Ananya Roy, professora na Ucla (University of California – Los Angeles), é diretora fundadora do Ucla Luskin Institute on Inequality and Democracy, que desenvolve pesquisas em torno do deslocamento e despossessão em Los Angeles (LA) e em outros lugares do mundo. Sob uma concepção metodológica, que é também epistemológica e política nas formas de produção e organização do conhecimento, suas pesquisas agregam pesquisadores universitários e oriundos dos movimentos sociais e ativistas. As disputas urbanas contemporâneas, principalmente de Los Angeles, estão no coração das pesquisas e dos empreendimentos (acadêmicos e políticos) do Instituto.
Em suas pesquisas atuais, Roy trabalha a noção de capitalismo racial global para analisar as políticas de despossessão e deslocamento, o papel do Estado e da violência estatal na constituição e no funcionamento dessas dinâmicas. Ao final da entrevista, Ananya Roy compartilha uma lista de seus trabalhos mais recentes e a serem publicados nos próximos meses. Os temas e as questões de suas pesquisas recentes são abordados e aprofundados nas respostas às indagações colocadas nesta entrevista1.
Ananya Roy é uma referência incontornável nos estudos pós-coloniais e nos estudos urbanos. É autora do livro City Requiem, Calcutta: Gender and the politics of poverty e de artigos, já clássicos, como “Urban informality: Toward an epistemology of planning”, “Slumdog cities: Rethinking subaltern urbanism” e “Civil governamentality: The politics of inclusion in Beirut and Mumbai”. No conjunto dessas obras, Roy trabalhou sobre modos de urbanização e transformações urbanas no assim chamado Sul Global (tendo como referência principal a Índia, seu país de origem, mas não apenas), as dinâmicas de apropriação da terra, os efeitos deletérios de uma financeirização predatória de territórios urbanos, atenta às formas de governamentalidade desses territórios em conexão com formas de subjetivação e práticas de resistência que surgem a partir e por meio de todos esses processos.
Nesta longa entrevista generosamente concedida, Ananya Roy comenta para o público brasileiro sobre seus mais recentes trabalhos – grande parte ainda inéditos para os leitores brasileiros. Ao longo da entrevista, ela apresenta o panorama político atual das lutas urbanas nos Estados Unidos, sobretudo em Los Angeles. E ao fazê-lo, desenvolve e expõe de modo articulado seu instrumental analítico e conceitual. Por essa razão, a entrevista ganha densidade teórica, tanto pelo peso das leituras e análises históricas e sociais em torno das disputas próprias da formação dos Estados Unidos e que se atualizam no cenário atual, quanto pela força de uma intelectual de alto calibre também envolvida e comprometida com os conflitos que analisa. Em meio a acampamentos de pessoas sem moradia, em um cenário de violência e ameaças de deslocamento forçado, políticas de despossessão e de banimento racial, Roy empenha-se na formação de coletivos de pesquisa articulados com movimentos sociais e grupos comunitários ativistas, entre alianças e contraposições, buscando a produção de conhecimentos comprometidos com tentativas de libertação em um país marcado por “um estado de perpétuo conflito violento”.
Ananya, primeiro de tudo, gostaríamos de agradecer em nome das pessoas no Brasil que acompanham e admiram seu trabalho, brilhante e vasto tanto do ponto de vista intelectual quanto do comprometimento e respeito que você tem pelos movimentos e lutas sociais nos espaços em que você circula, ocupa e constrói: muito obrigado!
Como você enxerga a história e o papel da terra e da propriedade na formação do capitalismo racial? Qual a importância desses elementos na construção histórica e social dos Estados Unidos, que seguem presentes nas disputas atuais, e também nas possibilidades futuras de libertação? Você poderia ainda explicar brevemente, para quem não é familiarizado, o que seria o capitalismo racial global?
Esta é uma questão de importância vital, mas também de grande envergadura. Deixem-me respondê-la compartilhando com vocês dois esforços-chave que estão atualmente no cerne da minha vida intelectual.
Abrigando a Terceira Reconstrução
Terra e moradia sempre foram um ponto fulcral de poder e luta na história dos Estados Unidos. A despossessão espacial, incluindo o roubo sancionado de terras, formas institucionalizadas de exclusão e segregação habitacionais, o deslocamento sistemático de comunidades, e a morte social dos sem casa e sem terra, está no cerne das formações de raça e racialização. Inspirada e em colaboração com meu colega Robin D. G. Kelley, argumento que momentos de possível transformação radical – que conceituamos como as três reconstruções – implicaram lutas para desafiar regimes raciais de propriedade, e estabelecer as condições e possibilidades para formas emancipadoras de moradia e terra.
Durante a primeira reconstrução, escravizados libertos imaginaram e construíram um mundo pós-escravidão baseado na propriedade comunal e no trabalho coletivo ancorado no acesso à terra. Como W. E. B. Du Bois descreve em sua obra magistral, a democracia abolicionista foi central para essa reconstrução negra, e a socialização da terra e do trabalho foi, por sua vez, central para a democracia abolicionista. Assim como os escravizados fugitivos interromperam a economia da plantation e sua própria apropriação enquanto propriedade, por meio do que Du Bois chamou de greve geral, os libertos buscaram desmantelar a instituição da propriedade privada, e coletivamente financiar instituições como Bureau of Refugees, Freedmen and Abandoned Lands [Escritório de Refugiados, Libertos e Terras Abandonadas]. Embora essa visão tenha sido revertida por uma aliança entre o capital e a violência branca, criando uma nova repetição da escravidão e repressão racial, a reconstrução negra oferece um futuro alternativo, apontando para a capacidade de transformação de mundo e de fazer história dos movimentos de pessoas sem terra nos Estados Unidos. Também nos lembra do trabalho inacabado de reparação, que envolve inevitavelmente a reinscrição da propriedade.
