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Os “observatórios de mídia” na encruzilhada dos campos jornalístico e intelectual1 1 . Meus sinceros agradecimentos aos professores e colegas do Núcleo de Sociologia da Cultura da Universidade de São Paulo pelos comentários e sugestões feitos a versões anteriores deste artigo, sem os quais não teria sido possível chegar a sua versão atual.

“Media watch groups” at the crossroads of the journalistic and the intellectual fields

Resumo

A partir dos anos 1990, a produção de discurso crítico sobre a imprensa, já existente na academia, tornou-se uma prática mais organizada, passando a reivindicar a condição de atividade específica. Inspirando-se na abordagem relacional da teoria dos campos, este artigo tem como objetivo a análise comparativa da posição social da crítica especializada ao jornalismo no Brasil e na França. No âmbito desta reflexão, com base na análise de dois veículos de crítica midiática (o Observatório da Imprensa e o Acrimed), buscaremos esquadrinhar, estabelecendo relações com propriedades dos sistemas sociais em que se inserem, as idiossincrasias das trajetórias e os critérios de legitimidade mobilizados por esses agentes.

Crítica de Mídia; Jornalismo; Indústria Cultural; Intelectuais; Cultura

Abstract

In the 1990s, criticism of journalistic production has become a more organized practice, claiming itself as a specific activity. Based on the relational approach of field theory, this article aims to analyze comparatively the social position of media critics in Brazil and France. We will analyze two media criticism groups (Observatório da Imprensa and Acrimed) in order to understand, in relation to properties of the social systems in which they are inserted, the specificities in terms of trajectories and criteria of legitimacy mobilized by these agents.

Media Criticism; Journalism; Cultural Industry; Intellectuals; Culture

Introdução

Ao longo da história da imprensa americana e europeia, o métier do jornalismo passou por significativas mutações. De forma geral, o mercado contemporâneo de jornais e revistas caracteriza-se por uma importante segmentação que se intensificou sobretudo na segunda metade do século passado. Por meio de sucessivas transformações, os jornais foram diversificando seu conteúdo: grosso modo, aos tradicionais jornais políticos e econômicos do século XIX sucederam aqueles que passaram a incluir em suas páginas conteúdos diversos como os folhetins e, na virada do século XIX para o século XX, o êxito de jornais de baixo custo, que incorporavam histórias de teor sensacionalista, transformou profunda e irreversivelmente o mercado. A reportagem, hoje considerada como um gênero central no jornalismo, ocupou espaço bastante inferior até a metade do século XX. Se comparado a configurações passadas, o padrão atualmente predominante do jornal diário é o de um produto híbrido que, graças à diversidade de cadernos e editorias diferenciadas, condensa gêneros distintos que se consolidaram historicamente em um só, e assim atinge um público ampliado e diversificado que lhe garante sua sobrevivência econômica por meio da venda de espaços publicitários.

Paralelamente a essa transformação do mercado jornalístico – de constituição e, a seguir, progressiva concentração de distintos gêneros em produtos omnibus à medida que a atividade entra em uma lógica de gestão e concentração capitalista – ocorre a constituição progressiva de um tipo de legitimidade propriamente “profissional”. Essa profissionalização do métier se construiu valendo-se tanto de um profissionalismo baseado no domínio de um conjunto de técnicas ensinadas em cursos especializados nas universidades, como de um profissionalismo vinculado a valores éticos materializados em códigos de ética, associados a noções de “equilíbrio”, “isenção”, “imparcialidade”, principalmente em países importadores da cultura jornalística anglo-saxã. Resulta que, a partir de meados do século XX, o jornalismo, não mais uma simples ocupação exercida por agentes que eram sobretudo aspirantes a uma posição no campo político ou literário mas doravante uma profissão em si, buscou impor-se como uma atividade autônoma2 2 . Essa autonomia deve ser, contudo, problematizada por diversas razões. De um lado, os imperativos econômicos exercem forte influência sobre a produção jornalística. De outro, as constrições profissionais que as técnicas aprendidas nos cursos de jornalismo e os valores profissionais contidos nos Códigos de Ética exercem estão, não raramente, tensionadas com a padronização das rotinas de produção. Para uma análise da relação entre profissionalismo jornalístico, padronização das rotinas de produção e o conhecimento acerca do público, ver Schlesinger e Zeitlin (1997). Alexandre Bergamo aponta para o mesmo fenômeno, ao tratar da reportagem: “Considerar determinado evento um fato ou não é algo que depende muito menos das ocorrências do dia que do contexto de trabalho desses profissionais, isto é, ainda que o termo ‘fato’ possa ser aplicado a qualquer ocorrência, no contexto de trabalho desses profissionais ele tem uma significação bastante específica, ligada, em primeiro lugar, à sua própria rotina de trabalho” (Bergamo, 2011, p. 238). , codificada e protegida por critérios de legitimidade profissional.

No entanto, essa legitimidade propriamente profissional – que os próprios jornalistas progressivamente passam a promover – não é capaz de dirimir as controvérsias e disputas que envolvem o exercício da profissão que, apesar de ser apresentado pelos profissionais como codificado e profissionalizado, envolve inevitavelmente determinados posicionamentos políticos e visões de mundo. A própria elaboração de um conjunto de “normas” ou “valores” definidores da profissão estabelece um referencial para que o trabalho jornalístico seja avaliado e criticado, dentro e fora da profissão. Assim, a produção de discursos críticos sobre os grandes meios de comunicação e os jornalistas, já presente na academia – embora frequentemente sob uma forma normativa e pouco empírica – e em movimentos sociais – sob formas mais ou menos difusas e esporádicas –, tornou-se, nos anos 1980 e 1990, uma prática mais organizada3 3 . Esse tipo específico de produção discursiva é veiculado principalmente por meio de sítios internet – os “Observatórios de Mídia”–, mas pode ser relacionado também com a atividade dos ombudsmen, de veículos de imprensa ou espaços editoriais críticos, associações e eventos de debate sobre a qualidade da informação jornalística. , chegando a reivindicar a condição de atividade específica4 4 . A fala de Alberto Dines durante entrevista com Otávio Frias Filho, ex-diretor do jornal Folha de S. Paulo, é ilustrativa: “[…] como sou muito crítico, e sou pago para ser crítico” (Frias Filho, 2013). . Mas quem é o especialista cuja fala sobre os meios de comunicação e o jornalismo é, em alguma medida, reconhecida, e qual o fundamento desse reconhecimento social?

No âmbito deste artigo, parte-se da análise morfológica de dois veículos de “crítica de mídia”5 5 . O uso que faremos dos termos “crítica de mídia” merece ser explicitado. Ele será empregado neste artigo em sua acepção nativa. Ou seja, as expressões “crítica”, “crítica de mídia”, “crítica midiática” ou “crítica ao jornalismo”, que serão empregadas de forma equivalente, designarão, no âmbito deste artigo, a prática que assim se denomina por seus próprios feitores. No entanto, parece correto reconhecer que, em muitos casos, a pertinência do emprego do termo “crítica” para designar essas atividades não resistiria a uma análise mais aprofundada da atividade à qual ela se refere, dada a diversidade de temáticas acolhidas por veículos de “crítica midiática”. No que diz respeito ao termo “mídia”, trata-se da importação do termo em inglês the media, comumente usado no idioma inglês no plural, que apresenta igualmente um problema de imprecisão. Originário do latim media – plural de medium, que significa “meio” ou “canal” –, a apropriação do termo em língua portuguesa se fez na forma singular. Ainda que façamos uso do termo, é preciso reconhecer que, sob essa forma, o termo é impreciso na medida em que pretende designar um conjunto de meios de comunicação distintos sob uma acepção homogeneizante de um conjunto heterogêneo de elementos. , ou “observatórios de mídia” – o Observatório da Imprensa no Brasil, e o Acrimed na França6 6 . O fato de serem os veículos do gênero de maior notoriedade pública – embora de certa forma decadentes –, em seus respectivos contextos sociais, justifica a nossa escolha para a análise. – a fim de explicitar os contornos, específicos de cada caso, da relação entre esse tipo de crítica e os espaços sociais da academia e do jornalismo. Recorre-se à abordagem comparativa com o propósito de observar a forma específica que reveste fenômenos sociais similares em casos notadamente distintos e, assim, permitir um olhar distanciado das idiossincrasias de cada caso, ou seja, de uma “realidade invisível, que não podemos mostrar nem tocar, e que organiza as práticas e as representações dos agentes” (Bourdieu, 2004BOURDIEU, Pierre. (2004), A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo, Zouk., p. 24). Pensamos que, ao enfatizar o vínculo de dependência das diversas posições específicas seja umas em relação às outras, seja em relação ao campo dentro do qual se encontram, seja em relação a outros campos sociais, a teoria dos campos mostra-se particularmente profícua para abordagens comparativas (ver Benson, 1999BENSON, Rodney. (1999), “Field theory in comparative context: a news paradigm for media studies”. Theory and Society, 28 (3): pp. 463-498.).

O objetivo deste trabalho é investigar a morfologia social dos agentes dedicados a essa forma contemporânea de “crítica de mídia” noticiosa especializada, em dois países de tradição intelectual e política bastante distintas – o Brasil e a França – com base em uma análise da trajetória e posição social dos agentes em questão. Se retemos a trajetória e posição social desses agentes no âmbito desta reflexão, é por pensarmos que na disputa pela imposição de uma visão legítima, no nosso caso, a definição do ‘bom jornalismo’, “a eficácia simbólica das palavras se exerce apenas na medida em que a pessoa-alvo reconhece quem a exerce como podendo exercê-la de direito” (Bourdieu, 2008BOURDIEU, Pierre. (2008), A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, Edusp.). A análise de trajetórias nos permitirá abordar comparativamente: (1) os critérios de legitimidade que subjazem tais práticas; (2) as propriedades dos espaços sociais em que esses agentes circulam; e (3) a relação entre as profissões intelectuais, como o jornalismo e a pesquisa acadêmica, e esses espaços de crítica especializada.

