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Plataformas digitais de cuidado no Brasil: Acesso e controle do trabalho no entrecruzamento de múltiplas crises1 1 Os resultados apresentados neste artigo são parte de uma pesquisa em curso, que conta com o apoio financeiro da Fapesp/T-AP, Projeto “Who cares? Rebuilding care in a post-pandemic world” (Processo 2021/07888-3), do CNPq/Edital Universal (Proc. 421754/2001-4) e da Fundação Arymax (Doação Arymax/Cebrap, julho de 2022). Agradecemos aos avaliadores anônimos da Tempo Social a pertinência dos comentários e a qualidade das sugestões.

Digital care platforms in Brazil: Access and control of work at the intersection of multiple crises

Resumo

As empresas-plataforma voltadas ao trabalho de cuidado expandiram-se velozmente nos últimos anos no Brasil, em especial após a recente crise sanitária. Tal expansão trouxe para a ordem do dia o tema deste artigo, a saber, os possíveis efeitos da pandemia de Covid-19 sobre a digitalização da intermediação do trabalho nos cuidados, um segmento para o qual a literatura brasileira sobre plataformização do trabalho tem estado pouco atenta. Para acompanhar o ritmo desse crescimento, várias estratégias foram adotadas diante do desafio da falta de dados desagregados para o setor. Assim, mapeamos os aplicativos e plataformas de cuidado, construindo um banco de aplicativos a partir de dados da principal loja de apps no país; bem assim, analisamos os sites, os Termos de Serviços e Condições de Uso de três plataformas de cuidado direto e indireto. Conduzimos, ainda, entrevistas com trabalhadoras nessas plataformas e analisamos suas denúncias postadas no site Reclame Aqui. Concluímos que a governança das plataformas afetou o cotidiano das trabalhadoras sob diferentes formas e com efeitos variados conforme cada plataforma. Entre eles, destacamos o diálogo com os clientes, o controle via sistema de notas prescritivas e punitivas, a inclusão de tarefas que iam além da atividade contratada, bem como a sobreposição de diferentes formas de cuidado. Ter documentado a intensificação do trabalho de cuidado e a capacidade manifesta pela empresa-plataforma de ir além do mero pareamento entre demandantes e ofertantes, passando a intervir no modo como o próprio trabalho se exerce, é a contribuição desta pesquisa para uma análise das formas assumidas pelo amplo e recente processo de digitalização do trabalho de cuidado no Brasil.

Palavras-chave:
Plataformas de trabalho; cuidado; intermediação; Brasil

Abstract

In Brazil, especially after the health crisis, we have witnessed the expansion of care platform companies. From this process, a question emerged: what were the possible effects of the Covid-19 pandemic on the digitization of labor intermediation in the care sector? Through the analysis of workers’ experiences in three platforms, encompassing direct and indirect care, we sought to understand how the pandemic, intertwined with the governance of these companies, affected care work practices. To confront the lack of disaggregated data, we mapped the care apps and platforms collecting data from the country’s main app store; we analyzed the platforms’ Terms of Service and Conditions of Use, and the company websites; we conducted interviews with workers on these platforms; and we referred to their complaints on the Reclame Aqui website. We conclude that the governance of the platforms affected the workers’ experience in different ways and with varying effects depending on the platform. Among them, we highlighted the dialogue between clients and workers, the exacerbating of control provided by a system of prescriptive and punitive ratings, the conditions of care work, including tasks that go beyond expected activities, leading to an overlap of different forms of care. Having documented the intensification of care work and the capacity of the platforms to go beyond the matching of demanders and providers towards intervening in the way work itself is performed is the contribution of this research to an analysis of the forms taken by the broad and recent process of digitalization of care work in Brazil.

Keywords:
Digital labor platforms; Care; Job intermediation; Brazil.

Introdução

O trabalho de cuidado é reconhecidamente heterogêneo, seja pelas atividades que abrange, seja pelas formas sob as quais é organizado, seja ainda pelo contexto no qual se exerce. Inúmeros estudos documentaram tal heterogeneidade (Duffy, 2011DUFFY, Mignon. (2011), Making Care Count. A century of gender, race, and paid care work. Piscataway, NJ, Rutgers University Press.; Carrasco, Borderías e Torns, 2011CARRASCO, Cristina; BORDERíAS, Cristina; TORNS, Tereza. (2011), El trabajo de cuidados. Historia, teoría y políticas. Madri, Los Libros de la Catarata.; Le Bihan, Martin e Knijn, 2013LE BIHAN, Blanche; MARTIN, Claude & KNIJN, Trudie. (2013), Work and care under pressure. Care arrangements across Europe. Amsterdam, Amsterdam University Press.; ILO, 2018ILO - INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. (2018), Care works and care jobs: for the future of decent work. Geneva, ILO.). Deles depreendemos que o Brasil é o maior mercado de trabalho domiciliar remunerado, não apenas na América Latina, mas no mundo; e que esse amplo segmento ocupacional está ocupado majoritariamente por mulheres racializadas (afrodescendentes, no caso brasileiro), sujeitas a condições laborais especialmente precárias. Por isso mesmo, neste texto focalizaremos o trabalho de cuidado que se realiza nos domicílios como um serviço prestado em troca de remuneração, tanto na atenção direta a pessoas dependentes, quanto no cuidado indireto com as condições para a reprodução e/ou a preservação do ambiente domiciliar.

De acordo com estatísticas oficiais brasileiras, algumas ocupações são especialmente relevantes nesse mercado, como mostram Guimarães e Pinheiro (2023)GUIMARãES, Nadya & PINHEIRO, Luana. (2023), “O halo do cuidado. Desafios para medir o trabalho remunerado de cuidado no Brasil”. In: CAMARANO, Ana Amelia & PINHEIRO, Luana (orgs.). Cuidado, verbo transitivo: caminhos para a provisão de cuidados no Brasil. Brasília, Editora Ipea, ch. 10: 443-485. e Almeida e Wajnman (2023)ALMEIDA, Mariana & WAJNMAN, Simone. (2023), Occupational transitions of paid care workers during the Covid-19 pandemic in Brazil. Working Paper Series “Documentos de Trabalho”, Project “Who cares? Rebuilding care in a post pandemic world” and Network “Cuidados, direitos e desigualdades”. São Paulo, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), n. 3.. Babás e cuidadoras de idosos se destacam no cuidado direto; juntas, elas perfazem 99% das pessoas dedicadas a esse tipo de trabalho. Já no cuidado indireto sobressaem as trabalhadoras ocupadas em serviços domésticos gerais (especialmente faxineiras e cozinheiras), que totalizam 99% das pessoas ali atuantes. Se observarmos o mercado brasileiro do serviço domiciliar de cuidados como um conjunto, veremos que, de cada dez trabalhadoras empregadas, oito classificavam a sua ocupação principal como provedora de serviços domésticos gerais e duas como provendo cuidados, sendo uma em dez a idosos e uma em dez a crianças menores (Fontoura e Marcolino, 2021FONTOURA, Natalia & MARCOLINO, Adriana. (2021), “A heterogeneidade do trabalho doméstico no Brasil”. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Organização Internacional do Trabalho. Disponível em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11444/1/heterogeneidade_trabalho_cap04.pdf, consultado em 31/08/2023.
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; Guimarães e Pinheiro, 2023GUIMARãES, Nadya & PINHEIRO, Luana. (2023), “O halo do cuidado. Desafios para medir o trabalho remunerado de cuidado no Brasil”. In: CAMARANO, Ana Amelia & PINHEIRO, Luana (orgs.). Cuidado, verbo transitivo: caminhos para a provisão de cuidados no Brasil. Brasília, Editora Ipea, ch. 10: 443-485.). Por essa razão, babás, cuidadoras e trabalhadoras domésticas em serviços gerais serão as ocupações sobre as quais nos deteremos.

Apesar de serem poucos os estudos que investigaram as formas de acesso a esse trabalho e o papel da intermediação, eles demonstraram a crescente importância dos intermediadores, como as agências de emprego especializadas em trabalho doméstico (de cozinheiras, babás, faxineiras), atuantes desde meados do século passado (Lima, 2023LIMA, Léa. (2023), “The commodification of job vacancies: market practices of fee-charging employment agencies in Rio de Janeiro (1950-1975)”. Sociologia & Antropologia, 13 (1): 1-26.) e em expansão sob novas formas no Brasil atual (Araujo, 2015ARAUJO, Anna Bárbara. (2015), Gênero, profissionalização e autonomia: o agenciamento do trabalho de cuidadoras de idosos por empresas. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado em Sociologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Nesse contexto, a crescente digitalização das atividades econômicas, o surgimento de empresas-plataforma de trabalho e o seu espraiamento pelo setor de cuidados nos colocaram diante de novos desafios analíticos. Isso porque as plataformas de trabalho, ao tempo em que mobilizam a narrativa da autonomia das trabalhadoras, introduzem, como veremos, uma série de ferramentas de gestão algorítmica voltadas ao monitoramento, ao dirigismo econômico e mesmo à punição de trabalhadoras. Esses aspectos do trabalho plataformizado colocam outras questões aos estudos sobre intermediários no mercado de trabalho, desafiando-nos a entender a emergência, no Brasil, de novas formas de acesso, gestão e controle do trabalho de cuidado.

Contudo, o país carece de estatísticas para monitorar com precisão e em escala nacional tanto a amplitude com que o processo de digitalização alcança o setor do cuidado, quanto o impacto das empresas-plataforma sobre esse tipo de serviço. Assim, na segunda seção deste texto, nos aproximamos do tema associando dois tipos de fontes. Para incursionar nos impactos da digitalização sobre a socioeconomia dos cuidados no Brasil, analisaremos um banco de dados construído para dar conta da dinâmica de crescimento de aplicativos e de empresas-plataforma de trabalho no setor. Ademais, para situar os impactos do trabalho plataformizado nos cuidados, examinaremos os estudos de caso até aqui realizados, em busca de novas pistas.

