Resumo
O artigo aborda o fenômeno das migrações transnacionais contemporâneas e sua relação com as dinâmicas urbanas em São Paulo. Baseado em pesquisa realizada entre 2017 e 2022, o estudo examina a experiência dos migrantes na Missão Paz, um importante equipamento de atendimento, e no bairro Jardim Piratininga, na periferia da cidade. Argumenta-se que, apesar das adversidades enfrentadas por essas pessoas, os migrantes constroem sentidos de pertencimento e produzem o urbano. O artigo também destaca a importância das tramas relacionais situadas no território, a partir da trajetória de dois interlocutores, e propõe as noções de “fazer-cidade” e emplacement (de M. Agier e Çaglar e Schiller) como forma de entender como os migrantes transformam os espaços urbanos que habitam.
Fazer-cidade; Migração transnacional; Lente urbana; Deslocamentos
Abstract
The article addresses the phenomenon of contemporary transnational migration and its relationship with urban dynamics in São Paulo. Based on research carried out between 2017 and 2022, the study examines the experience of migrants at Missão Paz, an important care facility, and in the Jardim Piratininga neighborhood, on the periphery of the city. It argues that, despite the adversities faced by these people, migrants construct senses of belonging and produce the urban. The article also highlights the importance of the relational networks situated in the territory, based on the trajectory of two interlocutors, and proposes the notions of “city-making” and emplacement (by M. Agier and Çaglar and Schiller) as a way of understanding how migrants transform the urban spaces they live in.
City-making; Transnational migration; Displacement; Urban lens
Este artigo1 tem como objetivo analisar o fenômeno migratório transnacional contemporâneo em sua relação com as dinâmicas urbanas. Trata-se de uma análise que parte da observação na Missão Paz da Pastoral do Migrante, um importante equipamento de acolhida e atendimento a migrantes em São Paulo, localizado na baixada do Glicério, no centro da cidade, para chegar a um bairro periférico na zona Leste da cidade. Em tela, o que se quer debater são os agenciamentos desses atores que fazem-cidade. Mesmo tendo passado por situações limite em cenários de ruínas marcados por guerras, catástrofes, perseguições ou pobreza econômica, migrantes transnacionais produzem sentidos de pertencimento e modificam a cena urbana na qual se inserem. Como será visto à frente, diversas temporalidades de mobilidades de migrantes, nacionais e transnacionais, se encontram em um bairro periférico de São Paulo, o Jardim Piratininga. Nesse território são engendradas redes de relações e teias relacionais que constroem mundos e concatenam vidas, em que se criam condições de sobreviver na adversidade (Hirata, 2010).
A primeira seção deste artigo apresenta a abordagem pela qual a questão migratória será tratada – de forma contrária à lente étnica predominante em boa parte das pesquisas e estudos migratórios, destaca-se a perspectiva urbana do fazer-cidade para analisar o tema. Em seguida, passamos a percorrer os espaços importantes de sociabilidade migrante na cidade, tendo como ponto de partida a Missão Paz, localizada na baixada do Glicério, chegando ao território do Jardim Piratininga. Apresentamos algumas linhas históricas sobre a construção desse bairro periférico para, na sequência, cruzar as trajetórias de alguns dos seus moradores. Destacamos aqui as trajetórias de seu Jeremias2, uma liderança histórica do bairro, e a do migrante angolano Geraldo. É nesse encontro que podemos fazer ver as tramas relacionais que se constroem em um bairro da periferia da cidade.
Foi por meio da reconstrução das trajetórias de vida dos interlocutores em campo que pudemos apresentar os argumentos aqui desenvolvidos. As múltiplas entradas em campo e os vínculos consolidados possibilitaram reconstruir diversas trajetórias de interlocutores. Para os fins do texto, pouco interessa narrar ou expor a vida de uma pessoa específica, mas sim tentar depreender de seus relatos uma forma de leitura do mundo contemporâneo. Na descrição biográfica dos interlocutores, nos percursos de trabalho, moradia, serviços públicos, mobilizações políticas, pode-se depreender e revelar uma cidade que aparece longe das descrições apriorísticas ou dos discursos prontos sobre a urbe. Como aprendemos com Telles e Cabanes (2006, p. 74), toda a pulsação da vida urbana está cifrada nos espaços e circuitos por onde as histórias biográficas transcorrem. É no confronto entre as diversas situações que a cidade vai se perfilando, com suas tensões e campos problemáticos. As questões vão surgindo no entremeio, nas dobras: a cidade se revela no momento em que o caleidoscópio gira e faz ver toda a complicação do mundo urbano, para usar a imagem mobilizada por Telles. Não se parte da questão urbana, que suporia definição prévia e modelar, mas sim das modulações e composições que se configuram em cada uma das espacialidades imbricadas ao seguirmos as trajetórias de nossos interlocutores. O tempo biográfico e o urbano se compõem simultaneamente. Um revela o outro (Idem).
A migração contemporânea para São Paulo pela lente urbana
O fenômeno migratório transnacional para a cidade de São Paulo não é propriamente uma novidade. No entanto, a partir das últimas décadas do século XX, há uma notável reconfiguração de suas razões, sentidos e dinâmicas. De modo geral, migrantes transnacionais passaram a se deslocar por conta das forças de expulsão de que fala Saskia Sassen (2016) e que incidiram em seus territórios de vida, afetados por processos de “acumulação por despossessão” (Harvey, 2005). Com diferenças conforme espaços e circunstâncias locais, trata-se da expansão das fronteiras do mercado, processos que se fazem na conjugação de privatizações, da financeirização das formas de vida, da mercantilização e captura dos bens comuns, além de despejos e deslocamentos forçados. Se este é o cenário global para as mobilidades migratórias das últimas décadas, os fatores de expulsão estão longe de esclarecer o modo como a presença migrante afeta as dinâmicas urbanas nas cidades em que se instalam.
