As questões aqui apresentadas, a título de introdução deste Dossiê, são fruto da elaboração colaborativa de um coletivo de pesquisadores (Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho, PPGS-USP), alimentada por pesquisas de cunho etnográfico empenhadas em discernir o modo como vêm sendo feitas e desfeitas, configuradas ou reconfiguradas as tramas urbanas sob o impacto das transformações em curso no mundo contemporâneo.
Sem entrar em uma discussão de peso, que não cabe nos limites deste artigo, bastam por ora rápidas marcações, apenas e tão somente para situar algumas de nossas questões de pesquisa. De modo geral, as evidências trabalhadas por inúmeras pesquisas, sob grades analíticas diversas, convergem no diagnóstico dos efeitos deletérios de um cenário marcado pela globalização dos mercados, na conjugação entre financeirização da economia, tecnologias digitais e lógica militarizada de gestão urbana, fazendo proliferarem populações despossuídas de seus ancoramentos de trabalho, proteção social e territórios de referência (Mbembe, 2013, 2017) – populações flutuantes (sem lugar fixo de trabalho e moradia), que se viram como podem nos interstícios da vida urbana. Na lógica predatória dos mercados, o “capitalismo de fronteira”, como diz Naomi Klein (2008), em uma tradução eloquente da noção de “acumulação por despossessão” cunhada por David Harvey (2004), desdobra-se nos usos da violência como tecnologia de poder (Chamayou, 2014), seja para deslocar populações de seus territórios de vida, em disputa pelos mercados, seja para conter conflitos e insubordinações que se multiplicam por todo o tecido social, seja ainda para administrar as urgências da vida em contextos situados. Em cena, os poderes fáticos exercidos por agentes do Estado, por organizações criminosas, por milícias e outros tantos agenciamentos nebulosos, não poucas vezes misturados com práticas de assistência social e proteção de populações locais, mobilizando (ou não) recursos e mediações legais-formais de programas sociais e seus operadores (Mantovani, 2017; Segato, 2014).
Se esses são vetores estruturantes do cenário atual no Brasil (e mundo afora), ainda será preciso averiguar o que acontece nos territórios afetados por esses dispositivos de despossessão, de poder e violência. É a questão que rege nossas pesquisas, buscando prospectar as tramas urbanas e sociais, também políticas, engendradas nos centros de comércio popular, também nas ocupações urbanas que se multiplicaram nos últimos anos no centro e periferias da cidade de São Paulo. São estes os nossos campos de pesquisa – centros do comércio popular e ocupações urbanas: lócus e contextos que acolhem trabalhadores precarizados, desempregados, pessoas despossuídas de garantias de trabalho e moradia, e que circulam pela cidade conforme os acasos de oportunidades de ganho nas franjas dos mercados informais. Entre eles, migrantes transnacionais de nacionalidades diversas. Também e cada vez mais, ex-detentos, homens e mulheres que passaram pela experiência carcerária, que se veem às voltas com pendências mal resolvidas com a justiça, que têm suas vidas enredadas nas malhas dos dispositivos penais-judiciais (Telles et al., 2024; Endo, 2024).
Nesta prospecção das tramas da cidade, como dito em texto coletivo anterior, buscamos “perscrutar os mundos sociais (teia de relações e suas mediações) construídos sob a condição da precariedade, quer dizer: agenciamentos práticos em torno das urgências da vida em um cenário destituído de estabilidade e de garantia e no qual a malha social e suas referências cognitivas e normativas estão sendo esgarçadas” (Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho, 2020). Nesta passagem, acolhemos a noção de precariedade formulada pela antropóloga Anna Tsing ao examinar as “artes de viver em um planeta destruído” ou, como é posto no subtítulo de seu livro, “as possibilidades de vida nas ruínas do capitalismo” em um mundo ameaçado pela devastação ambiental, extinção de espécies, pauperização, predações, genocídios e extermínios. O mundo precário, diz a antropóloga, é um mundo sem teleologia (Tsing, 2020, p. 64), marcado pela indeterminação do que poderá advir, por agenciamentos instáveis, feito de experimentações e arranjos de vida sem que se possa apelar, como antes, para promessas de um progresso futuro – a rigor, o fracasso dessas promessas é a marca dos tempos. “Pensar a partir da precariedade muda a análise social” (Ibidem), diz a antropóloga. E direciona as atividades de pesquisa de modo a apreender, em contextos situados, o movimento das composições, dos laços, das alianças, das conexões que se fazem em torno dos problemas e das urgências da vida. Será preciso exercitar “a arte de notar”, enfatiza Tsing, para rastrear e seguir o modo como, neste cenário de incertezas, vão se tecendo experimentações, alianças, composições, redes de aliados e seus circuitos.
