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Apresentação

HOMENAGEM A ANDRÉ GORZ

Apresentação* * Este Dossiê originou-se de uma "Sessão Especial" no Encontro da Anpocs de outubro 2007, organizada para homenagear André Gorz, que se suicidara, juntamente com sua mulher Dorine, em setembro daquele ano.

Iram Jácome Rodrigues e Josué Pereira da Silva

Eu me vejo como um filósofo fracassado que, por meio de ensaios aparentemente políticos ou filosóficos, tenta fazer passar de contrabando reflexões originalmente filosóficas... Eu não compreendo a filosofia à maneira dos criadores de grandes sistemas filosóficos, mas como a tentativa de se compreender, de se descobrir, de se liberar, de se criar. A vida, e a vida humana em particular, é autocriação... O que importa compreender antes de tudo é que um Ser só pode se compreender, se liberar, ser responsável por si mesmo na medida em que é consciente de produzir-se a si mesmo: onde ele se vive como sujeito de sua existência (André Gorz)1 1 Trecho de uma entrevista de André Gorz, concedida a Martin Junder e Reiner Maischen, durante um seminário na Alemanha, em outubro de 1983; a entrevista foi publicada em inglês como um "afterword" ao livro The Traitor, pela editora Verso, em 1989, pp. 273-307; ela foi também publicada em francês recentemente, no livro organizado em sua homenagem por Christophe Fourel, André Gorz: un penseur pour le XXIe siècle, Paris, La Découverte, 2009, pp. 179-197. .

Esta passagem diz, ao mesmo tempo, muito e pouco sobre André Gorz. Muito porque parece revelar um traço de sua personalidade, perceptível sobretudo para quem o conheceu pessoalmente: seu jeito discreto podia ser confundido com timidez. Pode, por outro lado, dizer pouco porque parece não fazer jus à importância de sua obra, já naquela época, como uma contribuição para a teoria social contemporânea. Mas talvez tudo isso se explique também pela compreensão que tinha de si mesmo - evidente já em seus primeiros escritos e desde sua primeira infância - como um estranho neste mundo de alienação; mundo que, aliás, foi objeto constante de crítica em toda sua obra; lutou, portanto, por um mundo no qual as pessoas pudessem ser sujeitos de sua própria existência até seu último ato. A morte por suicídio junto com Dorine, com quem partilhou a vida por sessenta anos, em setembro de 2007, embora tenha chocado e surpreendido muitos de nós, foi ao que tudo indica uma escolha existencial, condizente com sua filosofia.

De Viena a Paris

André Gorz nasceu em Viena, na Áustria, em 9 de fevereiro de 1923; ou melhor, ele só nasceu bem mais tarde, 1958. Quem nasceu em Viena, em fevereiro de 1923, foi Gerhardt Hirsch, filho de Robert Hirsch e Maria Hirsch. Robert e Maria, ele judeu e ela católica, trocaram o Hirsch por Horst em 1930 para se protegerem do antissemitismo então emergente, fazendo com que nosso personagem tivesse um segundo nascimento. Assim, em 1930, aos 7 anos de idade, Gerhardt Hirsch tornou-se Gerhardt Horst.

Em 1939, quando a Áustria foi ocupada pelo exército de Hitler, Gerhardt tinha 16 anos de idade; com a prisão de seu pai, sua mãe achou por bem enviá-lo para a Suíça, para evitar sua convocação ou mesmo uma eventual prisão. Ali frequentou o Instituto Montana, perto de Zurique, e foi então que decidiu dedicar-se ao estudo da língua francesa. Mudou-se para Lausanne em 1941, para estudar engenharia química, onde também entrou em contato com os escritos de Sartre, de quem se tornou "um discípulo emancipado"2 2 A expressão "um discípulo emancipado" é de Christophe Fourel; ver a introdução do livro citado na nota anterior. e cuja obra constitui-se numa das principais influências em sua formação intelectual. Além de Sartre, Karl Marx e, mais tarde, Ivan Illich são outros dois autores em quem Gorz buscou inspiração3 3 Ver, a respeito, Josué Pereira da Silva, André Gorz: trabalho e política, São Paulo, Annablume, 2002; Finn Bowring, André Gorz and the Sartrean Legacy, Londres, Macmillan, 2000; Françoise Gollain, Une critique du travail, Paris, La Découverte, 2000. . Porém, ele encontrou-se com Sartre pela primeira vez somente em 1946, em Genebra, durante uma conferência do filósofo francês, para a qual ele fora convidado por ser um dos poucos que, na Suíça, conhecia a obra de Sartre.

