Open-access Artifícios ideológicos do colonialismo na interpretação do Brasil de Antonio Candido (1965-1966)

Ideological devices of colonialism in Antonio Candido’s interpretation of Brazil (1965-1966)

Resumo

Entre 1965 e 1966, Antonio Candido redigiu “Nature, élements et trajectoire de la culture brésilienne” (1965) e “Literatura de dois gumes” (1966), textos nos quais apresentou reflexões sobre a dimensão colonial da formação brasileira, com foco nas manifestações culturais e literárias nacionais. Nos ensaios, destaca-se, de forma original, o fato de o crítico ter identificado que algumas noções cristalizadas pela historiografia brasileira, como as ideias de “democracia racial” e “cordialidade”, eram desdobramentos, no campo intelectual, do colonialismo, isto, é, da pilhagem mental historicamente operada pelo centro do capitalismo nas Américas e na África ao longo da modernidade. Como decorrência, o crítico elaborou uma leitura anticolonial da realidade nacional, voltada à desestabilização das leituras hegemônicas de nossa formação.

Colonialismo; Historiografia Brasileira; Crítica anticolonial

Abstract

Between 1965 and 1966, Antonio Candido wrote “Nature, élements et trajectoire de la culture brésilienne” (1965) and “Literatura de dois gumes” (1966), texts in which he presented reflections on the colonial dimension of Brazilian formation, focusing on national cultural and literary manifestations. In these essays, the critic identified, in an original way, that some notions crystallized by Brazilian historiography, such as the ideas of “racial democracy” and “cordiality”, were developments, in the intellectual field, of colonialism, that is, of the mental plundering historically operated by the center of capitalism in the Americas and Africa throughout modernity. As a result, the critic developed an anti-colonial reading of national reality, aimed at destabilizing the hegemonic readings of our formation.

Colonialism; Brazilian Historiography; Anticolonial criticism

Artifícios ideológicos do colonialismo

O ensaio “Nature, élements et trajectoire de la culture brésilienne” (Cândido, 1967) foi produzido em 1965 para ser apresentado no Terzo Mondo e Comunità Mondiale e Quinta Rassegna del Cinema Latinoamericano, colóquio realizado em Gênova (Itália), em 1965, organizado pelo Instituto Columbianum, entidade cultural criada pelo padre jesuíta Angelo Arpa (1909-2003). No evento, reuniram-se intelectuais, escritores e cineastas europeus, africanos e latino-americanos interessados em analisar, discutir e problematizar as situações social, econômica e cultural dos países da periferia do capitalismo, especialmente da África e da América Latina. Inscrito no contexto da Guerra Fria, o evento buscou dar voz ao “terceiro-mundismo”, perspectiva ligada à potencialidade da descolonização afro-asiática e aos desdobramentos da Conferência de Bandung (1955)1 (Kalter, 2016), isto é, aos países marcados pela “ferida colonial” (Mignolo, 2005) e à possibilidade de impulsionar a construção de expectativas políticas emancipatórias (Bergel, 2019, p. 112).

Para tanto, os debates do evento foram marcados por duas posições intelectuais complementares: em primeiro lugar, uma forte crítica ao colonialismo, entendido como estrutura de dominação cultural, social, psíquica e mental que se prolongou nos territórios americanos, asiáticos e africanos para além do período de ocupação sistemática das colônias pelas metrópoles, entre os séculos XV e XIX; depois, investiu-se fortemente na adoção de uma postura anticolonial, cujo mote principal era tanto demarcar uma fronteira entre a Europa e a América Latina/África, ressaltando as diferenças e potencialidades contidas na condição periférica, quanto buscar e reforçar formas de expressão singulares do Terceiro Mundo2.

Tanto em “Nature, élements et trajectoire de la culture brésilienne”, quanto em “Literatura de dois gumes” (1966), ensaio que reverberou os debates genoveses, Candido procurou assinalar a crise do colonialismo e adotou uma postura anticolonial. Num momento de confluência da retórica terceiro-mundista com o desmoronamento das perspectivas construtivas da formação nacional, como sugeriu Paulo Arantes (1996, p. 116), em função dos impactos causados pela instauração da ditadura militar no Brasil, fruto do golpe de 1964. Nesse contexto, as visões quanto ao caráter propriamente positivo da sociedade brasileira deram lugar a releituras que, segundo Carlos Guilherme Mota (1978, p. 45), apontaram para uma “revisão dos pressupostos desenvolvimentistas” e olharam de forma substancial para os “impasses da dependência” que configuram as sociedades de capitalismo periférico.

Antonio Candido, em contato com esses debates intelectuais, ao se apropriar parcialmente desse novo repertório político, intelectual e conceitual, voltou suas penas para diversas noções e ideias erigidas por algumas tradições da literatura, do pensamento e da historiografia brasileiras. No geral, portanto, seus alvos prioritários seriam as interpretações que pouco tensionavam a herança colonial negativa legada às sociedades do continente. Para tanto, Candido buscou desvelar como o colonialismo, ao lançar mão de alguns “artifícios ideológicos”, desdobrou-se, no campo das representações intelectuais, em formas específicas de ver o passado nacional – com foco na discussão sobre as ideias de democracia racial e cordialidade. Por fim, o autor produziu uma leitura anticolonial específica sobre a história cultural brasileira, tendo como elemento mediador o fenômeno literário.

O ensaio buscou confrontar diversos discursos hegemônicos que se debruçaram sobre algumas das características consideradas centrais na formação da cultura brasileira. Para Candido, as elites intelectuais do país foram responsáveis por construir narrativas sobre “nossa civilização”, que, se olhadas em conjunto, representavam, em alguns casos, uma espécie de “pensamento bastante desejoso” ou a “projeção ideal de uma realidade que só imperfeitamente lhe corresponde” (Candido, 1967, p. 411). É possível dizer, como veremos adiante, que na visão do autor essas narrativas funcionaram como artifícios ideológicos voltados à construção de determinados projetos de nação e poder. Para ser mais específico, o crítico buscou analisar o que ele considera as “tendências genealógicas” subjacentes às perspectivas historiográficas erigidas. Essa “genealogia”, na prática, seria uma operação discursiva que mergulha no nosso passado com o objetivo de selecionar elementos de nossa formação capazes de justificar determinado objetivo ideológico específico no presente.