Essa “arte de notar”, que exercitamos em nossas pesquisas, é o que nos permitiu também identificar as tensões e fricções inscritas nos circuitos dos mercados informais e ilegais que se territorializam nesses locais de vida e trabalho. Não poucas vezes, os operadores locais desses mercados constroem seus recursos de poder em uma combinação variada de formas de gestão da ordem (e da violência), ao mesmo tempo que diversificam seus negócios na administração das urgências da vida nesses lugares – mercado de terras e negócios imobiliários, prestação de bens e serviços, também serviços de proteção. Quer dizer: a gestão da precariedade e das urgências da vida como um negócio e fonte de recursos de poder, tudo isso operando em uma zona cinzenta que faz esfumaçarem as diferenças entre proteção e extorsão, a lei e o crime, acordos pactuados e o uso da força. Sob diagramas diferenciados conforme contextos e lugares, organizações criminosas, milícias e outros tantos arranjos nebulosos com representantes locais de empresários, com políticos, com gestores urbanos implicados e interessados nessa também expansiva fronteira de mercado. Versões locais do que Tsing (2022) chama de “capitalismo de aproveitamento”, que se enreda e se aproveita das formas locais de vida e sobrevivência para converter e traduzir as práticas e expedientes locais em valor e mercadorias, por via de agenciamentos nebulosos que transitam entre legalidade e pilhagem, a lei e o crime, acordos e uso da força.
Trabalhamos essas questões em textos recentes, em diálogo com uma já vasta literatura sobre esses temas no Brasil e em outros países (Larissa e Telles, 2024; Telles, 2022). Por ora, aqui nos interessa chamar a atenção para o fato de que nesses territórios e ordenamentos locais estão presentes organizações criminosas e seus negócios ilegais, forças policiais e os nebulosos (e violentos) serviços de segurança privada (transitando entre proteção e extorsão), operadores políticos de máquinas partidárias com velhas e novas práticas de clientelismo urbano, também operadores dos mercados de terra e negócios imobiliários nas fronteiras incertas entre o legal, o ilegal e o criminoso. Tudo isso ao lado e entremeado com programas do chamado empreendedorismo social e suas conexões com fundações privadas, as igrejas e suas clientelas, além da miríade de coletivos ativistas locais com suas agendas, pautas diversas de ação coletiva e suas redes de aliados em escalas variadas de atuação.
Neste rápido inventário dessa trama heterogênea de atores, práticas e articulações que, sob diagramas variados conforme lugares e circunstâncias locais, se constelam nos territórios urbanos, nos interessa chamar a atenção para os desafios que isso coloca para a pesquisa. Pois será preciso rastrear o que poderíamos definir como “efeitos de composição”. Trata-se de seguir e destrinchar os fios embaralhados dessas práticas, as transitividades ou acomodações entre uns e outros. Efeitos de composição que produzem ordenamentos locais, instáveis e oscilantes, feitos de fricções e tensões entre os agenciamentos práticos em torno das urgências da vida e os “poderes fáticos” exercidos por esses operadores locais dos mercados informais e ilegais enredados nas tramas urbanas da cidade (Telles, 2022). Tudo isso se entrelaça nas formas de vida e se inscreve na “textura do ordinário” (Das, 2023), também atravessada por uma conflitualidade latente ou aberta que pontilha esses territórios incertos da vida urbana.
Esta a nossa aposta teórico-metodológica, que também define um programa de pesquisa: tomar como unidade de análise os territórios e seus agenciamentos práticos tais como se configuram em contextos situados, com suas composições e fricções, suas conexões e seus desdobramentos. E a partir daí, deslindar os campos de ação, de conflitos, de experimentação política em meio aos regimes de poder que atravessam esses territórios, se enredam nas tramas urbanas e afetam formas de vida. Território: não se trata de uma definição cartográfica, com limites definidos, mas trama de relações atravessada por redes urbanas e suas materialidades, por mercados e seus circuitos ampliados, por atores e suas redes de relações sob diagramas e escalas variadas.
Nas linhas que seguem, apresentamos algumas das coordenadas que regem nossas agendas de pesquisa. Apresentamos essas questões em três tópicos.
