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Walter Garrison Runciman, A teoria das seleções cultural e social

Runciman, Walter Garrison. A teoria das seleções cultural e social. Souza, Caesar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. 304

O público interessado em teoria e epistemologia das ciências sociais já tem disponível uma primeira edição da obra de Walter Garrison Runciman, sociólogo inglês, em tradução brasileira. No livro A teoria das seleções cultural e social , publicado originalmente em 2009, Runciman retoma e aprimora sua perspectiva evolutiva de análise social iniciada no segundo volume de Treatise on social theory (três volumes, 1983-1997) e em Social animal (1998). Reconhecido por sua ênfase na aplicação da teoria evolutiva neodarwiniana aos domínios cultural e social, o autor valoriza a proposição básica de que as variações herdadas e a seletividade competitiva num quadro de forças ambientais explicam a diversidade que vem a predominar numa população observada, em termos biológicos, em suas diferenças culturais e em formas de organização social e dominação política. Sua preocupação é caracterizar uma sociologia comparativa de populações diferentes consideradas em períodos também diversos, desde apenas uma geração, no caso de variações culturais, até intervalos muito mais longos, de dezenas até centenas ou milhares de anos, no caso de variações sociais ou biológicas. Runciman realiza essa tarefa com rigor histórico e elegância estilística, articulando principalmente contribuições da antropologia e da filosofia da ciência ao quadro referencial neodarwiniano da evolução, que originalmente já transcende o domínio da biologia.

O livro compreende um prólogo, cinco capítulos, um epílogo e uma breve conclusão, estruturados, grosso modo , em duas partes, uma metodológica e uma substantiva. O corpus metodológico inclui o prólogo, com breve reconstrução do legado darwiniano, e os capítulos 1 e 5. No primeiro capítulo o autor caracteriza o paradigma neodarwiniano e expõe seus principais conceitos e pressupostos. Então desenvolve analiticamente e justifica o quadro referencial que empregará para fundamentar a proposição que sustenta toda a análise: “os padrões de comportamento humano deveriam ser analisados como a expressão externamente observável das informações que afetam o fenótipo transmitidas em três níveis separados, mas inter-relacionados: o biológico, o cultural e o social” (p. 9). No capítulo 5, “Teoria selecionista como história narrativa”, Runciman justifica o emprego da comparação de histórias narrativas ( just-so stories ) do sucesso ou fracasso de pacotes de informações (memes) ou práticas em culturas ou sociedades diferentes. Várias dessas histórias estão presentes nos capítulos 2, 3 e 4, núcleo substantivo do livro, que compreendem, respectivamente, as explicações: do comportamento evocado, resultante da seleção biológica, quando o indivíduo responde instintivamente a algum estímulo do ambiente; do comportamento adquirido, provindo da seleção cultural, quando o comportamento decorre da imitação ou do aprendizado com base na agência de outros; do comportamento imposto, oriundo da seleção social, quando o indivíduo se orienta por papéis sociais institucionalizados e sujeitos a incentivos ou sanções.

A distinção entre os níveis biológico, cultural e social proposta por Runciman o afasta de abordagens ultradarwinistas, como a sociobiologia (desenvolvida por Steven Pinker e outros), em que as diferenças socioculturais são consideradas redutíveis ao processo de seleção natural. Trata-se de três mecanismos de diferenciação seletiva, implicando três processos de coevolução bidirecionais: gene-meme, meme-prática, gene-prática. Um exemplo de coevolução gene-meme, de seleção natural-cultural, comentado por Runciman, é o fenômeno da absorção da lactose por adultos, que se julgava geral na espécie humana. A identificação do gene da enzima responsável pela absorção da lactose e as pesquisas realizadas com populações humanas que não têm o hábito de consumir o leite de outros mamíferos permitiram constatar que a capacidade de absorver a lactose cresceu em populações em ambientes com falta de vitamina d e cálcio, combinada com uma tradição cultural da criação de gado leiteiro, como no noroeste europeu e entre os Tutsis do leste da África (pp. 47-48). A representação social positiva do consumo do leite, como bom alimento, mesmo por adultos, pode ter sido mais frequente em populações que podiam prover-se de sua produção diária. Por outro lado, a indústria de laticínios, séculos depois, veio a reforçar ainda mais esse meme da valorização do leite, indicando mais uma transição meme-gene, já que a abundância da comida disponível, inclusive com aditivos de vitaminas e cálcio, não justifica mais a pressão ambiental por esse tipo de alimento, fazendo crescer a intolerância à lactose.