Uma vez que esses aspectos estão relacionados com idiossincrasias dos sistemas sociais em que se encontram – como a autonomia relativa dos métiers intelectuais em relação aos espaços de consagração da indústria cultural –, a interpretação da análise morfológica deve levar em conta propriedades mais gerais dos dois sistemas, ou seja, buscar uma compreensão das razões sociológicas sobre as quais essas especificidades se sustentam. Entendemos que singularidades que caracterizam os dois casos analisados neste trabalho não inviabilizam a análise em perspectiva comparativa, desde que mantenhamos em mente que:

[…] a comparação só é possível entre sistemas e que a pesquisa de equivalentes diretos entre traços isolados, sejam eles diferentes à primeira vista, mas “funcional” ou tecnicamente equivalentes […] ou nominalmente idênticos […] arrisca-se a uma identificação indevida de propriedades estruturalmente diferentes ou à distinção equivocada de propriedades estruturalmente idênticas (Bourdieu, 1996BOURDIEU, Pierre. (1996), Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus., p. 18).

Mais do que isso, como diz John B. Thompson em prefácio à publicação Langage et pouvoir symbolique, que reúne textos de Pierre Bourdieu:

As práticas e as percepções particulares deveriam então ser compreendidas não como o produto dos habitus mas como o produto da relação entre, de um lado, os habitus e, do outro, os contextos sociais específicos ou os “campos” nos quais os indivíduos agem (Bourdieu, 2001BOURDIEU, Pierre. (2001), Langage et pouvoir symbolique. Paris, Fayard., p. 26, tradução do autor).

Dessa forma, as propriedades observadas no que diz respeito à posição social e disposição específica dos agentes inseridos nos espaços da crítica de mídia serão interpretadas à luz das configurações mais gerais dadas pela estrutura dos campos sociais em relação às quais as ditas posições serão aferidas. Portanto, a análise da posição social específica dos referidos agentes servirá, a posteriori, a uma interpretação das relações mantidas entre os campos jornalístico e intelectual. Em outras palavras, o espaço social dos agentes produtores do chamado media criticism – ou “crítica de mídia” será mobilizado como locus de análise comparativa das relações entre os referidos campos.

O ombudsman: o metadiscurso no jornalismo como um desdobramento mercadológico

Um sinal eloquente da consolidação da crítica ao jornalismo como atividade específica – ou de uma “reflexividade7 7 . Entende-se por “reflexividade” a transfiguração do sujeito em objeto. jornalística” – no fim do século XX é a adoção, por grandes veículos de imprensa, de um espaço dedicado a abordar as críticas dirigidas ao veículo dentro das páginas do próprio jornal: trata-se do ombudsman (ou, em francês, médiateur)8 8 . O reconhecimento internacional dessa nova figura profissional é tal que é criada, em 1980, a Organization of News Ombudsmen. . As condições de emergência do cargo conforme cada caso permitem compreender a função que se pretende preencher através de sua implantação. É no contexto de crescente concorrência dos anos 1980 e 1990, com a crescente popularidade do jornalismo televisivo e a chegada de veículos digitais emergentes, que essa figura surge nos casos aqui estudados. Trata-se, portanto, de uma forma de se distinguir da concorrência, notadamente por parte de jornais que se valorizam por seu caráter “independente”, “plural” ou de “contrapoder”9 9 . No caso da Folha de São Paulo, isso pode ser ilustrado por depoimentos de Otávio Frias Filho em 2013: “Nós temos uma preocupação muito enfática com a pluralidade de pontos de vista. […] faz parte do programa do jornal que o noticiário obedeça a uma orientação crítica mas, tanto quanto possível, isenta e independente, em termos de pluralismo, a Folha tem credenciais a apresentar” (Frias Filho, 2013). No que diz respeito ao Le Monde, podemos citar o mediador do jornal, Robert Solé: “É raro que um jornal se autocritique, sobretudo em suas próprias colunas. Mas o Le Monde, como outros órgãos de imprensa, se apresenta voluntariamente como um contrapoder” (Solé, 1999). em um contexto de perda de credibilidade da informação jornalística devido aos efeitos do aumento da concorrência econômica.

No caso brasileiro, a coluna é inaugurada em 1989, em um contexto pós-redemocratização, modernização, reestruturação gráfica e ideológica e de recomposição da redação da Folha de S. Paulo10 10 . Sobre a atuação da Folha de S. Paulo e a reconfiguração do campo jornalístico na década de 1980, ver a dissertação de mestrado de César Niemietz (2017). . Em 1986, o jornal havia alcançado a posição de maior jornal em circulação do país, graças a uma conjuntura favorável e oportunidades não desperdiçadas por Otávio Frias de Oliveira, o sócio-proprietário do jornal. As décadas de 1970 e 1980 apresentaram, de fato, circunstâncias favoráveis à Folha de S. Paulo. Segundo Chiaramonte e Hey (2018)CHIARAMONTE, Aline Rodrigues & HEY, Ana Paula. (2018), “Que a USP descanse em paz! Disputas simbólicas entre jornalistas e acadêmicos em fins dos anos 1980”. Política & Sociedade, 17 (39)., além das articulações, em 1974, com o futuro chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, que expõe a Otávio Frias de Oliveira o projeto de distensão política do regime militar dando a entender que o jornal teria espaço para atuar nesse processo, “as razões mercadológicas que apontam um nicho para um jornal de oposição ao regime militar” e “o fato de que a FSP é o único jornal paulista sem dívidas consideráveis com o governo” figuram como as condições conjunturais, políticas e econômicas que possibilitam o sucesso do jornal e a adoção de uma linha independente pela Folha de S. Paulo. Assim, no final da década de 1980 o jornal havia conquistado parcelas importantes de seu público leitor ao diferenciar-se da concorrência dando espaço privilegiado para a cobertura das Diretas Já.

Na França, o jornal Le Monde havia conquistado nos anos 1950 seu espaço diferenciando-se, de um lado, do jornalismo abertamente político praticado pelos jornais Le Figaro e L’Humanité e, de outro, do jornalismo popular, mais apelativo, de L’Aurore e France-Soir. Esse “jornal dos professores”, fundado pelo professor de direito internacional Hubert Beuve-Méry, inaugura o espaço do médiateur em 1994, em uma situação econômica delicada. Após haver conquistado uma posição concorrencial favorável nos anos 1970, a rentabilidade simbólica de sua posição ideológica se enfraquece a partir dos anos 1980: o socialista François Mitterrand, cuja candidatura o Le Monde apoiara, assume a presidência em 1981 – reeleito em 1988 por mais um mandato de sete anos, ele deixaria o poder apenas em 1994. Assim, a década de 1980 havia sido bastante ruim para as vendas. Na década de 1990, o jornal busca recuperar uma posição de mercado que se enfraquecia. De um lado, devido ao sucesso do Libération, um jornal de esquerda, fundado em 1973 com o apoio de Jean-Paul Sartre, com o qual disputava leitores e que apostou, a partir da década de 1980, em um formato analítico e em um grafismo mais moderno. De outro lado, devido ao deslocamento de todo o campo jornalístico em direção ao polo comercial, impulsionado, entre outros fatores, pelo desenvolvimento do jornalismo televisivo cada vez mais dominante (Champagne, 2000CHAMPAGNE, Patrick. (2000), “Le médiateur entre deux Monde”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 131-132: 8-29., p. 13, tradução do autor).

A coluna do ombudsman, junto com a reformulação da qual fazia parte, pode ser interpretada como uma maneira de gerir uma possível perda de prestígio desses jornais ao promover – conforme a formulação usada por Champagne a respeito do Le Monde – um “marketing da excelência profissional” (Idem, p.12)11 11 . Tanto mais quanto os dois casos têm em comum o fato de terem atravessado, nos anos 1970 e 1980, um processo de reformulação e renovação de suas equipes, com a chegada de uma geração de jornalistas jovens egressos das escolas de jornalismo francesas ou dos cursos de comunicação das universidades brasileiras. O processo da passagem do perfil mais intelectual e engajado dos antigos, para o perfil mais técnico dos recém-chegados pode ter engendrado mudanças de conteúdo suscetíveis de resultar em uma perda de prestígio dos jornais. .

