
O mercado popular do Brás, no centro da capital paulistana, é um território marcado pelo “universo das trocas” (Braudel, 1998) – trocas de bens e mercadorias, de informações, trocas mercantis nas mais diversas escalas. É um território em disputa, marcado por uma conflitualidade aberta ou latente. Em cena, vários atores: empresários locais e transnacionais, pequenos e médios lojistas, trabalhadores ambulantes, agentes e operadores dos poderes públicos.
Este artigo tem por objetivo mostrar que no cerne dessas disputas estão as formas de controle do espaço, de gestão de suas populações e os modos de apropriação da riqueza circulante. Para tanto, será importante considerar o campo político que se constitui na tensão entre as formas de controle e o “universo das trocas” (Braudel, 1998), que afeta modos de resistir e viver em meio ao conflito, sobretudo durante a gestão diferencial da pandemia (Aguiar, 2024). Essa última, mobilizada para justificar a implementação de políticas de limpeza urbana, de expulsão de populações, do aprofundamento de políticas punitivas e das desigualdades sociais; culpabilizando e responsabilizando os trabalhadores por uma tragédia social. Trabalhadores lançados à própria sorte, sem terem o direito ao regime de isolamento social diante de um cenário de caos, prejudicados pela ilegibilidade do Estado (Das e Polle, 2008) para a obtenção dos tardios e limitados auxílios sociais, fundamentais para a manutenção das vidas e tendo que batalhar cotidianamente com o Estado pela sobrevivência. Dessa forma, aprofundou-se todo um campo de conflito em diversas escalas, fruto dos próprios processos históricos e sociais marcados pela recente guinada à direita conservadora punitiva (Telles, 2019), cujos efeitos de seu caráter perduraram ao longo da pandemia e permanecem em várias esferas da sociedade brasileira, principalmente nas estruturas de funcionamento do Estado, e nas práticas de seus agentes que, muitas vezes, se dão por vias extralegais.
Nesse sentido, trata-se aqui de mapear e analisar as relações conflituosas entre agentes estatais e trabalhadores urbanos. Nesses mercados se inscrevem distintas práticas de controle e coerção, as quais, por entre tramas institucionais e o jogo oscilante de acordos e mediações políticas, operam nas fronteiras porosas entre o legal e o ilegal. Busco seguir as indicações de Charles Tilly (1996) a propósito dos nexos entre dispositivos de coerção e formação dos mercados, ou, para colocar em outros termos, dispositivos de poder engendrados por meio de práticas de apropriação/expropriação da riqueza circulante nas redes urbanas de acumulação de capital. Em meio a essas dinâmicas urbanas, há um “fazer Estado” por via da construção ou redefinição de instrumentos e instâncias da burocracia estatal que agilizam formas de repressão e expropriação, acomodando projetos urbanísticos e suas facilitações de implementação, ao mesmo tempo que criam privilégios e poder.
Neste campo de conflito e disputas acirradas, os trabalhadores ambulantes constroem suas redes de confiança (Tilly, 2010) e mobilizam recursos de ação como formas de viver e resistir em meio a uma geografia urbana desigual e formas excludentes de gestão do espaço e territórios.
O cenário
Bairro na região central da cidade, o Brás é historicamente marcado por perfil comercial. Na década de 1970, a inauguração de linhas de metrô (a chamada linha vermelha) e de trem da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) estabeleceu a ligação do centro da capital paulista com os bairros mais afastados e os municípios da Grande São Paulo. Este foi um marco na consolidação e expansão do caráter comercial da região. A partir da década de 1980, essa marca foi aprofundada com a concentração de trabalhadores ambulantes no largo da Concórdia (Freire da Silva, 2014). No início dos anos 2000, a região passou a abrigar a chamada “feira da madrugada”, atraindo comerciantes e consumidores de vários bairros, de cidades vizinhas e de outros estados e países (Aguiar, 2024; Freire da Silva, 2014; Hirata, 2015; Rangel, 2021). A chegada da feira da madrugada ao Brás fez com que a região passasse a conferir outra escala de importância no circuito das trocas. Esse movimento em direção ao território tem muito a dizer sobre a riqueza circulante em torno desses espaços. A dissipação da feira da madrugada para o Brás está no epicentro das disputas e conflitos que se desenvolveram no correr dos anos ao redor desse mercado popular.
Originalmente estabelecida na rua 25 de Março como uma iniciativa das organizações dos próprios ambulantes, a feira tinha o objetivo de abastecer os trabalhadores ambulantes, o comércio atacadista e ampliar as vendas para além do “horário comercial”. Diante do seu imediato sucesso, os trabalhadores já experimentavam inúmeras investidas contra suas formas de atuação mediante conflitos, sobretudo com lojistas da região e agentes públicos. Há várias análises sobre o surgimento da feira, como as já bem elaboradas por Freire da Silva (2014), Hirata (2015) e Rangel (2021), e não nos cabe remontar cada uma delas em detalhes. No entanto, é importante entender que está presente em todas elas o conflito, seja entre as próprias organizações de camelôs, seja entre os trabalhadores, seja desses com o poder público, e também com os lojistas e empresários locais e transnacionais. Mesmo transferida para o Brás grande parte da estrutura da feira, ela permanece coexistindo na rua 25 de Março. O que ocorreu na verdade foi o aprofundamento da disputa pela apropriação e concentração da riqueza circulante no local.
São inúmeros conflitos travados em torno do controle do mercado ao longo das últimas décadas, tanto na tentativa de confinar os trabalhadores em áreas fechadas ao funcionamento do comércio da madrugada (Hirata, 2015) – como no caso do antigo Pátio do Pari1, onde ocorria a principal estrutura da feira; quanto no controle do comércio nas ruas daqueles que não conseguiram se inserir nos acordos entre os atores que faziam a administração da feira, diante da cobrança de pontos, propinas, ameaças etc.
Além disso, as constantes intervenções do Estado – seja se beneficiando dos acordos firmados de forma extralegal, seja fazendo parcerias com os setores privados – acabaram por empurrar cada vez mais trabalhadores para as inseguranças das ruas, onde constantemente são alvos das políticas de gestão e controle do poder público, muito bem acompanhado de todo um aparato de segurança urbana, ainda mais com as mudanças nas formas de governo da cidade para um modelo “securitário-militar” (Idem), como será visto adiante.
Com o rápido crescimento e popularidade, sobretudo pela diversidade do comércio atacadista e varejista no Brás (principalmente na madrugada, mas também durante o dia), suas facilidades e vantagens econômicas, baixos valores etc., não é de se espantar que o sucesso comercial do mercado tenha chamado a atenção de outros atores. A entrada de empresários transnacionais em cena promoveu novas alianças com o poder público, visando a outros programas de intervenção urbana. Foi armada toda uma megaestrutura com pesado investimento econômico para abastecer e manter todo o comércio.