A luta por moradia justa, segura e acessível, incluindo o fim da segregação espacial de jure e de facto sancionada federalmente, foi fundamental para a segunda reconstrução (décadas de 1950 a 1970). Embora a segunda reconstrução seja frequentemente entendida em termos de demanda por direitos de voto, integração escolar, e assim por diante, argumentamos que em seu cerne estava a questão da moradia, terra e propriedade. Por todo esse período, novas formas de despossessão espacial tomaram forma, consolidando a exclusão habitacional nos subúrbios brancos, codificando a segregação em habitações públicas, instituindo políticas de remoção por meio da renovação urbana, e assegurando o que George Lipsitz (1995) denominou de “investimento possessivo na branquitude”. A Fair Housing Act [Lei de Moradia Justa], de 1968, deveria ser a maior conquista da segunda reconstrução, mas essa nova legislação habitacional logo se tornou a base para o que Keeanga-Yamhatta Taylor (2019) chamou de “inclusão predatória”. Com a indústria imobiliária dirigindo os mercados e políticas habitacionais, proprietários negros e “browns”2 ficaram sujeitos a empréstimos subprime e eventualmente sofreram com execuções hipotecárias generalizadas e perda maciça de riqueza. É precisamente essa predação e apropriação que os movimentos sociais radicais contestaram ferozmente. Os Panteras Negras, Young Lords, National Welfare Rights Organization [Organização Nacional de Direitos de Bem-Estar Social], American Indian Movement [Movimento Indígena Americano], todos vislumbraram a moradia não como uma mercadoria, mas como um direito social.
E aqui estamos na terceira reconstrução. Uma crise sem precedentes de deslocamento e despossessão está em curso nas cidades dos Estados Unidos. Comunidades trabalhadoras de cor estão ameaçadas de remoção em massa; de Los Angeles a Nova York, governos municipais liberais estão criminalizando e fazendo desaparecerem comunidades de pessoas sem moradia3; o capital financeiro global está expandindo o controle sobre propriedades residenciais em bairros que antes eram negros e “browns”; e recursos públicos, amplamente disponíveis por meio de fundos de auxílio econômico da covid-19, estão sendo direcionados para reforço policial e contenção carcerária, em vez de infraestruturas de sustentação da vida, como moradias.
Mas este é também um momento de insurreição, uma terceira reconstrução. Assim como na reconstrução negra, esse momento possibilita uma visão ampla de democracia social. E, em particular, a propriedade tornou-se o terreno insurgente de luta. Abordarei isso em minha resposta à sua próxima pergunta.
Espaços santuários: Remundializando o humanismo
Eu acabei de concluir um volume coeditado (com Veronika Zablotsky), intitulado Sanctuary spaces: Reworlding humanism [Espaços santuários: Remundializando o humanismo], que será publicado pela Duke University Press (lançamento previsto para julho de 2025). O livro se baseia nos encontros e divulgações que fizeram parte do nosso empreendimento Sanctuary Spaces. Convido todos vocês a darem uma olhada mais de perto no material digital substancial que temos na página do Ucla Luskin Institute on Inequality and Democracy4, incluindo os três curtas: Anti-negritude: Mundos transnacionais de abolição, Asilo: Nas fronteiras do humanitarismo e Cercamento: geografias da recusa5.
Assumi o projeto de examinar e interrogar as políticas de santuário após a eleição de Trump6, quando ele impôs proibições à imigração e ameaçou punir cidades-santuários, ou seja, aquelas que não cooperam com as forças federais de imigração e detenção. Logo percebi que, enquanto o nacionalismo branco do regime de Trump enquadrava o problema do santuário como um conflito civilizacional, o santuário é também um problema da democracia liberal. Isso levanta uma questão profunda: Quais são os termos de proteção pelos quais as democracias liberais reconhecem e incluem os racialmente diferentes?
Ao abordar essa questão, colocamos em primeiro plano os espaços necropolíticos e as rotas de mobilidade forçada em um mundo pós-colonial. Reconhecendo que as fronteiras da Europa e dos Estados Unidos são projetadas para serem mortais, com o Mediterrâneo e o deserto do Arizona tornando-se valas comuns, questionamos a promessa de santuário. Quem é o migrante, refugiado, solicitante de asilo, ou cruzador de fronteira em relação ao Ocidente (nunca) acolhedor? Ao rejeitar as alegações de hospitalidade do Ocidente, expomos a farsa do asilo e, assim, os limites do humanitarismo. Com base em meu trabalho anterior sobre a remundialização do Ocidente, o livro nos convida a ver o Ocidente não como lar ou destino ou refúgio, mas como o núcleo colonial capaz de instaurar a militarização e a exteriorização sem fim de suas fronteiras. Ao mesmo tempo, o livro se preocupa com o que chamamos de movimentos migrantes – tanto a fugacidade dos migrantes quanto os movimentos e insurgências organizados por eles –, que criam espaços-santuários contra todas as probabilidades. Para nós, isso é o santuário – não como política de Estado, mas como uma demanda ético-política de outros grupos raciais lançados no mundo.
Compartilho aqui um trecho do capítulo introdutório do nosso livro, que espero que lhes dê uma noção de como o estudo do santuário, em escala global e transnacional, se entrelaça com o estudo do deslocamento e da despossessão em escala urbana. Juntos, eles expõem as espacialidades do capitalismo racial global e as lutas de pessoas excluídas contra tal violência. Este trecho também descreve uma disciplina da Ucla da qual você, Renato, participou e, por isso, espero que tenha um significado especial para você.