Primeiro: em diálogo com o campo de debate e pesquisas sobre esses temas, construímos a noção de “refugiados urbanos” como operador analítico e descritivo de processos em curso em nossas cidades, de modo a colocar em perspectiva as diásporas migratórias, marca dos tempos que correm, e as populações sujeitas a situações (ou sob ameaça) de expulsão e deslocamento forçados de suas condições de moradia e trabalho. Trata-se aqui de traçar um plano de referência que permite apreender as transversalidades das situações e contextos urbanos abordados em nossas pesquisas, os movimentos e deslocamentos dessas populações, seus modos de territorialização e agenciamentos práticos pelos quais lidam com as circunstâncias e urgências da vida.
Em termos analíticos, a noção de refugiados urbanos introduz um prisma, perspectiva, que possibilita apreender – e fazer ver – os jogos de poder e relações de força operantes nas circunstâncias de deslocamentos e, por essa via, o campo de tensão e conflito que se configura em torno desses pontos de incidência dos dispositivos de poder. No segundo tópico, colocamos a ênfase no que pode ser definido como “despossessões lentas” – ao lado de episódios recorrentes de violência policial e uma “maquinaria punitiva” operante em contextos cotidianos de vida e trabalho, um feixe variado de expedientes políticos, jurídicos e administrativos, também policiais, que operam como formas excludentes de gestão, fiscalização e regulação do uso dos espaços, nos centros de comércio popular e nas ocupações urbanas.
Longe de serem eventos isolados, esses procedimentos ativam instituições, agências especializadas, normativas e mediações políticas que estão entramadas nas dinâmicas urbanas desses lugares. Parafraseando Charles Tilly (1996), essas formas de controle social e gestão de conflitos “fazem cidade”. E “fazem cidade” também porque esses eventos ressoam na “textura do ordinário” (Das, 2023), seus efeitos se inscrevem nos arranjos cotidianos para lidar com as urgências da vida, entre ameaças e incertezas do que poderá advir, e se desdobram na conflitualidade latente ou aberta que pontilha esses territórios. É a questão trabalhada no terceiro tópico do texto.
Refugiados urbanos: operador analítico e descritivo das tramas da cidade
Trabalhadores ambulantes, migrantes, moradores de ocupações e assentamentos precários, ex-detentos – esses são os personagens urbanos que comparecem no trabalho de campo de nosso coletivo de pesquisadoras/es. Em torno desses personagens, constelam-se espaços, contextos e situações de vida e trabalho impactados pelos vetores estruturantes dos tempos: efeitos societários dos dispositivos de despossessão colocados em marcha pela expansão predatória dos mercados. E efeitos societários da maquinaria punitiva que movimenta o encarceramento em massa (Telles et al., 2024).
“Refugiados urbanos” é termo que circula entre coletivos atuantes nesses lugares e que carrega um formidável poder de interpelação ao colocar em perspectiva as diásporas migratórias, hoje presença incontornável na cidade de São Paulo, e as várias situações de despossessão que se constelam nos territórios urbanos. Diz respeito às populações circulantes sob o efeito de deslocamentos forçados de suas moradias e espaços de trabalho (despejos, reintegração de posse nas áreas de ocupações; repressão e expulsão de ambulantes dos centros de comércio popular), populações sem lugar fixo de moradia e trabalho, que transitam nas franjas mais precarizadas dos hoje expansivos mercados informais. Também: outros tantos que circulam entre prisão, ocupações e a rua (Mallart e Rui, 2017; Endo, 2024).
Tomamos, então, a noção como operador descritivo dos processos em curso em nossas cidades. E nisso, trabalhamos com uma perspectiva importante no debate contemporâneo: a necessidade de se construírem categorias analíticas e espaços conceituais próprios a colocar em perspectiva as várias figuras de deslocados internos ou diaspóricos, que são uma marca dos tempos atuais mundo afora.
Saskia Sassen (2014), referência incontornável nessa discussão, propõe a noção de expulsão como categoria analítica e descritiva dos processos em curso no capitalismo contemporâneo. A noção de expulsão comparece como referência analítica que permite colocar em perspectiva os vários mecanismos de expulsão e deslocamento de populações em diferentes contextos, ao Norte e ao Sul do planeta: desemprego e precarização do trabalho, encolhimento dos sistemas de proteção social; políticas urbanas excludentes; expulsão de pequenos produtores rurais de suas terras, capturadas por corporações transnacionais e megaprojetos de mineração; guerras e conflitos armados que convulsionam cidades e países. Estas são situações detalhadas pela autora, buscando deslindar o que ela define como “tendências subterrâneas” de um capitalismo globalizado regido pela lógica financeira dos mercados.