A análise do perfil dos agentes nomeados pela direção do jornal para o cargo de ombudsman deixa transparecer algumas constâncias nos critérios de nomeação e permite concluir que se trata verdadeiramente de um discurso bastante próximo à doxa profissional. Em ambos os casos, a passagem por cargos de chefia é característica do currículo dos sucessivos ombudsmen. De forma mais marcada no caso brasileiro, a atuação como correspondente internacional e a participação em momentos de reformulação gráfica e editorial do veículo parecem serem características de suas trajetórias12 12 . É o caso de Caio Túlio Costa – que inaugurou a coluna do ombudsman na Folha de S. Paulo em 1989 e que exerceu funções de correspondente internacional (em Paris), foi editor do caderno “Ilustrada”, secretário de redação e coautor do Manual Geral de Redação da Folha. Assim como de Renata Lo Prete (1998-2001) que, entre outras funções, assumiu chefia da primeira página do jornal por seis anos e foi correspondente em Nova York antes de assumir o cargo de ombudsman, ou ainda Carlos Eduardo Lins da Silva (2008-2010) que foi correspondente nos Estados Unidos em três ocasiões distintas além de assumir, entre outras, a posição de secretário de redação. . Os casos em que não houve atuação em cargos de chefia na empresa parecem apontar para uma formação e vivência fora do país13 13 . Marcelo Leite (1994-1996), formado em jornalismo pela USP, em ciências sociais pela Unicamp e especializado em jornalismo científico, não assumiu cargos de chefia na empresa, mas foi correspondente do jornal em Berlim; Júnia Nogueira de Sá (1993-1994) fez pós graduação na Espanha e acumulou certa consagração profissional graças à passagem em diversos veículos de imprensa. . O caso de Mario Vitor Santos (1991-1993 e 1996-1997)14 14 . Ex-secretário de redação e ex-diretor da sucursal de Brasília. , Bernardo Ajzemberg (2001-2004)15 15 . Passou pela Gazeta Mercantil, pelo jornal Última Hora e pela revista Veja. Morou dois anos em Paris antes de ocupar, na Folha, os cargos de secretário de redação, diretor da Agência Folha e diretor de conteúdo da Folha Online. , Marcelo Beraba (2004-2007)16 16 . Havia assumido a diretoria da sucursal do Rio de Janeiro e o cargo de secretário de Redação. , Suzana Singer (2010-2014)17 17 . Havia sido secretária de redação e assumido responsabilidade pelo caderno Cotidiano. , Vera Guimarães Martins (2014-2016)18 18 . Ex-secretária assistente de redação e ex-responsável por cadernos especiais. , e Paula Cesarino Costa (2016-2019)19 19 . Ex-secretária de redação e ex-chefe da sucursal do Rio de Janeiro. apontam para uma certa constância da passagem em cargos de diretoria dentre os perfis em questão. Igualmente alinhados com a linha editorial do jornal, com longa experiência na empresa e tendo exercido cargos de direção foram os médiateurs do Le Monde: André Laurens (1994-1996) foi diretor do jornal de 1982 a 1984, Thomas Ferenczi (1996-1998), Robert Solé (1998-2006), Pascal Galinier (2011-2015) e Franck Nouchi (2016- ) foram diretores de redação ou redatores-chefe adjuntos; Veronique Maurus (2006-2011), após mais de trinta anos na empresa, havia chefiado editorias do jornal antes de assumir o cargo.

Segundo alguns sociólogos franceses que passaram a se dedicar ao tema do jornalismo a partir dos anos 199020 20 . Com efeito, linhas de pesquisa sobre a imprensa, os jornalistas e os meios de comunicação encontravam-se já em vias de consolidação nos anos 1990, notadamente sob o impulso de um grupo formado por Pierre Bourdieu e conduzido por Patrick Champagne e Dominique Marchetti no Centro de Sociologia Europeia, enquanto no Brasil o investimento acadêmico do tema permaneceu fragmentado do ponto de vista epistemológico. , dada a impossibilidade da crítica de um meio dentro dele próprio, trata-se sobretudo de “uma tentativa de canalizar ou até neutralizar a ação crítica do público” (Champagne, Charon e Pepin, 2006). Estaríamos lidando com o já mencionado “marketing da excelência profissional que consiste em apresentar como escolhas virtuosas os novos constrangimentos que pesam sobre a produção da informação”, exercendo uma “função de acompanhamento ético das transformações das bases econômicas do jornal e dos efeitos que podem ter sobre seu conteúdo” (Champagne, 2000CHAMPAGNE, Patrick. (2000), “Le médiateur entre deux Monde”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 131-132: 8-29., p. 12, tradução do autor). A disparidade entre essas percepções, tributáveis da posição ocupada em relação ao campo profissional do jornalismo, revela a distinção entre a crítica jornalística interna (praticada por agentes reconhecidos dentro da profissão) e aquela externa (praticada por agentes cujo reconhecimento se dá fora da profissão, sobretudo em espaços acadêmicos) e será de pertinência na caracterização tipológica da crítica de mídia francesa e brasileira.

Morfologia da crítica de mídia noticiosa: distintas configurações sociais de uma expertise

Nossa análise se concentrará, para o Brasil, no caso paradigmático do Observatório da Imprensa (OI), criado em 1996. Além de ter se caracterizado pelo apoio generalizado dos grandes veículos de imprensa ao governo de Fernando Henrique Cardoso – empossado em 1995 – a década de 1990 foi um momento promissor para investimentos publicitários: a taxa de penetração da televisão nos domicílios brasileiros atingia valores bastante elevados21 21 . De acordo com o Censo e o IBGE publicados em Mídia Dados 2018 (Mídia Dados Brasil 2018), a taxa de penetração da televisão nos domicílios brasileiros subiu de 73,7%, em 1990, para 87% em 2000. , e o total de investimentos publicitários mais que dobrou no país de 1990 a 199522 22 . Essa tendência se mantém na década seguinte. . Essa década foi também o auge dos programas bastante criticados, ditos “popularescos”, na televisão, veículo que concentra pelo menos metade dos investimentos publicitários no país. Diante disso, em círculos de militantes e intelectuais de esquerda, dos quais vieram não poucos dos membros do OI, nutriu-se uma insatisfação em relação aos grandes grupos de mídia. Concebido na continuidade do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor), criado em 1994 na Unicamp, cujos idealizadores foram Carlos Vogt23 23 . Carlos Vogt, linguista e poeta brasileiro, formado pela usp, Universidade de Besançon (França) e Unicamp. Tem experiência acadêmica internacional na França, Estados Unidos, Argentina e outros países. Dentre os cargos ocupados estão o de reitor da Unicamp, de coordenador do Labjor, presidente da Fapesp e diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). , José Marques de Melo24 24 . José Marques de Melo (1943-2018), jornalista, pesquisador e professor universitário, foi o primeiro doutor em Comunicação no Brasil e teve importante atuação na constituição do campo de pesquisa em Comunicação no Brasil. Graduou-se em Ciências Jurídicas e Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco, atuou profissionalmente em veículos de imprensa e no funcionalismo público e teve passagens pela militância comunista antes de ir para São Paulo, onde esteve na iniciativa da criação do Centro de Pesquisa da Comunicação Social na Faculdade Cásper Líbero, em 1967. Em 1972, assumiu a diretoria do Departamento de Jornalismo em Comunicações Culturais (atual ECA) da USP, onde havia implantado o Departamento de Jornalismo e Editoração, antes de ir morar por um ano nos Estados Unidos para fugir da perseguição do Regime Miliar. A partir dos anos 1990 foi professor da Universidade Metodista e diretor da Cátedra Unesco de Comunicação. e Alberto Dines, o OI surge dentro desse contexto de crescimento da televisão, segmentação do público entre canais abertos e canais por assinatura e amplo alinhamento dos grandes grupos com o presidente que derrotou Luiz Inácio Lula da Silva no pleito de 1989. Autor de uma coluna de crítica de imprensa na Folha de S. Paulo – “Jornal dos Jornais” – nos anos 1970, Alberto Dines torna-se o principal responsável pelo Observatório da Imprensa (OI). No que diz respeito ao conteúdo propriamente dito, embora o OI apresente-se como uma iniciativa que pretende acompanhar o desempenho da mídia brasileira e tenha se consolidado como um espaço de acolhimento de artigos acerca de temas relacionados com as mídias, é notável o quanto a diversificação de seu conteúdo extrapola o objetivo inicial. Com efeito, há uma significativa incidência de textos ensaísticos e teóricos e, sobretudo, uma recorrência de temas de interesse específico das cátedras de comunicação como a divulgação de eventos e premiações de entidades vinculadas aos pesquisadores em comunicação, próximas, inclusive, ao polo comercial de produção cultural como a Intercom ou a SBPjor25 25 . Sobre a relação entre a pesquisa acadêmica brasileira sobre a indústria cultural e a hierarquização de seus objetos, ver Pinheiro e Bergamo (2018). . A trajetória dos colaboradores do OI deixa entrever a relação do OI com determinados espaços empresariais dominantes no campo jornalístico (Tabela 1).

TABELA 3
Difusão dos jornais diários de alcance nacional de maior circulação (França)

Dentre os autores com maior quantidade de artigos veiculados pelo OI que pudemos identificar, destacam-se casos que, como o de Eugenio Bucci26 26 . Integrante do Conselho Consultivo do OI, assim como José Carlos Lins da Silva e Caio Túlio Costa. – embora este, de certa forma, singularize-se em relação aos outros pelo fato de ainda escrever para o jornal Folha de S. Paulo –, tiveram atuação como jornalistas em grandes veículos de comunicação e encontram-se já afastados da atuação profissional e são – ou foram – professores universitários na área de jornalismo e ética jornalística: Alberto Dines, Carlos Castilho, Luiz Egypto27 27 . Redator-chefe do site do OI até 2015. , Carlos Eduardo Lins Da Silva e Caio Túlio Costa – os dois últimos ocuparam o cargo de ombudsman da Folha de S. Paulo. Outros destacam-se sobretudo pela carreira jornalística, por terem atuado em grandes veículos de imprensa: Mauro Malin, Luciano Martins Costa, Luis Antonio Magalhães, Luis Nassif, Rui Martins.

Esses resultados sugerem que se trata, portanto, de um espaço social próximo à profissão, reprodutor, em alguma medida, de uma doxa profissional, haja vista que compartilha dos mesmos critérios de consagração das posições dominantes da profissão28 28 . Nota-se igualmente a proximidade com o polo comercial de produção não apenas jornalístico, mas de conteúdo variado, dada a parceria entre o OI e a plataforma de conteúdo digital do Grupo Folha – Universo Online (UOL), fundado e dirigido por Caio Túlio Costa de 1996 a 2002. Nas palavras de Dines em entrevista com Otávio Frias Filho: “Em 1996, nós entramos no UOL, logo quando ele começou. E nos deu realmente uma grande […] nós estavamos num provedor acadêmico, ninguém nos via, e de repente entramos pro UOL, Caio (Túlio Costa) nos convidou, e ganhamos uma exposição extraordinária” (Frias Filho, 2013) . Não raramente, a notoriedade de que gozam está vinculada à participação em momentos chave da história da imprensa brasileira como as reformas modernizadoras das redações dos jornais e ao pertencimento a círculos de esquerda, notável, por exemplo, por meio de atuações profissionais de resistência à censura da ditadura militar29 29 . A apresentação de Rui Martins, um dos principais colaboradores do OI, em seus artigos, é um exemplo disso: “jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura”. . Outros colaboradores, como Rogério Christofoletti e Victor Gentilli, cuja colaboração se intensifica no decorrer das duas primeiras décadas deste século, apresentam trajetória distinta: sem passagem pelas grandes empresas de comunicação, suas trajetórias são mais exclusivamente construídas no espaços acadêmicos da área dos estudos em comunicação.