Segundo Candido, nessas narrativas encontram-se as bases de discursos “pretensamente verdadeiros” sobre o Brasil: a ideia de que somos um país vasto formado pela mistura de várias raças e pela convergência das suas contribuições culturais, que se atrela à visão de que nossa cultura é composta, portanto, por diversas contribuições étnicas, de indígenas e africanos e mais tarde italianos, alemães, japoneses etc., que confluíram harmonicamente com a ajuda do “colonizador plástico”, o português. Além disso, outro discurso seria aquele que reafirma o caráter cordial e alegre do povo brasileiro. Por fim, há a perspectiva de que no Brasil não existem preconceitos étnicos, visto que o país é fraterno e aberto (Candido, 1967, p. 411). O crítico considera que essas premissas foram responsáveis por construir uma visão do país como uma nação aberta à universalidade, na medida em que nosso “convívio pacífico” formou uma sociedade que poderia ser “projetada para todo o mundo”.

Na visão de Candido, entretanto, essas narrativas, embora não produzissem um completo “falseamento da realidade”, procuravam ressaltar, antes de tudo, apenas o que se consideravam algumas das potencialidades não realizadas de nossa “civilização”, isto é, traços que, por conta dos próprios caminhos e descaminhos do desenvolvimento sócio-histórico brasileiro, foram sendo “apagados”, “sufocados” e “omitidos”, a favor de elementos que se tornaram preponderantes. Seriam elas, então, “virtuais características positivas do Brasil” que, ao longo do tempo, encontram diversos obstáculos para serem realizadas. A tarefa do intelectual, segundo Candido, seria tomar consciência dessas barreiras, analisá-las em perspectiva crítica e indicar possibilidades de saída para esses dilemas (Candido, 1967).

Num enquadramento mais amplo, o crítico observa que, na semântica desses discursos, coexistem duas perspectivas ideológicas distintas: de um lado, o “realismo”, entendido como desejo de compreender a vida social específica do país; de outro, a visão utópica, que projeta no futuro algumas propostas de solução de nossos problemas sociais, econômicos e políticos, como, por exemplo, o desajuste entre as jurisdições e a vida social e a desarmonia entre a diversidade social e o desejo por uma ordem unificadora. Para o autor, reside aí, nessas narrativas, uma tensão histórica de fundo que opõe discursos que “distorcem” a realidade e visões que “ficcionalizam” o real. Essa dualidade figuraria nas imagens do Brasil representado ora de maneira pragmática, ora edênica. Segundo ele, essas percepções foram

[…] particularmente fortes entre os portugueses e os espanhóis, que ao mesmo tempo sonhavam com El Dorado e, enquanto o procuravam, tomaram medidas muito concretas para desenvolver o ambiente natural.

[…] Esta visão contraditória permite publicar ao mesmo tempo, no início do século XVIII, um “documentário” tão fundamentado e objetivo como o livro de Antonil sobre economia colonial, e a crônica barroca de Rocha Pita, que dissolve a realidade em lendas literárias (Candido, 1967, p. 412).

Essa “tendência genealógica” de selecionar ideologicamente no passado os elementos que servem de justificativa para certo discurso no presente pode ser compreendida como uma operação historiográfica (Certeau, 2011), na medida em que é costurada sobretudo em função do lugar social do intelectual, que no caso analisado por Candido estaria quase sempre vinculado a grupos dominantes e à necessidade de construir uma autoimagem atrelada à ideia de “autonomia nacional”, sem deixar de pertencer a uma “ordem universal”. Por isso, para o autor, é no século XVIII, especificamente no Arcadismo, num contexto amplo de crise do sistema colonial, que a perspectiva genealógica se fortalece, já que se olhava para o passado com o objetivo de selecionar nele alguns elementos adequados para uma visão nativista, mas que ao mesmo tempo “se aproximassem dos modelos europeus aos quais os estratos dominantes tendiam, rodeados por todos os lados pelos costumes, línguas e religiões dos ameríndios e dos africanos” (Candido, 1967, p. 412).

Esses discursos, portanto, funcionariam como artifícios ideológicos voltados à construção de certa ideia de “nacionalidade brasileira”, cujo conteúdo estaria atrelado tanto à positividade da herança colonial quanto à continuidade dos caracteres específicos que acomodam um modelo societário singular. O maior exemplo disso seriam as narrativas sobre a questão racial, elemento primordial nos debates sobre nossa formação. No século XIX, ressalta o crítico, o indígena passou a ser representado como um antepassado ideal de nossa “civilização”, enquanto o negro de origem africana foi tomado apenas como apêndice ou adereço no processo. Em geral, as narrativas que reforçaram essa imagem operaram com o que ele chamou de “genealogia”, quer dizer, “por meio de uma espécie de automistificação em relação ao passado”, de modo que interditaram parcialmente o desenvolvimento de uma percepção sobre o problema da “discriminação racial” num país que, naquele momento, supostamente estaria caminhando de forma “independente” rumo à formação (Candido, 1967, p. 412).

Um dos desdobramentos possíveis desses artifícios ideológicos desembocou na hipótese da “harmonia racial brasileira” como elemento que diferenciaria o país do restante do mundo, tópica que foi mobilizada por diversos intelectuais já no século XIX, mas que ganhou força sobretudo na primeira metade do XX, com destaque para Gilberto Freyre. Sobre o tema, Candido utiliza-se de um exemplo curioso:

Se quiserem uma ilustração pitoresca do que acabo de dizer, tomo a liberdade de assinalar uma entrevista concedida há alguns anos por um eminente sociólogo à revista americana Time, em que este ousado analista da contribuição africana falava da falta de preconceito no Brasil e na sua obra, […] e deu como prova de seus pontos de vista a presença [de sangue não branco] em suas veias, na proporção que ele fixou com precisão para deleitar os geneticistas, de 1/64, e que se devia ao casamento de um de seus ancestrais no século XVI com uma dessas encantadoras princesas de sangue brasileiro3 (Candido, 1967, p. 412).