Como demonstrado por várias pesquisas, na dinâmica dos circuitos globalizados das mobilidades migrantes, vão-se tecendo intercâmbios e trocas desses migrantes com localidades múltiplas do globo, um senso de pertencimento multilocal e translocal. Essas mobilidades vêm sendo conceituadas como migração transnacional (Schiller, Basch e Blanc, 1995; Wimmer e Schiller, 2002; Portes, 1997; Tarrius, 2014; Schiller, Çağlar e Guldbransen, 2006), noção que marca e demarca um deslocamento em relação à matriz de estudos anteriores que postulavam a migração apenas como deslocamento de um ponto a outro e a ruptura com países ou cidades de origem. Trata-se de um processo dinâmico em que os migrantes mantêm laços sociais, econômicos, políticos e culturais entre o país de origem e o país de destino, por via de redes sociais transnacionais, com identidades múltiplas e flexíveis, em que se pode ser politicamente engajado em um território, economicamente ativo em outro, culturalmente situado em ambos.
No campo dos estudos migratórios é comum a questão ser pautada a partir do perfilamento da nacionalidade ou de características comuns relativas à origem desses indivíduos, pressupondo certa homogeneidade tanto na sociedade de destino, na qual o migrante busca estabelecer suas relações, como na de origem. É frequente a abordagem e referência a grupos como os haitianos, os venezuelanos, os sírios etc. Trata-se de uma perspectiva que, ao reiterar a nacionalidade dos migrantes, produz e repõe a diferenciação em termos culturais, políticos e sociais desses grupos. Não se trata aqui de negar que haja características partilhadas em termos de nacionalidade. Se essas características são importantes e ativas nos circuitos da sociabilidade migrante, elas não se constelam em nichos étnicos, interagem e se comunicam com as teias relacionais próprias da cidade, também se redefinem conforme se desdobra a experiência migrante nas várias dimensões sociais, econômicas e políticas. As migrações transnacionais são múltiplas e heterogêneas. As interseccionalidades que constituem as condições e possibilidades de cada um desses grupos e indivíduos são variadas. Fatores como o tempo de inserção na cidade, raça, classe, gênero, idade, nacionalidade, origem étnica no interior de cada uma dessas nacionalidades etc. devem ser levados em conta. Além disso, o lugar para onde migram e se instalam, e no caso em tela o mundo social paulistano, é complexo, heterogêneo, diverso, mutante e extremamente diferenciado e desigual.
Em diálogo com uma literatura que trabalha na interface entre estudos migratórios e estudos urbanos, propomos aqui uma abordagem das migrações transnacionais contemporâneas a partir das dinâmicas urbanas nas quais se inserem, de maneira a colocar em foco o modo pelo qual diferentes grupos de migrantes produzem mundos possíveis nas novas territorialidades em que se instalam. Çaglar e Schiller (2018) propõem a noção de emplacement como categoria analítica para descrever e analisar a relação que migrantes estabelecem com o território. Trata-se de uma perspectiva analítica e descritiva construída em contraposição crítica às noções de assimilação e integração, predominantes em toda uma longa (e antiga) linhagem de estudos sociais, marcadas por um viés próprio de nacionalismo metodológico, construindo a figura anômica e problemática do migrante desenraizado. As autoras propõem uma abordagem que coloca em evidência os modos pelos quais eles criam lugares e formas de habitar o espaço urbano, mobilizando redes transnacionais situadas em diferentes espaços do globo. A presença migrante, enfatizam as autoras, com suas práticas e iniciativas locais, afeta a dinâmica das cidades e é afetada por ela.
A noção de emplacement situa-se em (e constrói) um espaço conceitual que se articula com a noção de city-making (fazer-cidade), proposta por Michel Agier (2015) e retrabalhada por Çaglar e Schiller (2018). Para as autoras, trata-se de tomar a cidade não como um produto físico ou simples resultado do planejamento urbano, mas como processo contínuo de produção e transformação social. Portanto, o conceito de fazer-cidade implica a compreensão da complexa interação de atores sociais, de práticas e políticas que moldam a cidade e suas dinâmicas. A cidade é constantemente construída e reconstruída por meio de relações de poder, negociação e conflito entre diferentes grupos e interesses – grupos sociais diversos, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, além da própria gestão pública em interação com esses atores políticos. São diferentes forças que têm papel ativo na transformação do espaço urbano, na criação de redes de solidariedade, na defesa de direitos e na promoção de demandas específicas. A abordagem proposta por Çaglar e Schiller introduz a dimensão transnacional dos processos de fazer-cidade, frisando como as migrações e conexões transnacionais influenciam dinâmicas urbanas locais.
No que diz respeito aos estudos migratórios no Brasil, Feldman-Bianco, Sanjurjo e Silva (2020) mostram que, entre os anos 1990 e meados dos anos 2000, diferentes perspectivas transnacionais foram adotadas, focalizando as relações entre migração, nação, trabalho, identidade, cidadania e indocumentação. Para as autoras, uma nova etapa no campo das Ciências Sociais no Brasil inaugurou-se quando se passou a dar maior visibilidade às chamadas migrações “Sul-Sul” e pela ênfase concedida por pesquisas mais recentes ao acompanhamento das políticas migratórias, especialmente no que concerne às conexões entre governabilidade tecnocrática, direitos humanos e securitização, no contexto neoliberal marcado pela criminalização das migrações e deslocamentos forçados (Feldman-Bianco et al., 2020, pp. 1-2). As autoras destacam a mudança de escala dos fluxos migratórios nessa década. Entram em cena movimentos diaspóricos de grande escala suscitados por desastres socioambientais, guerras, conflitos armados, crises econômicas agudas e outras tantas turbulências que afetaram a geopolítica do mundo, ao mesmo tempo que se dão o endurecimento dos controles de fronteira e a hostilidade à presença migrante nos países do Norte. O terremoto no Haiti em 2010 tem sido, não sem razão, tomado como marco e referência nessas inflexões dos fluxos migratórios para o Brasil. Crise econômica na Venezuela, guerras variadas no interior do continente africano, como na República Democrática do Congo, ocupação e saída dos EUA do Afeganistão, guerra na Síria, genocídio palestino por Israel, entre tantos outros elementos, compõem o cenário que produz deslocamentos massivos das populações de seus territórios.