Em março de 2023, o Promise Institute for Human Rights da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, recebeu uma visita oficial de Soledad García Muñoz, Relatora Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O pedido para tal visita veio da Los Angeles Community Action Network (LA CAN), uma organização do movimento de libertação negra localizada em Skid Row, bairro central da cidade onde a falta de moradia em massa foi concentrada e contida. Observando a “grave crise de falta de moradia no oeste dos Estados Unidos”, a petição da LA CAN argumentava que “a situação das pessoas sem moradia em Los Angeles é uma violação dos direitos humanos segundo o arcabouço interamericano de direitos humanos”7. Durante a visita, uma audiência pública foi realizada na sala de aula de Ananya na Ucla. Companheiros sem moradia que faziam parte da turma testemunharam por meio de narrativas, análises e arte sobre as formas de criminalização, ilegalização, discriminação e desumanização que enfrentam em Los Angeles. Desdobrado atrás da fileira de apresentadores estava um banner, inspirado pelo ativismo [do coletivo político] da ACT-UP durante a pandemia da Aids: “Se eu morrer sem moradia – esqueça o enterro – apenas jogue meu corpo nos degraus da prefeitura de Los Angeles”, que serviu como um lembrete do assassinato social em andamento nas cidades dos Estados Unidos, incluindo aquelas conhecidas por sua governança liberal.
Esta não foi a primeira vez que relatores internacionais testemunharam o deslocamento e o desaparecimento conduzidos pelo Estado de comunidades pobres e sem moradia nos Estados Unidos. Um relatório de 2018 de Philip Alston, Relator Especial da ONU sobre Pobreza Extrema, observou que as condições nos acampamentos de pessoas sem moradia de Los Angeles eram piores do que as nos campos de refugiados, e que o governo local dependia da criminalização “para encobrir o problema subjacente da pobreza”. De fato, a linguagem mais frequentemente usada para descrever o estado de falta de moradia em massa em Los Angeles é “crise humanitária” (Levin, 2023, apud Roy, 2025). Na disciplina de Ananya sobre justiça espacial, que reuniu acadêmicos universitários, intelectuais dos movimentos sociais e companheiros sem moradia ao longo de um ano em um “laboratório para projetos libertadores”, tais enquadramentos transnacionais serviram como metodologias importantes para uma desnaturalização dos repertórios ensaiados de violência estatal: remoções, varreduras de acampamentos, proibições de sentar e deitar, enjaulamento humano disfarçado de cuidado, espera interminável, deslocabilidade permanente. Os participantes desse curso passaram a ressignificar a zona necropolítica do acampamento dos sem-teto do Primeiro Mundo em relação a outros espaços que têm a morte como projeto e traço constituinte, notadamente regiões fronteiriças de passagem bloqueada e não assistência letal, como são a fronteira Estados Unidos-México, as fronteiras externas da União Europeia e o mar Mediterrâneo. Juntos, eles leram o relatório de 2022 de Balakrishnan Rajagopal, Relator Especial da ONU sobre Moradia Adequada, sobre “domicídio”, “a destruição em massa sistemática e deliberada de lares durante conflitos violentos”. Ao conceituar os Estados Unidos como um estado perpétuo de conflito violento, enraizado na conquista colonial e legados da escravidão, eles reinscreveram a falta de moradia em massa e sua criminalização como domicídio. Inspirados pelo poderoso chamado de E. Tendayi Achiume (2019, apud Roy, 2025) para ver a migração global não autorizada como um processo de descolonização, eles passaram a ver os acampamentos de pessoas sem moradia onde nossos companheiros residem e se organizam como espaços decoloniais de mobilidade forçada. De fato, as conexões estavam em todos os lugares, entrelaçadas pelos corpos e memórias daqueles reunidos na disciplina. Enquanto a turma estudava a busca por migrantes desaparecidos no deserto do Arizona, um espaço de travessias forçadas e mortais, uma das participantes do curso, Sandra Saucedo, desabou em lágrimas e compartilhou as duas travessias que fez ali quando criança. Sandra é uma protagonista central no movimento Reclaiming Our Homes [Reivindicando Nossas Casas], composto principalmente por mães sem moradia que ocupam casas vazias de propriedade do Estado. Aquele deserto mortal a assombra, sempre.
Mas enquanto o vocabulário da discriminação e os direitos enquanto solução eram onipresentes, a turma lutava com a questão: A quem os deslocados e desabrigados deveriam apresentar uma petição de discriminação e uma demanda por justiça? Quem os expulsos no mundo deveriam acusar de domicídio? A própria turma já era uma recusa da governança liberal e de seus sistemas de assistência e cuidado. Assim como a farsa do asilo, tais sistemas perpetuam contenção, vigilância, separação, supervisão carcerária, e nunca cumprem a promessa de domicílio, de lar. Acampamentos sem-teto, centros de detenção de migrantes, e campos de refugiados são parte da mesma geografia global de deslocamento e desaparecimento, gerida por meio das lógicas gêmeas de não assistência e humanitarismo. O que, em tal mundo, é santuário? Ao pensar simultaneamente nas ruas de Los Angeles, onde cinco pessoas sem moradia morrem a cada dia, na rota de Sandra pelo deserto do Arizona, no centro de detenção de migrantes onde outros companheiros sem moradia foram mantidos antes de adentrarem o estado perpétuo de conflito violento que são os Estados Unidos, torna-se evidente que o santuário não será encontrado nos direitos humanos internacionais ou nas proteções jurídicas. As leis de santuário na Califórnia repetidamente deram as mãos ao Estado policial e sacrificaram os migrantes ilegalizados considerados menos dignos de deportação. A insistência para que instituições globais testemunhem, a contabilização de mortes e domicídio, a demanda pelo direito de permanecer e pelo direito do retorno, as batalhas legais contra a criminalização e a discriminação são importantes, mas, em última análise, incomensuráveis com a intenção do curso ser um laboratório para projetos libertadores. Os participantes do curso passaram a ver seu trabalho como formas de ser e conhecer que emanam da condição de ser/estar expulso no mundo. Assim também é o esforço coletivo que constitui este livro.