Na terceira seção, ecoaremos as vozes de trabalhadoras cadastradas em plataformas no setor de cuidados, analisando suas percepções quanto ao efeito das governanças das empresas-plataforma sobre suas experiências, a partir da pesquisa em curso. Especial atenção será dada ao modo como essas trabalhadoras relatam o impacto da pandemia, pois, do ponto de vista do acesso e permanência no mercado de trabalho, estudos quantitativos recentes mostraram que a pandemia teve um efeito desigual sobre as condições de inclusão das trabalhadoras de cuidado indireto, como as domésticas, e de cuidado direto, como babás e cuidadoras de idosos (Almeida e Wajnman, 2023ALMEIDA, Mariana & WAJNMAN, Simone. (2023), Occupational transitions of paid care workers during the Covid-19 pandemic in Brazil. Working Paper Series “Documentos de Trabalho”, Project “Who cares? Rebuilding care in a post pandemic world” and Network “Cuidados, direitos e desigualdades”. São Paulo, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), n. 3.). Entretanto, muito pouco se sabe sobre como esses impactos afetaram o trabalho plataformizado de cuidado. Entender essa conjuntura requer ter em mente que, no caso brasileiro, ela expressa tanto desigualdades na estruturação do mercado de trabalho, como a conjunção de crises que caracteriza o contexto mais recente: para além da crise sanitária, o país vinha de uma crise econômica que se aprofundou a partir de 2014, e que se associou a uma crise política, como o impedimento e a substituição da presidente da República em 2016; no que concerne às relações de trabalho, o acesso a direitos também entra em crise a partir de 2017, com a aprovação de uma nova legislação de regulação do trabalho. Como veremos, essa convergência de múltiplas crises deixa marcas na dinâmica do emprego e das relações laborais, tanto no que respeita ao trabalho plataformizado, como no que concerne à dinâmica do emprego e do uso do trabalho no setor dos cuidados. A isso retornaremos, conclusivamente, na quarta e última seção.

Plataformização do trabalho, do cuidado e do trabalho de cuidado no Brasil: expansão em meio a crises

A presença de empresas-plataformas no mercado brasileiro já se fazia sentir desde meados dos anos 2000. Tal ingresso deu-se a partir de setores marcados pela precariedade do trabalho e, em poucos anos, essas empresas passaram a adentrar setores até então caracterizados pelo trabalho formal e pela presença de fortes entidades de classe. Esse movimento de espraiamento leva à presença das empresas-plataforma num amplo leque de setores, compreendendo comércio, jurídico, crowdwork, saúde, financeiro, educação, tecnologia da informação, futebol, beleza, cuidado direto e indireto, bancário, transporte rodoviário, imobiliário, entre outros (Cardoso, 2022CARDOSO, Ana Claudia Moreira. (mar. 2022), “Dossiê plataformas digitais II”. Revista Ciências do Trabalho, 21, ISSN 2319-0574. Disponível em https://rct.dieese.org.br/index.php/rct/issue/view/22, consultado em 03/11/2023.
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).

Conquanto ainda sejam escassos os estudos a esse respeito, alguns achados podem ser depreendidos, permitindo delinear um modus operandi comum às empresas-plataforma no Brasil (Kalil, 2019KALIL, Renan Bernardi. (2019), Capitalismo de plataforma e direito do trabalho: crowd work e trabalho sob demanda por meio de aplicativos. São Paulo, tese de doutorado em Direito do Trabalho e da Seguridade Social, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.; Cavarzan, 2022CAVARZAN, Gustavo. (2022), “Ensaios de plataformização do trabalho no setor financeiro: o modelo de negócios das Fintechs e corretoras de valores”. Revista Ciências do Trabalho, 21: 1-4.; Ikuta e Santana, 2022IKUTA, Camila & SANTANA, Yuri. (2022), “Manifestações do trabalho em plataformas na educação”, Revista Ciências do Trabalho (21): 01-04.; Rodrigues, 2022aRODRIGUES, Ciane dos Santos. (2022a), Trabalho médico sob demanda por meio de plataformas digitais: controle por algoritmos e implicações às relações de trabalho. Rio de Janeiro, tese de doutorado em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz.). Nele se compreendem alguns traços: (i) infraestrutura e mediação digital; (ii) a plataformização como uma dimensão do processo mais amplo de digitalização; (iii) gestão por metas, gamificada e por meio de algoritmos; (iv) desconsideração das legislações; (v) dataficação. É certo, entretanto, que em cada setor ou subsetor as empresas se diferenciam por seus modelos de negócio, por suas relações com clientes e com trabalhadores e por suas formas de organização do trabalho. Se é certo que essas diferenças estão relacionadas com características setoriais, elas também expressam definições e escolhas das próprias empresas-plataforma (Cardoso e Pereira, 2023CARDOSO, Ana Claudia Moreira & TAVARES PEREIRA, MARIA JúLIA. (2023), A plataformização do trabalho no Brasil e o subsetor dos cuidados: uma revisão de achados bibliográficos. Working paper series “Documentos de Trabalho”, Project “Who cares? Rebuilding care in a post pandemic world” and Network “Cuidados, direitos e desigualdades”. São Paulo, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), 1. Disponível em https://cuidado.cebrap.org.br/2023/02/15/a-plataformizacao-do-trabalho-no-brasil-e-o-subsetor-dos-cuidados-uma-revisao-de-achados-bibliograficos/, consultado em 29/08/2023.
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).

O contingente de trabalhadores ocupados em atividades exploradas por empresas-plataforma cresceu em praticamente todos os segmentos entre 2012 e 2019, e andou de braços com uma diversificação do perfil dos trabalhadores e trabalhadoras no que se refere à idade, sexo, raça/etnia e posição na família (Cardoso e Garcia, 2022CARDOSO, Ana Claudia Moreira & GARCIA, Lúcia. (2022), “Apresentação: o espraiamento das empresas-plataforma”. Revista Ciências do Trabalho, 21: 1-4. Disponível em https://rct.dieese.org.br/index.php/rct/article/view/289/pdf, consultado em 20/08/2023.
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). A expansão mais significativa ocorreu após 2016, como evidenciado por estudos a respeito dos únicos segmentos para os quais existem dados desagregados, quais sejam, motoristas (trabalhadores de plataformas, de táxi e de ônibus) e motoboys e entregadores (em plataformas e outras empresas). Entre 2016 e 2019, o incremento de trabalhadores em empresas-plataforma foi de quase 42% no caso dos motoristas e entre os motoboys e entregadores alcançou 39%. De acordo com Manzano e Krein (2020)MANZANO, Marcelo & André KREIN. (2020), “A pandemia e o trabalho de motoristas e de entregadores por aplicativos no Brasil”. Cesit, Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho/Unicamp. Disponível em https://www.cesit.net.br/a-pandemia-e-o-trabalho-de-motoristas-e-de-entregadores-por-aplicativo-no-brasil/, consultado em 15/07/2023.
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, esse movimento evidencia a relação existente entre a expansão das empresas-plataforma e as crises política e econômica vividas a partir daquele momento no Brasil. Dessa primeira conjunção de crises resultou um expressivo e constante aumento do desemprego, da informalidade e da subutilização da força de trabalho.

Estudo subsequente evidenciou que, no transcurso da pandemia da Covid-19, os dois setores foram diferenciando-se (Ipea, 2022IPEA. (2022), “Painel da Gig Economy no setor de transporte do Brasil: quem, onde, quantos, e quanto ganham”. Nota de Conjuntura 14, n. 55, 2 trim. 2022. Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/220510_cc_55_nota_14_gig_economy.pdf, consultado em 23/10/2022.
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). Assim, entre 2019 e 2021, enquanto houve um incremento de 151% no número de entregadores, reduziu-se em 10% o número de motoristas em empresas-plataforma. Essa contração no setor de transporte, em que é direto o contato entre o cliente e o trabalhador, já havia sido documentada em estudos de caso (Cardoso et al, 2022CARDOSO, Ana Claudia Moreira et al. (jan.-jun. 2022), “A pandemia da Covid-19 e o agravamento da precariedade do trabalho dos motoristas em empresas-plataforma de transporte individual em uma cidade brasileira de médio porte”. Revista da Abet, 21 (1): 33-51.), demonstrando o encolhimento da demanda por esse serviço por conta do distanciamento social, com fechamento de muitos estabelecimentos e um crescente receio de contágio.

Na ausência de pesquisas públicas nacionais até 20222 2 Os recentes dados divulgados pelo IBGE (2023), fruto de investigação experimental, apenas minoraram a lacuna existente, visto que persistiu a subinformação acerca da plataformização do cuidado. Com efeito, revelaram que, no quarto trimestre de 2022, 1,5 milhão de pessoas exerciam o trabalho principal “por meio de plataformas digitais e aplicativos de serviços, o equivalente a 1,7% da população ocupada no setor privado” (2023, p. 3). Conseguimos também saber que, deste total, 52,2% estavam no setor de transporte de passageiros, 39,5% no de entrega e 13,2% no amplo segmento da prestação de serviços. Com essa concentração das plataformas em setores tradicionalmente ocupados por homens, é fácil compreender o perfil dos trabalhadores: 81,3% são do sexo masculino e 18,7% do sexo feminino, como já apontavam estudos anteriores (Cardoso et al., 2022; Machado e Zanoni, 2022; Ipea, 2022). Entretanto, os dados até aqui veiculados apenas aprofundam características relevantes (como condições de trabalho, jornada laboral e remuneração) para os setores masculinos de transporte e entrega. , Machado e Zanoni (2022)MACHADO, Sidnei & ZANONI, Alexandre Pilan (orgs.). (2022), O trabalho controlado por plataformas digitais: dimensões, perfis e direitos. Curitiba, Universidade Federal do Paraná, Clínica Direito do Trabalho. Disponível em https://cdtufpr.com.br/wp-content/uploads/2022/04/Livro_O-trabalho-controlado-por-plataformas-digitais_eBook.pdf, consultado em 29/08/2023.
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conduziram uma análise de tráfego de dados da web e revelaram que, durante a pandemia, houve uma redução da oferta de trabalho nas empresas-plataforma location-based. A exceção seria, como vimos, o setor de entregas. Ao mesmo tempo, houve uma ampliação da oferta de trabalho nas plataformas nas quais o resultado do trabalho é entregue on-line (web-based). Esse movimento pode ser associado às restrições de interações presenciais para evitar a propagação da doença, levando a que cada vez mais pessoas utilizassem os meios digitais em suas relações sociais.