No caso francês, a principal organização de crítica de mídia – o “Ação-Crítica-Mídias” (Action-Critque-Médias – Acrimed) – apresenta-se como uma associação que emerge na efervescência do movimento sindical francês de 1995 e funciona como um observatório de mídia. A cobertura jornalística desse movimento foi alvo de críticas pela maneira como os grevistas foram retratados pelos grandes veículos jornalísticos, o que motivou, em 1996, a participação de Pierre Bourdieu em Arrêts sur Images, um programa de análise de imagens midiáticas da emissora pública de televisão France 5. O Acrimed foi fundado no mesmo ano, por Henri Maler, militante comunista e professor de ciência política, e Patrick Champagne, sociólogo próximo de Bourdieu, entre outros. Enquanto o principal observatório de mídia brasileiro foi criado principalmente graças a uma iniciativa acadêmica, liderado por jornalistas com passagens por cargos importantes de veículos de imprensa dominantes reconvertidos à vida acadêmica, o Acrimed parece ter se viabilizado com base em uma mobilização militante em torno de um tema cuja relevância pública e política encontrava-se mais consolidada30 30 . Ao relatar que o Acrimed promoveu não menos que uma centena de debates públicos, Maler justifica: “Fizemos isso para fazer os medias serem novamente o que deixaram de ser: uma questão política” (Ouardi, 2010, tradução do autor). e na colaboração de acadêmicos consagrados oriundos das ciências sociais. Seus encontros bimensais (chamados jeudis d’Acrimed) servem de espaço para debates com jornalistas de veículos de esquerda e para a divulgação e debate de publicações de sociólogos, cientistas políticos e economistas dedicados aos estudos dos meios de comunicação e do jornalismo. A associação se posiciona não apenas em questões relacionadas com os meios de comunicação, mas de maneira ampla sobre a agenda política e social francesa.

O tipo de “crítica” proferida por agentes ocupando posições dominantes no campo jornalístico, como é o caso dos ombudsmen, tem um aspecto protetor dos alvos de seu discurso – nas palavras do ex-ombudsman do Le Monde: “Os jornalistas trabalham na urgência, são naturalmente muito sensíveis a críticas formuladas friamente e expostas em praça pública. Sabendo e compreendendo isso, eu evito citar o nome dos autores dos artigos criticados” (Solé, 1999SOLÉ, Robert. (1999), “Le médiateur du Monde”. Les Cahiers du Journalisme, 6.). As disposições específicas dos agentes que publicam no Acrimed parecem ser de outra ordem, dado que optam por criticar jornalistas nominalmente. A estratégia de legitimação mobilizada é notadamente sociológica e de corte bourdieusiano31 31 . Isso pode ser ilustrado pelas seguintes palavras de Henri Maler: “Evidentemente, a avaliação e a observação crítica dos meios de comunicação que nós praticamos são inspiradas na leitura e no conhecimento de trabalhos das ciências sociais. […] A sociologia de Bourdieu é uma de nossas referências” (Ouardi, 2010, tradução do autor, p. 2). . Em relação a acusações de praticar uma crítica ad hominen, Henri Maler responde: “em que seria impróprio referir-se a pessoas, não pelo que elas são individualmente, mas pelo que elas revelam ou representam socialmente? […] é um público-alvo por causa das relações de poder e de dominação que eles revelam e reforçam” (Ouardi, 2010OUARDI, Samira. (2010), “Où en est la critique des médias? Entretien avec Henri Maler de l’association Acrimed”. Revue Mouvements, 61 (1): 33-44., tradução do autor). Isso, dentro do contexto francês de maior acolhimento midiático e politicização de questões acerca dos meios de comunicação e do papel do jornalismo, resulta em ocasiões de interlocução do Acrimed com alguns agentes dos mundos político e jornalístico. As relações de membros do Acrimed com o deputado europeu pela plataforma política Front de Gauche, oriunda da ala esquerda do Partido Socialista, Jean Luc Mélenchon, candidato à presidência pela plataforma La France Insoumise32 32 . Ao lado de Pierre Rimbert, jornalista e editor-chefe do jornal mensal Le Monde Diplomatique, Henri Maler participou da elaboração do programa político da candidatura de Mélenchon à presidência em 2016 no tocante ao chamado “sistema público de informação”. em 2016, é um exemplo disso. No que concerne a interlocuções com o mundo jornalístico, convém apontar os embates entre Henri Maler e Laurent Joffrin, editor-chefe do jornal de esquerda Libération, que podem ser ilustrados pelo debate travado entre eles em um programa da emissora de rádio pública Radio France Culture33 33 . Disponível em https://www.franceculture.fr/emissions/linvite-des-matins-2eme-partie/la-defiance-legard-des-medias-est-elle-justifiee-2eme. Acesso em 10/9/2017. , pelos artigos de Maler direcionados a Joffrin34 34 . Por exemplo: http://www.acrimed.org/Laurent-Joffrin-ne-se-controle-plus-il-controle-le-Net-et-la-critique-des. Acesso em 10/9/2017. e pela publicação de um livro de críticas à “crítica de mídia” – Média-Paranoïa – escrito por Laurent Joffrin (2009)JOFFRIN, Laurent. (2009), Média-paranoia. Paris, Seuil.. No que diz respeito ao caso brasileiro, tanto na interlocução de Dines com os convidados da extinta versão televisiva do Observatório da Imprensa, quanto na relação de Dines com Otávio Frias Filho, por exemplo, observa-se uma relação de maior proximidade35 35 . Como no seguinte trecho de entrevista com Otávio Frias Filho em que se referem ao ombusdman da Folha de S. Paulo: “Dines: Por que essa atitude crítica é tão exclusiva da Folha? É tão conhecida no resto do mundo, por que ficou restrita à audácia da Folha? Frias Filho: Pois é, eu também não sei explicar” (Frias Filho, 2013, grifo nosso). .

No caso francês, os resultados da análise morfológica apontam para a existência, dentro desse tipo de crítica especializada que emerge no final do século XX, de espaços sociais externos à profissão ou às formações de jornalismo e frequentado por especialistas oriundos de áreas de conhecimento como a sociologia, a ciência política ou a economia. Diferentemente dos principais promotores dessa crítica no caso brasileiro, a trajetória típica desses agentes não se caracteriza pela passagem por cargos de comando em empresas dominantes no mercado. De forma mais próxima ao caso de alguns agentes que passam a publicar no OI a partir de meados da década de 2000 e que compunham a redação da revista Caros Amigos, os membros do Acrimed, tanto em seus primeiros anos como em momentos posteriores, apresentam colaborações com veículos jornalísticos que ocupam uma posição mais heterodoxa no campo jornalístico em relação aos grandes veículos, como o Monde Diplomatique36 36 . Antigo suplemento do prestigioso jornal diário Le Monde, o Monde Diplomatique mantém uma linha editorial francamente à esquerda e um regime singular de propriedade: em 1996, sob a direção de Ignacio Ramonet, constitui-se como sociedade autônoma. A empresa matriz, a Sociedade Anônima Monde, é proprietária de 51% das ações, a equipe de redação do Monde Diplomatique possui 24% das ações e os 25% restantes pertencem a uma associação de leitores. e o L’Humanité (Tabela 2).

TABELA 4
Difusão dos jornais diários de alcance nacional de maior circulação (Brasil)

A predominância de uma “crítica interna”, emitida por agentes detentores de uma legitimidade adquirida dentro dos espaços acadêmicos de preparação à prática profissional ou graças a uma autoridade profissional conquistada dentro da profissão é, portanto, mais característica do caso brasileiro. São de portadores de discursos sobre a ética jornalística ou a excelência jornalística cujos tipos exemplares são professores/coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Comunicação ou de escolas de jornalismo e, sobretudo, jornalistas detentores de alguma consagração profissional, muitos dedicados doravante sobretudo ao ensino nas cátedras de comunicação ou à manutenção de espaços próprios de veiculação de conteúdo, como o Observatório da Imprensa ou blogs pessoais.

Em suma, essa análise morfológica permite considerar uma distinção entre os dois casos. Quando comparados, o caso brasileiro mostra-se como um espaço social mais próximo dos circuitos ortodoxos de formação e prática jornalística, enquanto os agentes envolvidos no Acrimed parecem situar-se em espaços específicos do campo jornalístico que, mesmo alheios e críticos às posições dominantes dos grandes veículos, ocupam um espaço consolidado37 37 . A esse respeito, é importante notar que o Estado francês mantém uma política de subsídios aos jornais, notadamente a jornais de baixa circulação dentro de uma política de defesa ao “pluralismo da imprensa”. .

A crítica como produto do campo jornalístico e a autonomia do intelectual

No Brasil, os anos 1990 abrem um período de intensificação do interesse do público pelos meios de comunicação e pelo jornalismo, assim como pela produção editorial sobre esses temas. Entre as razões para esse fenômeno, figuram a eleição de Fernando Collor em 1989 – e as controvérsias em torno da edição do último debate transmitido pela Rede Globo entre os candidatos Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor – e as críticas aos conteúdos apelativos dos canais de televisão aberta em uma concorrência feroz pela audiência do público. Para tomarmos um exemplo, o sucesso de vendas do livro de Mario Sergio Conti – jornalista que havia dirigido a revista Veja de 1991 a 1997, com longa experiência tanto no impresso quanto na televisão –, Notícias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor, é paradigmático da rentabilidade simbólica do tema, assim como da posição social – de jornalista experiente, mais do que a de um intelectual ou acadêmico – daqueles com alguma autoridade reconhecida socialmente – aferida pelas vendas – sobre o tema.