Durante a pandemia, você formulou a ideia de um “urbanismo da emergência” [emergency urbanism]. Você poderia nos explicar do que se trata, e também nos contar o que vocês enfrentaram e as lutas que travaram durante a pandemia em Los Angeles (LA), e suas continuidades e desdobramentos até o presente momento?
A pandemia da covid-19 expôs e aprofundou a desigualdade social, racial e espacial nos Estados Unidos. Isso ficou especialmente evidente em Los Angeles, onde, no auge da pandemia, a casa mais cara do país foi colocada à venda por um preço inicial de US$ 350 milhões (reduzido de US$ 500 milhões) e, por outro lado, cinco pessoas sem moradia morriam nas ruas a cada dia. Por meio do conceito de “urbanismo da emergência”, interpreto essa desigualdade tanto como reflexo do longo arco do capitalismo racial quanto como a emergência imediata de uma pandemia global sem precedentes. Eu me vali de uma formulação de Patrisse Cullors, cofundadora do movimento Black Lives Matter, que explicou, em 2015, o estado de emergência da seguinte forma: “Os negros em todo o país e no mundo são sistematicamente alvo…”. Ela observa: “Deixe-me ser clara: todos os dias, pessoas estão morrendo, incapazes de respirar… Estamos em um estado de emergência. Se você não sente essa emergência, então você não é humano”. Essa é a emergência sem fim que é o capitalismo racial. No entanto, a pandemia também foi a declaração de uma emergência de saúde pública pelo Estado dos Estados Unidos. Argumento que tal declaração abriu uma relação diferente entre soberania, vida e propriedade, e que essa abertura foi ocupada e moldada por práticas e movimentos insurgentes de moradia. O que se tornou de interesse para mim foi se essa insurgência poderia reconfigurar os termos do estado de emergência sem fim que é o capitalismo racial, especificamente a despossessão negra e “brown”.
Em Los Angeles, e em muitas outras cidades, a propriedade se tornou o “terreno insurgente” do “urbanismo da emergência”, com movimentos ocupando casas vazias, exigindo a suspensão de aluguéis, e pedindo a tomada de hotéis e sua conversão em moradias sociais. Eu tomo emprestada a ideia de “terreno insurgente” do impressionante livro de Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos [publicado no Brasil pela editora Fósforo. No original: Wayward lives, beautiful experiments], que considero um dos textos mais importantes para entender a vida urbana. Hartman (2019) coloca em primeiro plano o “terreno insurgente” das vidas de jovens mulheres negras que “lutaram para criar vidas autônomas e belas” por meio de “rebelião aberta”8. Ela, assim, nos permite pensar na insurreição como um longo arco de rebelião aberta, mais do que um momento singular de crise e protesto.
Tomemos como exemplo o caso de Reclaiming Our Homes, em Los Angeles, inspirado pelo Moms4Housing9, em Oakland. Em disputa está uma região com casas vazias no leste de Los Angeles, desapropriadas pelo Estado há sessenta anos para a construção de uma rodovia que nunca foi construída, e guardadas por diversas forças policiais. Durante a pandemia, mães sem moradia, lideradas por Martha Escudero, uma assistente social cujo salário está muito abaixo dos aluguéis em Los Angeles, reivindicaram [ocupando] algumas dessas casas vazias. Enfrentando repetidas ameaças e remoções, elas continuam firmes, defendendo a socialização e coletivização dessas propriedades. Como a Chicago Anti-Eviction Campaign [Campanha Contra Remoções de Chicago] me ensinou há algum tempo, que melhor razão para uma ocupação do que pessoas sem-teto em casas sem pessoas? Benito Flores, uma das lideranças do movimento Reclaiming Our Homes, quando acusado de ocupação ilegal de uma casa vazia, rebate que ele é legalmente sem-teto – ele foi transformado em sem-teto pelas leis e políticas que protegem o capitalismo racial, que instaura a escassez. Em todas as ocasiões possíveis, Benito nos lembra dos salários baixos e aluguéis altos. Ele está reivindicando, observa, não apenas uma casa roubada pelo Estado, mas a mais-valia que seu trabalho gerou por décadas. Junto a Reclaiming Our Homes, houve muitas outras ocupações, greves de aluguel e insurgências durante a pandemia. “Cancelar o aluguel” e “Tomar a porra dos hotéis” se tornaram os mantras da época. Este último chamou a atenção para uma economia política distinta, neste caso dos massivos subsídios públicos – “geopropinas”, para usar a expressão de Neil Smith (2002)– que possibilitam o desenvolvimento urbano como hotéis de luxo. Quando os movimentos por justiça habitacional exigiram que os hotéis fossem apropriados para abrigar as pessoas sem moradia, eles buscavam compensação e reparação por tais desvios dos recursos públicos.
Essas insurgências tomaram forma face à declaração de emergência de saúde pública pelo Estado. Isso é importante porque significou que víssemos algumas coisas incomuns, como uma moratória nacional para as remoções e um decreto nacional para impedir a criminalização e o deslocamento de acampamentos de pessoas sem moradia. Tudo isso aconteceu sob o signo da saúde pública. E, subjacente a isso, estava um tipo de razão legal que não estava aparente antes, a saber, o poder do Estado de proteger a vida humana. Por exemplo, na Califórnia, descobriu-se que, durante uma emergência de saúde pública, os agentes políticos, como, por exemplo, prefeitos municipais, têm ampla autoridade para confiscar a propriedade privada. Embora não usado por aqueles que detêm o poder político, leio essa razão legal como uma parte vital do “urbanismo da emergência”, a possível interrupção da relação estabelecida entre o poder do Estado e os regimes de propriedade que estruturam nossas cidades. As declarações legais permanecem como uma assombração, acenando para uma possível interrupção das “decretações” habituais de propriedade. Como Nicholas Blomley (2004) demonstrou em seu trabalho seminal sobre propriedade, as decretações habituais de propriedade geralmente codificam e reproduzem a violência estatal sob a égide da lei. Argumento que o “urbanismo da emergência” possibilita uma decretação diferente da propriedade.