O ataque às torres gêmeas em Nova York, no 11 de setembro de 2001, é tomado por analistas do cenário mundial e pesquisadores em geral – David Harvey (2005), Michael Hardt e Antonio Negri (2005) – como o ponto de inflexão na geopolítica global das mobilidades. Segundo Sassen (2016, p. 72), em 2011, 80% dos refugiados do mundo abrigavam-se em países do Sul. No Brasil, São Paulo acaba por receber parte significativa dos migrantes que entram no país. Segundo informações do SisMigra, com dados consolidados de 2000 a 20163, 28,7% de todos os registros no sistema de políticas de regularização migratória do país eram da capital paulista, isto é, quase um a cada três migrantes no Brasil que preencheu o sistema administrativo da Polícia Federal afirmava residir na cidade de São Paulo. No registro do governo federal, em anos mais recentes, a presença migratória passou a ser significativa também em Boa Vista, Roraima, localizada a 200 quilômetros da fronteira com a Venezuela. O SisMigra, apesar de trazer informações atualizadas com bastante frequência, indicou a residência dos migrantes apenas nos dados até 2021. Outros municípios que tiveram presença relevante no indicador de onde residiam os migrantes no Brasil são, por exemplo, Manaus (AM), Pacaraima (RR), Curitiba (PR), Rio de Janeiro (RJ) e Joinville (SC).
Basta uma caminhada pelo centro histórico de São Paulo para notar que novos atores têm tomado as ruas da cidade. Migrantes de diferentes origens nacionais comercializam pelas ruas e ocupam a região. A presença migrante pode ser notada nos mais diferentes circuitos da economia urbana, no comércio e serviços, seja em pequenos mercadinhos voltados às diferentes comunidades, ou em restaurantes das mais variadas origens, de comida vietnamita à congolesa, passando por paraguaia e boliviana, sem contar a multiplicação de restaurantes sírios. Diante desse cenário, resolvemos puxar alguns fios para entender essas trajetórias, seus modos de circulação e interação nas tramas relacionais da cidade. Começamos a pesquisa na mais histórica e relevante entidade que presta atendimento a migrantes em São Paulo: a Missão Paz, situada na baixada do Glicério.
A Missão Paz e a Baixada do Glicério
A Missão Paz, instituição filantrópica escalabriniana de apoio e acolhimento a migrantes e refugiados na cidade de São Paulo, está em atividade desde os anos 1930. A entidade é uma das maiores operadoras que fazem atendimentos a pessoas recém-chegadas à cidade. De modo geral, ela é mobilizada por pessoas que têm pouca referência ou redes estabelecidas em São Paulo, mas não apenas. Os atendimentos realizados na Missão Paz servem como referência para medir e interpretar os tipos de fluxos mais recentes. Os equipamentos públicos que surgiram em anos mais recentes voltados à população migrante inspiram-se, em boa medida, no tipo de atendimento que a entidade fez ao longo dos anos.
Os principais eixos institucionais da entidade foram constituídos na passagem dos 1960 aos 1970. A organização é um desdobramento da Avim (Associação de Voluntários pela Integração do Migrante) em articulação com a Paróquia da Nossa Senhora da Paz, o Centro de Estudos Migratórios (fundado em 1969), a Casa do Migrante e o Centro Pastoral do Migrante. Segundo Allan Silva (2013), a Avim surgiu no âmbito da reestruturação da política imigratória do Estado e das discussões do seminário católico João XXIII, profundamente marcado pela Teologia da Libertação. A Avim, fundada na Paróquia do Ipiranga, era composta por um corpo eclesiástico e leigos voluntários que promoviam cursos de qualificação profissional aos migrantes do Nordeste brasileiro. A sede da Avim foi transferida para a Igreja Nossa Senhora da Paz (na baixada do Glicério) em 1978, quando passou a oferecer também alojamento e alimentação a migrantes desabrigados, criando a Casa do Migrante, em funcionamento ainda hoje. Com a mudança da sede da Avim para a Igreja Nossa Senhora da Paz, em 1978, com os atendimentos na Casa do Migrante e a constituição do Centro Pastoral do Migrante (CPM) na Arquidiocese de São Paulo, os escalabrinianos se aproximam significativamente de setores da esquerda católica. A própria fundação do CPM teve atuação ativa de dom Paulo Evaristo Arns, católico ativo na oposição e nas lutas urbanas contra a ditadura militar.
Entre 2006 e 2012, a iniciativa se reestruturou e se constituiu propriamente como Missão Paz. A chegada massiva de haitianos em 2010 foi um marco, que alterou seus modos organizativos e conferiu à entidade a visibilidade pública que tem hoje. Em momentos mais agudos, a igreja chegou a acolher centenas de haitianos em seu salão principal, para além daqueles alojados na Casa do Migrante. A prefeitura de São Paulo instalou um abrigo temporário para esses migrantes em um estacionamento nos arredores da organização.
Segundo Silva (2013, p. 114), a reestruturação ocorrida entre os escalabrinianos estaria ligada a uma guinada ideológica promovida pela Pastoral da Mobilidade Humana, mais alinhada às políticas da ONU e de direitos humanos. A entidade, então, passaria a atuar especificamente no sentido de acolhida dos migrantes e auxílio em sua inserção na vida da cidade. Silva critica essa mudança, rumo ao paradigma da mobilidade humana, menos crítico à noção de trabalho na sociedade capitalista e mais afeito a formas de governo e gestão da pobreza e “integração” na sociedade, seria assim um aparato de cuidado e controle dessas populações. Em que pese a possível pertinência dessa crítica, parece-nos que é importante analisar como a instituição opera em múltiplas escalas de poder, como aparato de cuidado e controle, mas também como espaço de articulação de experiências que escapam a essa definição. A Missão Paz e a respectiva espacialidade em que se situa podem ser compreendidas como conectores urbanos, isto é, um ponto de gravitação no qual se cruzam múltiplas linhas de força e intensidade (Côrtes, 2023). Conforme Rui e Mallart (2015) argumentam, em estudo que se debruça sobre o território da chamada Cracolândia, os conectores urbanos são pontos nevrálgicos do urbano, espaço estratégico de entrecruzamento de infinidade de agentes governamentais, de atores da chamada sociedade civil, de ativismos e religiões variadas, agentes do mundo do crime, entre outros.