Em 2018, com a demolição do Pátio para a construção de um novo megaempreendimento chamado “Circuito de Compras Feira da Madrugada” em parceria com setores privados, trabalhadores, que antes estavam no interior do galpão, passaram a disputar espaços com aqueles demais que sempre se mantiveram ali. Ocuparam-se mais ruas, com mais atores, e assim foram se amplificando as disputas pelo controle do mercado e de suas riquezas.
Dinâmica do mercado popular
A partir da meia-noite, inicia-se um intenso movimento de milhares de pessoas percorrendo as ruas da região, sobretudo na confluência das ruas dos bairros do Pari e do Canindé, vizinhos às fronteiras administrativas do Brás. Esse conurbado de ruas destinadas ao comércio é o que tenho chamado de centro comercial territorial, contemplando a expansão das zonas de comércio.
São inúmeros trabalhadores que chegam de diversos cantos da cidade e de cidades vizinhas. Muitos vêm de carro, outros chegam a pé de suas moradias próximas, outros ainda aproveitam os trajetos por transportes públicos antes do encerramento das atividades no início da madrugada. Muitos sacoleiros abordam ao Brás das centenas de ônibus que se aproveitam nos novos estacionamentos. As bancas vão sendo montadas uma ao lado da outra, expondo mercadorias diversas. Lâmpadas luminosas são instaladas no alto das bancas, reforçando a iluminação pública. As lojas começam a abrir nas primeiras horas da madrugada e, por volta das duas horas da manhã, as ruas são tomadas por um mar de gente que, transitando em um labirinto de bancas e suas mercadorias, operam transações comerciais, fazem empréstimos financeiros, agenciam esquemas comerciais, alimentam distintas práticas de trabalho (puxador, carregador de pesado, cafezeiras etc.). É dessa forma que o comércio da madrugada transcorre enquanto o resto da cidade ainda está adormecida.
Cada “pedaço” do centro comercial territorial é organizado e gerido por agrupamentos diferentes, os quais têm origens diversas, que vão desde a cooperativa de trabalhadores, entidades, associações e até grupo de agiotas. Cada um desses atores possui dispositivos de atuação (com práticas mais ou menos violentas) para se organizarem: valores de compra e venda de ponto, aluguel de espaço, contribuições para o pagamento da energia elétrica para a madrugada, negociações e acordos com agentes do Estado feitas e refeitas a depender dos interesses de momento.
Os pontos na rua são previamente demarcados por meio de contratos, alguns informais, de compra ou locação estabelecidos pelos agrupamentos responsáveis pela organização dos espaços. Não poucas vezes, os agiotas atuam cobrando sua parte confiscando bancas, no caso de endividamento não pago. Os preços de um ponto podem variar entre 50 mil reais e 200 mil reais, dependendo da sua localização e com quem se está negociando. Ademais, os trabalhadores precisam pagar uma taxa de manutenção e segurança da rua para os grupos que fazem a organização da feira, evitando que outros ocupem seus espaços.
Em alguns casos, é necessário fazer o rateio da conta de energia, nos lugares onde foi instalado um relógio de fornecimento de luz, em resposta às inúmeras denúncias de instalação de “gatos”. Nas ruas em que persiste o uso de “gatos”, o serviço também é cobrado. A depender da fiscalização do dia, os trabalhadores pagam uma “caixinha” para policiais e fiscais para evitar a apreensão de suas mercadorias e para tocar os negócios com mais tranquilidade. Também convém pagar por “informantes”, pessoas que compõem as equipes de fiscalização e que fornecem informações sobre o “rapa” – quando, onde, em quais ruas. Esse custo é dividido entre vários ambulantes, assim como o pagamento de “olheiros” que, em pontos estratégicos da região, vigiam a movimentação do policiamento e da fiscalização.
Com o sol querendo nascer, as bancas começando a ser desmontadas, há outros atores parados nas esquinas das ruas, esperando um sinal. São homens e mulheres portando grandes e pesadas sacolas, outros puxando carrinhos abastecidos com as mercadorias que adquiriram horas antes. Estão aguardando a sua vez de ocupar as ruas do comércio e vender o que acabaram de comprar, retroalimentando o comércio da madrugada, durante o horário comercial. Com as bancas desmontadas, soando as seis horas no relógio, alguns homens dispostos nas esquinas e nas extremidades das ruas anunciam com gestos de mão que, a partir daquele momento, já poderiam tomar seus lugares e iniciar uma nova dinâmica do comércio local. São os seguranças particulares da feira, contratados para garantir a organização do local
Mal dado o sinal pelos seguranças, inicia-se a disputa pela ocupação do solo. As lonas azuis e pretas tomam conta do espaço que minutos antes eram ocupados por bancas. Formam-se fileiras de lonas com diversas mercadorias. Os ambulantes ocupam pontos de comércio previamente definidos, reservados, por via de acordos locais mediante o pagamento de uma taxa semanal que pode chegar a 70 reais, outros conseguem trabalhar sem pagar. No início da manhã, as ruas da região se modificam e ganham outros contornos. Os trabalhadores da madrugada que persistem no local além do horário buscam outros espaços para expor suas mercadorias: aqueles que antes ficavam em pontos mais escondidos agora buscam ganhar os pontos mais centrais das ruas, em especial os cruzamentos de esquinas, muito visados pela circulação de consumidores.
Dependendo do dia, esse cenário ganha a presença da volante, uma van da equipe de fiscalização da prefeitura, com seus homens portando coletes laranjas (os chamados de laranjinhas), acompanhados de outras vans com mais fiscais e de viaturas da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar. É o “rapa” chegando. A van estaciona no meio da rua, descem os laranjinhas, e inicia-se a apreensão das mercadorias, muitas vezes acompanhada de práticas de violências e abusos de poder. Seja pela madrugada ou durante o dia, os celulares dos trabalhadores avisam, através de grupos de WhatsApp e Telegram, se haverá operação, por qual caminho a volante está passando, os pontos de movimentação do policiamento etc. É preciso escapar para não ter a mercadoria apreendida. Os trabalhadores começam a percorrer as ruas em busca de um local seguro, fora da mira da fiscalização, guiados pelas mensagens.
Por volta do início da tarde, os pontos de comércio começam a se esvaziar. Algumas lojas, shoppings e galerias fecham suas portas, grande parte dos sacoleiros e turistas já foram embora. No final da tarde as ruas já estão adormecidas. Enquanto isso, do outro lado da região, próximo ao largo da Concórdia, as calçadas em frente à estação de trem e metrô Brás, a sequência da avenida Celso Garcia e arredores estão repletos de um pujante comércio e venda ambulante até por volta das 19h30 da noite. Em suas ruas, poucas bancas regularizadas pelo poder público.