Na interface entre estudos urbanos e estudos migratórios, Schiller e Çaglar (2018) trabalham essas questões sob a perspectiva da produção dos espaços urbanos. As autoras propõem tomar a escala urbana como referência para trabalhar as convergências entre diásporas migratórias e populações urbanas expulsas de seus locais de moradia sob o impacto de políticas urbanas excludentes. Trata-se de situar as práticas urbanas dessas populações nos circuitos e espaços da cidade, entre formas de sociabilidade, situações de conflito e os agenciamentos construídos para lidar com as circunstâncias de deslocamentos e a construção de possibilidades de vida em outros pontos da cidade. Entre “displacement” e “emplacement”, categorias operatórias mobilizadas pelas autoras para descrever essas movimentações, é a própria vida urbana que vai sendo tecida por atores que mobilizam suas redes de sociabilidade, competências e recursos de ação para lidar com essas circunstâncias que pontilham seus percursos na vida urbana. Categorias operatórias que permitem, ademais, dar densidade descritiva e teórica às relações de poder e aos jogos de força operantes nas circunstâncias de deslocamento, também nos locais em que essas populações se instalam e, por essa via, às fricções, conflitos e modos de resistência que também conformam as dinâmicas e espaços urbanos das cidades contemporâneas.
Bela Feldman Bianco (2018, 2015), por sua vez, toma a noção de deslocamento como operador analítico dos processos em curso no capitalismo contemporâneo, sob a cifra de desigualdades crescentes, discriminações e práticas de racialização. Daí a proposta de uma noção ampliada de deslocamento, de modo a apreender os vários tipos, escalas e espaços em que essas mobilidades ocorrem, colocando em perspectiva migrantes transnacionais, populações urbanas sujeitas a deslocamentos forçados, populações em situação de rua, também os confinados em dispositivos penais-carcerários, em um cenário marcado pelo trabalho precário, financeirização dos mercados e violência estatal.
“Condição de deslocabilidade” é a noção formulada por Yiftachel (2018) ao discutir as tendências estruturadoras do urbanismo nas cidades do assim chamado Sul Global, mas cada vez mais presentes nas cidades do Norte, com seus territórios conformados por diásporas migratórias e populações sem garantias de trabalho e moradia. Diz respeito a populações cujos percursos são regidos pela ameaça constante de um novo deslocamento forçado, ao mesmo tempo que são escassas, quando não inexistentes, possibilidades de construção de uma ordem urbana mais inclusiva. “Espaços cinzentos” é o termo cunhado pelo autor para descrever os territórios em que essas populações se instalam – territórios regidos pela ambivalência inscrita no jogo político incerto entre o reconhecimento dos poderes públicos e a expulsão, entre tolerância política e repressão, entre amparo legal e criminalização, conforme oscilam as (micro)conjunturas políticas desses lugares. Como insiste o autor, nesses espaços cinzentos, o jogo das relações sociais se faz para além das referências normativas inscritas nas dicotomias legal e ilegal, formal e informal, noções, a rigor, sem qualquer pertinência descritiva e teórica para descrever esses espaços. Por outro lado, nessa experiência de instabilidade e insegurança, entre a ameaça de uma nova remoção e a espera por uma solução que nunca chega, são tecidas formas de sociabilidade e modos de subjetivação, entre improvisações e formas de contornamento dos riscos e ameaças que pesam sobre suas vidas por entre as oscilações imprevisíveis das forças da ordem e agências estatais (Yiftachel, 2009).
Estas são algumas das referências e questões que vêm orientando nossas pesquisas. Retomando o fio da meada, questões inscritas na noção de “refugiados urbanos” que tomamos como operador analítico e descritivo das tramas da cidade. Suas várias figuras (migrantes transnacionais, moradores de ocupações urbanas, trabalhadores ambulantes, ex-detentos), por sua vez, são tomadas como “personagens urbanos” (Telles, 2010), algo como um guia na/da cidade, na medida em que suas práticas e percursos nos permitem apreender os vetores ou linhas de força em torno dos quais vão se tecendo as tramas do mundo social: os fios que precisamos seguir para entender as conexões que fazem as tramas da cidade.