Salvo engano, o personagem a que se refere é justamente Freyre, um dos argutos intelectuais brasileiros responsáveis, na visão dele, por essa “mistificação de nossa realidade” – nesse caso, pela inscrição e disseminação no espaço público da ideia de “democracia racial”. O tom usado por Candido busca evidenciar exatamente o mecanismo ideológico presente na declaração do referido sociólogo, que, a fim de ressaltar a importância das três raças para a constituição do Brasil, recorre ao exemplo da mistura genética. O que se pretende salientar, portanto, é que parte da historiografia brasileira, ainda devota dos discursos de fundo colonialista, estabeleceu uma mitologia acerca de nossa formação, focalizando sempre o caráter harmônico e confluente de nossa sociedade, procurando atenuar as marcas de conflitos que a constituíam4.

Essa visão “mitológica” teria um lastro histórico complexo: o senso de inadequação na sociedade brasileira, ou seja, uma espécie de impossibilidade de se aplicar a visão europeia à realidade local, levando ao que Christian Lynch (2013) chama de “fantasma da condição periférica”. Nesse caso, Candido considera que os intelectuais produziram “representações deformadas” de nossa realidade, além de identificarem como solução para nossos impasses societários uma “fuga para os sonhos”.

Cito para ilustrar o caso do bispo Azeredo Coutinho, curiosa mistura de liberalismo e obscurantismo, que fundou nos últimos anos do século XVIII o primeiro grande estabelecimento de ensino moderno do Brasil, o seminário de Olinda, em Pernambuco. Num estudo sobre o comércio português onde manifesta um mercantilismo atrasado, atravessado por vislumbres magníficos, propõe uma forma de desenvolvimento econômico através do comércio do sal, que serviria ao mesmo tempo para incorporar os indígenas à civilização. Com base nas teorias pedagógicas de Rousseau, conclui que é preciso aproveitar as aptidões naturais do indígena, que seriam, neste caso, a propensão à navegação e à construção naval. De um modo geral: indígena bom navegador, madeira disponível para construção naval e maior extensão costeira, além de boas salinas confluiriam para o florescente comercial que enriqueceria o país5 (Candido, 1967, p. 413).

A visão de Azeredo Coutinho (1742-1821) à qual se refere Candido desnuda o contraste entre uma mentalidade europeísta e o dado social local. Para o crítico, essa idealização é perceptível também em outro conflito, nos âmbitos social e jurídico, entre a “superordenação legal” e a “ação real”. No século XIX, o Estado monárquico investiu na possibilidade de criar uma ordenação jurídica e administrativa baseada na projeção de um modelo ideal de civilização, ancorado, em tese, no legalismo e no respeito à ordem. Por isso, o crítico ressalta que, nos meios intelectuais, os juristas eram considerados elementos importantes para a construção de um tecido social harmonioso e organizado. Contudo, havia uma oposição clara entre o ideal e a rotina, entre a norma e a vida prática. E exemplifica:

Mencionarei apenas um grande jornalista, João Francisco Lisboa, que na década de 1850 traçou um retrato incontestável da verdadeira fisionomia do sistema eleitoral [brasileiro], marcado por um fosso catastrófico entre formas jurídicas bastante exigentes e o verdadeiro árbitro dos proprietários de terras que manipulavam votos de acordo com os seus interesses econômicos, favorecidos pela dócil vigilância da administração do governo imperial6 (Candido, 1967, p. 414).

Para Candido, foi esse apego ao formalismo e à “abstração”, atrelado ao discurso da construção da ordem, que serviu de base para a estruturação de um arranjo social que prezava pela recusa à diversidade de nossa formação e atuava em contraponto à pretensa negatividade presente na pluralidade que nos constituía enquanto nação, buscando impor os tipos de vida e cultura europeus. Esse conjunto narrativo, identificado pelo crítico como uma espécie de “ideologia oficial” ligada às classes dominantes, à herança colonialista e às formas de dominação, investiu na imagem do Brasil fraterno e harmônico, assentado na convivência não violenta de raças e classes diversas, possibilitando a construção do mito de uma “civilização equitativa”.

O crítico ressalta que, a partir da segunda metade do século XIX, se desenvolveu um tipo de consciência histórica que buscava representar a sociedade brasileira como um todo integrado constituído por elementos antes depreciados. Ao longo do tempo, figuras como Carl von Martius (1794-1868) e Sílvio Romero (1851-1914), por exemplo, teriam sido responsáveis por ressaltar o caráter mestiço de nossa sociedade, “de maneira que as três raças acabaram por trocar uma série de elementos, fundindo-se em todos os graus imagináveis, sob a égide de uma cultura dominada por elementos de origem europeia” (Candido, 1967, p. 414)7. Como veremos adiante, embora haja, na visão de Candido, um avanço significativo em relação à “inclusão” das “três raças” no hall dos grupos sociais responsáveis pela formação do Brasil, é fundamental perceber como, até o início do século XIX, negros e indígenas foram representados de forma pitoresca, como apêndices do processo formativo colonialista capitaneado, essencialmente, pelo branco europeu.

Até por isso, na perspectiva de Candido, foi somente no século XX que se buscou desnudar de fato os aspectos desarmoniosos e violentos da composição social e racial brasileira, para além da narrativa “harmonizadora” de corte colonialista. O crítico destaca, nesse sentido, Euclides da Cunha (1866-1909), que na jornada de Canudos teria explorado a existência de “dois Brasis contraditórios”, que se repelem mutuamente, e cujo contato só pôde ser feito através da violência e do conflito. E completa, referindo-se ao livro Os Sertões (1902):

Por trás da fachada construída por uma burguesia próspera, em vias de dar a si mesma um brilho especial com as reformas urbanas da capital e o crescimento vertiginoso de São Paulo, ele descreveu populações em geral mestiças, reprimidas e condenadas à miséria, fadadas ao ostracismo pelo isolamento e pela inconsciência dos estratos dominantes, explodindo periodicamente em convulsões de messianismo religioso e afirmando-se apenas através do banditismo endêmico. Euclides da Cunha demonstrou (e até hoje essa parcela da população continua nas mãos das camadas dominantes) que a repressão desumana é a única solução, em nome de uma civilização concebida como usufruto da minoria8 (Candido, 1967, p. 415).