No que se refere às empresas-plataforma de cuidado, a literatura, sobretudo internacional, se adensou a partir de 2018 (Ticona e Mateescu, 2018TICONA, Julia & MATEESCU, Alexandra. (2018), “Trusted strangers: Carework platforms’ cultural entrepreneurship in the on-demand economy”. New Media & Society, 20 (11): 4384-4404. https://doi.org/10.1177/1461444818773727
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), apesar de estudos apontarem que, desde a primeira metade dos anos 2010, algumas empresas já atuavam tanto no exterior, quanto no Brasil (Cordero, 2022CORDERO, K. H. (2022), Código doméstico in the flesh: relatos de trabajadoras en apps de limpieza. Quito, Equador. Disponível em http://www.codigodomestico.com/pdf/CODI-GO%20DOMESTICO%20in%20the%20flesh_Kruskaya%20Hidalgo.pdf, consultado em 05/12/2022.
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)3 3 A pouca visibilidade com que transcorre esse processo ecoa a invisibilidade que costuma atingir o próprio trabalho do cuidado e, com isso, as suas trabalhadoras - em sua maioria mulheres e, mais exatamente, mulheres racializadas (predominantemente negras e/ou migrantes). Isso também conflui para explicar o incipiente entendimento sobre a(s) lógica(s) das plataformas digitais nesse subsetor. . Com efeito, entre nós, apesar de sabermos que desde 2014 existiam plataformas no setor, apenas a partir de 2020 os estudos emergem de modo mais significativo (Matias e Araujo, 2020MATIAS, Krislane Andrade & ARAUJO, Anna Bárbara. (2020), “Estudo de mercado - Brasil: Novos atores, velhas questões? Uma análise sobre as agências, empresas e aplicativos para trabalhadoras domésticas”. Themis: Gênero, Justiça e Direitos Humanos, Porto Alegre, RS. Disponível em https://themis.org.br/wp-content/uploads/2020/12/NOVOS-ATORES-VELHAS-QUEST%C3%95ES-PORTUGU%C3%8AS.pdf, consultado em 29/08/2023.
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; Vale e Rebechi, 2021aVALE, Gabriel Ferreira & REBECHI, Claudia Nociolini. (2021a), Formas prescritivas de comunicação no trabalho doméstico remunerado realizado em duas plataformas digitais de trabalho. Paper presented at The Scientific and Technological Initiation Seminar. Universidade Federal de Tecnologia, Paraná, Brasil., 2021bVALE, Gabriel Ferreira & REBECHI, Claudia Nociolini. (2021b), Uberização do trabalho doméstico remunerado: formas prescritivas de trabalho na plataforma Donamaid. Paper presented at XVII Brazilian Association of Labour Studies Annual Meeting. Universidade Federal de Uberlândia, Brasil.; De Oliveira, 2022DE OLIVEIRA, Renata Couto de Azevedo. (2022), Análise crítica do discurso das falas das diaristas nos vídeos da plataforma de serviços domésticos Parafuzo. Paper presented at XI ANPAD Organizational Studies Conference. On-line event.; Benedito, 2022BENEDITO, Fabiana de Oliveira. (2022), Trabalho doméstico em plataformas digitais: considerações iniciais sobre a Parafuzo. Paper presented at 46º ANPOCS Annual Meeting, State University of Campinas, Brasil.; Ferreira, 2022FERREIRA, Mariana Maciel Viana. (2022), Trabalhadoras domésticas uberizadas: uma análise dos desafios do direito do trabalho a partir da Plataforma Parafuzo. Brasília, monografia em Direito, Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.; Moreno, 2022MORENO, Renata. (2022), “O cuidado na era digital”. Instituto Lula. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1Ry-E8NhgJIhvg9WY6LHxMbq3hHM4mEYR/view, consultado em 09/01/2023.
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; Cardoso e Pereira, 2023CARDOSO, Ana Claudia Moreira & TAVARES PEREIRA, MARIA JúLIA. (2023), A plataformização do trabalho no Brasil e o subsetor dos cuidados: uma revisão de achados bibliográficos. Working paper series “Documentos de Trabalho”, Project “Who cares? Rebuilding care in a post pandemic world” and Network “Cuidados, direitos e desigualdades”. São Paulo, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), 1. Disponível em https://cuidado.cebrap.org.br/2023/02/15/a-plataformizacao-do-trabalho-no-brasil-e-o-subsetor-dos-cuidados-uma-revisao-de-achados-bibliograficos/, consultado em 29/08/2023.
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).

Esse adensamento do conhecimento sobre o tema das plataformas de cuidado no Brasil reflete a própria expansão dessas empresas no nosso país. Isso é o que nos revela o mapeamento que realizamos para o ano de 2023, englobando as empresas atuantes na intermediação digital do trabalho de cuidado via aplicativos e/ou empresas-plataforma. Com efeito, observamos que parte significativa do conjunto de aplicativos e de plataformas de intermediação de trabalho em operação em 2023 foi lançada a partir de 2016 e, de modo mais pronunciado, a partir de 2019 (Gráfico 1).

GRÁFICO 1
Ano de lançamento dos aplicativos em operação em 2023

De modo a compilar as empresas que atuam na intermediação digital do trabalho de cuidado, produzimos um banco de dados com base na captura automatizada de informações disponibilizadas na loja de aplicativos mais utilizada no país. Nele, estão reunidos os aplicativos por meio dos quais as plataformas de trabalho operam, mas também aplicativos de divulgação de vagas em geral.

A busca foi feita em fevereiro de 2023 e atualizada em outubro do mesmo ano, a partir de 168 palavras-chave relacionadas ao cuidado domiciliar direto e indireto. Foram inicialmente identificados 9416 aplicativos, que foram submetidos a uma primeira triagem automatizada. Isso nos permitiu excluir todos os casos classificados pela loja de aplicativos como pertencentes a categorias que extrapolavam os interesses dessa pesquisa, como “Cassino”, “Fotografia”, “Música” etc., restando pouco mais de 6 mil casos. Em seguida, foi realizada uma triagem manual, que consistiu na leitura de cada uma das descrições dos aplicativos, de modo a avaliar se correspondiam aos nossos interesses. Assim, os casos puderam ser classificados como aplicativos para “intermediação de trabalho”, para “controle e gestão do trabalho” ou “sem interesse”; neste último caso, foram incluídos os aplicativos de jogos, bem como aqueles que auxiliam usuários em dietas ou perda de peso e outros relacionados ao autocuidado. Dessa forma chegamos aos 170 aplicativos classificados como voltados à “intermediação de trabalho”. Esse conjunto inclui aplicativos mais gerais de divulgação de vagas nos mais diversos setores, não apenas no trabalho doméstico, bem como aplicativos das empresas-plataforma de trabalho4 4 As empresas-plataforma criam aplicativos que podem ser instalados no telefone celular de seus usuários. Muitas vezes, uma mesma empresa-plataforma opera por meio de dois aplicativos diferentes, um deles direcionado ao contratante e outro ao ofertante de trabalho. As informações coletadas por esses aplicativos são utilizadas não apenas para o encontro entre contratante e ofertante, mas também para a gestão e controle do trabalho realizado. . Tal distinção é importante, pois, conforme referido anteriormente, as plataformas possuem características que as diferenciam de outros empreendimentos, como a gestão algorítmica e a dataficação, por exemplo.

O resultado aponta para um crescimento da digitalização no setor de cuidado, vide a emergência de plataformas de trabalho e demais aplicativos. Se, por um lado, encontramos um conjunto importante de empresas-plataforma que operam exclusivamente intermediando trabalho de cuidado (seja direto ou indireto), por outro, há um contingente também relevante de aplicativos em que circulam oportunidades de trabalho variadas, ou seja, em que o trabalho de cuidado coexiste com outros tipos de trabalho. São justamente os aplicativos mais gerais, isto é, não dedicados exclusivamente ao cuidado, aqueles que contabilizam um número maior de instalações.

O mapeamento também evidenciou que, no Brasil, o processo de digitalização do cuidado não está restrito à intermediação de oportunidades de trabalho. Foi possível observar a presença de aplicativos que não foram criados por empresas-plataforma, mas que servem exclusivamente ao controle e gerenciamento do trabalho de cuidado, seja ele realizado mediante remuneração ou como trabalho não remunerado, sendo exemplos o registro de trocas de fralda, da administração de medicamentos, de banhos, passeios etc. A pessoa responsável pelo cuidado insere a hora exata de realização da atividade, bem como outras informações relevantes sobre a tarefa, de modo que esses dados ficam imediatamente acessíveis a outras pessoas usuárias do aplicativo, que podem ser também responsáveis pelo cuidado ou empregadores dessas pessoas. Dentre os casos a que denominamos aplicativos de gestão do trabalho de cuidado, destacam-se aqueles que permitem registrar as tarefas cotidianas dos trabalhadores - pelos próprios trabalhadores ou pelas empresas (agências ou instituições); as condições de saúde das pessoas e dos animais cuidados; a agenda de medicamentos; o planejamento de atividades; o monitoramento das pessoas cuidadas por meio da integração de câmeras e outros dispositivos conectados etc. Note-se que, também nesses casos, os aplicativos em operação em 2023 foram lançados sobretudo a partir de 2015, com adensamento a partir de 2020 (Gráfico 2). Esses nossos achados oferecem pistas para a compreensão dos caminhos pelos quais as tecnologias digitais, que têm sido introduzidas em agências de intermediação e instituições dedicadas ao cuidado, também adentram o espaço domiciliar, gerenciando o cuidado não remunerado realizado pelas famílias.