Na França, a partir dos anos 1980 se desenvolve o tema dos meios de comunicação, tanto por meio de publicações especializadas, rubricas específicas em grandes veículos de imprensa, como em diversas obras de reflexão e testemunho sobre a profissão38 38 . E de crítica às escolas de jornalismo, como é o caso do livro de François Ruffin, igualmente colaborador do Acrimed, que publicou o livro “Os pequenos soldados do jornalismo” (Ruffin, 2003), no qual faz a critica de um centro de formação da elite dos jornalistas, e foi posteriormente eleito deputado do grupo de esquerda La France Insoumise. . O fato de alguns casos de erros jornalísticos, tornados emblemáticos, terem colocado os jornalistas sob seus próprios holofotes, o desenvolvimento de emissoras de televisão comerciais (com o fim do monopólio da televisão pública) e as transformações subsequentes advindas para o subcampo do jornalismo televisivo e do jornalismo como um todo trouxeram notoriedade ao tema da qualidade do jornalismo e da televisão não só em círculos acadêmicos e intelectuais, mas também em espaços midiáticos (Marchetti, 1997MARCHETTI, Dominique. (1997), Contribution à une sociologie des transformations du champ journalistique dans les années 1980 et 1990. A propos d’ “événements Sida” et du “scandale du sang contaminé”. Paris, thèse de sociologie, EHESS., p. 03). Consideremos o caso do livro do diretor da publicação mensal de viés altermundialista Le Monde Diplomatique, Serge Halimi, “Os Novos Cães de Guarda” (Halimi, 1997), que denuncia um grupo seleto de “jornalistas de mercado”, porta-vozes do “pensamento único”, que frequentam os bastidores do poder político e programas de televisão. O livro, que inspirou posteriormente um documentário homônimo (lançado em 2012), teve considerável repercussão midiática. Atraiu progressivamente a atenção de veículos como Charlie Hebdo, Libération, Marianne, France Inter, Canard Enchaîné e L’Humanité, assim como o n. 2507 de 31/1/1998 da revista semanal de jornalismo cultural Télérama, que dedicou uma capa aos “Jornalistas Suspeitos”. Nas palavras do autor – que recusou convites a programas de televisão – o êxito do livro seria a “demonstração de que é mentira dizer que a informação sobre os meios de comunicação não interessa as pessoas”, e “traduz uma angústia do público em relação àqueles que vemos permanentemente e cujos livros interessam cada vez menos os leitores”, e “é mais uma prova de que um sucesso de livraria pode se construir fora do sistema clássico e obrigatório de notoriedade midiática” (Poncet, 1998PONCET, Emmanuel (1998). “Les cent mille amis d’Halimi. Comment ‘Les Nouveaux Chiens de Garde’ sont devenus un best-seller sans passer par la télé”, jornal Libération, edição do dia 16/04/1998., tradução do autor).

A repercussão midiática39 39 . Diversos jornais, como Le Monde, Libération, Le Figaro, La Croix, La Tribune, revistas como a L’Express, assim como alguns livros, como Du journalisme après Bourdieu de Daniel Schneidermann (1999), trataram do lançamento do livro, uma transcrição de transmissões exibidas pelo canal Paris Première em maio de 1996. e o sucesso de vendas do livro Sobre a televisão, publicado por Pierre Bourdieu em 1996BOURDIEU, Pierre. (1996), Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus., em um período no qual um grupo de sociólogos organizados em torno de Bourdieu se dedica ao tema do jornalismo, são significativos de um reconhecimento social do tratamento do tema do jornalismo e da televisão por agentes cuja legitimidade se construíra em espaços externos à profissão.

Naquele período consolidavam-se, na França, linhagens da pesquisa sociológica sobre o jornalismo, como sinaliza a publicação de dois números do periódico científico Actes de la Recherche en Sciences Sociales (em 1994 e 2000) dedicados ao tema. No Brasil, as dinâmicas de especialização disciplinar tomaram a direção de uma mais forte separação entre os estudos da comunicação e as ciências sociais, o tema do jornalismo e dos meios de comunicação tendo sido apropriado pelas pesquisas em comunicação e negligenciado pelas ciências sociais40 40 . Essa clivagem epistemológica impacta as pesquisas no sentido de que as abordagens das ciências sociais incorporam em as suas análises a consideração do “contexto social” das produções, distribuição e consumo culturais, enquanto as da área da comunicação distinguem-se por uma maior, por vezes exclusiva, atenção ao “contexto discursivo”. . Dentre as razões para essa evolução está o fortíssimo crescimento quantitativo da oferta de formação em graduação e pós-graduação em comunicação41 41 . Em um primeiro momento, o estabelecimento da obrigatoriedade do diploma ou habilitação em jornalismo para o exercício da profissão, em 1969, resultou em um aumento extraordinário do número de cursos superiores com habilitação em jornalismo: 20 em 1968, 46 em 1972, 60 em 1977 (Weber, 2000, p. 168, apud Albuquerque, 2006, p. 83). De acordo com Lopes (2013), 63 cursos de jornalismo criados até 1980, 74 foram criados na década de 1990 e 228 entre 2000 e 2008. O crescente volume de trabalhos universitários sobre o tema do jornalismo é inequívoco quanto à constatação da recente explosão da produção acadêmica pelo tema do jornalismo no fim do século XX e início do século XXI: 28 teses e dissertações tendo o jornalismo como tema em 1990; 469 em 2012 (Barbosa, 2012, p. 13). A evolução quantitativa dessa produção acadêmica acompanha a criação de programas de pós-graduação em comunicação: em 1996, havia oito programas de pós-graduação em comunicação no Brasil; em 2001, havia quinze; em 2006, 24; em 2010, 39. . Assim, “[…] a parcela mais volumosa (e talvez a mais significativa) da produção voltada a objetos adstritos ao polo comercial da cultura no país se situa fora das cercanias das ciências sociais” (Pinheiro e Bergamo, 2018PINHEIRO, Dimitri & BERGAMO, Alexandre. (2018), “Indústria CULTURAL no Brasil e o balanço da sociologia: dois pesos, muitas medidas”. In: MICELI, Sergio & MARTINS, Carlos Benedito (orgs.). Sociologia brasileira hoje II. Cotia, Ateliê, pp. 89-143.).

Considerando, de um lado, essas distintas relações entre os espaços sociais de pesquisa e formação em jornalismo e, de outro, a composição morfológica dos principais grupos promotores de uma “crítica de mídia” que a análise permitiu delinear, nota-se a existência de dinâmicas sociais inerentes produtoras de uma expertise sobre o jornalismo. Apenas no caso brasileiro, essa expertise restringe-se de forma mais nítida a agentes consagrados dentro dos espaços de formação e atuação profissional do jornalismo. Não parece descabido, portanto, interpretar a composição morfológica do Acrimed como a expressão de uma maior autonomia do tipo intelectual em relação às instâncias de consagração da indústria cultural.

Tanto mais quando consideramos as distintas lógicas de recrutamento no mercado de trabalho jornalístico e “a função nada secundária de preparar, qualificar, habilitar e credenciar profissionalmente o pessoal rotineiramente recrutado pelas várias instâncias de produção, difusão e conservação cultural” (Pinheiro e Bergamo, 2018PINHEIRO, Dimitri & BERGAMO, Alexandre. (2018), “Indústria CULTURAL no Brasil e o balanço da sociologia: dois pesos, muitas medidas”. In: MICELI, Sergio & MARTINS, Carlos Benedito (orgs.). Sociologia brasileira hoje II. Cotia, Ateliê, pp. 89-143.) dos cursos em comunicação. Diferentemente da França, onde a formação em jornalismo jamais fora formalmente requerida para o exercício da profissão e a formação em jornalismo é, aliás, oferecida quase exclusivamente em nível de pós-graduação, no Brasil vigorou, de 1969 a 2009, a obrigatoriedade do diploma em jornalismo para o exercício da profissão.

A questão de fundo aqui é a disputa travada entre instâncias econômicas – ou instâncias em que são reconhecidos, em alguma medida, os mesmos critérios de consagração destas – e intelectuais na luta por uma legitimidade sobre a definição do “bom jornalismo”. Com vistas aos objetivos que se buscam aqui, é importante considerar, portanto, os mecanismos estruturais, historicamente constituídos, de consagração social, ou seja, considerar, ainda que de forma bastante limitada e orientada aos nossos objetivos específicos, a história própria dos respectivos campos jornalísticos e suas configurações atuais.

No caso brasileiro, o advento da industrialização da cultura interrompeu um processo que na França encontrava-se mais consolidado, de profissionalização das atividades artísticas e intelectuais (Ridenti, 2014RIDENTI, Marcelo. (2014), “Caleidoscópio da cultura brasileira (1964-2000)”. In: MICELI, S. & PONTES, H. (orgs.). Cultura e sociedade: Brasil e Argentina. São Paulo, Edusp.). Como, por diversas razões econômicas e políticas, no processo de constituição do sistema de radiodifusão brasileiro não houve uma forte influência de uma concepção referida a um ideal republicano de “serviço público”, esse processo se manteve submetido mais exclusivamente a lógicas de legitimação pelo mercado. Assim, o tema da qualidade da informação jornalística permaneceu, no imaginário brasileiro, um tema relativamente ausente do debate público e de difícil agendamento político. A questão do “controle social da mídia”, por vezes aludida em campanhas eleitorais, é de difícil concretização política, dado o caráter oligopólico familiar e altamente concentrado do sistema de meios de comunicações, e segue apreendida pelos meios de comunicação como uma forma de censura e, portanto, antidemocrática42 42 . Nas palavras de Otávio Frias Filho: “Toda vez que eu ouço a expressão ‘controle social da mídia’, eu sempre decifro como sendo tutela do governo sobre o jornalismo que incomoda, para mim isso é muito claro” (Frias Filho, 2013). .