O gesto que procura ressaltar a existência de traços sociais de violência, miséria e desigualdades, extrapolando as “mistificações” presentes em diversas narrativas colonialistas dominantes, faz com que Candido evidenciasse a obra euclidiana como um dos pontos de inflexão em meio às narrativas hegemônicas do pensamento social brasileiro. Ao colocar a ideia de conflito no centro da problemática, a leitura euclidiana teria se aproximado tanto da visão de Machado de Assis, que, “espiando na própria estrutura das suas obras a dualidade fundamental do seu país”, apresenta uma “visão profundamente dramática de conflitos moralmente sangrentos, dos labirintos perversos da alma”; quanto daquela elaborada por Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, este capaz de desenhar um mundo ao mesmo tempo “convulsionado e fantástico” (Candido, 1967, p. 415).

O crítico considera esse discurso corrente que ressalta o espírito de tolerância como traço definidor da “identidade brasileira” que se assenta, sobretudo, na noção de “cordialidade”, aqui tomada pela perspectiva de seu “formulador” primeiro, Ribeiro Couto (1898-1963). Segundo Couto, a “civilização latino-americana” resguardava um espírito hospitaleiro e uma tendência à credulidade, pincelada com pitadas de afabilidade e maleabilidade, de modo que haveria um ajustamento quase natural das relações sociais, mesmo entre diferentes: “Somos povos que gostam de conversar, de fumar parados, de ouvir viola, de cantar modinhas, de amar com pudor, de convidar o estrangeiro a entrar para tomar café” (Couto, 1931).

Candido, contudo, insiste que é necessário aprofundar a discussão sobre a semântica do termo “cordialidade”, de maneira a demonstrar, a partir de Sérgio Buarque de Holanda (1936), que o conceito se refere menos à afabilidade e mais à tentativa de caracterizar as relações sociais brasileiras a partir de um “tom pessoal”, de forma a subordinar as normas às vontades individuais – procedimento que, na prática, seria a antítese mesma da busca por uma harmonia societária. E completa:

O postulado do homem cordial apareceria antes como uma construção ideológica, que prolonga por um lado a visão edênica que notamos para o início da colonização, mas que por outro seria uma espécie de camuflagem, servindo para esconder, sob uma máscara de falsa bondade, as desarmonias do subdesenvolvimento, a desigualdade social, a opressão das raças e a violência da repressão. A convicção de ser um homem cordial no sentido pleno dá aos brasileiros a consciência tranquila […] e ajuda a formar uma imagem do país bastante adequada à manutenção das dominações tradicionais9 (Candido, 1967, p. 416).

A percepção da cordialidade como elemento positivo que definiria o caráter nacional brasileiro encobriu o legado negativo do colonialismo. Essa leitura de Candido encontra ecos nas hipóteses de Dante Moreira Leite (1927-1976), que, em 1954, havia defendido, na Universidade de São Paulo, a tese O caráter nacional brasileiro: descrição das características psicológicas do brasileiro através de ideologias e estereótipos. Dante propunha a hipótese de que, a partir de paradigmas etnocêntricos, os intelectuais artífices da ideia de “alma cordial” teriam operado como ideólogos de um discurso que procurava atenuar os conflitos existentes na vida social brasileira. Para isso, buscaram ressaltar nossa pretensa aptidão quase natural a um ajustamento das diferenças, que, por conseguinte, propiciaria a construção de uma sociedade equilibrada e conciliadora. Ao se filiar à visão de Dante, Candido procurou, em primeiro lugar, destronar certa narrativa artificiosa sobre nosso passado que apostava na caracterização do brasileiro como um “povo afetivo” e, por conseguinte, mais propenso à democracia.

Essa posição de combate do crítico contra o sentido “positivo” do termo “cordialidade”, ancorada no delineamento de seus artifícios retóricos e suas construções discursivas, era uma forma de desconstruir certas “mitologias” sociais elaboradas pelo campo intelectual brasileiro. Se na visão do crítico essas elaborações foram responsáveis por produzir narrativas que serviram de alicerce à manutenção das estruturas de poder colonialistas, além de fortalecerem as próprias assimetrias estruturais entre centro e periferia do capitalismo mundial, então era preciso tensioná-las, com a finalidade de movimentar as discussões da esfera pública nacional. Candido, portanto, “escova a contrapelo” (Benjamin, 1996, p. 225) parte do pensamento social, com a finalidade de “intervir construtivamente” nos debates do campo intelectual.

Após a jornada europeia, no ano seguinte, em 1966, Candido foi convidado a participar de um evento na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, para o qual elaborou o texto “Literatura de dois gumes”, publicado originalmente em inglês, em 1968, na Luso-Brazilian Review, com o título “Literature and the rise of Brazilian self-identity”10. Nesse ensaio, a problemática discutida é mais a “literatura brasileira” stricto sensu, embora não perca de vista, outrossim, as demais obras do pensamento social brasileiro. O texto, nesse sentido, reitera uma tese que já havia sido defendida anos antes pelo autor: a da existência de um “sentimento de contrários” – a apropriação de um repertório cultural externo e a busca por uma autonomia local – que orientou a formação literária brasileira entre os séculos XVI e XIX. O entrelaçamento entre as culturas periféricas e os elementos da cultura europeia é analisado por Candido a partir de uma intricada rede de relações, que se configuram não de forma mecanicista e meramente adaptativa, mas como fruto da indelével marca de violência inerente ao processo de ocupação, dominação e exploração colonial nas Américas. Esse processo, embora viabilizado por mecanismos de poder, não impediu a emergência da potencialidade criativa e transfigurativa que deu origem à formação de nossa cultura em sua singularidade.

É importante ressaltar que esse ensaio se insere num conjunto mais amplo de reflexões sobre a realidade brasileira. Como mostra Fernando Perlatto (2021), entre os anos 1950 e 1960 as discussões sobre desenvolvimento, superação do atraso e os caminhos para se chegar ao moderno tomaram o centro da agenda intelectual nacional. Para uma série desses estudiosos, o Brasil seria um país fincado num “dualismo” social básico, que opunha dicotomicamente aspectos “modernos” e “atrasados”. Esse tipo de interpretação do país foi dominante, de diferentes modos, nas reflexões da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), nas formulações de alguns setores do próprio Partido Comunista Brasileiro (PCB) e apareceu inclusive no título de algumas obras lançadas no período, como Dualidade básica da economia brasileira (1953), de Ignácio Rangel, e Os dois Brasis (1959), de Jacques Lambert.