GRÁFICO 2
Ano de lançamento dos aplicativos de controle e gerenciamento do trabalho de cuidado em operação em 2023

Em suma, à luz do que vem sendo destacado pela literatura, bem como pelos resultados do mapeamento das empresas-plataforma que atuam no trabalho de cuidado, observamos que, no Brasil, o mais intenso crescimento dessas empresas parece coincidir com a conjuntura de entrecruzamento de crises, que se inicia em 2016, se aprofunda com a Reforma Trabalhista, em 2017, e ganha novos contornos com a crise sanitária em 2020. Entretanto, os dados secundários até aqui acionados não permitem asseverar o quanto dessa expansão se deve a um efeito da pandemia, por ter acentuado um processo de digitalização da economia que já se fazia sentir, e o quanto resultou dos condutos abertos pela alteração na regulação da relação de trabalho, em consequência da nova legislação trabalhista.

Já no que concerne às trabalhadoras domiciliares de cuidado, os dados secundários nos deixam diante de achados igualmente interessantes. Estudos anteriores haviam documentado que, até 2019, a ocupação no cuidado domiciliar crescera no Brasil em ritmo célere e parecia imune ao efeito que as retrações econômicas tinham sobre as oportunidades no mercado de trabalho (Guimarães e Hirata, 2020GUIMARãES, Nadya & HIRATA, Helena. (2020), O gênero do cuidado. Desigualdades, identidades e significações. Cotia, Ateliê Editorial.). Entretanto, Almeida e Wajnman (2023)ALMEIDA, Mariana & WAJNMAN, Simone. (2023), Occupational transitions of paid care workers during the Covid-19 pandemic in Brazil. Working Paper Series “Documentos de Trabalho”, Project “Who cares? Rebuilding care in a post pandemic world” and Network “Cuidados, direitos e desigualdades”. São Paulo, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), n. 3. revelaram que as transições em direção ao desemprego ou à inatividade durante o período da pandemia foram mais intensas para as trabalhadoras do cuidado que para a média do emprego feminino no Brasil. Ademais, tanto a perda do emprego, quanto a ausência de procura por um novo trabalho (passagem à inatividade) foram mais frequentes entre as trabalhadoras no cuidado direto (babás e cuidadoras de idosos) que entre as trabalhadoras no cuidado indireto (trabalhadoras nos serviços domésticos gerais).

Em suma, embora saibamos que a pandemia afetou a dinâmica do mercado de trabalho para o conjunto das ocupadas no cuidado domiciliar, carecemos, como dito, de informação estatística nacional para avaliar o que teria acontecido com o volume do emprego de trabalhadoras em empresas-plataforma do setor de cuidado. Por isso mesmo, na próxima seção recorreremos a informações produzidas em estudos de caso, de modo a melhor descrever as especificidades da atuação das plataformas de cuidado direto e indireto durante a pandemia sob o prisma da percepção das suas trabalhadoras.

Efeitos da pandemia sobre o trabalho domiciliar de cuidado: as percepções de trabalhadoras em plataformas digitais

Em um mercado de trabalho heterogêneo como é o do cuidado, os impactos da pandemia de Covid-19 variam de acordo com as modalidades de trabalho e com o tipo de cuidado que se realiza. Com base em dados da PNAD-Contínua para o período 2019-2021, Almeida e Wajnman (2023)ALMEIDA, Mariana & WAJNMAN, Simone. (2023), Occupational transitions of paid care workers during the Covid-19 pandemic in Brazil. Working Paper Series “Documentos de Trabalho”, Project “Who cares? Rebuilding care in a post pandemic world” and Network “Cuidados, direitos e desigualdades”. São Paulo, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), n. 3. indicaram que no setor do cuidado foram as trabalhadoras ocupadas em âmbito domiciliar as mais atingidas pelo desemprego nos primeiros meses da pandemia; já aquelas que trabalhavam no setor público de saúde e educação tiveram maior estabilidade nos seus vínculos. Se mirarmos as instituições particulares de ensino, foram as professoras de educação infantil e as dos estabelecimentos menores as mais afetadas pela perda de emprego no deflagrar da crise sanitária (FCC, 2022FCC-Fundação Carlos Chagas. (2022), “Mercado de trabalho de professores durante a pandemia no Brasil: tendências e movimentações de empregos”. Project “Educaçãoescolar em tempos de pandemiana visão de professoras(es) da educação básica”. Informe, 5. Disponível em https://www.fcc.org.br/fcc/educacao-pesquisa/mercado-de-trabalho-de-professores-durante-a-pandemia-no-brasil-tendencias-e-movimentacoes-de-empregos/.
https://www.fcc.org.br/fcc/educacao-pesq...
).

Ademais, como vimos na seção anterior, é necessário ter em mente a heterogeneidade do trabalho de cuidado e de suas dinâmicas, se quisermos produzir análises mais certeiras sobre a digitalização da intermediação do cuidado no caso brasileiro. Para enfrentar esse desafio analítico, recorremos à percepção de trabalhadoras de cuidado cadastradas em plataformas digitais. Buscamos mapear as especificidades de suas experiências de trabalho durante a pandemia, bem como seus efeitos em suas trajetórias ocupacionais. Bem assim, articulamos tal análise com uma investigação sobre o modus operandi das plataformas de cuidado que observamos.

Cientes dos desafios metodológicos que se apresentam para esse tipo de análise, sobretudo no que diz respeito aos obstáculos para o acesso às diversas camadas de operação das empresas-plataforma (Moreno, 2023MORENO, Renata. (2023), Plataformas digitais de trabalho de cuidado: um estudo exploratório com trabalhadoras. Working paper, Projeto Fapesp/T-AP “Who cares? Rebuilding care in a post-pandemic world”. São Paulo.), mobilizamos diferentes fontes de informação e estratégias de pesquisa empírica. Recorremos aos websites das plataformas, num exame de suas camadas visíveis aos visitantes e daquelas disponíveis para os usuários. Ademais nos voltamos para seus Termos de Serviço e Condições de Uso5 5 O trabalho de observação nos websites das plataformas foi realizado em dois momentos, em abril e em agosto de 2023. . Também foram realizadas entrevistas com trabalhadoras vinculadas a três empresas-plataforma, de modo a nos aproximarmos das suas percepções sobre os modi operandi das mesmas. As entrevistas selecionadas integram um conjunto mais amplo, recolhido entre setembro de 2022 e março de 2023, como parte de um trabalho de campo que segue se aprofundando em sucessivas ondas de coleta de dados. Assim, aqui analisaremos as experiências de duas babás, vinculadas a Plataformas de Cuidado Direto (PCD), de uma cuidadora de idosos, vinculada a uma Plataforma Mista (PM), na qual o cuidado de idosos é apenas uma categoria entre um conjunto de serviços diversos, e uma da trabalhadora de uma Plataforma de Cuidado Indireto (PCI). Duas entrevistas foram presenciais e duas por videochamada on-line6 6 Buscando anonimizar informações sobre nossas interlocutoras, tendo em vista o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por elas assinado, após citarmos trechos das entrevistas utilizaremos o seguinte padrão: “Babá X_PCD”, para as trabalhadoras da PCD, em que “X” será substituído por um número para diferenciar de quem é a fala, “Cuidadora de idosos_PM”, para a trabalhadora da PM, e “Diarista_PCI” para a trabalhadora da PCI. .

Finalmente, para a análise da Plataforma de Cuidado Indireto (PCI) também foram utilizadas reclamações de trabalhadoras recolhidas do site Reclame Aqui7 7 Trata-se de um website brasileiro de reclamações direcionadas a empresas sobre atendimento, compra, venda de produtos e serviços. O site oferece serviços gratuitos, tanto para os consumidores postarem suas reclamações, quanto para as empresas responderem a elas. Disponível em: <https://www.reclameaqui.com.br/login/>. . No segundo semestre de 2023, fizemos uma busca nesse site e encontramos dezesseis posts classificados pelo filtro especial “Covid-19”8 8 Inicialmente o objetivo era realizar uma comparação entre os anos 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023, a fim de verificar possíveis efeitos da pandemia sobre as experiências das trabalhadoras. Não obstante, mesmo fazendo o web scraping do Reclame Aqui, não obtivemos sucesso nessa empreitada, pois, apesar de indicar um total de mais de 3 mil reclamações em nove anos de registro da empresa, o site não possibilitou acesso a postagens com mais de um ano. Por isso, optamos pelo filtro especial constituído com base nas categorias selecionadas por quem reclama. , contendo reclamações que foram feitas entre março e outubro de 2020, justamente durante o período inicial da pandemia. Cinco reclamações, dentre as dezesseis, foram de diaristas, material que será incluído aqui para ancorar a nossa análise.

Demandas de cuidado direto durante a pandemia

Durante a pandemia de Covid-19, diferentes demandas de cuidado tiveram lugar, ora intensificando o trabalho não remunerado das mulheres no âmbito familiar e comunitário, ora mobilizando trabalhadoras domiciliares a passarem longos períodos nas casas das pessoas de quem cuidavam, conforme analisado por Araujo (2023)ARAUJO, Anna Bárbara. (2023), O trabalho doméstico remunerado durante a pandemia no Brasil. Um balanço bibliográfico da produção brasileira nas ciências sociais e na saúde coletiva. Paper presented at “Cartas na Mesa” Virtual Seminar, Research Project “Who cares? Rebuilding care in a post-pandemic world”, São Paulo, Oct. 2, 2023, 63 p.. Entre as entrevistas que realizamos até o momento, selecionamos três casos que nos aproximam dessa realidade heterogênea e que nos conectam com o tema da intermediação das oportunidades de trabalho no setor.