Conheceu Doreen Keir em 1947; os dois se casaram em 19494 4 Doreen Keir passou então a se chamar Dorine Horst. , mesmo ano em que foram morar em Paris, onde Gorz também começou a trabalhar como jornalista, a partir de 1951. Ao naturalizar-se francês, em 1954, Gerhardt se transformou em Gérard. Seu nome passou então a ser Gérard Horst. Mas em 1955, ao começar a escrever para o recém-fundado L'Express, ele adotou o pseudônimo de Michel Bosquet; Bosquet, tradução francesa do alemão Horst, significa pequeno bosque. Foi com esse nome, Michel Bosquet, que ele publicou seus primeiros escritos sobre ecologia5 4 Doreen Keir passou então a se chamar Dorine Horst. .

Em 1958 publicou seu primeiro livro, Le traïtre, um ensaio teórico-autobiográfico no qual combina marxismo e psicanálise para analisar sua própria história de vida; é nesse livro que utiliza pela primeira vez o pseudônimo André Gorz, nome com o qual se tornou mundialmente conhecido. Gorz é o nome de uma pequena cidade na fronteira da Itália com a atual Eslovênia; e ele o tirou dos binóculos fabricados naquele lugar, que ganhara de seu pai na adolescência. Por falar em pseudônimo, aliás, nesse mesmo livro Dorine e Sartre aparecem também com os pseudônimos de Kay e Morel, respectivamente.

De 1958 a 2006, Gorz publicou dezessete livros; em 2008, após sua morte, veio a público mais um, totalizando dezoito livros. Neles, seu autor aborda diversos temas; os três primeiros livros são os mais filosóficos, embora também lidem com os problemas sociais e políticos, que predominam nos livros posteriores. Os livros das décadas de 1960 e 1970 destacam-se, sobretudo, por estarem mais voltados para as questões do trabalho e da estratégia operária; embora já se façam presentes em textos anteriores, a crise do capitalismo, a redução do tempo de trabalho e a ecologia tornam-se seus temas preferidos nos textos do final da década de 1970 em diante. Dois de seus livros são autobiográficos, Le traïtre, de 1958, e Carta a D., de 2006, o último que ele publicou em vida.

No conjunto, seus escritos - livros, artigos e entrevistas - formam uma obra considerável, que se destaca tanto por seu perfil crítico quanto pela capacidade de detectar a dinâmica das mudanças sociais contemporâneas; e, como teórico crítico, ele também se preocupou em formular propostas que apontassem para o horizonte de uma sociedade mais justa e humana.

Foi assim na década de 1960 e início da década seguinte, quando, acreditando ainda nas possibilidades de uma revolução liderada pelo proletariado industrial, propunha uma estratégia de reformas revolucionárias que procurava vincular as lutas cotidianas nas fábricas pelo controle do processo de trabalho com as políticas sindicais e partidárias, de forma que as reivindicações mais imediatas se articulassem com uma estratégia mais ampla de transformação social. E foi assim também a partir de 1980, quando publicou talvez o seu livro mais famoso Adeus ao proletariado, cujo título já sugere uma radical mudança na posição que atribuía ao operariado industrial quanto ao seu papel de liderança num processo de transformação social. Dessa forma, a análise de Gorz se baseava, de um lado, na crítica, ecologicamente inspirada, ao crescimento econômico destruidor do ambiente natural; e, de outro, na impossibilidade de apropriação coletiva do aparelho produtivo por um proletariado que estava, aliás, sendo substituído pelas tecnologias associadas com a microeletrônica. Em tal situação, ele vislumbrava como saída para a crise social daí resultante uma política programada de redução do tempo de trabalho, a ser completada com um salário social e pelo incentivo às atividades com valor social, mas sem valor de mercado. Em dois de seus últimos livros, Misérias do presente, riqueza do possível, de 1997, e O imaterial, de 2003, nos quais aborda a questão da emergência do imaterial, ele radicaliza ainda mais sua posição, propondo a quebra do vínculo entre trabalho e renda e adotando a proposta da renda básica incondicional.

Os textos deste Dossiê

Dos quatro artigos que compõem o dossiê, o primeiro, sobre envelhecimento, é do próprio André Gorz. Nesse texto, cuja preocupação de fundo parece ser a finitude da experiência humana, Gorz reflete sobre o tema por meio dos vários itinerários do envelhecimento de um indivíduo: o orgânico, biológico ou psicológico, mas também o envelhecimento social. Podemos ver, assim, como ele aborda a finitude da experiência humana no contraponto do tempo biológico, individual, com a dimensão especificamente social do tempo. A pergunta que perpassa o texto e está nas primeiras linhas do mesmo é a seguinte: "como entrar nessa sociedade sem renunciar às possibilidades e aos desejos de que somos portadores?". O problema é que com o passar dos anos, tanto no aspecto individual como no social, a amplitude das possibilidades, e por que não dizer da liberdade, tende a diminuir; o horizonte de nossas escolhas acaba por se estreitar. Assim, ao refletir sobre sua condição, na idade madura, o indivíduo toma consciência de que o envelhecimento trouxe "um conjunto de interditos, de limites, de obstáculos insuperáveis [...] neste universo mítico e fetichizado da abundância".