Neste mercado popular circula uma miríade de mercadorias. Em sua maioria peças de vestuários, algumas importadas, sobretudo da China, facilidades pelas rotas comerciais fortalecidas no período mais recente, chegando cada vez mais por vias diretas através do aumento da migração chinesa ao Brasil, destinando-se às galerias, lojas e às comunidades (Freire da Silva, 2018). Outras tantas mercadorias são produzidas no polo comercial da chamada Sulanca no agreste pernambucano (Rangel, 2021), ou então peças costuradas em oficinas instaladas nos arredores e regiões periféricas da cidade. Isto é, há toda uma cadeia de valor que se conecta no mercado popular do Brás. Em outros termos, é toda uma economia política das trocas que modela o mercado e as ações dos atores, atravessados por desigualdades e hierarquias de poder, e pelos mercados políticos de proteção, constitutivos de modos de regulação dos mercados informais (Misse, 2006).
Os trabalhadores, por sua vez, para manter suas atividades face às operações de controle e repressão dos poderes públicos, constroem formas de astúcias (Certeau, 2009), recursos de ação para driblar a fiscalização, evitar a apreensão de mercadorias e garantir o seu comércio. Ambulantes sem licença e autorização legal para suas atividades mobilizam diversos acordos entre eles e os demais atores na rua. A depender de com quem se está negociando, as mediações podem variar: mediações contratuais, como é o caso das associações e cooperativas que possuem cadastro dos trabalhadores com posse do ponto da rua; mediações feitas por meio de acordos verbais para os pagamentos de locação de ponto. Há também formas de extorsão e ameaças em caso de apropriação indevida do espaço – quem não “pagou” para estar na rua e a depender do grupo com quem se negocia, ocorre forte utilização de recursos de violência. Existe uma lógica de organização dos mercados populares, articulada entre diversos atores e por meio de distintas práticas de gestão de espaços, nas fronteiras incertas entre o informal e o ilegal.
Nos anos da pandemia, conflitos, dinâmicas e formas de funcionamento do território passaram por reconfigurações, sobretudo sob impacto de novos projetos urbanísticos dos poderes públicos em parceria com o setor privado, em especial do ramo imobiliário. A partir daí, caracteriza-se um novo momento de disputas em torno do controle e da gestão do espaço público urbano, marcado pelo escalonamento da violência.
O comércio popular na pandemia
É o mês de junho do ano de 2020, o relógio marca 5 horas da manhã, ainda não amanheceu totalmente. Estou entre a rua Tiers e a Alexandrino Pedroso, região do centro comercial territorial. A maioria das lojas estão fechadas. Ao meu redor, uma massa de trabalhadores ambulantes – alguns mascarados, outros com as proteções apenas no queixo – espalhados por todas as calçadas. Aos seus pés, as lonas esticadas no chão com máscaras de tecido, moletons, blusas, camisetas, shorts e roupas infantis à venda.
Com menos consumidores do que de costume, o comércio do Brás continuava suas atividades na medida do possível, de forma não autorizada, contrariando o regime de isolamento social provocado pelo vírus da covid-19. Em questão de minutos, o cenário acima descrito se desfaz, a dinâmica agora é outra. Os ambulantes levantam suas lonas, caminham de um lado a outro com as mercadorias nas mãos. Vão para outro ponto, conversam e esperam, como se alguma coisa fosse acontecer. Minutos depois passam as vans da equipe de fiscalização, com seus muitos laranjinhas; logo atrás, viaturas da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e da Polícia Militar. É essa a equipe responsável pelo controle e gestão do espaço, pelas apreensões e repressão ao comércio ambulante na região.
Mal o rapa passa, os que conseguiram se salvar das apreensões voltam aos seus pontos. Momentos depois, a cena ganha um novo elemento. Agora, por volta das 7 horas da manhã, um homem sai de dentro de um dos shoppings. Mesmo com o edifício fechado, ele transita nas calçadas pedindo aos ambulantes para saírem da frente das portas fechadas e se afastarem dos muros. Com uma arma aparente presa no cós de sua calça, sem portar máscara na face: ele faz a vigilância da calçada. É um policial que, nas horas vagas, atua como segurança desse shopping. De hora em hora a cena se repete. Se o ambulante se recusa a sair, minutos depois as equipes da prefeitura chegam até ele.
Em março de 2020, declarada a pandemia de covid-19, prefeitura e governo do Estado decretaram o fechamento de todo o comércio da cidade. A prefeitura suspendeu os chamados “Termos de Permissão de Uso da rua” e as licenças autorizadas nos quadros do programa “Tô Legal!”, ambos destinados ao funcionamento do comércio ambulante na cidade. No entanto, em abril de 2020, pouco mais de um mês depois de decretada a quarentena, o centro comercial territorial do Brás era um dos principais lugares com os maiores índices de registros de infecção e mortes pela covid-19 (Rodrigues, 2020), segundo os registros oficiais. Até o mês de dezembro do mesmo ano, a região liderava os rankings oficiais de mortes pelo vírus: 257 vidas com nomes, famílias, trabalhos, histórias, a cada 100 mil habitantes. Muito provavelmente, dados subestimados.
Pouco tempo depois de decretado o regime de isolamento social, sem saber se haveria ou não algum programa de assistência social para garantir a sobrevivência, sem nenhuma certeza, a alternativa de milhares de trabalhadores do comércio popular foi retornar ao trabalho, mesmo com os riscos da infecção, sujeitos à repressão dos poderes públicos em nome da “defesa da ordem pública”. A violência que recaiu sobre eles não foi pequena. Foi fortalecido todo o aparato de guerra para reprimir o comércio de rua. Viaturas e agentes da GCM, da PM, muitas vezes acompanhados de cavalaria, do Bope, da Baep, da Rota, e caminhões de guincho entravam em ação, dando reforço policial aos agentes da fiscalização, contando ainda com o apoio de seguranças privados e, por vezes, dos meios de comunicação que tratavam de alertar o poder público sobre as atividades comerciais na região. Mercadorias e equipamentos de trabalho eram apreendidos. A violência física, a marca dessas operações: trabalhadores eram levados ao chão mesmo quando não havia nenhuma resistência, ou mesmo apreensão de mercadorias que sequer estavam expostas sob ameaça de desacato. A conhecida, de longa data, criminalização do comércio de rua ganhava naqueles anos outra escala, pois o que estava em jogo nessa operação repressiva, como iremos ver mais adiante, era a economia política das trocas em uma região disputada por pesados interesses econômicos e políticos.