Com estabilidade no emprego como servidora pública, a Babá 1_PCD é professora concursada de uma creche pública na região metropolitana de São Paulo e desde antes da pandemia trabalhava como babá aos finais de semana e no período noturno, encontrando vagas por meio de três empresas-plataforma de trabalho. Refletindo se o fato de explicitar sua formação como pedagoga em seu perfil cadastrado em uma PCD influenciaria o processo de negociação e contratação como babá, ela avalia que, de forma geral, esse não é o caso. A seu ver, a principal preocupação das contratantes durante as entrevistas é saber se a trabalhadora tem referências. Além disso, algumas famílias especificam o requisito de realizar tarefas do cuidado indireto, além do cuidado direto com as crianças. Esse requisito é facilitado pela própria PCD, que incorpora atividades do cuidado indireto - como cozinhar e fazer outras tarefas domésticas - na lista de tarefas que a babá pode incluir em seu perfil público:

[…] tem uma ou outra que fala “olha, quando eu tiver com a criança, eu quero que você varra uma casa, tire um lixo, forre uma cama” […] Então, assim, não só pra ficar com a criança, quer que seja um trabalho mais expandido pra esse tipo de tarefa. Babá 1_PCD.

Durante a pandemia, no entanto, isso pareceu se dar de forma diferente. Se, em geral, as exigências dos contratantes tornam fluidas as fronteiras entre cuidado indireto e direto no trabalho das babás e cuidadoras domiciliares, no período da pandemia a demanda pela dimensão educacional do cuidado, que marca a indissociabilidade do cuidar e do educar nas instituições de educação infantil, também se fez presente nos domicílios com crianças pequenas.

Na pandemia, eu trabalhei bastante. Como tava no ensino remoto, o diferencial era o fato de eu ser pedagoga. Isso, para elas [patroas], ajudava muito. Porque as crianças estavam estudando em casa e eu podia dar uma força. Acabava que dava aula de reforço também, mesmo o trabalho sendo de babá.

Babá 1_PCD

Entretanto, a demanda por um trabalho mais “qualificado” por sua dimensão educativa não resultou em valorização que se traduzisse em maior pagamento, nem protegeu a trabalhadora de situações de discriminação, inclusive relacionadas à Covid-19.

Essa casa que eu fui, que tinha câmera com áudio e eles ficavam em cima da gente, a empregada teve Covid. Mas eu nem tinha entrado ainda. Quando eu entrei, eram duas crianças. Cada uma tinha uma babá, eu era a folguista. Na semana tinha uma enfermeira pelo bebê, uma empregada e uma babá para o de dois anos. No final de semana, ia eu como folguista e outra. Todas nós tinha que usar máscara. E eles não. Eu até questionei ela [a patroa], “se o vírus tá circulando, não seria prudente todo mundo usar, inclusive vocês?”. Mas não, era como se só nós transmitíssemos o vírus.

Babá 1_PCD

O cadastro na PCD pode ser gratuito ou premium, por meio do pagamento de uma mensalidade. Para as trabalhadoras, o valor da mensalidade é de R$ 29,00 por um mês de acesso, ou R$ 57,00 por três meses (em três vezes de R$ 19,00); já para as famílias contratantes a mensalidade custa R$ 49,00, ou R$ 99,00 por três meses de acesso (em três vezes de R$ 33,00)9 9 Valores consultados em agosto de 2023. . Enquanto no primeiro caso o perfil das trabalhadoras e das famílias fica listado publicamente, apenas aquelas que pagam a mensalidade podem iniciar efetivamente o contato para tentar negociar uma oportunidade de trabalho ou a contratação de uma babá. De acordo com as experiências das participantes de nossa pesquisa, são elas, as trabalhadoras, que costumam iniciar o contato e muitas das mensagens que enviam não têm retorno por parte das famílias contratantes, indicando uma demanda por trabalho maior do que a oferta efetiva de oportunidades.

Quando encontra oportunidades, a Babá 1_PCD afirma que busca estabelecer relação direta com a família contratante, visando a manter a contratação de serviços em dias fixos de trabalho como folguista, ou seja, cobrindo a folga de uma trabalhadora mensalista, geralmente aos fins de semana. A partir do contato direto, a trabalhadora deixa de utilizar a plataforma como forma de mediar sua relação com a família contratante. Entretanto, ela diz ser recorrente encontrar na plataforma as solicitações de famílias para as quais já trabalhou. É notável a relação estabelecida pela trabalhadora entre a recorrência de solicitações de famílias na plataforma e a desconfiança sobre as condições de trabalho e, ainda, com a assimetria estabelecida pelo funcionamento da PCD, que permite que as famílias avaliem as trabalhadoras, mas não que as babás avaliem as famílias contratantes, o que dá margem para a recorrência de violações de direitos no ambiente de trabalho domiciliar de cuidado.

Podemos pegar e dar referência do patrão? A gente faz isso de maneira informal, entre nós. A gente fala olha, cuidado com a patroa tal. […] O site não dá esse espaço pra gente avaliar o patrão. Sempre vejo patrões ali [na PCD] direto, e eu penso… pra não parar ninguém nessa casa, alguma coisa tem, não é possível. Mas a gente não fica sabendo, porque não tem esse espaço.

Babá 1_PCD

A troca de informações fora da plataforma é um meio de as trabalhadoras tentarem lidar com a opacidade da gestão algorítmica. Outra forma de agência das trabalhadoras por nós documentada foi identificada no caso de uma babá que, por sugestão da colega, alterou o CEP de sua residência para que mais oportunidades de trabalho aparecessem em seu perfil. A localização, mecanismo central para a atribuição do trabalho via plataformas, foi, então, contornada.

Já nos dois casos apresentados a seguir, a pandemia foi o momento de entrada no trabalho domiciliar de cuidado. Uma cuidadora de idosos, que atualmente está cadastrada em uma plataforma mista, entrou no setor a partir da demanda que apareceu em seu grupo de colegas da faculdade, apesar de seu curso não ter qualquer relação com o cuidado.

Acho que dois dias depois que a Faculdade fechou, ela mandou mensagem no grupo perguntando se alguém tinha disponibilidade pra passar o período de pandemia com a avó do namorado dela em casa, porque os filhos estavam com medo de ela ficar sozinha, ou de ela querer sair. E os filhos não tinham como cuidar e perguntaram se tinha alguém que tinha disponibilidade. Como eu cuidei da minha avó na época que ela ficou doente, então pra mim foi uma coisa que eu digo que caiu na hora certa, né? Calçou como uma luva. Aí eu fui cuidar dela; eu fiquei seis meses. Eu vinha em casa uma vez no mês, passava dois dias e voltava pra lá. Foi assim que eu comecei como cuidadora.

Cuidadora de idosos_PM

Ao adentrar esse mercado durante a pandemia, essa se tornou a principal ocupação da entrevistada. A demanda de cuidado, neste caso, era de companhia e de apoio em algumas atividades diárias da pessoa idosa.

Ela é muito lúcida, apesar de já ter oitenta anos. Então, basicamente eu acompanhava ela pra fazer um almoço, pra limpar a casa, ajudava ela a subir escada porque na casa dela tinha uma escada pro quarto. Ela gostava de ficar no quarto. Tinha alguma medicação que ela tomava, então acabava dando nos horários certinhos. Ela é muito independente, né? Então não tive grandes problemas, digamos assim, grandes trabalhos de cuidar dela em si. Foi muito uma companhia, uma companhia super agradável. E, assim, eu conseguia cuidar dela da forma que ela gostava.

Cuidadora de idosos_PM.

Após essa primeira experiência, a mesma família contratou a cuidadora novamente para acompanhar outra idosa em um período de internação no hospital. Foi nesse contexto que ela conheceu um cuidador que lhe apresentou uma plataforma de trabalho que, entre outros serviços diversos, inclui o trabalho de cuidado.

No caso da Babá 2_PCD, seu trabalho anterior era como recreadora infantil, o qual ficou inviabilizado durante a pandemia pela impossibilidade de encontros e contatos diretos.

Na verdade, o que me levou a procurar o serviço de babá foi que na pandemia não tinha nem como fazer recreação infantil, para fazer a festa, fazer a viagem, fazer a playdate, então não tinha como na pandemia, né? Ter contato direto. E aí, na pandemia, eu arrumei esse serviço de babá e até então estou aí até hoje.

Babá 2_PCD

A convergência na trajetória dessas duas trabalhadoras é a entrada no mercado de trabalho domiciliar de cuidado no período da pandemia, por diferentes condicionantes, e a posterior entrada no circuito das empresas-plataforma do setor. No percurso de ambas, foi pelo contato com outras babás e cuidadoras que passaram a usar as plataformas digitais como forma de se manterem trabalhando no setor.

Eu me cadastrei antes da pandemia, final de 2019 para 2020. Me cadastrei na pandemia, mas eu nem mexi, não sabia nem como mexer porque eu também só tinha baixado e tal, aí depois que eu fui ver como que é. Mas eu comecei a usar a plataforma mesmo de fato, no ano passado [2022] em março. Duas amigas minhas já usavam, já utilizavam e elas conseguiram trabalho por lá e acabou que eu falei: “Ah, vou arriscar, né? Para ver se é bom”. E aí gostei, estou aí até hoje.