No segundo texto, "A tensão entre tempo social e tempo individual", Josué Pereira da Silva retoma o tema do envelhecimento, tratado por Gorz no primeiro texto, mas discute-o no contexto do conjunto de reflexões do autor a respeito do tempo. Silva observa que nos escritos de Gorz aparecem três formas de abordagem da questão do tempo. A primeira refere-se a uma axiologia de valores, que tem como referência as três dimensões temporais - passado, presente e futuro - e tem uma estreita relação com a ação dos indivíduos na sociedade. A segunda trata da mesma relação entre tempo e envelhecimento - objeto do texto de Gorz publicado neste Dossiê - e lida com a dicotomia entre o envelhecimento orgânico e o envelhecimento social do indivíduo. Já a terceira dimensão está vinculada ao tema do tempo livre. Vale dizer, à contraposição entre tempo de trabalho e tempo livre. A tese de Silva é que o tratamento dado por André Gorz à questão do tempo constitui-se numa chave importante para compreender a tensa relação entre indivíduo e sociedade que perpassa toda sua obra.

No terceiro texto, "Estratégia operária e neocapitalismo", Iram Jácome Rodrigues analisa alguns temas propostos por André Gorz nesse livro de mesmo título, publicado na primeira metade da década de 1960. Rodrigues situa esse trabalho de Gorz num conjunto mais amplo de estudos desse autor, nos quais ele aborda a questão das transformações do capitalismo nos países centrais no período pós-Segunda Guerra Mundial. Estratégia operária e neocapitalismo, conforme seu nome sugere, coloca em pauta a necessidade de novas estratégias para a ação do movimento operário e do sindicalismo. O texto de Rodrigues segue o itinerário de Gorz no livro em questão, discutindo a relação entre as reivindicações mais gerais e aquelas mais específicas, e o papel desempenhado pelas demandas de tipo reformista na ação trabalhista; analisa também a concepção de Gorz acerca das mudanças mais gerais no âmbito do capitalismo e, por extensão, das sociedades capitalistas mais desenvolvidas. E, por fim, discute criticamente a questão do local de trabalho, da empresa, da fábrica, da produção como locus fundamental da luta pela emancipação dos trabalhadores.

O texto de Ricardo Abramovay, "Anticapitalismo e inserção social dos mercados", completa o Dossiê. Nele, Abramovay analisa o pensamento de Gorz em contraposição a alguns dos principais estudiosos da chamada nova sociologia econômica, como Mark Granovetter, Neil Fligstein, Viviana Zelizer e Philippe Steiner. O ponto de partida aqui é a interação entre mercado e vida social. Para o autor vienense, a questão central é como diminuir a ingerência do mercado seja na vida social, seja nas relações interpessoais. A sociologia econômica, no entanto, parte de abordagem completamente distinta: os mercados são não apenas a expressão da vida social como só podem ser entendidos a partir desta. Essas diferenças se expressam também, como observa Abramovay, por exemplo, no tratamento dado por Gorz ao tema das redes sociais e dos softwares livres, bem como na reflexão sobre a liberdade humana e a autonomia do sujeito na vida social.

Por fim, vale lembrar que o presente Dossiê, assim como a mesa que lhe deu origem, foi pensado com a intenção de homenagear André Gorz. Embora seus organizadores estejam cientes de que não foi possível abordar aqui as diversas facetas da obra desse autor, eles também estão certos de que o Dossiê contribuirá para estimular o interesse por sua obra.

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    Este Dossiê originou-se de uma "Sessão Especial" no Encontro da Anpocs de outubro 2007, organizada para homenagear André Gorz, que se suicidara, juntamente com sua mulher Dorine, em setembro daquele ano.
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    Trecho de uma entrevista de André Gorz, concedida a Martin Junder e Reiner Maischen, durante um seminário na Alemanha, em outubro de 1983; a entrevista foi publicada em inglês como um "afterword" ao livro
    The Traitor, pela editora Verso, em 1989, pp. 273-307; ela foi também publicada em francês recentemente, no livro organizado em sua homenagem por Christophe Fourel,
    André Gorz: un penseur pour le XXIe siècle, Paris, La Découverte, 2009, pp. 179-197.
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    A expressão "um discípulo emancipado" é de Christophe Fourel; ver a introdução do livro citado na nota anterior.
  • 3
    Ver, a respeito, Josué Pereira da Silva,
    André Gorz: trabalho e política, São Paulo, Annablume, 2002; Finn Bowring,
    André Gorz and the Sartrean Legacy, Londres, Macmillan, 2000; Françoise Gollain,
    Une critique du travail, Paris, La Découverte, 2000.
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    Doreen Keir passou então a se chamar Dorine Horst.
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    Ver
    Critique du capitalisme quotidien, de 1973;
    Écologie et politique, de 1975; e
    Écologie et liberté, de 1977.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      2009
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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