Embora Candido replique, no texto, parte da visão presente em suas discussões anteriores, como no arcabouço da Formação da Literatura Brasileira (1959), em “Literatura de dois gumes” há diversos deslocamentos argumentativos e semânticos importantes. O primeiro diz respeito à leitura sobre o processo de colonização das Américas, questão central da análise aqui proposta. Para o crítico, o que antes, na Formação, era um “transplante” dos padrões europeus às Américas, agora é um processo de dominação, submissão e imposição cultural. Como mostra Marcelo Lotufo (2019, p. 51), no ensaio a “instauração de uma cultura europeia no Brasil se deu a partir do deslocamento de outras culturas que já existiam aqui e não foi um processo natural, mas uma disputa violenta, um enfrentamento tanto cultural como militar”. Essa leitura é diferente daquela apresentada na Formação, já que lá “a violência deste processo não recebe atenção e o global, ou europeu, se torna quase que naturalmente o ponto de chegada do próprio do local”.

Ao verificar que o colonialismo é mais do que um processo “natural” de aclimatação e adaptação, como fazia crer parte da historiografia de elogio à ocupação europeia11, o crítico amplia a semântica do termo “colonização”, atrelando-o às ideias de embate e conflito, em que os elementos geral e particular, universal e local, em um complexo jogo de forças e tensões, produziram uma cultura específica, contaminada reciprocamente tanto pelo prolongamento do repertório externo quanto pela articulação do particular ligado à vida local. A desnaturalização do processo colonial indica, portanto, que a formação da América Latina pode ser representada num tensionamento entre uma “dominação ideológica” (Lotufo, 2019), como uma tentativa de imposição unilateral da visão de mundo europeia, e o caráter transfigurador da própria formação cultural e intelectual “americana” ao longo dos séculos.

Entre as múltiplas questões abordadas no ensaio, uma se reveste de particular relevância para nossa análise. Candido posiciona-se de maneira crítica contra a concepção de que a literatura brasileira seria unicamente o fruto da “atuação ativa de três raças”: a portuguesa, a indígena e a africana. Especialmente durante o século XIX e o início do XX, a problemática do cruzamento cultural multiétnico no Brasil consolidou-se como uma temática central na historiografia nacional. O exercício de pensar o país a partir das especificidades e particularidades das populações, em grande parte determinadas pela diversidade “racial” que caracteriza as várias regiões do território, originou a produção de ensaios, artigos, livros e outras obras cuja finalidade era, em última instância, elaborar sínteses interpretativas capazes de explicitar o passado brasileiro, ao mesmo tempo que apontavam para um horizonte de consolidação de projetos de poder político no contexto de formação da Monarquia e, posteriormente, da República.

Esse debate tem um lastro importante nas produções da historiografia brasileira. Um dos primeiros intelectuais a desenvolver uma discussão sobre a ideia de “mistura cultural e racial” no Brasil foi Carl von Martius (1845) no século XIX. Ao vencer um concurso feito pela revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1840, sobre “Como se deve escrever a história do Brasil”, o alemão colocou em cena a seguinte tese:

Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, país que tanto promete, jamais deveria perder de vista quais os elementos que aí concorreram para o desenvolvimento do homem. São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro, da mescla, das relações mútuas e mudanças destas três raças, formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular (Martius, 1844, p. 382).

Martius, embora não equipare em grau de importância a contribuição das “três raças”, ao menos ressalta a participação efetiva que elas tiveram no processo de construção do país, especialmente em relação à formação do povo brasileiro. A despeito disso, ao longo do texto prepondera a figura do homem branco europeu como o agente central do processo de desenvolvimento do caráter nacional brasileiro. Nesse sentido, o branco acaba por se sobrepor, em primeiro plano, à figura do indígena idealizado e caricatural, relegado a um papel secundário no processo de formação, e, posteriormente, à “raça negra”, conforme os próprios termos do autor alemão, a qual seria considerada a menos contributiva de maneira ativa para a constituição do país12.

Na segunda metade do século XIX, Sílvio Romero se insere no debate ao interpretar a composição étnica da população brasileira a partir do parâmetro da mistura e do cruzamento das “raças” (indígenas, negros e brancos). O autor, contudo, aborda a inevitabilidade e a positividade relativa dessa miscigenação, ressaltando sobretudo a possibilidade de que ela propiciasse o desenvolvimento de um traço distintivo da originalidade local brasileira. Com o decorrer do tempo e o avanço do processo de fusão étnica, Romero vislumbrou que essa dinâmica levaria a nação a consolidar uma figura singular e genuína: o mestiço.

Sabe-se que a seleção natural na mestiçagem ao cabo de algumas gerações faz prevalecer o tipo da raça mais numerosa […] a branca. Quase não temos mais famílias extremamente arianas; os brancos presumidos abundam. Dentro de dois ou três séculos a fusão étnica estará talvez completa, e o brasileiro mestiço, bem caracterizado (Romero, 1953, p. 110).

A partir dos anos 1920, esse debate se intensifica no ambiente intelectual brasileiro. Em Casa-grande & senzala, lançado em 1933, Gilberto Freyre procurou inaugurar uma nova linha de estudos raciais, de cunho sociológico e culturalista, com o objetivo de romper com as abordagens biologizantes que marcaram parte significativa da produção intelectual nacional nas décadas anteriores. Para tanto, Freyre sustentou a premissa de que foi o processo de mestiçagem étnica que desempenhou papel fundamental na construção de um processo de formação singular no Brasil (Benzaquen, 1994), o qual, por sua vez, se distinguia das formas de organização social predominantes nos países do “norte global”, caracterizadas por princípios segregacionistas e pela aversão à diferença racial.