Babá 2_PCD

As babás e cuidadoras de idosos que foram entrevistadas estão engajadas em uma multiplicidade de relações, redes e plataformas na busca por oportunidades de trabalho, sendo que algumas estão cadastradas em mais de uma plataforma. Mas é relevante salientar que todas, além de uma plataforma de trabalho, percorrem outros caminhos para encontrar oportunidades de trabalho. Todas participam de grupos de WhatsApp ou Facebook nos quais circulam diferentes oportunidades de trabalho de cuidado a idosos, sejam grupos abertos, criados e gerenciados por agências de intermediação, ou grupos formados por cuidadoras, conforme discutido em Andrada, Guimarães e Moreno (2023)RODRIGUES, Ciane dos Santos. (2022a), Trabalho médico sob demanda por meio de plataformas digitais: controle por algoritmos e implicações às relações de trabalho. Rio de Janeiro, tese de doutorado em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz.. Interessante notar que, além da circulação de informações sobre oportunidades de trabalho, nesses grupos também podem circular avisos e alertas entre as babás.

[…] aconteceu um caso de patrão pedir uma babá lactante pra amamentar o filho maior. Nos grupos de babás, esse foi o assunto. Aí falaram [no grupo] “a plataforma devia ter visto isso aqui. E se alguma de nós fosse e acontecesse alguma coisa pior? Como eles lançam um pedido desse?”.

Babá 1_PCD

Em outro exemplo relatado pela entrevistada, o alerta da mensagem nos grupos era sobre uma pessoa que buscava babás em uma plataforma, mas que tinha histórico de relações abusivas com as trabalhadoras. Entretanto, como mencionado, a PCD não tem espaço para que as trabalhadoras possam avaliar as famílias contratantes. Tal assimetria na operação da PCD favorece as famílias contratantes e conforma uma camada adicional de desproteção às trabalhadoras. Segundo as entrevistadas, as indicações pessoais e o “boca a boca” seguem sendo acionados como formas efetivas para conseguir trabalho, complementarmente às plataformas, e/ou para qualificar um “bom” ou “mau” contratante.

Essa diversidade de atores e de cenários nos quais as cuidadoras se engajam para conseguir trabalho, bem como a relação entre ambos, é um achado interessante para seguir investigando, de modo a entendermos melhor seja os modos como certos atores se relacionam com certos cenários, seja a experiência das trabalhadoras quanto ao tempo dedicado a conseguir trabalho e/ou à necessidade de sua busca permanente. Tal aspecto é particularmente relevante na realidade brasileira, marcada pela incerteza das condições de uma vida precária, incerteza essa que extrapola as condições de trabalho. Uma realidade também marcada pela variedade de situações e tarefas de cuidado para as quais as cuidadoras são demandadas e sobre cujo exercício não têm meios efetivos de negociar de forma protegida. Isso se deve à ausência de reconhecimento profissional ao trabalho das cuidadoras e à exígua capacidade da justiça do trabalho para fazer valerem, no âmbito das residências privadas, os parcos direitos proporcionados pela regulação do trabalho exercido em domicílio, obtida há dez anos pelo movimento das trabalhadoras domésticas em serviços gerais.

Desproteção durante a pandemia: o caso de uma Plataforma de Cuidado Indireto (PCI)

A PCI investigada foi criada no Brasil em 2014 e, em 2020, se fundiu a outra empresa no mesmo setor, ampliando sua capacidade de atendimento. Ambas eram as líderes no mercado, e chama atenção que tenham feito a fusão justamente no ano da pandemia. Segundo reportagens da época, o objetivo era impulsionar as empresas na saída da crise, em função da baixa demanda pelo serviço.

Segundo a PCI, as pessoas que encontram serviços através de sua plataforma seriam trabalhadoras autônomas, as quais ela trata com o qualificativo “parceiras” em suas mídias sociais e em seus Termos de Uso. Conforme seus Termos e Condições de Uso, as diárias disponíveis aparecem para as trabalhadoras na plataforma e incluem a data do serviço, a quantidade de horas - calculada pela gestão algorítmica com base nos dados fornecidos pelos clientes sobre a quantidade de cômodos do imóvel -, o tipo de limpeza10 10 A plataforma categoriza os tipos de limpeza em: padrão, pesada, pré-mudança, pós-obra e express. , o valor a receber, as tarefas a serem realizadas e o endereço do cliente. Os Termos também explicitam que os clientes devem fornecer os produtos de limpeza e demais ferramentas para o serviço.

Em relação à remuneração da trabalhadora, ela deve pagar à empresa-plataforma uma assinatura mensal de R$ 28,00, valor que, segundo os Termos, seria destinado aos custos de desenvolvimento de software. Além disso, a cada serviço realizado, a plataforma se apropria de um percentual que pode chegar a até 30% do valor pago pelo cliente. Ainda que a empresa diga que esse percentual se destine a “cobrir os serviços de intermediação prestados pela plataforma”, ele pode ser entendido como uma forma de apropriação de mais valor pela exploração do trabalho (Rodrigues, 2022bRODRIGUES, Gabriel Ferreira. (2022b), Plataformização do trabalho doméstico: uma análise do processo de (des)valorização das diaristas na plataforma Parafuzo. Brasília, dissertação de mestrado, Universidade de Brasília.). Outrossim, ao remunerar as trabalhadoras semanalmente, enquanto recebe diariamente dos clientes, a empresa-plataforma consegue “extrair renda do valor que deve ao trabalhador, inserindo os valores no mercado financeiro” (Ferreira, 2022FERREIRA, Mariana Maciel Viana. (2022), Trabalhadoras domésticas uberizadas: uma análise dos desafios do direito do trabalho a partir da Plataforma Parafuzo. Brasília, monografia em Direito, Faculdade de Direito da Universidade de Brasília., p. 47).

Falta transparência quanto ao modo de funcionamento da plataforma e, em muitos casos, a diarista não sabe sequer quanto o cliente está pagando para a PCI pela diária que realizou. Tal opacidade termina por criar uma assimetria de poder que se expressa ora entre plataforma e trabalhadora, ora entre cliente e trabalhadora. Assim, no lugar da autonomia presente na narrativa da empresa, observamos uma unilateralidade das ações, amplamente sustentada pela falta de transparência (Ferreira, 2022FERREIRA, Mariana Maciel Viana. (2022), Trabalhadoras domésticas uberizadas: uma análise dos desafios do direito do trabalho a partir da Plataforma Parafuzo. Brasília, monografia em Direito, Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.).

Ademais, os Termos indicam a existência de um sistema de notas e de categorização das trabalhadoras. Ele é constituído por pontuações que lhes são atribuídas pelos clientes segundo critérios como pontualidade, simpatia e limpeza residencial. Com base nessas notas, as trabalhadoras são classificadas como “bronze”, “prata” e “ouro”, o que afeta praticamente todas as dimensões do seu trabalho. Por exemplo, no acesso aos serviços, aquelas classificadas como “ouro” podem habilitar-se a diárias mais curtas e de valor mais alto, além de estarem isentas da mensalidade. As notas altas também dão acesso às limpezas pesadas, que têm um valor maior, como relata a trabalhadora entrevistada: “Eu só posso ter limpeza pesada dependendo das notas que eu tenho com as primeiras que eu já peguei. Tudo é dependente da nota” (Diarista_PCI). Ou seja, todo o processo é controlado de forma minuciosa pela gestão algorítmica da empresa-plataforma.

A PCI define que a classificação da trabalhadora está atrelada ao “Índice de Retenção”, que expressa a capacidade da trabalhadora de fidelizar um cliente, fazendo com que ele continue a contratar serviços pela plataforma. Em seu blog, a PCI afirma que o Índice de Retenção de uma trabalhadora pode diminuir se um cliente atendido optar por não demandar mais serviço, ou se decidir cancelar a assinatura depois de ter sido atendido por ela. Desse modo, a despeito de quaisquer outros motivos que possam justificar a falta de adesão do cliente à plataforma, as trabalhadoras são responsabilizadas pela empresa e sofrem as consequências da decisão do cliente.

Assim, fica evidente que a governança da plataforma engendra controle, prescrição e punição das trabalhadoras, ainda que elas sejam chamadas de “autônomas” e “parceiras” da empresa. Disso decorrem experiências problemáticas para as diaristas cadastradas, o que nos remete a uma nova questão, a saber, como a pandemia de Covid-19 pode ter afetado essas experiências, já marcadas pela precarização.

Apesar do aumento das diversas formas de vulnerabilidade que afetaram as trabalhadoras domésticas durante a crise sanitária, não houve nenhuma alteração na governança da PCI de modo a promover uma rede de proteção para as suas trabalhadoras. Pelo contrário, a partir da análise das cinco reclamações postadas no Reclame Aqui, identificamos diferentes pontos negativos comuns às experiências das trabalhadoras: 1) cobrança de multa por falta; 2) desativação de contas por faltas; 3) ausência de diárias disponíveis na plataforma; 4) permanência da cobrança de mensalidade, mesmo sem diárias disponíveis na plataforma; 5) percepção das trabalhadoras de que elas estão desamparadas pela empresa.

A PCI continuou responsabilizando as trabalhadoras durante a pandemia, punindo faltas e cobrando mensalidades, ainda que o cenário tenha implicado desafios específicos, como a falta de clientes buscando diaristas e medidas como a suspensão de atividades por parte da própria empresa. Com efeito, em reclamações de clientes notamos que a plataforma suspendeu seus serviços por um período, apesar de não termos encontrado informações mais objetivas sobre tal medida.

Ontem, dia 16/05/2020, quis solicitar uma faxina pelo aplicativo PCI, como estava dando erro, entrei no chat do aplicativo e solicitei ajuda de uma atendente, e assim ela fez, me ajudou com o erro que estava dando. […] paguei com o cartão de crédito. Mais tarde, aguardando a confirmação da faxina com pagamento já aprovado, me vem um atendente no WhatsApp, perguntando se eu gostaria de agendar para outro dia, pois devido à Covid-19 eles estavam com serviços bloqueados até o dia 15/06/2020. […] no aplicativo ou site não informam em momento nenhum que os serviços estão bloqueados, te deixam pagar pra depois vir perguntar se você quer reagendar para depois da pandemia. Isso é uma falta de respeito com o consumidor […]. (Reclame Aqui, maio de 2020).