É sob essa perspectiva que os textos que compõem este dossiê trabalham a rede de relações mobilizadas por moradores em uma ocupação na periferia da cidade de São Paulo; os circuitos urbanos de migrantes transnacionais que terminam por se instalar em um bairro periférico; os percursos incertos de homens e mulheres que passaram pela experiência carcerária, “sobreviventes do cárcere”, que convergem e se entrelaçam em uma pequena e muito precária ocupação no centro da cidade; os agenciamentos práticos que trabalhadores ambulantes constroem em seus embates com os poderes municipais nos centros de comércio popular; finalmente, todos os fios se cruzam na história de uma migrante tongolesa, trabalhadora ambulante, presa por um crime que não cometeu, às voltas com um intrincado processo criminal, um caso que terminou por mobilizar uma extensa rede de apoio composta por coletivos de movimentos negros, coletivos de migrantes e suas redes de aliados, de associações de trabalhadores ambulantes, representantes políticos, organizações de defesa dos direitos humanos, advogados, defensores públicos, dando ressonância pública à campanha “pela liberdade de Falilatou”.
“Despossessões lentas” e as tramas da cidade
A transitividade entre as várias figuras dos “refugiados urbanos” é algo a ser notado. Eles se transmutam uns nos outros conforme seguem seus percursos incertos: migrantes que são também trabalhadores precários no comércio ambulante da cidade; trabalhadores precários, migrantes e não migrantes, que se instalam em ocupações habitadas por famílias sem-teto; ex-presidiários que buscam formas de sobrevivência nas ocupações e nas franjas mais precarizadas dos mercados informais (e não só e não necessariamente os mercados ilegais); ou então, no movimento inverso, habitantes desses lugares que saem às ruas em busca de alternativas de ganho e se veem às voltas com a discricionariedade e violência policial e vão parar nas prisões, e que mais tarde voltam às ruas e vão seguindo a vida conforme as piruetas do destino (Telles, 2017).
As micro-histórias que pontilham esses percursos também circulam, se comunicam, entram em ressonância umas com outras nos seus pontos de convergência – lugares de circulação, nos territórios de vida e trabalho. “Vidas entrelaçadas” (Tsing, 2005) em contextos situados (com suas fricções) nos quais ressoam os pontos críticos que pontilham esses percursos e o modo como esses personagens urbanos experimentam o que Trouillot (2001) define como “encontros com o Estado”. A cada momento de seus percursos, fazem a experiência com a lei, com os aparatos judiciais, com a polícia, também com fiscais da prefeitura e gestores urbanos que tratam de colocar em ação procedimentos excludentes de gestão da circulação e ocupação dos espaços da cidade. Contextos críticos que pontilham esses percursos e que se constelam nos locais de trabalho e moradia, também nos usos dos espaços urbanos e nos circuitos de suas movimentações pela cidade.
Lançar mão da noção de “refugiados urbanos” não significa homogeneizar essas várias situações sob uma denominação comum. Como operador analítico e descritivo, define um prisma – perspectiva – que permite apreender jogos de poder e relações de poder que afetam essas várias figuras.
De partida, os efeitos de poder de categorizações normativas (políticas, administrativas, jurídicas, também policiais) definem a condição de irregularidade, quando não de ilegalidade, de ocupações urbanas sujeitas às remoções forçadas, que pesam sobre trabalhadores ambulantes às voltas com normativas indecifráveis e critérios nebulosos que regem os usos e a distribuição dos pontos do comércio de rua, que assombram migrantes indocumentados com a ameaça de uma possível deportação, além de todos aqueles, e são muitos, que passaram pela experiência carcerária e que buscam contornar os riscos (achaques policiais) e entraves postos pelo estigma do “crime” e pela suspeita indelével constelada nos documentos de “antecedentes criminais”. Em termos analíticos, trata-se de categorias construídas e mobilizadas na gestão dessas populações e seus territórios (Chatterjee, 2004)
Sob outro ângulo, em torno de cada uma dessas figuras e seus percursos urbanos é possível apreender – e descrever – os modos operatórios pelos quais despossessões e deslocamentos forçados se fazem: sob diagramas variados conforme circunstâncias de tempo e espaço, entram em ação dispositivos políticos, jurídicos, administrativos, além das formas de controle e o uso aberto da força. Sim, estamos no coração do que David Harvey (2004) define como “acumulação por despossessão”. Mas isso não ocorre como uma razão abstrata. Em torno desses (micro)eventos críticos, é possível analisar e descrever o lugar desses dispositivos de poder, em seus modos operatórios, na produção de espaços e territórios urbanos. Charles Tilly (1996) nos faz ver como as formas de controle social e gestão de conflitos “fazem o Estado” engendrando e ativando instituições, agências especializadas, normativas e mediações político-institucionais. E podemos acrescentar: também “fazem cidade” e suas territorialidades, na medida em que as tramas urbanas são também feitas por essas mediações. Daí a importância de exercitarmos a “arte de notar” de que nos fala Tsing, própria da pesquisa etnográfica, para deslindar os modos operatórios desses dispositivos de poder e controle.