Na pandemia, a rua foi a alternativa para muitos, não apenas aqueles que estavam habituados ao comércio popular como vendedores ambulantes; outros trabalhadores passaram a comprar mercadorias de ambulantes e fornecedores para revenda, alguns pela internet. Nos períodos mais agudos da pandemia era possível encontrar mais de 10 mil trabalhadores no centro comercial territorial. Esses espaços do mercado popular se reorganizaram em função das condições dadas naqueles anos. Sem a estrutura da feira da madrugada, ônibus e vans de sacoleiros chegavam às escondidas e estacionavam em locais próximos para não serem pegos pela fiscalização. Os motoristas e guias de compras passaram a atuar como intermediários entre os ambulantes e os clientes. Muitos deles vinham sozinhos para fazer a retirada das mercadorias e entregá-las ao consumidor final nas cidades abastecidas pelo comércio popular. Outros sacoleiros, que antes compravam apenas dos shoppings, também tiveram que buscar uma alternativa. Nos shoppings, agora semifechados, os estacionamentos serviam para carga e descarga. Carros entravam um a um para pegar mercadorias e depois davam lugar ao outro que prosseguia com o movimento.
As mercadorias sofreram alterações seguindo a tendência do momento. A principal mercadoria vendida eram as máscaras de proteção facial, essenciais para evitar a disseminação da covid-19. Produzidas por diversas pequenas oficinas espalhadas pela cidade, eram vendidas a valores muito baixos, entre 2 e 5 reais. Para o ambulante, era necessário vender um volume altíssimo delas para ter alguma recompensa no seu negócio.
Nas galerias e shoppings da região, locatários de boxes deram descontos nos aluguéis para que os comerciantes conseguissem manter o negócio até o retorno das atividades comerciais; outros propuseram dividir o aluguel em parcelas que acabavam se desdobrando em outras, e mais outras, postergando e acumulando um endividamento sem fim. Muitos não alcançaram quitar as dívidas e tiveram que entregar o ponto. Alguns shoppings mantiveram o valor integral dos aluguéis de seus boxes, e isso provocou o deslocamento de muitos desses pequenos comerciantes para o comércio de rua, disputando espaços com os ambulantes.
Durante esse período, não havia mais ponto nem pagamento do ponto na rua; quem chegava ocupava o espaço que encontrava. A dinâmica do funcionamento da rua, descrita no tópico anterior, foi temporariamente suspensa e refeita. O comércio de rua passou a ser praticado também por atores que até então ocupavam outros espaços na dinâmica do comércio, ou mesmo por aqueles que sequer trabalhavam ali. Todos esses atores passaram a compartilhar o aumento da insegurança no exercício do comércio, entre as possibilidades de apreensão de mercadorias e a repressão das forças policiais. Tinham que lidar com essa espécie de guerra urbana declarada contra o comércio de rua. Enquanto a cidade dormia, a madrugada no Brás estava mergulhada em conflitos.
Está além dos objetivos deste artigo a discussão do que, em outra ocasião, defini como a gestão diferencial da pandemia (Aguiar, 2024). Entretanto, os elementos trazidos aqui nos ajudam a compreender os desdobramentos atuais das políticas de gestão e controle do comércio popular. Esses anos podem ser vistos como laboratório dos dispositivos de controle e gestão desses territórios em disputa. Mas também foram anos de experimentação, por parte dos ambulantes, de formas de resistência que se desdobraram nos anos subsequentes.
Formas de governo da cidade
Nas últimas duas décadas foram inúmeras as tentativas de retirada dos trabalhadores da rua em nome do combate à pirataria e outros crimes associados ao trabalho ambulante. Tentativas sem sucesso. Estes também foram anos de crescimento expressivo do comércio de rua, acolhendo trabalhadores que perderam seus empregos ou que sequer conseguiram acesso ao mercado formal sob o impacto do desemprego, da precarização do trabalho, do encolhimento do mercado formal de trabalho e da gestão diferencial da pandemia. Grande parte dos recém-ingressantes no comércio de rua passaram a engrossar as fileiras dos que não tinham licença formal para o comércio de rua ou que tiveram suas licenças suspensas em função de políticas cada vez mais restritivas e excludentes de regulação dessas atividades. Parcelas mais precarizadas do mercado popular constituem o contingente que mais cresceu nos últimos anos. A falta de licenças para o exercício de suas atividades os torna reféns de práticas extorsivas e abuso de poder de agentes públicos.
Mas este é também o campo do conflito, alimentado por essas políticas excludentes dos poderes públicos, as quais se processam no ambivalente jogo entre proteção e extorsão, nas fronteiras mutantes entre os que têm mais ou têm menos, ou nulas, chances de se manterem nas ruas. Os aparatos de controle, coerção e violência são acompanhados por práticas extralegais – cobrança de propina, extorsão, achaques, mercados de proteção –, que vão se processando conforme as assinaturas do Estado (Das e Polle, 2008) circulam, no modo como regras, normativas legais “são agenciadas e negociadas, postas em ação nos contextos situados desses territórios, redefinindo a distribuição do permitido, do tolerado e do reprimido […]” (Telles, 2015 p. 525). Nessas disputas em torno das fronteiras da lei, “fronteiras da lei como campo de disputa”, vai se alterando toda “uma cartografia política, tanto quanto a distribuição dos lugares, das posições, das hierarquias na ocupação dos espaços” (Idem).
Os dispositivos de extração de valores por via dos mercados de proteção, sempre no limiar da extorsão, são vários: cobrança de taxa de segurança, ameaça de cassação de licenças, chantagem em torno da ocupação de um ponto ou outro, além da extorsão aberta em troca da preservação de mercadorias e equipamentos de trabalho. As “mercadorias políticas” (Misse, 2006) circulam, configurando um mercado muito rentável e que define, em boa medida, a dinâmica do comércio popular e os modos de gestão de espaços por parte dos agentes públicos, em geral implicados e muito interessados na apropriação/expropriação dessa riqueza circulante. São instrumentos de coerção colocados em ação – de um lado, o acionamento de proteção para garantir o próprio negócio; de outro, formas de extorsão para expandir os meios de concentração da riqueza circulante e que oscilam conforme o local, o tipo de riqueza e os recursos de negociação do pequeno comerciante.
O fato é que se trata de uma região em disputa, colocando em cena um jogo pesado de interesses: a prefeitura e seus ambiciosos projetos urbanos para as áreas centrais da cidade; grupos empresariais responsáveis pelo chamado “circuito de compras” dessa região, com suas inúmeras galerias e os chamados shoppings populares, em conexão com os circuitos financeiros de incorporadoras em um muito promissor mercado imobiliário. Construir um “ambiente seguro para os negócios” é o lema a justificar a virulência das formas de controle e repressão ao comércio de rua. A “cidade livre da pirataria” é o mote dessas operações.