A posição da França como país central no circuito cultural globalizado – cujos interesses estratégicos apontam para a preservação de suas especificidades culturais em relação às influências estrangeiras, notadamente dos Estados Unidos –, entre outros fatores, fundamenta políticas intervencionistas bastante distintas das dinâmicas de regulação que prevaleceram durante o período de desenvolvimento do sistema de telecomunicações brasileiro, sob o regime militar. No momento de fundação do sistema midiático francês do pós-guerra, a ação do Estado se caracterizou pela oposição dos poderes políticos instalados às forças do mercado como balizadoras do sistema. O decreto do Comitê Francês da Liberação Nacional de Março de 1945, que indicou os fundamentos implícitos que regeriam o sistema midiático francês do pós-guerra, incluía, por exemplo, a “desconfiança em relação às forças econômicas” (Sauvage e Veyrat-Masson, 2012SAUVAGE, Monique & VEYRAT-MASSON, Isabelle. (2012), Histoire de la télévision française de 1935 à nos jours. Paris, Nouveau Monde., p. 33). A fala do presidente De Gaulle, à época, é emblemática: “É a nação, é o Estado que deve dominar o mercado” (Peyrefitte, 1994PEYREFITTE, Alain. (1994), C’était de Gaulle. Paris, Fallois-Fayard., p. 524).

A pretensão do Acrimed de opor-se à mercantilização da informação ecoa, portanto, com um dos elementos centrais do imaginário francês, em que os jornais são considerados menos como empresas do que como suportes de opinião, cuja pluralidade deve-se preservar.

Essa contraposição ao argumento mercadológico nota-se em políticas atualmente em vigor na França, como o decreto n. 86-616, do dia 12 de março de 1986, que institui subvenções às publicações nacionais de informação política e geral cuja receita publicitária é inferior a 25% de suas receitas totais e cuja circulação é inferior a 150 mil. A política de defesa ao pluralismo da imprensa mantida pelo Estado francês ajuda a compreender a sobrevivência de jornais de baixa circulação considerados como representativos de correntes de opinião, alguns dos quais não apenas compartilham um mesmo público leitor dos discursos de “crítica de mídia”, como constituem espaços profissionais ocupados pelos próprios agentes que circulam no espaço específico de crítica da associação Acrimed: jornalistas do Canard Enchaîné participam como expositores em encontros da associação, colaboradores da associação publicam também no jornal L’Humanité; o Monde Diplomatique figura como principal publicação cujos autores são também colaboradores do Acrimed e cujo diretor, o já mencionado jornalista Serge Halimi, é membro da associação. A sobrevivência de jornais de tradição eminentemente partidária no universo jornalístico francês como o L’Humanité, a sólida posição do semanal satírico Canard Enchaîné (com circulação de 358.347 em 2017) ou ainda do mensal Monde Diplomatique (com circulação de 132.420 em 2017) constituem propriedades diferenciais do caso francês, no qual jornalistas altamente contestatórios, como aqueles que publicam no Acrimed, gozam de um horizonte profissional mais ampliado do que no caso brasileiro.

Os efeitos das ajudas do Estado à imprensa são tanto mais determinantes quando a difusão de jornais vem sofrendo baixas significativas nas últimas décadas43 43 . Os números apresentados nas Tabelas 3 e 4 correspondem à circulação média anual de cada publicação. A fonte para todos os números concernentes à imprensa francesa que serão apresentados é a Association pour les Chiffres de la Presse et des Médias. A respeito do caso brasileiro, todos os dados provêm do Instituto Verificador de Circulação. (Tabelas 3 e 4).

TABELA 1
Trajetória dos principais colaboradores do OI*
TABELA 2
Trajetória dos principais colaboradores do Acrimed

Se considerarmos publicações francesas de coloração política francamente “de esquerda” como o Libération (cuja circulação média diária foi de 169.011 em 2000 e 75.275 exemplares em 2017), o tradicional jornal do partido comunista, o L’Humanité (50.097 em 2000, 33.878 em 2017), nota-se uma queda tanto ou mais flagrante do que a dos jornais omnibus nacionais.

No que diz respeito aos dados de circulação (impressa e digital) de revistas semanais de informação brasileiras em 2017, notamos a posição muito nitidamente inferior de Carta Capital (29.513), publicação crítica e de esquerda, em relação às revistas de outras tendências políticas como Veja (1.167.928), Época (390.709) e Isto É (322.518). No caso francês, também considerando dados de 2017, além do significativo exemplo da já mencionada publicação de jornalismo cultural Télérama (519.028), a circulação de revistas semanais de informação francamente à esquerda, como Marianne (143.476), apesar de inferior às outras, não ocupam posição tão dominada quanto aquela ocupada por Carta Capital em relação às concorrentes: Le Point (315.579) e L’Express (288.046) e a L’Obs (304.680).

Dado esse esboço da distribuição geral de posições concorrenciais do espaço jornalístico, observada por meio do peso relativo dos principais veículos de jornalismo impresso compreendido como indicador da demanda do público leitor, mas também dos horizontes profissionais abertos ao mercado de trabalho jornalístico, compreende-se que no caso brasileiro haja tendência a uma maior confluência dos jornalistas em direção aos principais veículos, ou seja, aqueles ocupando posições centrais no campo. Enquanto na França, pequenas publicações de baixo potencial publicitário contam com ajudas do Estado, no Brasil, a sobrevivência de pequenas publicações de forte coloração política depende mais diretamente de suas afinidades diretas com o poder eleito. O encerramento das atividades, em 2017, da publicação impressa da revista mensal Caros Amigos, criada em 1997, em que publicavam alguns dos colaboradores do Observatório da Imprensa, parece corroborar essa análise, que pode auxiliar na compreensão da menor rentabilidade simbólica da mobilização desses temas, assim como uma maior autocensura dos jornalistas no que diz respeito a discursos críticos questionadores da correção da posição da direção dos próprios veículos dominantes, posta a escassez de veículos impressos francamente “contestatórios” de grande porte capazes de absorver profissionais portadores de uma crítica mais “radical”.

Ademais, embora as transformações relativamente recentes dos principais meios jornalísticos, submetidos a transformações mais gerais do campo, como o Le Monde – no sentido de uma prática de jornalismo menos intelectual e mais “comercial” – possam levar a uma maior autocensura, parece haver, na França, uma maior possibilidade de proteção legal para jornalistas que criticam a profissão ou as organizações noticiosas e os atuais profissionais dos veículos de imprensa generalista parecem ser relativamente menos reticentes em criticar as organizações noticiosas e as práticas dominantes de jornalismo44 44 . Publicações de Hervé Brusini (2011), que ocupa cargos de direção na empresa France Télévisions e foi chefe de redação do telejornal 20 heures do canal France 2, como “Copie Conforme. Pourquoi les médias disent-ils tous la même chose?”, (“Verdadeiras cópias. Por que os meios de comunicação dizem a mesma coisa?”) é um exemplo de disposições próprias de agentes inseridos no setor público do sistema de comunicação, representantes de uma excelência jornalística que não equivale, e em muitos aspectos define-se em contraposição, aos critérios de consagração próprios aos setores comerciais. . A respeito do caso francês, é interessante considerar o exemplo do jornalista Daniel Schneidermann que, demitido de Le Monde por criticar o próprio jornal no livro Le Cauchemar Médiatique (Schneidermann, 2004SCHNEIDERMANN, Daniel. (2004), Le cauchemar médiatique. Paris, Gallimard.), manteve posteriormente sua atuação profissional no jornal Libération, no qual pôde dar continuidade para sua crônica de crítica midiática45 45 . Quando, em uma decisão polêmica, o Le Monde demitiu Daniel Schneidermann por criticá-lo em seu livro Le cauchemar médiatique (2004), o jornal foi condenado a pagar 80 mil euros ao jornalista. .

Considerações finais

Na análise sociológica de atividades situadas no limite entre dois campos sociais – no nosso caso, o jornalístico e o intelectual –, ao adotarmos uma perspectiva de análise que privilegia a posição ocupada pelos agentes, as idiossincrasias relativas às relações entre academia e jornalismo podem ser observadas nas relações específicas que os principais promotores dessa crítica ao jornalismo entretêm, de um lado, com os espaços de produção simbólica que pretendem criticar e, de outro, com espaços acadêmicos cujo reconhecimento se dá seja de forma semelhante à consagração dentro da profissão jornalística, seja de forma francamente alheia à hierarquia profissional do jornalismo.

Duas trajetórias típico-ideais emergem da análise das trajetórias sociais que levam à “crítica de mídia”. A primeira refere-se aos agentes que reuniram uma quantidade considerável de consagração no campo jornalístico ou dos meios de comunicação por meio de uma longa experiência profissional ocupando altos cargos em grandes organizações jornalísticas. Esse é o perfil dos principais promotores da crítica de mídia especializada que emerge no Brasil a partir dos anos 1990. Assim, os principais agentes investidos na “crítica midiática” costumam deixar a imprensa generalista para reconverter seu capital profissional nos espaços acadêmicos de formação em comunicação e jornalismo. Resulta que esse discurso de “crítica midiática” é de certa forma moldado epistemológica e ideologicamente por interesses específicos de uma área de conhecimento mais próxima da doxa jornalística ou, ao menos, de epistemologias mais afeitas à área de pesquisa em comunicação. Essa proximidade entre a expertise relativa sobre o jornalismo e os meios de comunicação e a hierarquia própria à indústria cultural é característica de formações sociais que, como a brasileira, vivenciaram na industrialização da cultura um tão mais profundo deslocamento dos mecanismos de consagração simbólica em direção à indústria cultural quanto suas lógicas próprias não são compensadas por políticas de defesa da pluralidade da imprensa.