Para Benzaquen (1994), a argumentação freyriana se defrontou com duas perspectivas hegemônicas no campo intelectual brasileiro. A primeira, assentada na recepção positiva das reflexões racistas de Arthur de Gobineau (1816-1882) e Louis Agassiz (1807-1873), atacava a ideia de “mistura” racial. Nessa visão, argumentava-se que a miscigenação, ao produzir um cruzamento entre “espécies diversas”, produziria uma esterilidade cultural, comprometendo qualquer esforço de civilização, inviabilizando a formação do país. A segunda, em sentido oposto, vai recusar essa “condenação à barbárie” decorrente das misturas raciais, de modo que a miscigenação deixa de ser responsável por nossa ruína para se converter num mecanismo capaz de garantir, através da extinção da “questão racial”, a redenção do Brasil e seu consequente ingresso no concerto das civilizações.

Ambas, entretanto, avaliavam de modo negativo a presença do negro no seio da sociedade brasileira. A diferença entre as duas percepções é que, na primeira, o constrangimento derivado dessa constatação implacável torna a questão impenetrável e o problema insolucionável; na segunda, mesmo que haja uma herança negativa do passado colonial, seria possível e necessário superá-la através da mistura racial, que na prática seria a sobreposição das qualidades do homem branco ante a inferioridade negra. Como afirma Benzaquen, nos dois casos a operação por detrás da argumentação é a mesma: uma ideia de supremacia branca como forma de organizar a sociedade brasileira, de modo a espelhá-la às nações europeias.

Benzaquen mostra que Gilberto Freyre pretendia inaugurar uma terceira posição, cujo objetivo seria, a partir de uma distinção entre “raça” e “cultura”, valorizar de forma simétrica as contribuições de negros, portugueses e indígenas – esses em menor grau – para a formação do Brasil. Em outros termos, Freyre tencionava “construir uma outra versão da identidade nacional”, que substituiria a “obsessão com o progresso e com a razão, com a integração do país na marcha da civilização” pela “atenção à híbrida e singular articulação de tradições que aqui se verificou” (Benzaquen, 1994, p. 30). Essa seria, inclusive, a marca de distinção da brasilidade: a partir de uma relativa convivência racial pacífica, a mestiçagem produziria uma mistura de saberes, práticas e vivências de negros, indígenas e brancos, que, relacionando-se de modo harmônico, teriam construído um tecido social essencialmente democrático e estável.

A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido da aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação (Freyre, 2006, p. 33).

Na hipótese de Freyre, a mistura de raças serviu para desestruturar os conflitos étnicos que poderiam surgir como decorrência do escravismo negro e da exploração dos indígenas por parte dos portugueses ao longo do processo colonial. Ao invés de uma sociedade marcadamente conflitiva, seccionada por “ressentimentos raciais”, erigiu-se um tecido social democrático do ponto de vista da convivência entre as raças. Como indica Lilia Schwarcz, “Freyre fazia uma apologia da civilização luso-tropical” ao ressaltar seu caráter “simbiótico”, isto é, a confluência “sincrética e feliz” de “negros, índios e brancos” e a ausência de segregação fruto de uma miscigenação extremada e singular (Schwarcz, 1995, p. 22).

Antes de voltar à questão central, vale ressaltar que a tese de Benzaquen avança num ponto fundamental: embora Freyre pretendesse se distanciar das teses anteriores, em algumas passagens de Casa-grande & senzala ficou evidente que “Gilberto realmente preserva […] todo um vocabulário, marcado pelo louvor à biologia, que parece muito mais compatível com o determinismo racial do século XIX que com o elogio da diversidade cultural que ele desde o início procurou endossar” (Benzaquen, 1994, p, p. 31). Na visão de Benzaquen, a autoimagem construída por Freyre, segundo a qual suas ideias culturalistas se filiavam às inovações reflexivas de Franz Boas, não correspondia totalmente à realidade de sua própria obra, na medida em que o livro operava, um tanto mais, com as ideias neolamarckianas, que associavam a raça ao meio físico e à capacidade de adaptação.

Apesar das singularidades das interpretações de cada autor, as teses de Martius, Romero e Freyre indicam, no limite o papel que a colonização e a formação do Brasil tiveram no ajustamento efetivo e ativo de três raças, que deram suas contribuições em maior ou menor grau à civilização e à cultura nacionais. Pode-se falar, inclusive, que essas visões, a despeito das clivagens existentes em cada escrita da história específica, sedimentaram um projeto político-historiográfico que desagregou, mesmo de forma relativa e parcial, uma tradição que atribuía certo heroísmo unívoco ao português e à “raça branca” na jornada colonial nas Américas. Mais do que isso: essa hipótese, ao tornar-se paradigmática, vai ser constantemente reatualizada e reapropriada, ao sabor e ao gosto de cada contexto, para reafirmar a leitura de um Brasil avesso ao conflito e, portanto, pacífico e harmônico.

Candido finca um pé nesse debate, ainda que por um ângulo lateral, dado que seu interesse primordial é a literatura. Sua leitura sobre o debate racial brasileiro, portanto, atenta-se especificamente ao campo da cultura.

Quanto ao Brasil […] [transmitiu-se] por vezes a ideia enganadora de que a literatura foi aqui produto do encontro de três tradições culturais: a do português, a do índio e a do africano. Ora, as influências dos dois últimos grupos só se exerceram (e aí intensamente) no plano folclórico; na literatura escrita atuaram de maneira remota, na medida em que influíram na transformação da sensibilidade portuguesa, favorecendo um modo de ser que, por sua vez, foi influir na criação literária. Portanto, o que houve não foi fusão prévia para formar uma literatura, mas modificação do universo de uma literatura já existente, importada com a conquista e submetida ao processo geral de colonização e ajustamento ao Novo Mundo (Candido, 2011, p. 199).

Na percepção de Candido, não houve participação ativa das três raças no processo de formação da cultura brasileira. Ao contrário, o colonialismo foi responsável por domesticar as práticas culturais desses grupos étnicos distintos do elemento “luso-brasileiro”. Em outros termos, o produto estético europeu, em choque com a materialidade do mundo colonial, se modificou e, ao menos no plano das temáticas, a diversidade das personagens que compõem o mosaico societário nacional. No entanto, não se efetivou uma abertura para a pluralidade e a diversidade de vozes dos sujeitos subjugados pela empreitada colonial; isto é, não ocorreu a democratização e a pluralização de vozes, raças e culturas ao longo do processo de formação sociocultural brasileira, conforme antecipavam as noções de “democracia racial” e “cordialidade”, tal como analisadas pelo crítico.