É dessa forma que se vai abrindo espaço para a presença dos empreendimentos urbanos, como é o caso do Circuito de Compras. Instalado no antigo local de funcionamento da feira da madrugada, seus gestores inicialmente passaram a cobrar valores exorbitantes para a locação de um box no local. Triplo processo de expulsão: de partida, valores impagáveis para grande parte dos ambulantes no território; outros foram retirados do local para a construção do prédio que haveria de sediar o novo empreendimento comercial; quanto aos que se dispuseram a arcar com o ônus dos altos valores cobrados pela locação, não conseguiram manter seus negócios por muito tempo, dada a baixa circulação de consumidores no prédio.
Outro importante empreendimento, na forma de parcerias entre a prefeitura e grupos empresariais: a construção de onze shoppings, inaugurados em 2018 por um grupo de empresários transnacionais, a Federação dos Varejistas e Atacadistas do Brás (Fevabras). O fato é que a região central do Brás, com seu entorno imediato, terminou por se constituir em uma promissora frente de expansão de mercados. E é nesse cenário, e por referência a esses jogos de interesses, que se deve situar a agressividade das formas de controle e repressão ao comércio de rua, acompanhada de um esforço sistemático de criminalização do exercício do trabalho ambulante, associado ao crime de pirataria e contrabando, também a supostas vinculações com organizações criminosas e grupos milicianos.
Em trabalhos anteriores (Aguiar, 2013; Hirata, 2015; Freire da Silva, 2014), já era possível acompanhar o “endurecimento das formas de controle na região, em que se conjugam interesses e escalas diversos de poder, tudo isso temperado pela lógica securitária de gestão dos espaços urbanos” (Telles e Freire apudTelles, 2015, p. 524), “aproximando a ordem pública e segurança urbana com o uso da força militar como instrumento governamental privilegiado de intervenção no espaço público” (Hirata, 2012; Freire da Silva, 2014, p. 96).
A ordem era acabar com todos os ambulantes da rua, segundo o então prefeito Gilberto Kassab (2012) em entrevista ao jornal Agora. É importante lembrar que, nesse período (2006-2012), em primeiro lugar houve um
[…] novo design institucional a partir da criação de novas secretarias que, através de suas atribuições próprias, reorganizaram antigas coordenadorias, subsecretarias, autarquias, e outras instituições relacionadas à construção da ordem pública. Em segundo, e como consequência da criação dessas novas secretarias, as prefeituras lançam mão de uma série de programas que de um lado iluminam novas técnicas de aferição, mensuração e identificação de questão da ordem pública, cuja instrumentalização se operacionaliza através da ocupação do território urbano e a territorialização da atuação das forças policiais. Foi assim que alguns anos depois da criação da SMSU (Secretaria Municipal de Segurança Pública), a chamada “Operação Delegada”2, resultado de um convênio do governo do estado de São Paulo por meio da Polícia Militar e da prefeitura da cidade através da Secretaria de Coordenação das Subprefeituras, alterou completamente o modo como o controle do comércio informal se estrutura (Hirata, 2015, p. 96).
A presença de coronéis da PM ocupando os cargos de subprefeito e outras funções do alto escalão da administração pública, como a Secretaria de Segurança Pública, marcou o período. Estava se intensificando cada vez mais um modelo de gestão de controle da cidade por fortes matizes militares, sobretudo nos cargos administrativos e nas vias públicas. Tendência essa que foi mobilizada pela prefeitura de Ricardo Nunes (2021- até o presente) durante o período pandêmico e continuada até os dias de hoje.
Além disso, com a perspectiva de limar o comércio ambulante, foram promulgados decretos de cassação das licenças dos Termos de Permissão de Uso (TPU)3 durante a prefeitura de Kassab (2012-2016), mantidos nas gestões municipais seguintes. Hoje, entre os poucos TPUs existentes, cerca de 1500, 90% deles, estão assegurados mediante uma ação civil pública, sob a justificada jurídica de irregularidades e inconsistências desses decretos. Durante a pandemia, os trabalhadores com licenças e autorizações foram os primeiros a terem seus documentos suspensos como impedimento das atividades no período, e travou-se uma verdadeira batalha com o poder público para retornarem, quando todo o restante do comércio já estava em pleno exercício com perdão, parcelamento e negociação de dívidas em razão dos meses fechados. Enquanto isso, os ambulantes voltavam com dívidas pelo não pagamento das taxas públicas, que continuaram sendo cobradas mesmo quando essas estavam suspensas.
Entre histórias, fatos e rumores que circulam no comércio ambulante, sabe-se da existência de um mercado extralegal em torno das licenças existentes, como é o caso da venda e locação de “pontos de morto”, permissionários falecidos cujas TPUs continuam ativas. O valor da banca também circula como mercadoria política nas práticas de aluguel ou concessão de licenças no nome de alguém que não existe mais, ou quando se faz o reordenamento dos pontos para garantir melhor o benefício para quem o faz.
Em resposta às reivindicações dos ambulantes por novas permissões oficiais, a prefeitura implantou o programa “Tô Legal!” em 2019, durante a gestão do prefeito Bruno Covas (2019-2021). Licença precária, por prazo determinado, sem nenhuma garantia de renovação e que, ademais, não contempla as áreas mais movimentadas de comércio.
A forma como o programa “Tô Legal!” foi implementado e sua lógica de funcionamento sugerem que há todo um mercado de extração da riqueza (extorsão) que se constitui. Tanto em torno das taxas a serem pagas, quanto dos entraves burocráticos para o seu acesso. Armou-se, em torno do programa também, todo um mercado de emissão de autorizações falsas “vendidas” aos trabalhadores desavisados sobre o funcionamento do “Tô Legal!”. Dessa forma, grupos responsáveis pelas falsas documentações arrecadaram altos valores para emitir a documentação ao ambulante, que logo é confiscada pela fiscalização, junto com toda a mercadoria e equipamento de trabalho.
Para muitos, o pagamento das taxas é inviável, a depender de onde se está trabalhando, o que pode gerar um ciclo de endividamento com o poder público, impedindo o trabalhador de renovar ou emitir novas autorizações, ainda mais quando os pontos estão espalhados em zonas menos rentáveis da cidade. Ademais, a renovação não está garantida. Se o ambulante se desloca para um local considerado mais lucrativo, é necessário emitir uma nova autorização. Muitas vezes, para isso, é necessário ter “boas relações internas” com agentes do poder público. Com isso, alimentam-se dispositivos de coerção (expropriação, extração da riqueza) que a formalização não elimina, pois isso passa por acertos e negociações em torno de “mercadorias políticas” para acelerar ou mesmo viabilizar o acesso ao documento oficial. E este é um mercado altamente lucrativo.