O procedimento de comparar culturas ou sociedades em locais e épocas diferentes, construindo histórias narrativas que explicam as diferenças em processos de coevolução meme-prática ou gene-prática, em que estão envolvidas distinções sociais e relações de poder, exige o emprego de construtos articulando relações em diversos aspectos. É o caso do termo “systact”, criado por Runciman, que indica qualquer tipo de divisão social (classes, estamentos, estratos, grupos de interesse etc.), ou seja, categorias de pessoas que ostentam um poder vinculado a seus papéis sociais. O termo compreende um tipo de redução que permite a comparação de sociedades diferentes prescindindo, em seu respectivo contexto de uso, de compromissos teóricos como diferenças entre classes e estratos. Assim, Runciman analisa a evolução do modo de produção capitalista na França após 1789 como uma reinterpretação contínua de memes revolucionários, uma “adaptação criativa” da retórica revolucionária padrão, que pode ser explicada como uma coevolução meme-prática. Referendando um artigo de William Sewell (1981) SEWELL , William H . ( 1981 ), “La confraternité des prolétaires: conscience de classe sous la monarchie de Juillet” . Annales. Économies, Sociétés, Civilisations , 36 ( 4 ): 650 - 671 . que tematiza a construção de uma retórica da classe operária a partir de publicações do jornal operário L’artisan entre 1830 e 1833, Runciman destaca a reinterpretação de um meme revolucionário que exaltava a liberdade e a independência em relação à nobreza e à aristocracia, no contexto de uma prática associativista corporificada em relações de companheirismo ( compagnonnage ) ligadas a grupos de métiers específicos (marceneiros, padeiros, costureiros, tintureiros etc.) existentes desde o século XV e sociedades de assistência mútua, inicialmente de caráter voluntário e religioso, autorizadas pelo Estado. Os operários acusavam os jornalistas que, na época da eclosão da Revolução de Julho de 1830, constituíam uma “pequena burguesia aristocrática”, considerando a classe trabalhadora apenas como máquinas de produção para satisfazerem suas necessidades. Esse tipo de discurso herdava elementos de uma prática sectária das corporações de ofício e revigorada na compagnonnage que, paradoxalmente, tendia a retardar a construção de uma consciência de classe operária e colocar em contraposição interesses do trabalhador de fábrica aos de trabalhadores em serviços. Por um lado, manifestava-se uma hostilidade a privilégios concedidos a trabalhadores de serviços mais qualificados, como banqueiros, jornalistas, advogados, médicos, mas também a suposição “de que a linha divisória systática mais importante é aquela entre produtores oprimidos dos bens materiais e seus consumidores ingratos” (p. 189). A “adaptação criativa” consistiria na percepção, pelos trabalhadores não empresários, de que a propriedade de seu trabalho deve ser valorizada moral e identitariamente, contrastada com a consciência da exploração, em sentido não somente instrumental, mas econômica e politicamente, pelos patrões que compram essa força de trabalho. Essa reinterpretação memética coevolui com uma transformação das práticas de compagnonnage e assistência mútua em ações mais coordenadas e unificadas realizadas por sindicatos de categorias profissionais, “influenciada pela renegociação contínua de práticas que definem a díade de papéis patron e ouvrier ” ( Idem ).

A coevolução gene-prática pode ser ilustrada pela adoção de políticas de controle de natalidade realizada em alguns países, como o caso da China, em que o governo implementou, do final da década de 1970 até outubro de 2015, uma política que prescrevia a cada família a geração de apenas um/a filho/a, penalizando com pesadas multas quem a infringia. Essa prática pode suplementar, favorável ou contrariamente, uma coevolução meme-prática no sentido de incentivar o nascimento de filhos, principalmente do sexo masculino, em sociedades camponesas. Em outro aspecto, é possível conjeturar uma coevolução gene-prática mediante uma intervenção premeditada na prática da procriação e geração de seres vivos, como a fertilização in vitro e a clonagem terapêutica, tendo em seu limite a clonagem reprodutiva humana e seus desdobramentos éticos, além de reflexos na própria condição humana.