Candido sustenta que, na América Latina, a literatura foi, inicialmente, uma expressão da cultura do colonizador e, posteriormente, tornou-se a expressão do colono de origem europeia. Em ambos os casos, a posição advinda da condição de dominação funcionou como um meio eficaz de impor um conjunto de valores às culturas consideradas “primitivas” que integravam o mosaico social e cultural nativo. Nesse contexto, a literatura exerceu um papel central no processo colonizador. Com raras exceções, como o fato de que, ao longo do território brasileiro, as culturas subjugadas foram, por vezes, relegadas a um status de “apêndice” ou “elemento pitoresco”, servindo para “realçar, distinguir e criar um contraste com a cultura dominante”, na maioria dos casos as manifestações culturais dos indígenas e africanos enfrentaram severas restrições às suas expressões. Para Candido, portanto, no processo de imposição cultural, a literatura desempenhou um papel crucial, funcionando como um mecanismo de controle dos povos subjugados, impondo-lhes os ditames e as normas dos colonizadores (Candido, 2011).

Reverberando discussões candentes no Terzo Mondo, Candido buscou relançar o olhar sobre certas expressões de nossa literatura ou do pensamento social brasileiro, destacando a relação estreita entre uma produção intelectual “pacificadora” e o prolongamento dos ditames do estatuto colonial no Brasil. Em outros termos, o crítico buscou identificar nos saberes elaborados em solo nacional certas narrativas mitológicas acerca de nossa formação, especialmente focadas em ressaltar a “harmonia racial” e a “cordialidade” como marcas de distinção da brasilidade.

Perspectiva anticolonial?

Tanto no ensaio apresentado em Gênova quanto no desdobramento exposto em “Literatura de dois gumes”, Candido oferece um panorama abrangente de como diversos saberes mobilizados no Brasil originavam-se de um discurso de fundo colonialista, cujo princípio central seria a ideia de um caráter harmônico e confluente que orientou a configuração de nosso povo e de nossa sociedade. Essa visão está alinhada às proposições do encontro de Gênova: dada a condição de dominação colonial nos campos da cultura e das artes, como ela se projeta no campo das representações sociais? Mais do que recusá-la, era preciso tratá-la de forma crítica. O ponto central de Candido nos dois ensaios analisados é o seguinte: a partir da análise do fenômeno literário e do pensamento social, o crítico procurou desvelar os nexos internos das representações intelectuais hegemônicas sobre a complexa formação multiétnica brasileira e latino-americana. Embora não desconsidere a importância social dos “negros” e “indígenas” para a construção dessas nações, Candido enfatiza que, por um lado, a esses grupos foi imposta toda sorte de violência, exploração e silenciamento, que funcionaram como mecanismos de controle e interdição cultural, com o intuito de assegurar a hegemonia do repertório intelectual externo, oriundo das metrópoles – portanto, colonialista. No contexto latino-americano, portanto, as relações estabelecidas entre os colonizados e suas respectivas “matrizes metropolitanas” se estruturaram, em primeiro lugar, pela lógica da violência e imposição. Por outro lado, Candido destaca que a própria empreitada colonizadora europeia na América Latina, especialmente no Brasil, imbuída de um imperativo etnocêntrico, proporcionou o espaço para o florescimento de uma força motriz que, a partir do século XVIII, consolidou um sentimento anticolonial, o qual não apenas impulsionou a emancipação política, mas também alimentou a busca por uma “originalidade estética”.

Em linhas gerais, assim, os dois ensaios mostram que a literatura e o pensamento social produzidos na periferia do capitalismo resultam de um complexo jogo assimétrico de forças “locais” e “universais”, “nacionais” e “internacionais”, que se manifestam sempre de forma entrecruzada, em choques, conflitos e dilemas. As ideias do autor que aqui analisamos, produzidas “na esteira” do encontro na Itália, ampliaram seu próprio horizonte analítico e o mergulharam nos densos debates sobre o colonialismo e suas dimensões intelectuais e culturais. Essa aproximação é essencial para as ideias apresentadas por Candido nos dois ensaios. Na prática, pois, Candido realizou alguns gestos historiográficos que o levaram, primeiramente, a distanciar-se de certas tradições do pensamento brasileiro que, elogiosas à colonização ibérica, atenuavam a violência e as mazelas deixadas pela herança colonial nos trópicos. Depois, procurou indicar também que, embora seja possível verificar diversas brechas coloniais que permitiram a adaptação transfiguradora local do repertório metropolitano nas Américas, a ideia de que o caráter plástico e harmonioso da sociedade brasileira seria o “legado positivo” da colonização na formação de nossa subjetividade era um artifício ideológico voltado à manutenção de certa hegemonia cultural europeísta.

O exemplo disso para Candido era um “lugar-comum” da historiografia brasileira: a ideia de “democracia racial”, que tem suas raízes no século XIX, mas que se construiu, de fato, no pensamento freyriano. Do ponto de vista argumentativo, apresenta-se a ideia de que era preciso enxergar nas questões raciais brasileiras um processo de ajustamento que teria produzido uma “harmonia étnica”. Para se tornar viável, essa hipótese contou com o auxílio de uma visão consorte, a da “cordialidade”, levantada por Ribeiro Couto e outros, que era tomada como forma de definir o latino-americano a partir de características como afabilidade, pacifismo e tolerância, que impulsionam uma propensão quase natural à democracia. Como indica Edu Teruki Otsuka (2019, p. 28), a reconstrução da formação brasileira operada em “Literatura de dois gumes” (e, podemos dizer, também em “Nature, élements et trajectoire de la culture brésilienne”) focaliza a colonização “não pelo que poderia ter sido, mas pelo que efetivamente foi, como adaptação de um aparato cultural europeu, articulado à empresa colonial e, em seguida, à dominação da elite proprietária local”.