Não se trata, portanto, de pensar essa espacialidade como apartada do restante da cidade. Tratar a Missão Paz como conector urbano pode auxiliar na compreensão das diferentes escalas e níveis de ação, de suas múltiplas linhas de força, múltiplas trajetórias e circuitos que conectam esse território específico a localidades variadas. Exemplo disso são as conexões com migrantes instalados em diversos bairros da cidade, também com os venezuelanos situados em Boa Vista e que pretendem vir a São Paulo, com os haitianos em Porto Príncipe que planejam a empreitada migratória. A Missão Paz destaca-se como referência desses vários circuitos e fluxos migratórios para São Paulo. Ademais, a entidade teve uma participação ativa nos embates e articulações em torno da formulação de uma Lei de Migração garantidora de direitos a migrantes e refugiados, promulgada em 2017 (Lei n. 13.445/2017). No trabalho de campo, era (e é) comum o registro de migrantes recém-chegados a São Paulo que traziam em suas mãos o endereço da Missão Paz, pois sabiam que seria a partir dessa localidade que conseguiriam acessar São Paulo.
A presença da Missão Paz na baixada do Glicério impacta diretamente o território e seus arredores, favorecendo uma tendência de a região ser moradia para migrantes transnacionais. Nas ocupações que se multiplicaram na região nos últimos anos, é expressiva a presença migrante, assim como em um mercado local, informal, de locação de cômodos com base em acordos verbais e contratos informais4. Habitar na região central da cidade é atraente aos migrantes e refugiados com poucos recursos, seja pela concentração de equipamentos públicos e de apoio aos migrantes, seja pelas possibilidades de trabalho nos mercados de serviços, nos circuitos informais do comércio, também no comércio ambulante nas regiões centrais da cidade.
É na região do Glicério e seus arredores que começam a aparecer entidades e organizações de migrantes, como é o caso da USIH (União Social dos Imigrantes Haitianos), o Pacto pelo Direito de Migrar (PDMIG, ex-África do Coração), o Centro de Estudos de Cultura da Guiné (CECG), entre tantas outras iniciativas5. Em muitos casos são iniciativas migrantes que se organizam, de uma forma ou de outra, a partir da experiência na Missão Paz. Trata-se de espaços de articulação e organização que passam a fazer pressão política sobre poderes públicos no sentido de garantia de direitos de migrantes em São Paulo.
Em diálogo com uma das assistentes sociais que trabalham na Missão Paz, ela comentou seu espanto com o número elevado de pessoas atendidas na entidade e que tinham como moradia um pequeno bairro da zona Leste, próximo à Penha, o Jardim Piratininga. Movidos pela curiosidade, resolvemos então encontrar interlocutores na região e seguir os fios que a Missão Paz nos dava para entender as conexões do centro da cidade com a periferia.
O Jardim Piratininga e o cruzamento das trajetórias urbanas de seus moradores
O Jardim Piratininga6 (chamado pelos moradores de Pira) localiza-se na zona Leste de São Paulo, na subprefeitura da Penha, distrito de Cangaíba. A principal via de referência para o bairro é a avenida Dr. Assis Ribeiro, que conecta bairros de antiga ocupação operária da zona Leste paulistana, que em seus mais de 11 quilômetros leva da subprefeitura da Penha a São Miguel Paulista, cruzando ao meio os distritos de Cangaíba, Ermelino Matarazzo e Vila Jacuí. Ao lado norte da avenida Dr. Assis Ribeiro, em todo esse trajeto de mais de 11 quilômetros, situa-se a várzea inundável do rio Tietê. A avenida corre contígua e paralela à linha 12-Safira do trem da CPTM, que conecta Calmon Vianna ao Brás. A estação de trem mais próxima é a Engenheiro Goulart, que faz ligação com a linha inaugurada em 2018 pelo governo do Estado, que conecta o Aeroporto Internacional de Guarulhos ao sistema ferroviário metropolitano. Mais ao norte da linha do trem, está a rodovia Ayrton Senna e depois o rio Tietê, seguido do município de Guarulhos. Ladeando os 11 quilômetros da avenida Dr. Assis Ribeiro, segue um extenso muro construído para isolar o trilho do trem – o que ao mesmo tempo isola e separa os diferentes bairros existentes nessa faixa de terra situada entre o trilho do trem, a rodovia e os córregos afluentes do Tietê. Desse modo, os diferentes bairros localizados nessa zona estão espremidos e delimitados fisicamente pelo trilho do trem ao sul e a rodovia ao norte. Todas as entradas e saídas para os bairros acontecem em passagens específicas, ou por baixo do trilho, em pequenos túneis, ou por pontilhões de pedestres (figura 1).
: Túnel de entrada principal do Jardim Piratininga, acesso para a avenida Dr. Assis Ribeiro, muro que separa o bairro do trilho da CPTM paralelo à rua Olga Artacho). Fonte: Autor (2019).
Trata-se de uma territorialidade urbana que tem as suas conexões com o restante da cidade muito bem definidas. Do Pira não é complicado chegar ao centro. A estação Engenheiro Goulart leva ao Brás, em menos de trinta minutos estamos no centro da cidade. Outra forma de acessar o sistema metroviário é tomando um ônibus que em vinte minutos leva à estação Penha, da linha vermelha. Para muitos moradores, esse circuito é melhor para acessar o centro, pois chega-se diretamente ao sistema de metrôs e não de trens. Existe ainda uma linha de ônibus para o terminal Parque Dom Pedro II no centro da cidade. A localização do bairro, provida de boas conexões de transporte com a região central, seguramente é um dos principais motivos que tornaram a espacialidade atraente para os migrantes e refugiados, que moram no bairro e trabalham no centro da cidade.