Runciman inicia sua reconstrução do legado darwiniano ressaltando sua influência em autores clássicos do pensamento sociológico, como Herbert Spencer, Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber. No entanto, insiste em demarcar sua posição contrária às explicações de tipo teleológico que vieram a sustentar. Em relação ao materialismo histórico, há coerência com Darwin na afirmação de que a competição por necessidades básicas dá origem ao conflito, no sentido individual ou coletivo, e que “a variação herdável na informação que afeta formas de organização social gera modos diferentes de produção”. Porém, não há apoio, com base em Darwin, a uma ideia de evolução como série sucessiva de antagonismos conflitando pares de classes exploradoras e exploradas, que conduz necessariamente a uma revolução vitoriosa do proletariado. A teoria selecionista afasta também outras previsões evolutivas na forma de tendências unilineares, como as da urbanização inexorável, da secularização, da emancipação ou da modernização. O autor abre uma exceção para a “globalização”, pois, “por agora, tanto memes quanto práticas podem viajar a qualquer lugar do mundo”, e cresce a consciência mútua a respeito dessas transformações. Ainda assim, é possível preconizar um futuro em que catástrofes naturais, desequilíbrios climáticos provocados por humanos venham a isolar sociedades humanas remanescentes, assim como as técnicas que poderiam colocá-las novamente em contato. Assim, o atributo da previsibilidade que se creditava às explicações do tipo nomotético dá lugar ao papel do acaso nos processos seletivos naturais, culturais ou sociais.

Algumas narrativas da escravidão, reconstruídas por Runciman, relevam o poder do acaso nas explicações selecionistas, quando as comparamos, por exemplo, com a just-so story de Marx sobre a progressão de um modo de produção escravista para um modo de produção feudal, ou a de Weber sobre a regressão de um capitalismo nascente restringido pela burocracia para uma economia feudal descomercializada (p. 160). O sociólogo selecionista deve, num exercício de “engenharia reversa”, reconstruir contrafactualmente as negociações de práticas que redefinem intervalos de desigualdade institucional em ambientes locais diversos, nas três dimensões do espaço social, o econômico, o cultural e o político, articuladas num esquema conceitual que Runciman emprega para análise estrutural e comparativa: modos de produção, persuasão e coerção. O escravismo é considerado um caso de subordinação total, que compreende um conjunto de práticas relacionadas a um systact ao qual não se contrapõe nenhum tipo de poder institucionalizado. Como ocorreu em diversos países em épocas diferentes, é mais importante identificar suas histórias de extinção do que o evento fundador de sua primeira emergência. Ao compararmos a trajetória evolutiva do escravismo em diferentes sociedades nos territórios da Itália, França, Alemanha, Espanha, além de outros, verifica-se a diminuição do número dos completamente subordinados e o aumento da taxa de mutação das práticas que definem os papéis de quem é livre em algum grau (alforriados, tacitamente livres, minimamente livres etc.). No Brasil, por exemplo, em que a prática da alforria já era antiga, o distanciamento ideológico entre escravos e senhores era menor e mais matizado. Os memes e abolicionistas brasileiros foram mais bem sucedidos, em termos do tempo de elaboração/divulgação, do que ocorrera, por exemplo, no Sul dos Estados Unidos, pois os proprietários, que queriam se mostrar “modernizados”, não arriscaram confrontar os valores liberais implícitos nesses memes para não piorar as relações do Brasil com a Inglaterra, que fora contrária ao tráfico de escravos no Atlântico desde 1761. As diferenças entre períodos curtos de transcurso do declínio da escravidão, como ocorreu no Caribe, e períodos mais longos, como no sul dos Estados Unidos e no Brasil, podem ser explicadas por fatores contingenciais e imprevisíveis, relacionados principalmente ao contexto político, como, por exemplo, a composição das câmaras legislativas em nível local. Por outro lado, a comparação dos processos de extinção do escravismo em diversas sociedades e culturas distanciadas no tempo e no espaço, conforme exemplificada por Runciman no capítulo 4, demonstra que, a despeito da grande diferenciação do processo subjacente comum, em todos os casos, da variação herdável e seleção de informações que afetam o comportamento social resultante, pode-se obter o mesmo resultado evolutivo em ambientes locais diferentes (p. 169).