São diversas as clivagens de status econômico nesses espaços, entre aqueles que têm mais condições de investir ou alugar um ponto e outros que apenas conseguem se manter no dia a dia nas ruas, contribuindo com algumas “caixinhas”. E nessas clivagens também há variações de coerção e extorsão, conforme o local e eventual situação de poder que o ambulante ocupa no mercado popular. Tudo isso vai colocando em ação atores locais poderosos, como é o caso de funcionários ligados ao poder público vinculados às subprefeituras, que extorquem, ameaçam e propõem saídas para quem “faz o jogo”. Em cada território se ouve falar de alguém da prefeitura que “negocia” para ter uma banca ou para mudar de ponto, acionando práticas clientelistas inscritas no poder público e que operam nas fronteiras embaralhadas do legal e ilegal. São lógicas estruturantes dessas formas de gestão desses espaços da cidade.
Segundo Hirata (2015, p. 114), são as interações decisivas entre atores mercantis e agentes encarregados de seu controle que definem e constituem formas de governo da cidade. São essas interações que também alimentam redes de trocas, que fazem circular mercadorias de origens variadas, muitas de origem duvidosa, pondo em ação agenciamentos locais e territorializados que fazem a articulação entre o informal e os circuitos ilegais das economias transnacionais (como contrabando, pirataria, falsificação).
Os mercados de extorsão e proteção também se sustentam das políticas de intervenção urbana contra os trabalhadores, estruturando uma extensa rede de práticas extralegais. Fazem parte dos modos operatórios de funcionamento do Estado, que, de um lado, mobilizam todo um aparato de “guerra social” contra os ambulantes e, por outro, reforçam formas centralizadas de coerção e extração (e apropriação) da riqueza circulante. São esses campos de batalha urbana que conformam a gestão política desses territórios. A gestão desses espaços e as políticas de intervenção urbana passam também pelo terreno encoberto dos acordos em torno de cobranças de propina, extorsão e achaques, alimentando circuitos e processos de concentração da riqueza circulante pelo jogo de atores envolvidos.
Estamos no coração do que Foucault (1986) define como gestão diferencial dos ilegalismos, colocando em foco os modos como as leis operam, não para coibir ou suprimir os ilegalismos, mas para diferenciá-los, “riscar os limites de tolerância, dar terreno para alguns, fazer pressão sobre outros, excluir uma parte, tornar útil outra, neutralizar estes, tirar proveito daqueles” (Foucault, 1996, p. 226). Há diversos dispositivos acionados para movimentar os mercados de proteção, seja cobrando taxas de segurança para evitar a apreensão de mercadorias, seja ameaçando de cassação de TPU, alegando supostas irregularidades. As mercadorias políticas circulam, configurando um mercado muito rentável. É mais uma faceta da gestão diferencial dos ilegalismos. São os instrumentos de coerção colocados em ação – de um lado, o acionamento de proteção para garantir o negócio; de outro, formas de extorsão para expandir os meios de concentração da riqueza circulante, tanto nas formas violentas de expropriação, como pelas vias nebulosas da negociação em torno de valores que variam conforme o local e o tipo de mercadoria. É dessa forma que se vão constituindo estruturas de manutenção e reforço de poderes locais.
No seu conjunto, as taxas pagas por cada um terminam por se compor e somar um grande volume arrecadado; ao mesmo tempo, a apreensão de mercadorias alimenta um outro mercado, algo como um mercado clandestino no qual essas mercadorias são negociadas e revendidas em outros cantos. Para “mostrar serviço” e justificar os pesados investimentos em recursos de segurança da cidade, os fiscais tratam de aumentar ainda mais o número de apreensões de mercadorias e equipamentos de trabalho, alimentando ademais os cofres públicos com o pagamento das multas cobradas dos ambulantes que tentam reaver seus produtos e objetos.
Podemos observar nas ruas esse jogo oscilante entre impedimentos e permissões, os graus variados de controle, extorsão e coerção, que penalizam as franjas mais precarizadas do comércio popular. Espalhados em vários pontos de comércio de rua, são os ambulantes que não contam com licenças oficiais para o exercício de suas atividades, que tampouco têm recursos para negociar a aquisição informal/ilegal de um ponto. Adquirem suas mercadorias na feira da madrugada para revendê-las no correr do dia, um ganho no dia a dia, descontadas as taxas extralegais para manterem o seu comércio – a caixinha da polícia, o pagamento de seguranças privados, a propina dos fiscais.
Para além do que já foi analisado até este momento, é importante dizer que a gestão diferencial da pandemia também acelerou os conflitos urbanos postos desde outros tempos, momento em que a maquinaria estatal operou regularmente em colocar em prática suas políticas urbanas de limpeza, para conter os trabalhadores dos comércios informais, já havia muito vistos como um problema. Essa maquinaria também operou para proteger o empresariado, ao mesmo tempo que protegia um mercado de extorsão produzido pelos próprios agentes públicos, conduzindo os trabalhadores cada vez mais à precarização do trabalho e da vida e à sujeição à gestão diferencial dos ilegalismos. Entretanto, diante do mais assombroso contexto posto aos trabalhadores ambulantes, esses buscaram repensar e articular formas de trabalhar, resistir e sobreviver frente a um cenário de pobreza, violência e devastação.
Astúcias do trabalho
No início da madrugada, em 1º de junho de 2020, o celular dos ambulantes começa a soar. São mensagens chegando de um grupo do aplicativo digital Telegram. Mensagens, vídeos e imagens chegam em intensa velocidade, de diversos pontos, como frames de um filme que se passa na região comercial do Brás. Os ambulantes são alertados: “Pessoal, tem rapa”. As mensagens continuam informando “Rapa descendo Miller. Bastante”, “Rapa na Rodrigues”. Os vídeos vão alimentando os registros reafirmando as mensagens.
Ao longo do período pandêmico, o policiamento e os impedimentos seletivos do comércio ambulante aumentavam as aflições dos trabalhadores. Já circulava pelas ruas do Brás a informação de que a partir daquele momento não poderiam mais armar suas bancas na madrugada. Um ambulante chega a questionar: “O que será feito com o pessoal que pagaram pontos caríssimos?”; outro responde: “Na verdade eles já queriam acabar com a rua, só aproveitaram o momento!”.