Não é o caso, nos limites deste artigo, de reconstruir história e cronologia dos processos de urbanização dessa região. Por ora basta dizer que a região realmente adensou-se entre os anos 1970 e 1990. Os relatos dos moradores apontam que a partir do final dos 1980 o bairro começou a tomar a configuração atual (Saito, 2018). No correr dos anos 2000, o bairro passa a ser afetado pela presença de migrantes bolivianos, congoleses, haitianos, angolanos, guineenses, venezuelanos e de outras nacionalidades.
Como ocorre nas regiões centrais e em outros bairros periféricos, a presença de igrejas evangélicas neopentecostais voltadas aos migrantes transnacionais, com cultos em suas respectivas línguas, já faz parte da paisagem urbana e das dinâmicas locais, tornando-se referência às formas de sociabilidade que se constituem em torno delas. Aos sábados, na feira livre, ocorre a comercialização de produtos típicos destinados ao consumo dos migrantes transnacionais. Além disso, existem estabelecimentos de migrantes que realizam múltiplas atividades. Por exemplo, em um salão de cabeleireiros, além de cortar cabelos ou comercializar produtos cosméticos em um salão familiar, o estabelecimento opera como correspondente bancário, inserido na lógica financeira global, realizando transações transnacionais de dinheiro para quaisquer lugares do globo, o que permite a manutenção de presenças cotidianas e construção de famílias e suas redes globais. Oferece ainda o serviço de recarga em celulares, dispositivo essencial para a manutenção dessas relações diárias com parentes e amigos em todos os cantos do mundo – o celular possibilita uma nova temporalidade das relações de afeto, cuidado e presença, muito diferente do que ocorria quando as trocas não eram instantâneas, mas mediadas por cartas, o que necessariamente implicava um lapso de tempo. Dana Diminescu (2008), ao cunhar a noção de “migrante conectado”, chama a atenção para as reconfigurações, em relação a períodos anteriores, das teias relacionais que articulam migrantes com os familiares e conterrâneos nos locais de origem, nas estratégias mobilizadas nos percursos migratórios e também para se instalarem nos lugares de destino. De fato, de um assentamento precário na periferia de São Paulo é possível enviar recursos em qualquer dia da semana, de domingo a domingo, das oito da manhã às nove horas da noite, para parentes em Porto Príncipe, Luanda, Uíge, Kinshasa e tantos outros lugares com os quais nossos interlocutores disseram manter contato e presença diariamente. A figura 2 evidencia como um singelo ou aparentemente ingênuo empreendimento econômico articula escalas múltiplas de relações sociais, referindo-se a circuitos financeirizados de transferência de rendas, bem como à transformação e à produção de novos sentidos ao bairro periférico.
: Cabeleireiro de migrantes haitianos na rua Olga Artacho, esquina com rua Filadélfia. Fonte: Autor (2019).
No Pira, os migrantes transnacionais habitam, praticam sua fé em igrejas neopentecostais com cultos conduzidos em línguas variadas, compram e vendem produtos típicos da alimentação de suas culturas, mas também frequentam o comércio local conduzido por brasileiros, onde essa variedade de produtos também é exposta e circula entre os moradores. A convivência entre brasileiros e migrantes frequentemente é amena. Nossos interlocutores valorizam o que eles percebem como um sentido comunitário do bairro, o que seria, na sua avaliação, um atrativo para a chegada de novos migrantes. É frequente moradores brasileiros alugarem casas, cômodos ou mesmo quartos de suas próprias residências. A moradia para migrantes pode também ser pequeno negócio local. É o caso de um morador que construiu uma espécie de vilinha, um empreendimento com mais de quarenta moradias voltadas exclusivamente para a locação a migrantes e refugiados. Ele dizia que o empreendimento, mais do que um simples investimento financeiro, era uma forma de se aproximar de migrantes e refugiados, podendo construir vínculos com pessoas de origens e histórias tão variadas (Côrtes, 2023).
Trajetórias urbanas dos moradores do Pira
Seu Jeremias, uma liderança local
Seu Jeremias é a clássica figura da liderança de bairro periférico de São Paulo. Articulou e segue articulando politicamente os moradores para conseguir melhorias para o território. É um ativista do movimento de moradia. Migrou do sertão da Bahia para a capital, onde trabalhou como metalúrgico e depois no setor de serviços. Com seu Jeremias, aprendemos como uma clássica questão da sociologia urbana, isto é, as lutas políticas na cidade territorializadas em movimentos de bairro, passa a incorporar o tema das migrações. Seu Jeremias congrega em seu repertório ético-político a questão das mobilidades transnacionais; não à toa, eu o encontrei na Marcha do Imigrante que ocorreu na avenida Paulista no final de 2018.
Seu Jeremias nasceu em 1952, na cidade da Barra, às margens do rio São Francisco, no oeste baiano. Migrou para São Paulo em 1970 e se instalou no Jardim Piratininga em 1994. Não é caso, nos limites deste artigo, de reconstruir a história e trajetória de seu Jeremias (Côrtes, 2023). Basta dizer que ele acompanhou a história de urbanização do bairro, uma história que, em linhas gerais, corresponde ao longo ciclo de lutas sociais para a conquista de equipamentos e serviços urbanos básicos, com suas associações de moradores e militância social de lideranças locais.
Seu Jeremias estima que no começo dos anos 2000 a população do bairro não passava de 3 mil pessoas, atualmente conjectura superar os 16 mil. Ele diz que não para de chegar gente, todo dia aparece algum familiar ou amigo de alguém já instalado. Em muitos casos, as pessoas vêm de bairros da região, outras migram do Nordeste do país. A presença mais recente de migrantes transnacionais passou a alterar a vida local. E isso foi notado por seu Jeremias, sempre atento às alterações do bairro.