A abertura constituída pelo “urbanismo da emergência” agora se fechou, e comunidades vulneráveis em Los Angeles e em outros lugares estão experimentando um banimento racial renovado, algo que discutirei em minha resposta à próxima pergunta. No entanto, o “urbanismo da emergência” nos lembra do que é possível – a vasta mobilização de recursos e poder do Estado em direção à vida humana. Isso nunca foi um presente do Estado para o povo. Sempre uma luta, sempre exigido.
A primeira vez que ouvi você falando em “banimento racial” [racial banishment] achei que fosse um uso metafórico ou força de expressão. Depois aprendi, também com você, que era literal. Você poderia explicar para as pessoas no Brasil o que é o banimento racial nos Estados Unidos?
A geografia radical é repleta do léxico de deslocamento. As estruturas conceituais do deslocamento, como gentrificação ou urbanismo revanchista ou remoção, colocaram em primeiro plano a violência da transformação urbana. No entanto, essas estruturas são limitadas em sua capacidade de lidar com dois aspectos fundamentais do deslocamento: o papel do Estado e a centralidade da raça. Assim, proponho um novo conceito, o banimento racial, que enfatiza a violência organizada pelo Estado contra corpos e comunidades racializados.
Pete White, fundador e diretor executivo da Los Angeles Community Action Network (LA CAN), uma organização do movimento de libertação negra enraizada em Skid Row, Los Angeles, explica por que usa o termo banimento em vez de deslocamento: “Banimento é quando não há lugar para você ir. Os lugares para você ir são as prisões ou a morte”.
Comecei a usar a noção de banimento racial enquanto enquadramento analítico quando estava aprendendo e escrevendo sobre a Chicago Anti-Eviction Campaign, um movimento de ocupações de propriedade e defesa contra remoções no lado sul de Chicago, inspirado nos moradores dos shacks da Cidade do Cabo, África do Sul, notadamente na Western Cape Anti-Eviction Campaign [Campanha Contra Remoções de Cabo Ocidental]. As lógicas usuais dirigidas pelo mercado de gentrificação e apropriações de terras se mostraram inadequadas para explicar o que aqueles que estavam no local descreviam como “limpeza étnica”. Posteriormente, à medida que conduzi pesquisas em Los Angeles, grande parte das quais interessadas em normas, procedimentos e atuações policiais para diferentes situações e regimes de propriedade – e como a polícia protege propriedade, e não pessoas –, o banimento racial se tornou cada vez mais o enquadramento de análise convincente para entender a violência organizada do Estado contra corpos e comunidades racializados. Ao conceituar o banimento, baseio-me no trabalho de geógrafos jurídicos como Beckett e Herbert (2010), que estão preocupados com a “exclusão espacial imposta legalmente” por meio de “ferramentas de controle urbano” que vão de injunções contra gangues a leis antiacampamento. No entanto, estou especialmente interessada no escopo completo da despossessão implicada no banimento racial, notadamente no fato de que não se trata apenas de uma perda de espaço e lugar, mas também da despossessão da personalidade. Em particular, entendo o banimento racial em consonância com a noção proposta por Orlando Patterson (1982) de “morte social”, ou uma alienação da comunidade humana, que define a condição da escravidão.
Como observa a pesquisadora em American Studies, Lisa Marie Cacho (2012), a morte social não significa que as pessoas estejam “excluídas do disciplinamento, punição e regulação da lei”. O ponto é que elas estão sujeitas à criminalização, mas “excluídas da justiça… excluídas da proteção da lei”. Cacho enfatiza: “Como alvos de regulação e contenção, elas são consideradas como merecedoras de disciplina e punição, mas não dignas de proteção”.
Em meu trabalho atual, abordo questões como estas: como o banimento é estabelecido e legitimado? De que maneira o banimento atual se desdobra, utiliza, parte de remoções forçadas precedentes de pessoas de cor? Quais formas de despossessão os banidos sofrem? Para onde vão? Como esse movimento reconfigura o espaço e a vida urbanos? Quais são as contestações legais, sociais e políticas que desafiam o banimento? Em particular, abordo essas questões em minha pesquisa com comunidades sem moradia e sobre a governança espacial da falta de moradia em massa em Los Angeles. Constituídos como coletivos de pesquisa que reúnem pesquisadores universitários e do movimento, incluindo companheiros sem moradia, nosso trabalho se preocupa com a criminalização da falta de moradia e o consequente banimento racial. Como Cacho observa, a criminalização “justifica a inelegibilidade das pessoas à personalidade, pois tira o direito de ter direitos”. Vemos a desapropriação da personalidade exceder a criminalização. A própria categoria social de “sem-teto” pode implicar essa desumanização e despossessão. Visto como estando fora do que chamei anteriormente de “cidadania proprietária”, o outro sem moradia não é visto como digno de direitos. De fato, conforme Libby Porter (2014) demonstrou, a propriedade serve como um “limiar de reconhecimento” em democracias coloniais como os Estados Unidos, e aqueles que não conseguem atender a esses padrões de “reconhecibilidade possessória” são apagados e desaparecem. Essa falta de proteção acompanha os sujeitos sem-teto em todos os lugares, incluindo abrigos e programas de habitação, onde são negados direitos de locação e até mesmo direitos civis básicos, sendo, ao invés, governados por regras carcerárias.
Em meus artigos a caminho sobre esse assunto, tenho me valido do conceito de deslocabilidade – sei que, no Brasil, vocês o consideram produtivo também –, para explicar a expulsão espacial e a mobilidade forçada que são elementos-chave do banimento racial. Ao fazer isso, também tenho interpretado a mobilidade forçada como [uma forma de] reassentamento, semelhante aos projetos de desenvolvimento em larga escala no Sul Global. E, claro, é a partir dos interstícios desse reassentamento que os sujeitos banidos organizam/ensaiam rebelião, recusa e até mesmo retorno. Retomo isso em minha resposta à sua próxima pergunta.