Os ambulantes alertam uns aos outros que “todo cuidado é pouco”. “Todo mundo da rua agora, tá descendo muita polícia, muita polícia mesmo”; “Agora chegou os laranjinhas, tem um monte”; “SÓ A MULECADA DO RAPA TEM MAIS DE OITENTA COLETES”;
Quem tá aí no Brás, sai, vem embora, tá de carro, vem embora, não fica aí dando vacilo não, pra não perder mercadoria. E quem não foi pro Brás não vai agora, aguarda, não vai rolar, eles vão ficar a noite toda e amanhã de manhã outro plantão assume, então hoje não vai dar. Pode esquecer um pouco hoje, não dá. Gente, vocês que tão com carro na rua e vê camelô com carrinho de pé que está sem automóvel, dá oportunidade deles saírem daí, ajuda eles a saírem daí, por favor, chama, põe no carro, chega na frente solta, se der pega outro de novo (Trabalhador 1).
Passou agora aqui os carros da prefeitura, os caminhão, os cara, a polícia tá vindo, o cara passou até com guincho, mano, eita porra, os cara passou até com guincho pra recolher o carro, caralho, porra, mas passaram aqui na Tiers aqui ó, viraram a rua da Oriente, tão aqui a GCM, duas viaturas da GCM. Os caras vieram preparado com guincho e tudo, dois carros de laranjinha, o caminhãozinho e o caminhão guincho atrás (Trabalhador 2).
A movimentação no grupo é intensa, os áudios e vídeos registram o forte policiamento a postos para iniciar as operações. Alguns trabalhadores circulam pelas ruas de carro fazendo as imagens, mostrando o policiamento e a fiscalização em todo canto, impedindo o comércio. Diante do desespero para a manutenção da vida já muito precária, mesmo com intensa fiscalização, muitos se arriscam, mesmo com os alertas. Sem as lonas no chão, apenas com as sacolinhas e mercadorias à mostra nas mãos.
Em um dos vídeos compartilhados naquela madrugada de junho de 2020, escuta-se ao fundo um homem narrando a cena: “Olha aí pessoal, polícia aqui no Brás, na Rodrigues dos Santos, abrindo o carro do cara, pegando toda a mercadoria do carro do cara. Pelo amor de Deus, isso não tem condição, de fazer um negócio desse”.
Eu vi cachorro! Eu vi! O negócio tá fervendo de polícia aqui, rota, tática, choque, Baep, todo mundo, tá todo mundo fazendo festa aqui tomando geral. Trombei os meninos da fiscalização aqui, o pessoal falou que vai até o meio-dia, meio-dia para e volta só três horas da tarde (Trabalhador do Brás, via grupo do Telegram, 4/6/2020).
São inúmeros os registros feitos. Impossível comentar aqui todos eles. Foi durante a pandemia que dois potentes grupos do Telegram foram criados. Um deles buscava aglutinar ambulantes revendedores e consumidores para a realização de vendas on-line. O outro grupo passou a ser o principal responsável pelo monitoramento da fiscalização, contribuindo com rotas de fugas dos ambulantes para não serem pegos pelo aparato estatal. Esse último, quando comecei a acompanhar (em junho de 2020), possuía cerca de 435 trabalhadoras(es) no Telegram. No momento em que escrevo este artigo (outubro de 2024), o grupo possui 11303 membros. Esse rápido crescimento de trabalhadores organizados em torno do grupo demonstra, além de sua potência, as necessidades urgentes de construção de redes de confiança para fazer frente à crescente violência dos agentes do Estado.
Diariamente, o grupo se movimenta com diversas informações. Com trabalhadores espalhados pelos diversos pontos do centro comercial territorial, o monitoramento da operação é atualizado em tempo real, o que permite aos ambulantes saberem se é possível trabalhar naquele dia, ou quais os caminhos para driblar a fiscalização.
Munidos das informações produzidas e compartilhadas nos grupos, os ambulantes passam a mobilizar diversas formas de astúcias4 (Certeau, 2009) para driblar a fiscalização e buscar alguma forma de praticar o comércio popular.
No início do período pandêmico, foi criada uma espécie de drive-thru do comércio popular. Carros de consumidores passavam pelas ruas, agora esvaziadas de bancas e sem a aglomeração rotineira; era ali que atuavam alguns poucos vendedores ambulantes expondo mercadorias nas mãos. E assim foi por algumas semanas, até que o número de trabalhadores do comércio popular foi aumentando; junto com eles, consumidores também passaram a se arriscar nas ruas. Junto com esse movimento, a fiscalização e as operações foram se intensificando.
Para não perder a mercadoria, os ambulantes passaram a trabalhar na mão, andando no meio da rua puxando clientes, principalmente se não encontrassem um canto para ficar. Trabalhavam com poucas mercadorias que coubessem dentro de sacolas de supermercado, pois, se perdessem, perderiam pouco. Eles também se concentravam em pontos circunscritos, uma vez que as ruas estavam tomadas pelo policiamento; ficavam em qualquer pedaço, mesmo se alguém chegasse para reivindicar o ponto: “É só dar um passo pro lado, os camelôs se ajeitam”.
Os ambulantes mapeavam os dias dos “plantões sujos”, as equipes que se revezavam nas operações; era uma forma de monitorar os horários possíveis ao exercício do comércio. O horário mais seguro para trabalhar seria entre 3 horas e 6 horas da madrugada, pois os horários prioritários para apreensão se davam entre a meia-noite e as 3 horas. Isso prejudicava os camelôs que dependiam de transporte público e que tomavam o último trem da meia-noite. A recomendação era que esses trabalhadores ficassem dentro do terminal Parque Dom Pedro até a rua ficar mais segura: “Ir cedo pra rua é pra perder mercadoria”.
Ao longo da pandemia, sem poder armar a estrutura das bancas, as formas de atuação eram improvisadas. Com o aviso da chegada do rapa pelos canais digitais, os trabalhadores se antecipavam da chegada do policiamento, buscando outros pontos mais tranquilos para atuar; outros ainda se mantinham trabalhando “na mão”, puxando clientes; outros ainda se aproveitaram e utilizaram os carros estacionados como esconderijos. Quando não era possível escapar por completo, os ambulantes, conhecedores de seus territórios de atuação, encontravam qualquer canto para salvar, pelo menos, a mercadoria. Escondiam entre as frestas de paredes entre uma loja e outra, chegavam até a esconder dentro das lixeiras dispostas na rua, enquanto se disfarçavam de consumidores ou se camuflavam no meio da multidão, até a passagem do rapa, para depois recuperá-las.
Face ao recrudescimento da fiscalização, as bancas deram lugar aos carros dos ambulantes, que se transformaram em ponto de venda, com roupas dispostas em cabides pendurados nos vidros. Outros passaram a utilizar carrinhos de supermercado. Entre os que tinham antes pontos específicos de concentração para o trabalho, tiveram que se movimentar a fim de despistar os representantes do Estado. Ambulantes que possuíam clientes estabelecidos arriscavam ir à rua já com vendas garantidas. Porém, nem sempre escapavam da fiscalização.