Jeremias relata o modo como a solidariedade e o vínculo de pertencimento ao bairro se manifestam na relação entre migrantes transnacionais e brasileiros. Algo que ele nota em sua própria sociabilidade no bairro. Ele conta, por exemplo, que certo dia recebeu ligação de uma diretora de escola da região. Com o elevado número de migrantes no bairro, a escola passara a oferecer cursos de português para migrantes. Era um pedido de ajuda para dois imigrantes, alunos da escola, que estavam em dificuldade. Pelo relato da diretora, eles eram refugiados, tinham uma história recheada de sigilos e ameaças, estavam em situação precária no bairro e precisavam de apoio – “Jeremias, você tem uma comunidade. Eles precisam de uma casa para morar, precisam de alimento, vamos ajudar!”. O dono da casa em que moravam havia pedido o imóvel e eles corriam risco de ficarem na rua, sem moradia. Jeremias se mobilizou para conseguir um teto aos migrantes. Ele alugou o último andar de sua própria casa, com base em um contrato verbal, com certa flexibilidade e pouca formalidade. O migrante baiano notava a necessidade de acolher aqueles que chegavam ao mesmo bairro em que ele se inseriu décadas atrás, percebia a dificuldade que essas pessoas passavam para conseguir emprego e uma inserção digna na cidade. E defendia a necessidade de construção de alianças entre os habitantes do Pira.
Segundo Jeremias, como não existe mais terreno disponível para construir novas moradias, a solução dos proprietários foi verticalizar os imóveis existentes. Assim, aumenta-se o número de andares, multiplicando-se o número de moradias possíveis no mesmo espaço urbano. Quando se caminha pelas ruas do Pira, nota-se que a maior parte das casas possuem três ou até quatro níveis, com várias famílias compartilhando o mesmo terreno. Conforme seu Jeremias relata, “Isso aqui é um amontoado de gente. São casas com vários sobrados. É difícil ter uma casa só”. Essa estratégia de construção permite aos proprietários alugarem alguns cômodos de seu imóvel e conseguirem uma renda extra. São sempre contratos verbais, informais. Esse tipo de regulação da locação pode atrair um público que não conseguiria prover fiador, seguro fiança ou comprovação de renda. Na sua avaliação, isso tornaria o bairro interessante justamente para os migrantes transnacionais, que têm dificuldades para mobilizar esse repertório burocrático típico dos contratos de locação no Brasil. Este seria um dos principais fatores que contribuíram para que número elevado de migrantes transnacionais se estabelecessem no Jardim Piratininga. Segundo relatos de migrantes moradores do bairro, o Pira é atraente para aqueles que chegam ao Brasil por ser um território em que existe a possibilidade de moradia com custo mais acessível do que no centro, em que a infraestrutura de transporte possibilita acesso à região central de forma rápida, além de ser bairro com grande espírito comunitário. Um interlocutor da República Democrática do Congo afirma: “Aqui é um bairro tranquilo, não tem ladrão à noite. Pode chegar em casa a uma da manhã andando na rua que ninguém vai pegar suas coisas. Aqui no Piratininga tem muitas casas mais baratas e a gente gosta de ficar aqui”. Outro interlocutor relatou ter mudado do centro, primeiro lugar em que instalou residência, para o Jardim Piratininga justamente pelo valor do aluguel, da sensação de comunidade e pela facilidade de transporte, sem contar a facilidade de acessar o Parque Ecológico do Tietê, um importante equipamento público de lazer e para práticas de esportes, quase contíguo ao bairro.
Seu Jeremias contou que antes de chegarem os angolanos, haitianos e congoleses, entre outros, existia um número significativo de bolivianos, que em sua maioria trabalhavam com costura. Eles montavam as oficinas de costura em suas próprias casas e arregimentavam parentes para trabalharem e morarem no mesmo imóvel (Côrtes, 2013). Ao que parece, nos últimos anos, muitos desses bolivianos acabaram retornando para suas terras, pois as oportunidades e as encomendas de costura diminuíram muito.
A presença de haitianos e migrantes africanos começa a ser notada a partir de 2014 ou 2015. Jeremias comenta: esses migrantes não têm muito interesse em participar ativamente da associação de bairro. Em sua avaliação, isso se deve ao fato de muitos não terem expectativa de construir residência e laços com a cidade de São Paulo, muitos pensavam sua estadia como algo provisório, tendo em mira a migração para os Estados Unidos ou Canadá. Isso me foi confirmado por vários interlocutores que disseram ter família nesses países e que a inserção no Brasil servia como estratégia para juntar dinheiro para partir rumo ao Norte, quando houvesse uma situação mais promissora para realização da travessia. Entre os migrantes, é comum a circulação de informações, vídeos e relatos sobre as travessias. O tema demandaria um outro artigo, mas tive a oportunidade de ver imagens e relatos bastante duros sobre mortes, acidentes e desaparecimentos durante a travessia rumo à América do Norte (sobretudo no atravessamento do Darién).
O angolano Geraldo, traduzindo mundos sociais
Diferente de tantos outros migrantes, o angolano Geraldo tratou de ancorar suas perspectivas de vida em solo paulistano. Geraldo nasceu na Região Metropolitana de Luanda, capital da Angola, em 1992. Ao longo de toda a infância e adolescência, dedicou-se exclusivamente aos estudos e formou-se no Ensino Médio. Ele é o terceiro filho de sete. Na infância, morou na capital e em Uíge, no interior do país. Com dezesseis anos, foi para Lisboa, onde vivia um tio. Pretendia seguir estudando e praticando esporte, ele jogava futebol e queria encontrar um time em que pudesse se desenvolver. Geraldo sempre se destacou no campo: para além dos seus dois metros de altura – cravados, como ele diz – que o favorecem nos desportos, ele sempre teve muita habilidade com a bola, tanto no campo de futebol como nas quadras de basquete. No entanto, as oportunidades que almejava em Portugal não se concretizaram. Os times de base e os olheiros não o receberam como ele sonhava. Assim, dois meses após colocar os pés em Lisboa, retornou a Luanda. Preparou-se para cursar o ensino superior e iniciou, com bolsa parcial, o curso de Economia em uma faculdade privada no país. Ao mesmo tempo, seguiu investindo em sua carreira esportiva, mas as portas insistiam em não se abrir. Nesse momento, morava com a avó materna, pois o pai caminhoneiro viajava muito e a mãe tinha mudado para Lubango, no interior, com os filhos mais novos.