No Brasil e provavelmente em todo o Sul Global, você é uma referência fundamental da informalidade urbana. Você poderia nos contar se a informalidade ainda funciona como enquadramento analítico e político a partir de uma posicionalidade no Norte Global? Como a informalidade informa – ou não – o modo como você vê e pensa as realidades urbanas e as lutas pelo direito à moradia nos Estados Unidos, ou ao menos em Los Angeles?
No ensaio icônico e subsequente livro Planeta Favela [publicado no Brasil pela editora Boitempo. No original: Planet of Slums], Mike Davis (2014) coloca o foco em uma vasta mão de obra excedente, expulsa pela globalização neoliberal. Davis escreve que “a favela continua a ser a solução totalmente permitida para o problema de armazenamento da humanidade excedente” do século XXI. É um argumento brilhante, que conecta a reestruturação do trabalho à reestruturação do espaço. E, no entanto, discordo dele. Como observei em minha recente rememoração de Davis e seu legado na [coleção de ensaios em memória de Mike Davis organizada pela publicação] Human Geography (2024), é o acampamento sem-teto do Primeiro Mundo, mais do que a favela do Terceiro Mundo, que agora requer nossa atenção analítica como o que Davis chamou de “triagem da humanidade sob o capitalismo tardio”.
Há algum tempo, propus a informalidade urbana enquanto enquadramento para analisar processos de ocupar espaços e ocupações no Norte Global. Isso continua em meu trabalho atual com os acampamentos sem-teto. Por exemplo, em nosso estudo do acampamento em Echo Park Lake, que se formou durante a pandemia em um parque público em um bairro em gentrificação de Los Angeles perto do centro da cidade, e que foi removido por meio de uma operação policial militarizada em 2021, encontramos muitos elementos do que poderíamos entender como urbanismo subalterno e um repertório da informalidade. No entanto, como vocês todos sabem, minha preocupação com a informalidade urbana é menos sobre subalternidade e mais sobre poder estatal. E é precisamente isso que vejo em Los Angeles – a informalização forçada da vida, de ser forçadamente lançada a viver nas ruas, não é uma fuga ou evasão do poder estatal, mas sim um reforço dele. Como diz uma das minhas companheiras de movimento, Carla Orendorff, quando a rua ou o parque é sua casa, então o Estado é o seu senhorio [lanlord]. E acontece que o Estado é um proprietário brutal que não respeita suas próprias regras e leis, lembrando-nos que a abordagem da exceção de Agamben permanece bastante pertinente a essa instituição da informalidade urbana. De fato, as lutas atuais contra o deslocamento e a despossessão, contra a contenção carcerária e as remoções à força das armas, têm muito a ver com esse estado de exceção.
Você poderia nos contar mais sobre a experiência que viveram com os acampamentos pró-Palestina nas universidades do país, seus significados e impactos políticos (em nível nacional inclusive), e a forte repressão que enfrentaram, sobretudo na Ucla, onde você esteve mais envolvida?
Este último ano foi um momento extraordinário de protesto estudantil na Ucla e em outras universidades dos Estados Unidos. Esses protestos revelam aspectos-chave da nossa instituição, a universidade de elite, e seu papel no capitalismo racial global. Deixe-me compartilhar três pontos aqui.
Primeiro, o que aconteceu na Ucla não foi simplesmente a criminalização do protesto estudantil, mas sim a orquestração de formas significativas de violência de justiceiros e do Estado contra manifestantes estudantis. Isso revelou mais uma vez o que sempre soubemos sobre policiamento: que os “outros” que são alvo – “o outro” racialmente diferente, “o outro” que é pobre, neste caso, “o outro” politicamente – estão sujeitos à punição da polícia e da lei, mas não têm assegurada a proteção da polícia e da lei. Isso foi orquestrado pela administração da Ucla e com apoio de um elenco de políticos. Levaram horas para responder à terrível violência de autoproclamados sionistas e nacionalistas brancos contra o acampamento de solidariedade à Palestina, e para atrasar investigações e prisões. Como disse um dos meus alunos de pós-graduação que estava no acampamento: “A universidade está tentando nos matar”. No entanto, a administração da Ucla conseguiu mobilizar a polícia contra o acampamento em um piscar de olhos, prendendo centenas de estudantes que sofreram o ataque de armas “não letais”, e que continuam a enfrentar acusações disciplinares.
Em segundo lugar, a administração da Ucla e nosso establishment político mais amplo nutriram aqueles que abertamente defendem a morte e o sofrimento palestino, muitas vezes instrumentalizando o antissemitismo. O Jewish Faculty Resilience Group, que está listado na página da Comunidade da Ucla, é um exemplo proeminente disso. Eles defenderam vigorosamente a criminalização do protesto estudantil e de qualquer forma de discurso, reunião e ensino pró-palestinos, e agora se aliaram a políticos de direita em Washington D.C. para nos condenar a todos como terroristas. Eles preferem ter esta universidade destruída a permitir qualquer crítica às políticas de um Estado-nação, no caso Israel. E eles receberam permissão para essas ações da universidade e do legislativo. Neste momento, o ataque da direita às universidades já está em andamento há algum tempo, tendo acadêmicos de cor e campos de estudo, como, por exemplo, Critical Race Studies, como alvos principais. Mas isso agora se tornou uma guerra total aberta com a intenção de criminalizar qualquer discurso, expressão, forma de conhecimento e pedagogia que expressem solidariedade à Palestina e aos palestinos. Essa exceção palestina à liberdade de expressão expõe, portanto, a universidade dos Estados Unidos de maneiras sem precedentes. Claro, a equação da crítica às políticas do Estado israelense com o antissemitismo prejudica a luta contra o antissemitismo real e deprecia os judeus anti e não sionistas como não dignos de proteção. O esforço acadêmico também está em um ponto de inflexão extraordinário, em que a exceção palestina relacionada com a instrumentalização do antissemitismo está tendo um efeito cascata que ameaça todos os campos acadêmicos relacionados à raça e à desigualdade racial, do DEI [Diversidade, Equidade e Inclusão] aos estudos étnicos. Os instrumentos então utilizados – de proibições de declarações “políticas” a acusações disciplinares contra alunos, professores e funcionários por participação em protestos, passando por intimações no Congresso federal para prestar informações ilimitadas de alunos, professores e funcionários, até ações judiciais que enquadram os protestos como “inseguros” para professores e alunos judeus – estão alterando de forma dramática e irrevogavelmente o domínio institucional que é a universidade e sua premissa de liberdade acadêmica como condição necessária para a investigação crítica.