Por meio desses grupos digitais também foram organizadas redes de apoio e solidariedade: aos companheiros de trabalho que perderam suas mercadorias; campanhas de doações via pix aos parceiros “das antigas” ou às suas famílias, que estariam passando necessidades; muitos impossibilitados de trabalhar por doenças crônicas ou por fazerem parte do grupo de risco de infecção da covid-19. Além disso, eram poderosas ferramentas para mobilizar os trabalhadores em atos públicos contra a violência e a repressão do comércio de rua e a iminência de retirada de ambulantes em prol da construção de novos empreendimentos de parceria público-privada.
O monitoramento do policiamento e fiscalização, e a construção de redes de confiança (Tilly, 2010) por meio dos grupos digitais demonstraram a importância dessas formas de articulação para lidar com as urgências do cotidiano no comércio de rua. Todo um amplo universo de relações e compartilhamentos ia sendo tecido, no dia a dia, nessa batalha nas ruas. A cada troca de mensagens, também compartilhavam informações atualizadas sobre o auxílio emergencial, receitas de chás e medicamentos caseiros para a imunidade, pontos do “Bom Prato”5, busca de mercadorias, procura por oficinas de costura; e, sempre às 18 horas, “orações ao Senhor Deus” e às vítimas da pandemia.
As cenas de violência vividas pelos trabalhadores, registradas e compartilhadas nesses grupos, também se transformam em provas (Weizmann, 2017) e denúncias dos modos operatórios de gestão e controle da cidade. As tramas apresentadas nessas cenas digitais transformam-se em ferramentas de lutas coletivas travadas também nos tribunais públicos. Ao longo de todo esse período, diversos vídeos e imagens foram captados e compartilhados para além de seus pares, registros que também são mobilizados como materiais de defesa e denúncia através da rede que se constituiu em torno do Fórum dos Ambulantes6. Foram diversas ações travadas pelo Fórum, informadas por esses materiais, promovendo pressão política junto à prefeitura, à ouvidoria de polícia, ao Ministério Público, em defesa do direito ao trabalho e à cidade.
Essas inúmeras astúcias foram possíveis graças às redes de confiança construídas e fortalecidas ao longo desse período. Uma ferramenta conectora de experiências, que aglutina as ruas do território e seus atores concentrados em um único lugar, trocando mercadorias, informações, rotas de fuga, registros das violências estatais sofridas pelos trabalhadores urbanos, articulando atores e práticas políticas.
Conclusão
Nos ancoradouros desse comércio, estão inscritas a dinâmica e uma história urbana de longa duração. A novidade das últimas décadas está na sua reconfiguração e inflexões que fizeram desse mercado alvo e campo de disputa de pesados interesses corporativos, mobilizando dispositivos de coerção e controle dos poderes municipais.
O período da pandemia da covid-19 impactou profundamente a forma de funcionamento do território, acelerando outras reconfigurações no funcionamento da rua, sobretudo mediante os projetos urbanísticos do poder público em parceria com o setor privado, em especial do ramo imobiliário. A partir daí marca-se um novo momento de disputas em torno do controle e da gestão do espaço público urbano.
São inúmeros conflitos que marcam a história do mercado popular do Brás e a da feira da madrugada, e não nos cabe remontá-las aqui. O importante a compreender é que, nesse território, são travadas inúmeras disputas em distintas escalas em torno do enorme volume de riqueza que circula na região. Esse é fator que intensifica o acirramento das disputas, pois o que está em jogo é a concentração da riqueza circulante, extraída sob as mais distintas formas, tanto pelas vias legais, quanto pelas vias extralegais.
Neste cenário, na contramão dessas formas de governo estão as astúcias praticadas pelos trabalhadores ambulantes. Construção de redes de confiança, potencializadas ou duplicadas no uso programático dos recursos digitais, para se organizarem, protegerem e reagirem. Formas de articulação que, ao promover ações de resistência, ancoradas nas rotinas do comércio de rua, nos entregam também os registros da cartografia do conflito constitutivo e estruturante do comercio ambulante.
Referências Bibliográficas
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1
. O Pátio do Pari, inicialmente sob concessão da iniciativa privada, servia como estacionamento aos ônibus. O terreno era “administrado pela empresa ‘GSA Serviços Gerais e Transporte LTDA’, por meio de um Termo de Permissão de Uso (TPU), desde 1997” (Freire da Silva, 2014, p. 65), e depois destinado para a feira da madrugada. Anos mais tarde, passou para a concessão privada do Circuito de Compras por trinta anos. A história da Feirinha da Madrugada ocorrida nesse espaço é marcada por inúmeros conflitos: denúncias no Ministério Público, indiciamento em Comissão de Inquérito Permanente (CPI) e ainda o assassinato de um dos seus administradores em 2009.
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2
. Não caberia nas páginas deste artigo refazer todo o debate, ainda em aberto, acerca da Operação Delegada. Hirata (2015) e Freire da Silva (2014) trazem importantes reflexões para entender o seu papel tanto na fiscalização das regiões de grande comércio, quanto no modelo de segurança pública adotado nas gestões municipais. O que nos interessa aqui é compreender este convênio entre prefeitura e polícia militar como um dos elementos das formas de governo do Estado mobilizados na guerra social contra os trabalhadores.
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3
. Desde meados da década de 2010, vários decretos foram emitidos com fins de cassação de TPUs, confisco de mercadorias, remoção de ambulantes etc., sobretudo os decretos n. 52.432, de 21 de junho de 2011, e o n. 53.154, de 18 de maio de 2018 – esse último revogava todas os TPUs.
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4
. “As astúcias utilizam, de forma vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. […] cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera.” (Certeau, 2009, p. 95). Isso porque, para Certeau, “as forças são distribuídas, não se pode correr o risco de fingir com elas. O poder se acha amarrado à sua visibilidade. Ao contrário, a astúcia é possível ao fraco, e muitas vezes apenas ela, como ‘último recurso’” (Idem).
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5
. Programa de segurança alimentar do Estado de São Paulo que oferece refeições a preços populares ou gratuitas, a depender da vulnerabilidade da pessoa.
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6
. O Fórum dos Ambulantes da cidade de São Paulo é uma iniciativa dos próprios trabalhadores e do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. Foi constituído em 2011 em face das políticas urbanas que buscavam a retirada dos camelôs das ruas. É um espaço de articulação de redes de apoio, em parcerias com a Defensoria Pública, parlamentares, ouvidoria de polícia, além de entidades nacionais e internacionais de defesa dos trabalhadores informais.
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Editora
Ana Paula Hey
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Set 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2025
Histórico
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Recebido
11 Out 2024 -
Aceito
22 Jan 2025