Outro conjunto de histórias narrativas em “A teoria das seleções cultural e social” é a respeito da trajetória do cristianismo, cujo sucesso final seria imprevisível, mas cuja reconstrução demonstra claramente um período de seleção cultural e outro subsequente de seleção social. A transmissão de memes no cristianismo primitivo em Roma era informal em locais de trabalho, entre amigos, por influências pessoais de um chefe de família ou proprietário de terras. Os cristãos eram de todas as idades e posições sociais. Vários de seus principais atrativos, como a vida eterna, o monoteísmo, o mistério, o companheirismo, não eram exclusivos, sendo também ofertados por outras religiões ou seitas, como o próprio judaísmo de onde surgiu. Entretanto, os principais valores transmitidos, a caridade e a benevolência incondicional, foram responsáveis por sua fixação, no modo de persuasão, num arranjo social vantajoso de reciprocidade em pequenos grupos. Essa transmissão cultural impulsionada por uma difusão lateral evolui para uma história de imposição política e social, uma diferenciação geopolítica que incluiu conversão forçada e imposição colonial ou imperial, em que as sanções institucionais se tornaram tão importantes quanto a inculcação ideológica efetivada pela imitação ou o aprendizado, mediante práticas como o catecismo.

O capítulo 5 expõe sucintamente uma justificativa metodológica do uso de histórias narrativas ou, mais especificamente, de just-so stories na sociologia selecionista comparativa. Aproximando-se de uma sociologia interpretativa, Runciman atrela esse tipo de narrativas ao procedimento metodológico da descrição densa, desenvolvido por Gilbert Ryle e Clifford Geertz. No entanto, sua aproximação ao construtivismo e à fenomenologia é parcial, pois não há concessão epistemológica ao que não é acessível, direta ou indiretamente, à verificação ou corroboração empírica, como os “estados mentais” ou o “sentido de consciência moral”. Comparar descrições ou representações com suporte no que vemos ou sentimos pressupõe uma base real, uma capacidade de agir por meio de expressões verbais, formas de falar que se tornam ações que têm como suporte um estoque de conhecimento comum. O fato de que essas narrativas não sejam todas verificáveis empiricamente não implica que não haja leis naturais, culturais ou sociais subjacentes aos fenômenos ou processos relatados ou ao quadro conjuntural que tornem possível sua compreensão comunicação e compreensão mediante a produção de “histórias assim”. Runciman contesta o desdém com que esse tipo de histórias narrativas é tratado por alguns filósofos da ciência: “Mas não há nada inerentemente errado em perguntar como o elefante ganhou sua tromba” (p. 41). Apesar de não haver uma referência explícita no texto, é impossível não relacionar essa passagem ao famoso livro de histórias para crianças escrito por Rudyard Kipling, Just so stories (1902) 1 1 . O livro teve diversas edições brasileiras, sendo a última com tradução de Myriam Campello, Histórias assim , publicada pela editora Octavo em 2012. , em que numa delas, “The Elephant’s child”, o autor narra ficcionalmente como se originou a tromba do elefante. O elefantinho, curioso, aproximou-se de um crocodilo faminto, na beira de um lago, para saber o que ele comia. Então o crocodilo, importunado, mordeu seu nariz e o puxou com força, o que veio a formar sua tromba, com a qual pode, a partir daí, levar grandes porções de pasto à sua boca pequena, facilitando a alimentação. Narrativas mais recentes, ancoradas na teoria da seleção natural, explicam o surgimento da tromba em elefantes como o recurso desenvolvido por mutações genéticas que levou à sobrevivência da espécie, pois só com o auxílio dessa protuberância originada a partir de uma parte leve de seu corpo, o nariz, o animal consegue comer o suficiente para sustentar seu corpo pesado. Isso teria ocorrido também com outros animais que desenvolveram trombas ou línguas longas, como girafas e camaleões. Existe um ponto em comum entre as duas narrativas de origem: as transformações biológicas relacionadas ao aprimoramento da alimentação, atividade necessária para a sobrevivência. No entanto, o recurso a atributos psicológicos, como curiosidade, ou sanções morais, como o castigo diante da intromissão no espaço vital, afastam a narrativa ficcional de Kipling de compatibilidade com a história narrativa selecionista.