Terceiro, o acampamento de solidariedade a Gaza e as ações de protesto subsequentes são prefigurativas. Imaginam e praticam abolição, solidariedade, comunidade. São, como Ruthie Gilmore diria, um ensaio para a vida. E é por isso que são tão ameaçadoras para a universidade imperial. Exigem uma transformação da universidade como um ator financeiro e investidor, interrogam o poder de definir agenda dos doadores privados, expõem o edifício da pesquisa sustentado por tecnologias e interesses que fazem a guerra e o policiamento. Nossos anciãos Tongva10 há muito tempo exigem essa transformação, pedindo que deixemos de ser uma universidade que “toma terras” para uma que “devolva terras”, e tudo o que fizemos foi renomear os “degraus Janns” [escadaria imponente e central do campus da Ucla] para “degraus Tongva”, e institucionalizar um reconhecimento performativo de terras. As zonas liberadas, o acampamento, transformaram assim a universidade na universidade do povo, alterando as condições estabelecidas de aprendizado, ensino, de comunicação, e de ser.
Falando na Ucla: qual o significado de ter um instituto, dentro da universidade, radicalmente comprometido (acadêmica e politicamente) com as lutas sociais do presente? Como você vê a relação e o papel da universidade e da pesquisa acadêmica com as lutas sociais? E você poderia nos explicar o que significa a pesquisa que vocês nomeiam de research justice e sua importância – não só em termos metodológicos, mas também epistemológicos, éticos e políticos?
Tive o grande privilégio de atuar como diretora fundadora do Ucla Luskin Institute on Inequality and Democracy [Instituto Luskin sobre Desigualdade e Democracia da Ucla]. Desde nossa criação em 2016, busquei criar e liderar um centro de pesquisa que acompanha movimentos e comunidades que estão na linha de frente da despossessão e deslocamento. Passamos a chamar isso de research justice [justiças na pesquisa11], e a consideramos como parte integrante do trabalho de justiça social, racial e espacial. O que isso significa? Deixe-me destacar alguns aspectos-chave da research justice.
A research justice requer uma reconfiguração da relação entre universidades e comunidades, que, como Davarian Baldwin (2023) demonstrou, é estruturada no policiamento, na tomada de terras e na extração de mão de obra. De fato, muitas de nossas universidades são instituições que se apropriaram de terras e consolidaram seu poder financeiro e territorial por meio do roubo organizado pelo Estado de terras indígenas, e por meio de processos em curso de gentrificação, policiamento e deslocamento. Muitas de nossas universidades estão ativamente envolvidas em práticas de imperialismo de fronteira, produzindo algoritmos, mapas e bancos de dados que facilitam fronteiras militarizadas, bem como detenções e deportações. Muitas de nossas universidades são cúmplices do ataque genocida de Israel a Gaza por meio de investimentos em empresas de fabricação de armas e por meio de colaborações com universidades israelenses. A Stop LAPD Spying Coalition [coalização fundada com o objetivo de fortalecer as comunidades contra a vigilância e o controle policiais], uma organização abolicionista sediada em Los Angeles, denomina apropriadamente isso de “cumplicidade acadêmica”. A universidade é especialmente competente em legitimar a cumplicidade acadêmica por meio da governança liberal, especificamente pelas políticas de reconhecimento, dos reconhecimentos de terras às burocracias [dos programas] de DEI (Diversidade, Equidade, Inclusão). No Instituto, recusamos as formas de reconhecimento liberal que frequentemente caracterizam o engajamento comunitário na universidade neoliberal. Em vez disso, buscamos criar formas de prestação de contas, responsabilidade e reciprocidade com movimentos e comunidades.
Também temos muito claro que nosso trabalho consiste na organização do conhecimento. Não somos necessariamente ativistas ou revolucionários. Ao invés disso, somos, na maioria das vezes, apenas pesquisadores. Mas nosso conhecimento e aprendizagem se realizam como um terreno compartilhado de sonhos por liberdade e lutas de libertação. Inspirado pela Black Radical Tradition, o Instituto buscou criar formas de estudo alternativas e subversivas, propondo um programa de residência na Ucla para ativistas12, coletivos de pesquisa13 com pesquisadores universitários e dos movimentos, incluindo companheiros sem moradia, e cursos de verão de justiça habitacional14 com líderes de movimentos e ativistas comunitários.
Acreditamos que a universidade transformada pode de fato ser uma força para a justiça social. Esse otimismo é evidente nos encontros que organizamos após a eleição de Trump [ver nota 6]. Durante a semana de sua posse como presidente dos Estados Unidos, convocamos um dia nacional de ação coletiva intitulado Teach.Organize.Resist15 [Ensine, Organize, Resista]. Por meio de práticas artísticas, performances musicais, aulas públicas, manifestos, assembleias e muito mais, o 18 de janeiro de 2017 se tornou um dia de educação sobre – e protesto contra – o nacionalismo branco nos Estados Unidos e além. Embora voltado para a política de Estado de Trump, foi um esforço mais amplo para refazer a universidade como um espaço de solidariedade e de mobilização do poder da pedagogia contra o racismo e a xenofobia.