Os agentes que obtêm reconhecida expertise sobre o jornalismo por meio de uma trajetória acadêmica alheia aos espaços de formação e profissionalização do jornalismo caracterizam a segunda trajetória típica ideal e é mais característica do caso francês. Isso é revelador do caráter mais independente do tipo intelectual francês, já que há um reconhecimento social de discursos sobre a profissão oriundos de posições alheias a sua hierarquia própria, o que demonstra uma maior autonomia relativa do campo intelectual/acadêmico. Esse segundo tipo-ideal também se aproxima daqueles autores do Observatório da Imprensa com trajetória estritamente universitária e cuja colaboração se dá de forma relativamente mais recente, embora não se trate de insumos teóricos e analíticos de mesma inspiração epistemológica. Com efeito, trata-se de acadêmicos oriundos de espaços de formação em jornalismo, enquanto a composição morfológica do Acrimed delineia um espaço social constituído por agentes mais próximos do ensino e pesquisa em ciências sociais e econômicas.

Embora o movimento histórico que levou os meios de comunicação a conquistarem progressivamente a condição de importantes instâncias de consagração simbólica, enfraquecendo a autonomia de outros espaços sociais, como o intelectual, não se restrinja a nenhum dos dois países – e explique, talvez, a decrescente notoriedade dos veículos de crítica aqui analisados –, observar singularidades reveladoras a respeito do grau de diferenciação – ou autonomia – dos campos sociais em cada caso é esclarecedor. A posição do Acrimed, uma organização de crítica externa à profissão, pode ser mais bem compreendida quando considerada a maior independência do tipo intelectual francês, cuja relevância permite o reconhecimento do questionamento da legitimidade do trabalho jornalístico proferido por alguém alheio à profissão; ao passo que no Brasil, dado o caráter mais central da indústria cultural como instância de consagração simbólica, o reconhecimento desse tipo de questionamento parece realizar-se, sobretudo, ao tratar-se de agentes cuja legitimidade é aferida por princípios de hierarquização em consonância com a profissão jornalística.