A referência ao livro Histórias assim torna-se pertinente não em razão da inverificável condição de verdade das narrativas, mas por evidenciar um meme comum em diversas sociedades ou culturas, o de contar histórias para crianças, para distraí-las, fazê-las dormir, transmitindo elementos culturais ligados a cosmologias, tradições ou identidades. O livro de Kipling contém não somente narrativas explicativas de características de animais, como a corcova em camelos ou as pintas num jaguar, mas também aprimoramentos culturais, como o desenvolvimento do alfabeto ou a história da primeira carta escrita. Abarca exemplos de histórias de origem no mundo biológico, mas também dos domínios cultural e social, descrevendo alterações de papéis sociais e hierarquias relacionadas a práticas como a escrita e o domínio da linguagem. Nessas histórias Kipling relatava sempre transformações de um estado de evolução a outro, como em animais que eram de um jeito e mudavam, ou práticas, como a de comunicação, que se alteravam. Incluindo elementos mágicos ou sobrenaturais nessas transformações, o autor realiza uma hibridação cultural com base em sua origem na Índia como colônia britânica. Entretanto, uma vez relatadas, as histórias deveriam ser recontadas nos mesmos termos, “just so”, ou não eram reconhecidas por sua filha. Assim, o livro de Kipling torna-se um exemplo da permanência da prática cultural de contar histórias para crianças, mas também de sua transição da oralidade ancorada na memória e na tradição para o mundo da leitura e da escrita, intermediada pela produção editorial, no nicho específico da literatura infantil, subordinada ao mercado de bens culturais. Compreender essas diferentes histórias narrativas, tentando ordená-las numa escala evolutiva, constitui uma prática antropológica que Runciman considera indispensável na sociologia comparativa selecionista e procura exemplificá-la com referência à descrição feita pela antropóloga Caroline Humphrey (1996) de seus diálogos sobre o xamanismo mongol no povo daur com um amigo informante, cuja trajetória de vida foi muito diversificada culturalmente, desde sua infância e criação numa aldeia mongol remota até sua imigração para os Estados Unidos, depois de servir no movimento de libertação mongol e cursar uma universidade no Japão.

A articulação metodológica de teorias em campos epistemologicamente tensionados, como os das ciências biológicas e ciências humanas, não se faz sem certo grau de reducionismo e concessões ao relativismo. A aproximação entre o compreensivo e o explicativo, o idiográfico e o nomotético, a interpretação e a inferência causal não se traduz numa síntese dialética, como na análise de Karl Otto Apel (1973) APEL , Karl-Otto . ([ 1973 ] 1985 ), “El desarrollo de la ‘filosofía analítica’ del lenguaje y el problema de las ‘ciencias del espíritu’” . In: APEL , Karl-Otto . La transformación de la filosofía , Madri , Taurus , pp. 27 - 90 . , ou pela subordinação relativa a um dos polos, como procedeu George von Wright na justificação de uma explicação quase-teleológica (1971), mas por uma aplicação reflexiva dos próprios princípios da teoria seletiva à prática da ciência. Em analogia com o que ocorre nas mutações genéticas, transformações meméticas e mudanças sociais seletivamente bem-sucedidas, a teoria selecionista deve estar submissa à natureza evolucionária da própria ciência. No final de seu livro Runciman, justificando esta proposição, retoma Thomas Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas , relacionando analogicamente a evolução dos organismos à evolução das ideias científicas: “a resolução de revoluções corresponde à seleção pelo conflito da maneira mais adequada de praticar a ciência – seleção realizada no interior da comunidade científica”. O resultado final dessa sequência de seleções revolucionárias separadas por períodos de ciência normal constitui, para Kuhn, o conhecimento científico moderno (1997, p. 215).