Por fim, quero dizer que esse trabalho é difícil. Nós lutamos com isso. Tentamos praticar research justice todos os dias. Muitas vezes vacilamos e falhamos. Somos gratos aos nossos companheiros brasileiros por nos inspirarem e por participarem do trabalho do Instituto – Raquel [Rolnik], Carlos [Vainer], Renato [Abramowicz Santos], Camila [D’Ottaviano]. No momento, estamos lidando com as seguintes questões, que vocês notarão ser existenciais e éticas: O que é memória coletiva/testemunho sob condições de deslocabilidade permanente? O que significa fazer pesquisa sob a mira de uma arma? O que devemos às nossas comunidades que se envolvem e participam, vivem e morrem por este trabalho?
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2
. Dentro da história, formação e composição étnico-políticas e fenotípicas da sociedade estadunidense, “black” (preto) designa a população negra, enquanto “brown” (marrom) se refere, no seu conjunto ou de forma parcial e particular, a outros grupos e povos, como pessoas latinas e também alguns grupos originários do sul da Ásia, como por exemplo indianos, ou do Oriente Médio. Em algumas vezes, indígenas também podem estar incluídos nessa designação, sendo recorrente também o uso do termo “red” (vermelho). A indicação de traduzir “brown” por “pardo” não parece a mais adequada, por se tratar de designações, origens e manifestações (étnicas, fenotípicas e políticas) diferentes das brasileiras (NT).
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3
. Ao longo da entrevista, aparecem se alternando dois termos: unhoused e homeless. O primeiro foi traduzido por “sem moradia” enquanto o segundo, por “sem-teto”, que no Brasil não é mero adjetivo, mas uma categoria política. Por mais que Ananya prefira a utilização de “unhoused”, ela alterna de maneira indistinta entre um e outro ao longo de suas respostas. Apenas mais para a frente, ela desenvolve uma leitura mais analítica em torno da categoria “homeless”. De todo modo, a situação social dos Estados Unidos que está sendo referida seria mais próxima do que no Brasil nomeamos por “população em situação de rua” – mesmo que, evidentemente, com diferenças também. Em Los Angeles, sobretudo, está se referindo a pessoas que moram em barracas nas ruas (e que no seu conjunto é chamado de acampamento), havendo também quem more em automóveis (NT).
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4
. Ucla Luskin Institute on Inequality and Democracy, https://challengeinequality.luskin.ucla.edu/sanctuary-spaces/.
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5
. Anti-negritude: mundos transnacionais de abolição, https://challengeinequality.luskin.ucla.edu/abolition-on-stolen-land/; Asilo: nas fronteiras do humanitarismo, https://challengeinequality.luskin.ucla.edu/the-end-of-humanitarianism/; e Cercamento: geografias da recusa, https://challengeinequality.luskin.ucla.edu/freedom-and-fugitivity/.
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6
. Esta entrevista foi concedida em 2024 durante o processo eleitoral estado-unidense, portanto, antes da eleição de Donald Trump. Assim, a eleição e o regime de Trump a que Ananya se refere nesta entrevista são do seu primeiro mandato (eleição em 2016 e mandato de 2017 a 2021) (NT).
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7
. A petição foi divulgada pelo Ucla Promise Institute for Human Rights.
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8
. Tradução livre do tradutor e não da edição brasileira (NT).
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9
. Poderia ser traduzido como “Mães para Moradia”, um movimento composto principalmente por mães negras lutando pelo direito à moradia (NT).
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10
. Tongva é o povo nativo da região que se localiza atualmente Los Angeles, no estado da Califórnia. Expressões políticas como “Aqui é terra Tongva” ou “Califórnia é terra indígena” são comumente ditas e vistas em intervenções políticas como protestos, em declarações públicas, pichadas em muros, em manifestações culturais e artísticas, realizadas por coletivos ativistas e grupos acadêmicos progressistas de Los Angeles (NT).
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11
. Para além de uma metodologia, trata-se de uma prática e de uma ética política no fazer pesquisa. Comprometidas com a busca e efetivação por justiça social, racial e espacial, como mencionado na resposta, mas comprometidas também com coletivos e comunidades (não acadêmicas), que existem fora da universidade, em alianças que se forjam em meio (e por conta) das disputas que se dão nos espaços urbanos e mundos sociais nos quais os/as pesquisadores e ativistas circulam, se encontram e constroem. A tradução precisa do termo é difícil, dado o desafio de preservar as várias camadas de sentidos e compromissos que existem. Por isso a escolha do “na” em “justiças na pesquisa”, porque a dimensão de justiças surge tanto como busca e objetivo político coletivos, como é uma ética que se realiza dentro do exercício de sua própria prática. Já a escolha do plural em “justiças na pesquisa” se deve tanto às várias formas de justiça que se buscam alcançar e realizar, quanto pelo fato de no Brasil “justiça” no singular ter uma força e dimensão institucionais e formais predominantes, que não condiz com os meios de ação e estratégias políticas privilegiadas pelos grupos e coletivos de pesquisa e ativistas de Los Angeles, que priorizam atuar em instâncias e dimensões outras que as institucionais – devo e agradeço a sugestão à Giulia Esteves (NT).
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12
. The Ucla Activist-in-Residence program, https://challengeinequality.luskin.ucla.edu/activist-in-residence/.
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13
. Insurgent Housing Research, https://challengeinequality.luskin.ucla.edu/insurgenthousingresearch/.
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14
. Methodologies for Housing Justice: A Summer Institute for Movement-Based & University-Based Scholars (2019), https://unequalcities.org/summer-institute-methodologies-for-housing-justice/.
- 15
Editado por
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Editor
Alexandre B. Massella
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Set 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2025
Histórico
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Recebido
02 Out 2024 -
Aceito
31 Out 2024