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  • WEBER, Maria Helena. (2000), Comunicação e espetáculos da política. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS.
  • 1
    . Meus sinceros agradecimentos aos professores e colegas do Núcleo de Sociologia da Cultura da Universidade de São Paulo pelos comentários e sugestões feitos a versões anteriores deste artigo, sem os quais não teria sido possível chegar a sua versão atual.
  • 2
    . Essa autonomia deve ser, contudo, problematizada por diversas razões. De um lado, os imperativos econômicos exercem forte influência sobre a produção jornalística. De outro, as constrições profissionais que as técnicas aprendidas nos cursos de jornalismo e os valores profissionais contidos nos Códigos de Ética exercem estão, não raramente, tensionadas com a padronização das rotinas de produção. Para uma análise da relação entre profissionalismo jornalístico, padronização das rotinas de produção e o conhecimento acerca do público, ver Schlesinger e Zeitlin (1997)SCHLESINGER, Philip & ZEITLIN, Edith. (1997), “Le chaînon manquant: le ‘professionnalisme’ et le public”. Sociologie de la Communication, 1 (1).. Alexandre Bergamo aponta para o mesmo fenômeno, ao tratar da reportagem: “Considerar determinado evento um fato ou não é algo que depende muito menos das ocorrências do dia que do contexto de trabalho desses profissionais, isto é, ainda que o termo ‘fato’ possa ser aplicado a qualquer ocorrência, no contexto de trabalho desses profissionais ele tem uma significação bastante específica, ligada, em primeiro lugar, à sua própria rotina de trabalho” (Bergamo, 2011, p. 238).
  • 3
    . Esse tipo específico de produção discursiva é veiculado principalmente por meio de sítios internet – os “Observatórios de Mídia”–, mas pode ser relacionado também com a atividade dos ombudsmen, de veículos de imprensa ou espaços editoriais críticos, associações e eventos de debate sobre a qualidade da informação jornalística.
  • 4
    . A fala de Alberto Dines durante entrevista com Otávio Frias Filho, ex-diretor do jornal Folha de S. Paulo, é ilustrativa: “[…] como sou muito crítico, e sou pago para ser crítico” (Frias Filho, 2013).
  • 5
    . O uso que faremos dos termos “crítica de mídia” merece ser explicitado. Ele será empregado neste artigo em sua acepção nativa. Ou seja, as expressões “crítica”, “crítica de mídia”, “crítica midiática” ou “crítica ao jornalismo”, que serão empregadas de forma equivalente, designarão, no âmbito deste artigo, a prática que assim se denomina por seus próprios feitores. No entanto, parece correto reconhecer que, em muitos casos, a pertinência do emprego do termo “crítica” para designar essas atividades não resistiria a uma análise mais aprofundada da atividade à qual ela se refere, dada a diversidade de temáticas acolhidas por veículos de “crítica midiática”. No que diz respeito ao termo “mídia”, trata-se da importação do termo em inglês the media, comumente usado no idioma inglês no plural, que apresenta igualmente um problema de imprecisão. Originário do latim media – plural de medium, que significa “meio” ou “canal” –, a apropriação do termo em língua portuguesa se fez na forma singular. Ainda que façamos uso do termo, é preciso reconhecer que, sob essa forma, o termo é impreciso na medida em que pretende designar um conjunto de meios de comunicação distintos sob uma acepção homogeneizante de um conjunto heterogêneo de elementos.
  • 6
    . O fato de serem os veículos do gênero de maior notoriedade pública – embora de certa forma decadentes –, em seus respectivos contextos sociais, justifica a nossa escolha para a análise.
  • 7
    . Entende-se por “reflexividade” a transfiguração do sujeito em objeto.
  • 8
    . O reconhecimento internacional dessa nova figura profissional é tal que é criada, em 1980, a Organization of News Ombudsmen.
  • 9
    . No caso da Folha de São Paulo, isso pode ser ilustrado por depoimentos de Otávio Frias Filho em 2013: “Nós temos uma preocupação muito enfática com a pluralidade de pontos de vista. […] faz parte do programa do jornal que o noticiário obedeça a uma orientação crítica mas, tanto quanto possível, isenta e independente, em termos de pluralismo, a Folha tem credenciais a apresentar” (Frias Filho, 2013). No que diz respeito ao Le Monde, podemos citar o mediador do jornal, Robert Solé: “É raro que um jornal se autocritique, sobretudo em suas próprias colunas. Mas o Le Monde, como outros órgãos de imprensa, se apresenta voluntariamente como um contrapoder” (Solé, 1999SOLÉ, Robert. (1999), “Le médiateur du Monde”. Les Cahiers du Journalisme, 6.).
  • 10
    . Sobre a atuação da Folha de S. Paulo e a reconfiguração do campo jornalístico na década de 1980, ver a dissertação de mestrado de César Niemietz (2017)NIEMIETZ, César de Lima. (2017), Nova República, novo jornal: disputas pela legitimação do jornalismo da Folha de S. Paulo na redemocratização. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo..
  • 11
    . Tanto mais quanto os dois casos têm em comum o fato de terem atravessado, nos anos 1970 e 1980, um processo de reformulação e renovação de suas equipes, com a chegada de uma geração de jornalistas jovens egressos das escolas de jornalismo francesas ou dos cursos de comunicação das universidades brasileiras. O processo da passagem do perfil mais intelectual e engajado dos antigos, para o perfil mais técnico dos recém-chegados pode ter engendrado mudanças de conteúdo suscetíveis de resultar em uma perda de prestígio dos jornais.
  • 12
    . É o caso de Caio Túlio Costa – que inaugurou a coluna do ombudsman na Folha de S. Paulo em 1989 e que exerceu funções de correspondente internacional (em Paris), foi editor do caderno “Ilustrada”, secretário de redação e coautor do Manual Geral de Redação da Folha. Assim como de Renata Lo Prete (1998-2001) que, entre outras funções, assumiu chefia da primeira página do jornal por seis anos e foi correspondente em Nova York antes de assumir o cargo de ombudsman, ou ainda Carlos Eduardo Lins da Silva (2008-2010) que foi correspondente nos Estados Unidos em três ocasiões distintas além de assumir, entre outras, a posição de secretário de redação.
  • 13
    . Marcelo Leite (1994-1996), formado em jornalismo pela USP, em ciências sociais pela Unicamp e especializado em jornalismo científico, não assumiu cargos de chefia na empresa, mas foi correspondente do jornal em Berlim; Júnia Nogueira de Sá (1993-1994) fez pós graduação na Espanha e acumulou certa consagração profissional graças à passagem em diversos veículos de imprensa.
  • 14
    . Ex-secretário de redação e ex-diretor da sucursal de Brasília.
  • 15
    . Passou pela Gazeta Mercantil, pelo jornal Última Hora e pela revista Veja. Morou dois anos em Paris antes de ocupar, na Folha, os cargos de secretário de redação, diretor da Agência Folha e diretor de conteúdo da Folha Online.
  • 16
    . Havia assumido a diretoria da sucursal do Rio de Janeiro e o cargo de secretário de Redação.
  • 17
    . Havia sido secretária de redação e assumido responsabilidade pelo caderno Cotidiano.
  • 18
    . Ex-secretária assistente de redação e ex-responsável por cadernos especiais.
  • 19
    . Ex-secretária de redação e ex-chefe da sucursal do Rio de Janeiro.
  • 20
    . Com efeito, linhas de pesquisa sobre a imprensa, os jornalistas e os meios de comunicação encontravam-se já em vias de consolidação nos anos 1990, notadamente sob o impulso de um grupo formado por Pierre Bourdieu e conduzido por Patrick Champagne e Dominique Marchetti no Centro de Sociologia Europeia, enquanto no Brasil o investimento acadêmico do tema permaneceu fragmentado do ponto de vista epistemológico.
  • 21
    . De acordo com o Censo e o IBGE publicados em Mídia Dados 2018 (Mídia Dados Brasil 2018MÍDIA Dados Brasil. (2018), Portal Grupo de Mídia São Paulo, 2018. Disponível em http://midiadados.org.br/2018/Midia%20Dados%202018%20%28Interativo%29.pdf Consultado em 20/10/2018.
    http://midiadados.org.br/2018/Midia%20Da...
    ), a taxa de penetração da televisão nos domicílios brasileiros subiu de 73,7%, em 1990, para 87% em 2000.
  • 22
    . Essa tendência se mantém na década seguinte.
  • 23
    . Carlos Vogt, linguista e poeta brasileiro, formado pela usp, Universidade de Besançon (França) e Unicamp. Tem experiência acadêmica internacional na França, Estados Unidos, Argentina e outros países. Dentre os cargos ocupados estão o de reitor da Unicamp, de coordenador do Labjor, presidente da Fapesp e diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris).
  • 24
    . José Marques de Melo (1943-2018), jornalista, pesquisador e professor universitário, foi o primeiro doutor em Comunicação no Brasil e teve importante atuação na constituição do campo de pesquisa em Comunicação no Brasil. Graduou-se em Ciências Jurídicas e Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco, atuou profissionalmente em veículos de imprensa e no funcionalismo público e teve passagens pela militância comunista antes de ir para São Paulo, onde esteve na iniciativa da criação do Centro de Pesquisa da Comunicação Social na Faculdade Cásper Líbero, em 1967. Em 1972, assumiu a diretoria do Departamento de Jornalismo em Comunicações Culturais (atual ECA) da USP, onde havia implantado o Departamento de Jornalismo e Editoração, antes de ir morar por um ano nos Estados Unidos para fugir da perseguição do Regime Miliar. A partir dos anos 1990 foi professor da Universidade Metodista e diretor da Cátedra Unesco de Comunicação.
  • 25
    . Sobre a relação entre a pesquisa acadêmica brasileira sobre a indústria cultural e a hierarquização de seus objetos, ver Pinheiro e Bergamo (2018)PINHEIRO, Dimitri & BERGAMO, Alexandre. (2018), “Indústria CULTURAL no Brasil e o balanço da sociologia: dois pesos, muitas medidas”. In: MICELI, Sergio & MARTINS, Carlos Benedito (orgs.). Sociologia brasileira hoje II. Cotia, Ateliê, pp. 89-143..
  • 26
    . Integrante do Conselho Consultivo do OI, assim como José Carlos Lins da Silva e Caio Túlio Costa.
  • 27
    . Redator-chefe do site do OI até 2015.
  • 28
    . Nota-se igualmente a proximidade com o polo comercial de produção não apenas jornalístico, mas de conteúdo variado, dada a parceria entre o OI e a plataforma de conteúdo digital do Grupo Folha – Universo Online (UOL), fundado e dirigido por Caio Túlio Costa de 1996 a 2002. Nas palavras de Dines em entrevista com Otávio Frias Filho: “Em 1996, nós entramos no UOL, logo quando ele começou. E nos deu realmente uma grande […] nós estavamos num provedor acadêmico, ninguém nos via, e de repente entramos pro UOL, Caio (Túlio Costa) nos convidou, e ganhamos uma exposição extraordinária” (Frias Filho, 2013)
  • 29
    . A apresentação de Rui Martins, um dos principais colaboradores do OI, em seus artigos, é um exemplo disso: “jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura”.
  • 30
    . Ao relatar que o Acrimed promoveu não menos que uma centena de debates públicos, Maler justifica: “Fizemos isso para fazer os medias serem novamente o que deixaram de ser: uma questão política” (Ouardi, 2010OUARDI, Samira. (2010), “Où en est la critique des médias? Entretien avec Henri Maler de l’association Acrimed”. Revue Mouvements, 61 (1): 33-44., tradução do autor).
  • 31
    . Isso pode ser ilustrado pelas seguintes palavras de Henri Maler: “Evidentemente, a avaliação e a observação crítica dos meios de comunicação que nós praticamos são inspiradas na leitura e no conhecimento de trabalhos das ciências sociais. […] A sociologia de Bourdieu é uma de nossas referências” (Ouardi, 2010OUARDI, Samira. (2010), “Où en est la critique des médias? Entretien avec Henri Maler de l’association Acrimed”. Revue Mouvements, 61 (1): 33-44., tradução do autor, p. 2).
  • 32
    . Ao lado de Pierre Rimbert, jornalista e editor-chefe do jornal mensal Le Monde Diplomatique, Henri Maler participou da elaboração do programa político da candidatura de Mélenchon à presidência em 2016 no tocante ao chamado “sistema público de informação”.
  • 33
  • 34
  • 35
    . Como no seguinte trecho de entrevista com Otávio Frias Filho em que se referem ao ombusdman da Folha de S. Paulo: “Dines: Por que essa atitude crítica é tão exclusiva da Folha? É tão conhecida no resto do mundo, por que ficou restrita à audácia da Folha? Frias Filho: Pois é, eu também não sei explicar” (Frias Filho, 2013, grifo nosso).
  • 36
    . Antigo suplemento do prestigioso jornal diário Le Monde, o Monde Diplomatique mantém uma linha editorial francamente à esquerda e um regime singular de propriedade: em 1996, sob a direção de Ignacio Ramonet, constitui-se como sociedade autônoma. A empresa matriz, a Sociedade Anônima Monde, é proprietária de 51% das ações, a equipe de redação do Monde Diplomatique possui 24% das ações e os 25% restantes pertencem a uma associação de leitores.
  • 37
    . A esse respeito, é importante notar que o Estado francês mantém uma política de subsídios aos jornais, notadamente a jornais de baixa circulação dentro de uma política de defesa ao “pluralismo da imprensa”.
  • 38
    . E de crítica às escolas de jornalismo, como é o caso do livro de François Ruffin, igualmente colaborador do Acrimed, que publicou o livro “Os pequenos soldados do jornalismo” (Ruffin, 2003), no qual faz a critica de um centro de formação da elite dos jornalistas, e foi posteriormente eleito deputado do grupo de esquerda La France Insoumise.
  • 39
    . Diversos jornais, como Le Monde, Libération, Le Figaro, La Croix, La Tribune, revistas como a L’Express, assim como alguns livros, como Du journalisme après Bourdieu de Daniel Schneidermann (1999)SCHNEIDERMANN, Daniel. (1999), Du journalisme après Bourdieu. Paris, Fayard., trataram do lançamento do livro, uma transcrição de transmissões exibidas pelo canal Paris Première em maio de 1996.
  • 40
    . Essa clivagem epistemológica impacta as pesquisas no sentido de que as abordagens das ciências sociais incorporam em as suas análises a consideração do “contexto social” das produções, distribuição e consumo culturais, enquanto as da área da comunicação distinguem-se por uma maior, por vezes exclusiva, atenção ao “contexto discursivo”.
  • 41
    . Em um primeiro momento, o estabelecimento da obrigatoriedade do diploma ou habilitação em jornalismo para o exercício da profissão, em 1969, resultou em um aumento extraordinário do número de cursos superiores com habilitação em jornalismo: 20 em 1968, 46 em 1972, 60 em 1977 (Weber, 2000WEBER, Maria Helena. (2000), Comunicação e espetáculos da política. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS., p. 168, apud Albuquerque, 2006, p. 83). De acordo com Lopes (2013)LOPES, Fernanda Lima. (2013), Ser jornalista no Brasil: identidade profissional e formação acadêmica. São Paulo, Paulus., 63 cursos de jornalismo criados até 1980, 74 foram criados na década de 1990 e 228 entre 2000 e 2008. O crescente volume de trabalhos universitários sobre o tema do jornalismo é inequívoco quanto à constatação da recente explosão da produção acadêmica pelo tema do jornalismo no fim do século XX e início do século XXI: 28 teses e dissertações tendo o jornalismo como tema em 1990; 469 em 2012 (Barbosa, 2012BARBOSA, M. C. (2012), “Nelson Traquina e as pesquisas em jornalismo no Brasil”. In: CUNHA, Isabel F.; CABRERA, Ana & SOUSA, Jorge P. (orsg.) Pesquisa em media e jornalismo: homenagem a Nelson Traquina. Covilhã, Portugal, Labcom, pp.12-24., p. 13). A evolução quantitativa dessa produção acadêmica acompanha a criação de programas de pós-graduação em comunicação: em 1996, havia oito programas de pós-graduação em comunicação no Brasil; em 2001, havia quinze; em 2006, 24; em 2010, 39.
  • 42
    . Nas palavras de Otávio Frias Filho: “Toda vez que eu ouço a expressão ‘controle social da mídia’, eu sempre decifro como sendo tutela do governo sobre o jornalismo que incomoda, para mim isso é muito claro” (Frias Filho, 2013).
  • 43
    . Os números apresentados nas Tabelas 3 e 4 correspondem à circulação média anual de cada publicação. A fonte para todos os números concernentes à imprensa francesa que serão apresentados é a Association pour les Chiffres de la Presse et des Médias. A respeito do caso brasileiro, todos os dados provêm do Instituto Verificador de Circulação.
  • 44
    . Publicações de Hervé Brusini (2011)BRUSINI, Hervé. (2011), Copie conforme: pourquoi les médias disent-ils tous la même chose? Paris, Seuil., que ocupa cargos de direção na empresa France Télévisions e foi chefe de redação do telejornal 20 heures do canal France 2, como “Copie Conforme. Pourquoi les médias disent-ils tous la même chose?”, (“Verdadeiras cópias. Por que os meios de comunicação dizem a mesma coisa?”) é um exemplo de disposições próprias de agentes inseridos no setor público do sistema de comunicação, representantes de uma excelência jornalística que não equivale, e em muitos aspectos define-se em contraposição, aos critérios de consagração próprios aos setores comerciais.
  • 45
    . Quando, em uma decisão polêmica, o Le Monde demitiu Daniel Schneidermann por criticá-lo em seu livro Le cauchemar médiatique (2004), o jornal foi condenado a pagar 80 mil euros ao jornalista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    8 Jan 2019
  • Aceito
    28 Jun 2019
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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