Entre 2008, quando retornou de Lisboa, e 2014, Geraldo ficou em Luanda. Trabalhava fazendo os bicos que encontrava, dava aulas particulares de matemática e se dedicava basicamente aos esportes. Todo o dinheiro que arrecadava era guardado para ser revertido nos estudos. Desde 2010, a economia angolana retraiu significativamente. O preço do barril do petróleo, commodity precificada no mercado global e que representa a maior parte da receita doméstica do país, desvalorizou enormemente, assim como o kwanza frente ao dólar. A crise econômica no país teve forte impacto na vida de Geraldo e de sua família. Em 2012, sua mãe estava grávida da sua sétima irmã e as condições econômicas só pioravam. Então, a família se reuniu e discutiu conjuntamente os rumos e as oportunidades que buscariam. Eles tinham a possibilidade de ir para Portugal, onde alguns parentes próximos estavam instalados, mas os relatos que chegavam não eram promissores. Como dito, o próprio Geraldo havia passado por Lisboa, mas não permaneceu na cidade. Em um momento coletivo familiar, o pai toma a decisão de que o melhor para a família seria vir ao Brasil, mas inicialmente não conseguiriam todos juntos, então vieram a mãe grávida e os irmãos em 2012. Geraldo ficou em Angola fazendo faculdade, mas em 2015, com a deterioração das condições econômicas da família, ele se viu obrigado a se unir à mãe na periferia de São Paulo. Era o Jardim Piratininga.
Depois de algum tempo já instalado na cidade, começou a frequentar o campo de futebol localizado atrás da UBS (Unidade Básica de Saúde) do Jardim São Francisco, contíguo ao Pira, onde morava com sua mãe e irmãos. Ia apenas assistir aos jogos, ver o movimento, até que um dia foi convidado para entrar em campo. Geraldo teve um desempenho muito bom no futebol de várzea. Assim, por meio de um contato no Corinthians, ele foi convidado a treinar no clube do Parque São Jorge. No entanto, o treino era diário e as receitas muito escassas. Geraldo recebia apenas quando jogava uma ou outra partida, muitas vezes convidado por times variados da terceira divisão. Ele já estava novamente entristecido por ver que a carreira de esportista não seria como almejava. Concomitante aos treinos no Corinthians, Geraldo buscava na Missão Paz alguma oportunidade de emprego, mas a maior parte das ofertas de trabalho era fora de São Paulo e isso não lhe interessava, tampouco encontrava emprego que lhe aprouvesse.
Num sábado de manhã, em maio de 2016, Geraldo jogava futebol no campo atrás da UBS do Jardim São Francisco quando a gerente do posto de saúde interrompeu a partida para solicitar sua ajuda. A esposa de um conhecido que jogava futebol com ele e trabalhava no posto o indicou para uma atividade. Naquela manhã, a UBS realizava um dia de convívio na comunidade. Isto é, uma atividade para estreitar os laços entre os moradores e o atendimento primário de saúde. Diante da grande presença de haitianos e congoleses que não falavam português, a gerência do posto buscou Geraldo para ser intérprete. Ele conta que o técnico (ou mister, como falam em Angola) autorizou e incentivou que ele saísse no meio da partida para auxiliar na mediação e tradução. Trocou de roupa e foi ao trabalho na UBS. Além do português, Geraldo domina duas línguas bantu (faladas em Angola e em outros países da região), o Lingala e o Kikongo, além de português, francês e inglês, aprendidos na escola. Mais recentemente, no Brasil, em contato com os haitianos, aprendeu um pouco de crioulo haitiano. Esse dia foi fundamental em sua trajetória e mudou os desdobramentos de sua vida em São Paulo. Geraldo manteve contatos na UBS e conseguiu um emprego de intérprete no atendimento aos pacientes do bairro. Ele começou a ser reconhecido no bairro pelo trabalho de tradutor. Com novas perspectivas de vida pela frente, decidiu retomar os estudos, iniciou o curso de Gestão de Recursos Humanos em uma faculdade no bairro do Tatuapé e, meses depois, conseguiu uma bolsa no curso de Técnico de Gestão Financeira.
Geraldo cumpria uma jornada de quarenta horas semanais na UBS, fazendo atividades diversas, mas sobretudo auxiliando na comunicação entre médicos, enfermeiros e pacientes. O angolano tornou-se um tradutor, um comunicador que facilitava o diálogo e a interlocução entre os usuários estrangeiros da UBS e os demais profissionais. Ocupar essa posição fez dele uma pessoa de referência no bairro. Todos conheciam o migrante que traduzia e ajudava no posto. Em pouco tempo, Geraldo foi se tornando reconhecido. Não à toa, foi eleito em dezembro de 2017 como representante dos imigrantes no Conselho Participativo Municipal. Ele conta que não tinha interesse em se candidatar, eram as pessoas do bairro que o pressionavam. Geraldo passou a ser mobilizado para auxiliar na gestão dos conflitos variados. Por exemplo, houve um caso em que um casal brigava recorrentemente e a polícia era chamada para fazer a mediação do conflito, trazendo viaturas ao bairro do Pira. Nessa situação, ele contou que foi chamado pelo dono de um ponto de venda de drogas (que ele não sabia dizer se era do PCC ou não) para que ele tivesse um “papo reto” com esses migrantes: ou eles paravam as brigas que atraíam a polícia nas proximidades da biqueira, ou então deveriam se mudar para outro bairro. Ele passou a ser reconhecido por todos como um articulador local, uma liderança e um mediador de conflitos nas mais distintas escalas de problemas do bairro. Ao mesmo tempo que era remunerado como mediador na política pública de saúde, seu desempenho local também o consagrava como mediador de conflitos no próprio cotidiano do bairro
A existência de uma figura como ele no atendimento primário à saúde tornou a política pública de saúde do bairro um exemplo a ser seguido. Ao fazer esse relato, Geraldo, com muito orgulho, interrompeu a conversa para mostrar uma foto sua palestrando. Na plateia estavam o então prefeito da cidade, Fernando Haddad, o vice, Gabriel Chalita, e o Secretário de Saúde, Alexandre Padilha. Ele conta ter sido convidado para falar sobre o desenvolvimento da saúde da população africana em São Paulo. Geraldo era ele próprio um operador de escalas (Çaglar e Schiller, 2018). Ele transitava por diferentes campos sociais, articulando e resolvendo conflitos, construindo alianças e produzindo formas e sentidos para que migrantes construíssem no Jardim Piratininga um mundo possível de ser vivido na diáspora, articulando e mediando do conflito de casal às demandas migrantes junto de autoridades públicas, Geraldo transitava entre esses mundos. O angolano se aliava a seu Jeremias, liderança da associação de bairro, para tornar o bairro mais adequado a quem ali morava, fosse brasileiro ou migrante transnacional. Geraldo e Jeremias, juntos no território, transformavam a vida no Pira.