A publicação brasileira recupera o índice de conceitos e autores presente na edição original, o que é fundamental em publicações científicas, principalmente as de caráter teórico-metodológico. Traz também muitas notas do tradutor, Caesar Souza, com formação em filosofia, responsável pela tradução de diversas obras, para a mesma editora, nas áreas de filosofia, história e sociologia. As notas estão relacionadas preponderantemente a conceitos do neodarwinismo que não se encontram definidos no livro em resenha, bem como a informações ad hoc sobre a história e o contexto sociopolítico no Reino Unido, o que torna o conjunto de grande valia para leitores lusófonos voltados mais ao campo das ciências humanas e sociais. Entretanto, algumas dessas notas poderiam ser acrescidas de referências, no caso de alguns conceitos em que há polêmicas em relação a suas acepções, como é o caso de “fixação” nas seleções biológica e cultural (nota 35) e “design ótimo” ou “subótimo” (notas 70 e 170, respectivamente). A despeito da boa qualidade editorial da publicação, há alguns lapsos em relação ao original que convém identificar, pois poderiam ser facilmente reparados em futuras reimpressões ou edições. Os dois primeiros são: a data da famosa carta de Marx a Lassalle (1961, em lugar de 1861, p. 11); a tradução de Physic como “Física”, em lugar de “Medicina” (nota 19, p. 39). Há também outro trecho que pode levar a uma compreensão equivocada da argumentação do autor: “por uma mudança climática resultante de [em lugar de “que resultou em”] uma escassez catastrófica de alimentos” (p. 56).

O lançamento de A teoria das seleções cultural e social repara uma lacuna na publicação de obras da sociologia selecionista comparativa e especificamente da obra de W. G. Runciman no Brasil. Propicia uma iniciação a pesquisadores interessados na metodologia e epistemologia das ciências sociais aos desdobramentos da teoria neodarwinista da evolução à análise comparativa de sociedades e culturas. A argumentação do autor me pareceu bastante convincente na maioria das narrações históricas apresentadas nos domínios biológico, cultural e social. Entretanto, minha pouca familiaridade com a perspectiva evolutiva neodarwinista não permitiu, certamente, um aprofundamento maior nas questões envolvidas ou um esboço de análise crítica. Mas isso não me impede de recomendar com ênfase a leitura desse livro pois, ainda que particularmente não compartilhe com algumas de suas posições epistemológicas, como o afastamento da filosofia da consciência e de posicionamentos ético-normativos na compreensão da sociedade e de suas transformações, são inegáveis a pertinência e a prevalência da ideia de evolução aplicada ao comportamento, em suas dimensões natural, cultural e social, e a teoria construída por Runciman, no escopo da sociologia comparativa selecionista, representa uma relevante contribuição nessa perspectiva.

Referências Bibliográficas

  • APEL , Karl-Otto . ([ 1973 ] 1985 ), “El desarrollo de la ‘filosofía analítica’ del lenguaje y el problema de las ‘ciencias del espíritu’” . In: APEL , Karl-Otto . La transformación de la filosofía , Madri , Taurus , pp. 27 - 90 .
  • KIPLING , Rudyard . ( 2012 ), Histórias assim . São Paulo , Octavo .
  • KUHN , Thomas S . ( 1997 ), A estrutura das revoluções científicas . 5 ed. São Paulo , Perspectiva .
  • RUNCIMAN , Walter Garrison . ( 2009 ), The theory of cultural and social selection . Nova York , Cambridge University .
  • SEWELL , William H . ( 1981 ), “La confraternité des prolétaires: conscience de classe sous la monarchie de Juillet” . Annales. Économies, Sociétés, Civilisations , 36 ( 4 ): 650 - 671 .
  • WRIGHT , George Henrik von . ( 1971 ), Explanation and understanding . Londres , Routledge & Kegan Paul .

Nota

  • 1
    . O livro teve diversas edições brasileiras, sendo a última com tradução de Myriam Campello, Histórias assim , publicada pela editora Octavo em 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    7 Mar 2019
  • Aceito
    2 Abr 2019
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