As experiências das trabalhadoras, por sua vez, foram diretamente afetadas pela pandemia. As faltas por elas relatadas nas reclamações, por exemplo, foram justificadas pela pandemia. Uma trabalhadora informa que se ausentou de uma diária porque estava com sintomas da doença, tendo avisado a cliente de que não iria ao trabalho por esse motivo. A PCI, entretanto, não levou em consideração a autodeclaração da trabalhadora, nem mesmo a concordância da cliente, e cobrou uma multa pela diária não realizada. Outra trabalhadora teve sua conta desativada após faltas justificadas pelo fato de que seu irmão e sua mãe tiveram Covid-19. Por estar preocupada com a situação, ela não avisou a plataforma, que a puniu com a desativação. Em sua reclamação a trabalhadora questionou como resolver o problema, pois era através da plataforma que sustentava sua família.

Em meio ao agravamento da pandemia, a empresa demonstrava a sua falta de atenção para lidar com as ausências justificadas por sintomas da doença, fossem da própria trabalhadora, fossem de pessoas próximas. O controle automatizado não previa espaços de diálogo efetivos, que colocassem as trabalhadoras em contato com um ser humano, o que lhes permitiria contestar uma nota baixa, uma multa, um bloqueio sem aviso prévio ou quaisquer outros problemas que fossem enfrentados durante a prestação dos serviços, aspecto que se tornou ainda mais evidente durante a pandemia. Assim, parece que, para a plataforma, as diaristas deveriam se expor aos riscos independentemente do vírus, para que não perdessem o acesso às diárias - o que, em muitos casos, poderia representar a única fonte de renda delas.

Essa forma de gestão do trabalho evidencia também a irrealidade da propalada “autonomia das trabalhadoras”, tão enraizada na narrativa de plataformas de trabalho. Concretamente, exercendo seu poder disciplinar (Ferreira, 2022FERREIRA, Mariana Maciel Viana. (2022), Trabalhadoras domésticas uberizadas: uma análise dos desafios do direito do trabalho a partir da Plataforma Parafuzo. Brasília, monografia em Direito, Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.), a plataforma dificulta o diálogo com as trabalhadoras, evidenciando a sua desconsideração pelas experiências cotidianas de prestação dos serviços que, especialmente num contexto de grave crise sanitária, envolvem complexidades para além dos parâmetros restritos dos cálculos algorítmicos.

Nesse sentido, o automatismo característico da gestão algorítmica submete as trabalhadoras à falta de transparência e à unilateralidade da tomada de decisões, e demonstra o quão problemático pode ser quando a tecnologia, ao invés de um instrumento de gestão que auxilia o ser humano, passa a encarnar “a gestão” e o ser humano desaparece das relações. Como bem avaliou nossa entrevistada: “essa empresa é algo que a gente conversa tudo por internet. Tudo por via on-line. Ninguém vê ninguém” (Diarista_PCI). Uma tal situação, na maior parte das vezes, as priva de suporte e/ou autonomia para tomarem suas próprias decisões sem que sejam punidas por isso.

Diante do desamparo a que foram relegadas as trabalhadoras da PCI no contexto da pandemia, o Ministério Público do Trabalho (MPT) assumiu o importante papel de responsabilizar a empresa pelo bem-estar das mesmas. Em março de 2021, o MPT do Paraná decidiu que a PCI em questão não estava adotando as devidas medidas de proteção das trabalhadoras por ela cadastradas em face da Covid-19. A inação da empresa foi considerada uma forma de lesão de interesses e direitos coletivos, ao não promover um ambiente de trabalho seguro e a integridade física das trabalhadoras. Assim, o MPT elencou quarenta pontos a serem considerados obrigações da empresa, dentre eles, inclusive, o reconhecimento do vínculo empregatício entre trabalhadores e plataforma, e direitos trabalhistas daí decorrentes.

O juiz do trabalho deferiu apenas parcialmente as solicitações do MPT, com foco nas obrigações da empresa diante da pandemia: 1) viabilizar o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), inclusive álcool 70% e máscaras cirúrgicas descartáveis ou respiradores com filtro PFF2/N95; 2) buscar os casos de infecção de Covid-19, aceitando autodeclaração dos trabalhadores, atestados de isolamento domiciliar e atestado de saúde familiar, afastando aqueles que estivessem com sintomas; 3) criar formas de encaminhamento de casos suspeitos e confirmados de Covid-19 aos devidos órgãos, também auxiliando a busca por atendimento médico. Apesar de ter indeferido os itens correspondentes ao reconhecimento do vínculo entre trabalhadoras e plataforma e dos direitos trabalhistas daí decorrentes, certamente a decisão com foco na pandemia foi uma importante contribuição do poder público naquele momento.

Conclusão

A plataformização do trabalho de cuidados no Brasil é um processo que se adensa a partir de 2019. Entretanto, aprendê-lo importa em vencer um desafio de monta: carecemos de dados desagregados sobre o trabalho doméstico e de cuidado que se realiza nas empresas-plataforma, e desconhecemos até mesmo o exato quantitativo de trabalhadoras brasileiras nelas cadastradas. Diante disso, estratégias alternativas foram aqui empregadas para a produção de evidências que permitissem uma aproximação ao caso brasileiro. Assim, mobilizamos informações on-line, montamos um banco de dados de plataformas e aplicativos e conduzimos entrevistas com trabalhadoras, as quais, associadas com as estatísticas do mercado de trabalho, nos deram pistas tanto sobre o processo de espraiamento das plataformas em direção aos cuidados, como sobre os efeitos da pandemia no cotidiano das trabalhadoras do setor, nosso objetivo primeiro neste texto.

Por um lado, a análise da PCI revelou que, durante a pandemia, continuaram a vigorar um forte controle sobre o trabalho, desproteção às trabalhadoras e ausência de diálogo com as mesmas, mantendo-se incólume o seu gerenciamento algorítmico; os registros que as suas trabalhadoras deixaram gravados no site Reclame Aqui evidenciaram a dependência quase total destas com relação à PCI como meio de obtenção de renda, o que tinha lugar num contexto de redução de postos de trabalho nos serviços domésticos em geral. Por sua vez, a experiência das trabalhadoras de cuidado direto durante a pandemia foi marcada por uma diversidade de situações e demandas de cuidado, bem como por mudanças em suas trajetórias ocupacionais. Nesses casos, as empresas-plataforma parecem ser um meio a mais para obter acesso a oportunidades de trabalho de cuidado, ao lado de um conjunto com redes de contatos interpessoais, indicações e agências.

Por outro lado, as diferentes formas de governança das plataformas afetaram as experiências das trabalhadoras durante a pandemia, inclusive no que concerne à sua adesão às empresas. No caso da PCD, em que há um grau menor de automatização do pareamento, por exemplo, o aspecto da avaliação das famílias, indisponível para as trabalhadoras, foi um ponto evidenciado nas entrevistas. No momento em que o contágio poderia significar risco à própria vida, ter mais informações sobre as famílias era de extrema relevância. Já na PCI, em que o pareamento é quase todo automatizado (e à diferença da PCD), as trabalhadoras podem avaliar os clientes, mas o sistema de notas possui uma função prescritiva e punitiva que apenas a elas é aplicada. Com base nos registros que elas fizeram constar no site Reclame Aqui, arriscamos dizer que, para as diaristas, a maior parte dos problemas ocorreu na sua interação com a plataforma. Uma percepção de injustiça atravessou as experiências dessas trabalhadoras, dependentes de uma forma de gestão que, se antes da pandemia já minava sua autonomia, durante a crise sanitária se revelou ainda mais problemática. Se não havia serviços disponíveis na plataforma, por que continuar a cobrar as mensalidades? Se a contaminação poderia representar risco à saúde de trabalhadoras e clientes, por que punir as faltas, mesmo quando justificadas por sintomas inscritos em seus próprios corpos ou de familiares?

Vimos também que, nas plataformas estudadas, trabalhadoras e clientes devem aceitar os Termos e Condições definidos unilateralmente por parte dessas empresas. No caso das plataformas relacionadas com o cuidado direto, cliente e trabalhadora dialogam, como condição sine qua non para a contratação do serviço, combinando diretamente valores e tarefas a serem desempenhadas. O modo de operar da plataforma evidencia, assim, a particularidade do recrutamento para o cuidado direto e sua característica de interação, também direta. Em certo sentido, esse diálogo possibilita um alinhamento de expectativas e uma negociação entre as partes, ainda que ambas entrem em tal negociação em condições assimétricas, inclusive proporcionadas pela PCD, e que, por vezes, a realidade encontrada no interior do domicílio seja distinta da apresentada pela família contratante. Já na PCI, o inverso ocorre. As suas trabalhadoras não estabelecem acertos prévios com os clientes e não lhes resta mais que aceitar a diária, com todas as demandas que lhes sejam impostas. Mais ainda: além de acatar as demandas dos clientes, também devem atender às condições impostas pela plataforma no que respeita ao valor das diárias, à quantidade de horas (calculada pelo algoritmo, podendo ser adequada pelo cliente) ou às punições. E nada disso se alterou, mesmo durante as condições adversas de uma crise sanitária de caráter pandêmico, como se passou com a Sars-Covid 19.

As evidências trazidas também permitem concluir que a organização e a gestão exercidas pela empresa-plataforma interferem nas condições em que o trabalho de cuidado se realiza. Assim, é notável que a própria PCD chegue a enunciar uma lista de possíveis atividades que às trabalhadoras caberia realizar para além do seu objeto de trabalho. A mera existência dessa lista as pressiona a aceitarem tarefas que alargam a natureza da sua atividade, aproximando o cuidado direto do indireto, dado o modo de gestão resultante da ação da plataforma. Isso marca a sujeição das babás e de cuidadoras de idosos, estimulando a ultrapassagem da fronteira entre as várias formas do cuidado domiciliar e, no caso por nós analisado, induzindo babás ao acúmulo de tarefas de cuidado indireto. A fronteira fluida que aí aparece denota a capacidade que a empresa-plataforma tem de ir além da mera intermediação e matching entre demandantes e ofertantes de trabalho, passando a intervir no modo como este se exerce e pressionando as trabalhadoras.