O relato de Geraldo é eloquente nos elementos que nos entrega para pensar como a cidade e o bairro são produzidos. Sua experiência é rica para a compreensão da produção da vida urbana, que se faz cotidianamente na interação entre diversos atores, em encontros muitas vezes fortuitos que escapam a projetos e estruturas pensadas para a “integração do migrante na sociedade nacional”. Foi por intermédio de contatos realizados no futebol de várzea que a oportunidade de trabalhar na UBS do bairro apareceu. Destaca-se em primeiro plano o trânsito de Geraldo por múltiplas redes de sociabilidade. O futebol de várzea foi um caminho inicial de inserção em redes socioespaciais. Posteriormente, na UBS, ele passou a estabelecer vínculos com os grupos migrantes do bairro, operando também em escalas múltiplas, sendo chamado pelo prefeito da cidade para palestrar sobre a situação da saúde da população africana em São Paulo. Foi em razão de seu trabalho como tradutor em uma UBS que Geraldo pôde conhecer lideranças históricas dos movimentos de moradia e do Partido dos Trabalhadores, constituindo redes que cruzam as fronteiras de uma abordagem étnica-nacional sobre sua inserção na cidade. Por outro lado, os grupos e as redes constituídas pela população em diáspora no Brasil são fundamentais para compreender sua trajetória, pois localizam-se justamente nas dobras e traduções entre escalas variadas que constituem a cidade contemporânea.
Conclusão
As migrações transnacionais, longe de serem processos passivos ou apenas reações às forças de expulsão globais, são ativas na construção e transformação das dinâmicas urbanas – esse é o prisma pelo qual nos interessa abordar as migrações, revelando as possibilidades de construção de alianças em um mundo de predomínio de vidas precárias (Butler, 2018). Ao analisarmos o Jardim Piratininga e a Missão Paz, notamos que os migrantes não apenas se integram às redes locais, mas também criam formas de sociabilidade e de fazer-cidade, transformando a realidade urbana a partir de suas experiências e agenciamentos. Esses atores criam alianças e soluções próprias para a sobrevivência e a vida na adversidade, desafiando noções tradicionais de integração, assimilação e pertencimento. O Pira, como vimos, é um ponto de encontro onde diferentes temporalidades e trajetórias se cruzam, mostrando a importância de olharmos para a cidade como um espaço em constante produção.
A noção de emplacement, articulada com a ideia de “fazer-cidade”, demonstra que os migrantes, ao invés de serem meros receptores de políticas públicas de acolhimento ou simples sujeitos passivos de deslocamentos forçados, são agentes que transformam ativamente o espaço urbano, criando territorialidades e potencialidades, introduzindo novos desafios para se pensar a cidade contemporânea, seus conflitos e atores. Por meio de suas práticas cotidianas, eles influenciam as formas de habitar a cidade e os modos como os próprios habitantes locais se relacionam com o território e entre si.
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2
. Usamos na tese e no artigo os nomes reais tanto do território analisado como desses dois interlocutores: Jeremias e Geraldo. Jeremias autorizou a utilização de seu nome real, apresentando sua luta e trajetória. Geraldo não só autorizou como afirmou fazer questão de ver seu nome na tese e nas publicações que derivassem dela. Ele prezava justamente por ter seu registro e sua identificação nos diferentes materiais publicados.
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3
. Este dado foi elaborado por mim a partir das informações disponibilizadas pelo SisMigra. Extraí o acumulado dos registros de 2000 a 2017, mas, como encontrei algumas inconsistências nos dados de 2017, não considerei este ano em meu recorte. O Ministério da Justiça e Segurança Pública divulga as informações acumuladas de 2000 a 2017 e, a partir de 2018, ano a ano. Do total de 924.408 registros, 264.895 preencheram residir em São Paulo no momento da solicitação.
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4
. Em minha tese (Côrtes, 2023), analiso uma ocupação de moradia relativamente próxima ao Glicério, no bairro da Mooca. Lá detalho o modo como essa alternativa de moradia se organiza para migrantes e refugiados.
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5
. Em minha tese de doutorado, analiso as ações que USIH e PDMIG desenvolvem (Côrtes, 2023). Para mais informações sobre o CECG, ver a tese de Caio da Silveira Fernandes (2022), em que ele trata em profundidade do bairro do Glicério.
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6
. Agradeço especialmente à Aya Saito por ter me conduzido ao Jardim Piratininga e a Mauro Claro, da FAU Mackenzie.
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1
. Este artigo apoia-se em pesquisa realizada entre 2017 e 2022 e que deu origem à minha tese de doutorado (Côrtes, 2023), contou com financiamento da Fapesp (processo 05234-3/2018).
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Editora
Ana Paula Hey
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Set 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2025
Histórico
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Recebido
10 Out 2024 -
Aceito
22 Jan 2025