Nas proposições de Candido, é possível observar a configuração das relações que emergem no contexto do colonialismo, entendido como um complexo de dominação de origem europeia que se estendeu para além da mera colonização material, gerando formas de representação próprias nos domínios da cultura e do pensamento social. O exemplo analisado neste artigo refere-se à gradual e intricada construção da ideia de uma “harmonia racial” brasileira, estreitamente vinculada à concepção de “cordialidade” como elementos fundamentais da brasilidade. A crítica de Candido, nesse sentido, reverbera uma postura anticolonial que, nos anos subsequentes, se consolidaria no pensamento “terceiro-mundista”.

Referências Bibliográficas

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  • 1
    . A Conferência reuniu 29 países asiáticos e africanos com o objetivo de costurar alianças e projetos políticos comuns às regiões do “Terceiro Mundo”, com vistas à promoção da cooperação e como forma de oposição à bipolarização da Guerra Fria. Na prática, a conferência representou “o início da tomada de consciência em relação ao papel que os novos países independentes deveriam exercer no mundo”, fincado na perspectiva de “representar os excluídos, os oprimidos e os rejeitados nas grandes discussões internacionais do centro” (Pereira e Medeiros, 2015, p. 124).
  • 2
    . Para uma análise mais aprofundada do encontro, ver Barbosa, 2024, p. e300302.
  • 3
    . Todas as traduções do francês são próprias. No original: “Si vous voulez une illustration pittoresque de ce que je viens de dire, je me permets de signaler un interview donné il y a quelques années par un éminent sociologue à la revue américaine Time, où cet analyste hardi de l’apport africain parlait du manque de préjugé au Brésil, et dans son œuvre, et donnait comme preuve de la largesse de ses vues la déclaration dans ses veines, dans la proportion qu’il fixait avec une précision à ravir les généticiens, de 1/64, et qui était dû au mariage d’un de ses ancêtres au XVIème siècle avés une de ces charmantes princesses du sang brésilien”.
  • 4
    . Interessante salientar que, também em 1967, Candido publicou “O significado de Raízes do Brasil”, prefácio à reedição de Raízes do Brasil (1936), obra de Sérgio Buarque de Holanda, em que ressaltou a importância teórica e epistemológica de Casa-grande & senzala (1933), de Freyre. No ensaio que estamos trabalhando aqui, contudo, esse elogio é matizado, sobretudo em relação à visão sociológica e historiográfica freyriana.
  • 5
    . No original: “Je cite pour illustrer le cas de l’évêque Azeredo Coutinho, curieux mélange de libéralisme et d’obscurantisme, qui fonda dans les dernières années du XVIIIème siècle le premier grand établissement moderne d’enseignement au Brésil, le séminaire d’Olinda, en Pernambuco. Dans une étude sur le commerce portugais où il manifeste un mercantilisme arriéré, traversé par des aperçus magnifiques, il propose une forme de développement économique au moyen du commerce du sel, qui servirait en même temps à incorporer les indigènes à la civilisation. Basé sur les théories pédagogiques de Rousseau, il conclut qu’il faut mettre à profit leurs aptitudes naturelles, qui seraient dans le cas le penchant pour la navigation et la construction navale. De l’ensemble: indien bon navigateur, plus bois disponibles pour la construction navale plus grande extension côtière plus bonnes salines, il concluait à un commerce florissant qui ferait la richesse du pays”.
  • 6
    . No original: “Je ne ferai mention que d’un grand journaliste, João Francisco Lisboa, qui vers les années 1850, esquissa um tableau inobliable du founctionnment réel du système électoral, marque par um écart catastrophique entre des formes légales assez exigeantes et l’arbitre réel des seigneurs terriens qui faisaient manipuler les votes d’après leur intérêts économiques, par une administration docile que leur fournissait le gouvernement impérial”.
  • 7
    . No original: “de telle façon que les trois races ont fini par échanger toure dorte d’éléments, par se fusionner à tous les degrés imaginables, sous l’égide d’une culture où dominent les éléments d’origine européenne”.
  • 8
    . No original: “Derrière la façade bâtie sur la mer par une bourgeoisie prospère qui était en train de se donner un éclat particulier par les réformes urbaines de la capitale et par la croissance vertigineuse de São Paul, il décrivit les populations généralement métissées, refoulées et condamnées à la misère, mises au ban par l’isolement et l’inconscience des couches dominantes, éclatant périodiquement par les convulsions du messianisme religieux et ne s’affirmant que par le brigandage endémique. Euclides da Cunha a montré (et jusqu’a nos jours cette partie de ses populations les couches dominantes de trouvent comme solutions que la répression inhumaine, au nom de la civilisation conçue, comme jouissance destinée à la minorité”.
  • 9
    . No original: “Vu de cette façon, le postulat de l’homme cordial apparaîtrait plutôt comme une construction idéologique, qui prolonge d’um côté la vision édénique que nous avons constate pour le début de la colonisation, mais qui serait de l’autre une espèce de vaste processus de camouflage, servant à dissimuler sous un masque de fausse bonté les désharmonies du sous-développement, l’iniquité sociale, l’oppression des races, la violence des répression. La conviction d‘être um homme cordial au sens plein donne bonne conscience aux brésiliens et finit par s’imposer aux autres peuples; et elle aide à former du pays une image qui convient assez au maintien des dominations traditionnelles”.
  • 10
    . Utilizaremos a versão traduzida, intitulada “Literatura de dois gumes”, publicada em A educação pela noite (2011).
  • 11
    . O termo procura abarcar diferentes reflexões historiográficas sobre a formação colonial brasileira que produziram sínteses explicativas em sentido positivo e elogioso ao processo colonizador e aos desdobramentos do colonialismo. Nessa seara, destacam-se, por exemplo, Francisco Adolfo de Varnhagen e Gilberto Freyre. Cf. Reis, 2007.
  • 12
    . Um debate de maior rendimento sobre a importância do IHGB e das teses de Von Martius no debate racial brasileiro pode ser encontrado em Guimarães, 2000, e, e Schwarcz, 1995.
  • Editor
    Alexandre B. Massella

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2025
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2025

Histórico

  • Recebido
    07 Jan 2025
  • Aceito
    06 Mar 2025
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