Não podemos esquecer que, no caso do trabalho em empresas-plataforma, as vagas são também objeto de disputa entre as próprias trabalhadoras. Nessa disputa, fatores tais como quem responde primeiro e aceita mais demandas, quem tem perfil de maior visibilidade, quem tem as melhores avaliações terminam por limitar os graus de liberdade das trabalhadoras frente às exigências, sugestões ou induções do modo pelo qual o gerenciamento algorítmico se processa.

Todavia, o patamar de maior intensificação do trabalho chama atenção no caso da PCI. É certo que ele não foi inaugurado pelas plataformas. No Brasil, temos presenciado o aumento na proporção de trabalhadoras domésticas que laboram como diaristas e não como mensalistas, o que importou numa concentração de tarefas em um único dia de trabalho. A novidade da PCI foi proporcionar uma intensificação ainda maior, mediante a atribuição de pelo menos duas limpezas domésticas de três a quatro horas por dia como o padrão no gerenciamento algorítmico dessa plataforma. Tal padrão, pelo que observamos, termina por se constituir numa meta para as próprias trabalhadoras, desafiadas que estão a alcançarem seu objetivo de elevação da renda.

Dois elementos adicionais completam essa reflexão conclusiva. O primeiro deles diz respeito à assimetria de informação, um traço recorrente, que perpassa os dois tipos de plataforma. Com efeito, tal assimetria parece ser um traço que caracteriza as empresas-plataformas de trabalho de modo geral, não apenas as que atuam no cuidado. Ela desiguala os termos do matching, fazendo deste uma espécie de forma desemparelhada de encontro entre ofertantes e demandantes de oportunidades de trabalho, em virtude do poder claro e exacerbadamente concentrado no primeiro desses polos. Acreditamos que esse seja um traço particularmente agudo no caso do trabalho doméstico de cuidado, direto ou indireto, refletindo a desvalorização social da atividade e a estigmatização, pela racialização recorrente, das que a desempenham. Isso porque, nos domicílios, confluem o gerenciamento algorítmico das plataformas e as renovadas formas de controle e discriminação que têm lugar no domínio das residências particulares. Mais ainda, esse traço se mostrou especialmente pernicioso durante o contexto de crise sanitária que deveria impor equidade no tratamento tanto de quem é cuidado, como de quem cuida11 11 Durante a pandemia notamos o agravamento do contexto, expresso no relato da trabalhadora que usava a máscara enquanto seus patrões não o faziam. A seu ver, parecia-lhe nítida a discriminação, uma vez que o fato de eles não utilizarem máscara fazia transparecer sua crença de que apenas ela e as outras trabalhadoras transmitiam a doença - e situações como essa ocorrem a despeito de qualquer atrativo que os patrões tenham encontrado no perfil da trabalhadora. .

O segundo elemento nos permite sugerir que, conquanto estigmatizado, o trabalho de cuidado não priva quem o performa do poder de agência. Várias são as formas em que isso se expressa. Uma delas diz respeito à autogestão da imagem como recurso para aumentar um certo capital reputacional. Assim, na PCD, por exemplo, as trabalhadoras procuram construir perfis com fotos nas quais representam a si mesmas desempenhando atividades que valorizam a sua capacidade de trato com as crianças. Ou, ilustrando-o com outra situação: mesmo desconhecendo a lógica algorítmica que lhes aloca oportunidade de trabalho, as trabalhadoras manejam o modus operandi do dispositivo, ao, por exemplo, alterar endereços de referência para maximizar a oferta de oportunidades. Essas múltiplas vias pelas quais o poder de agência pode se exprimir previnem análises que nos façam passar, de maneira aligeirada e reducionista, do diagnóstico das assimetrias ao vaticínio da inação pelo controle inescapável e sem respostas dos sujeitos individuais.

Por fim, pudemos documentar que as empresas-plataforma de trabalho têm atuado na contramão das reivindicações que mobilizam a categoria das trabalhadoras do cuidado no Brasil. Estas incluem demandas de formalização, de nãosobreposição de tarefas, de acesso aos mesmos direitos que outros trabalhadores, de qualificação profissional e direito à organização sindical, a indicar que respostas coletivas também se afiguram no horizonte.

  • 2
    Os recentes dados divulgados pelo IBGE (2023IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2023), “Estatística Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais 2022, Pnad Contínua”. IBGE - Investigações Experimentais. 17p. Disponível em liv102035_informativo.pdf (ibge.gov.br).), fruto de investigação experimental, apenas minoraram a lacuna existente, visto que persistiu a subinformação acerca da plataformização do cuidado. Com efeito, revelaram que, no quarto trimestre de 2022, 1,5 milhão de pessoas exerciam o trabalho principal “por meio de plataformas digitais e aplicativos de serviços, o equivalente a 1,7% da população ocupada no setor privado” (2023, p. 3). Conseguimos também saber que, deste total, 52,2% estavam no setor de transporte de passageiros, 39,5% no de entrega e 13,2% no amplo segmento da prestação de serviços. Com essa concentração das plataformas em setores tradicionalmente ocupados por homens, é fácil compreender o perfil dos trabalhadores: 81,3% são do sexo masculino e 18,7% do sexo feminino, como já apontavam estudos anteriores (Cardoso et al., 2022CARDOSO, Ana Claudia Moreira et al. (jan.-jun. 2022), “A pandemia da Covid-19 e o agravamento da precariedade do trabalho dos motoristas em empresas-plataforma de transporte individual em uma cidade brasileira de médio porte”. Revista da Abet, 21 (1): 33-51.; Machado e Zanoni, 2022MACHADO, Sidnei & ZANONI, Alexandre Pilan (orgs.). (2022), O trabalho controlado por plataformas digitais: dimensões, perfis e direitos. Curitiba, Universidade Federal do Paraná, Clínica Direito do Trabalho. Disponível em https://cdtufpr.com.br/wp-content/uploads/2022/04/Livro_O-trabalho-controlado-por-plataformas-digitais_eBook.pdf, consultado em 29/08/2023.
    https://cdtufpr.com.br/wp-content/upload...
    ; Ipea, 2022IPEA. (2022), “Painel da Gig Economy no setor de transporte do Brasil: quem, onde, quantos, e quanto ganham”. Nota de Conjuntura 14, n. 55, 2 trim. 2022. Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/220510_cc_55_nota_14_gig_economy.pdf, consultado em 23/10/2022.
    https://www.ipea.gov.br/portal/images/st...
    ). Entretanto, os dados até aqui veiculados apenas aprofundam características relevantes (como condições de trabalho, jornada laboral e remuneração) para os setores masculinos de transporte e entrega.
  • 3
    A pouca visibilidade com que transcorre esse processo ecoa a invisibilidade que costuma atingir o próprio trabalho do cuidado e, com isso, as suas trabalhadoras - em sua maioria mulheres e, mais exatamente, mulheres racializadas (predominantemente negras e/ou migrantes). Isso também conflui para explicar o incipiente entendimento sobre a(s) lógica(s) das plataformas digitais nesse subsetor.
  • 4
    As empresas-plataforma criam aplicativos que podem ser instalados no telefone celular de seus usuários. Muitas vezes, uma mesma empresa-plataforma opera por meio de dois aplicativos diferentes, um deles direcionado ao contratante e outro ao ofertante de trabalho. As informações coletadas por esses aplicativos são utilizadas não apenas para o encontro entre contratante e ofertante, mas também para a gestão e controle do trabalho realizado.
  • 5
    O trabalho de observação nos websites das plataformas foi realizado em dois momentos, em abril e em agosto de 2023.
  • 6
    Buscando anonimizar informações sobre nossas interlocutoras, tendo em vista o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por elas assinado, após citarmos trechos das entrevistas utilizaremos o seguinte padrão: “Babá X_PCD”, para as trabalhadoras da PCD, em que “X” será substituído por um número para diferenciar de quem é a fala, “Cuidadora de idosos_PM”, para a trabalhadora da PM, e “Diarista_PCI” para a trabalhadora da PCI.
  • 7
    Trata-se de um website brasileiro de reclamações direcionadas a empresas sobre atendimento, compra, venda de produtos e serviços. O site oferece serviços gratuitos, tanto para os consumidores postarem suas reclamações, quanto para as empresas responderem a elas. Disponível em: <https://www.reclameaqui.com.br/login/>.
  • 8
    Inicialmente o objetivo era realizar uma comparação entre os anos 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023, a fim de verificar possíveis efeitos da pandemia sobre as experiências das trabalhadoras. Não obstante, mesmo fazendo o web scraping do Reclame Aqui, não obtivemos sucesso nessa empreitada, pois, apesar de indicar um total de mais de 3 mil reclamações em nove anos de registro da empresa, o site não possibilitou acesso a postagens com mais de um ano. Por isso, optamos pelo filtro especial constituído com base nas categorias selecionadas por quem reclama.
  • 9
    Valores consultados em agosto de 2023.
  • 10
    A plataforma categoriza os tipos de limpeza em: padrão, pesada, pré-mudança, pós-obra e express.
  • 11
    Durante a pandemia notamos o agravamento do contexto, expresso no relato da trabalhadora que usava a máscara enquanto seus patrões não o faziam. A seu ver, parecia-lhe nítida a discriminação, uma vez que o fato de eles não utilizarem máscara fazia transparecer sua crença de que apenas ela e as outras trabalhadoras transmitiam a doença - e situações como essa ocorrem a despeito de qualquer atrativo que os patrões tenham encontrado no perfil da trabalhadora.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2023
  • Aceito
    23 Nov 2023
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