Além dos eventos de violência aberta – remoções violentas, invasões policiais, operações militarizadas altamente midiatizadas, há também uma miríade de expedientes que afetam as rotinas e os protocolos de vidas cotidianas, conformando processos que configuram, em uma leitura inspirada em Pain (2019), o que poderíamos definir como “despossessões lentas”.1 Sob a lógica de procedimentos administrativos de fiscalização e regulação do uso dos espaços urbanos, trabalhadores ambulantes e os moradores de ocupações se veem às voltas com multas, interdições, fechamentos, apreensões de mercadorias, sob alegação de uso irregular dos espaços, riscos ambientais, redes elétricas fora das normas de segurança e outras tantas ditas irregularidades, tudo isso misturado com rumores e ameaças difusas alimentadas pela imprevisibilidade e opacidade das razões que regem os aparatos administrativos e seus operadores.
No caso das ocupações urbanas, seus moradores têm um cotidiano vivido sob a ameaça difusa de uma remoção violenta, o temor frente à virulência de grupos de segurança privada, em geral policiais contratados (por quem? Nunca se sabe) que, entre extorsão e ameaças, não poucas vezes invadem as moradias para pressionar sua desocupação, e a insegurança suscitada por procedimentos administrativos de vistoria e fiscalização, com seus indecifráveis laudos técnicos, exigindo melhorias e reparos, no mais das vezes impossíveis de serem cumpridos nos termos e tempos exigidos. Exigências inviáveis, multas impagáveis, corte do fornecimento de luz e, depois, em meio a uma outra vistoria ou uma operação policial no local, a acusação de “furto de energia”, tipo penal que recai sobre os arranjos e gambiarras com que os moradores tratam de contornar esses bloqueios. Trata-se aqui de procedimentos e operações de poder que acontecem com pouca visibilidade e repercussão, difusas no tempo e no espaço, mas que se repetem no cotidiano desses moradores, gerando desgaste e insegurança, solapando modos, circuitos e condições de vida. Estas são situações recorrentes sobretudo (mas não apenas) nas regiões centrais da cidade, não por acaso áreas em disputa pelo mercado imobiliário ou então alvo de empreendimentos urbanísticos de grande envergadura (Santos, 2024). Em geral, fora do radar das pesquisas e debates em torno da cenografia aberta pelas remoções violentas promovidas por meio de pesados aparatos policiais, são processos que vão se desdobrando lentamente, mobilizando distintos agentes e dispositivos político-administrativos. Procedimentos administrativos, sempre opacos quanto às suas razões, muitas vezes de legalidade duvidosa, introduzem uma insegurança permanente, também alimentada por recorrentes ações policiais extralegais (invasões sem mandado judicial) e pela ação de grupos de segurança privada, contratados ninguém sabe ao certo por quem, dos quais pouco se fala e de cujos modos de atuação nos territórios populares pouco se sabe.
Como Ana Lidia Aguiar mostra no texto que compõe este dossiê, nos centros de comércio popular, trabalhadores ambulantes se veem às voltas com obstáculos quase intransponíveis para a obtenção de autorização para o exercício de suas atividades nas ruas da cidade, o que os torna especialmente vulneráveis a pesados esquemas de extorsão praticados por agentes policiais e fiscais da prefeitura. Em meio a conflitos acirrados, é no cotidiano do trabalho ambulante que os mecanismos de “despossessões lentas” também operam por entre normativas excludentes de regulação dessas atividades, colocando muitos, talvez a maioria, no limbo jurídico entre a informalidade e a ilegalidade, sujeitos à acusação de crime de receptação, de contrabando, de pirataria e a outras tantas acusações criminais que podem recair em suas atividades nas ruas da cidade. Ao lado de agressivas operações policiais sob a justificativa de “combate ao crime”, configura-se o terreno de operações extralegais de destruição de barracas e tendas, também apreensão de mercadorias, ao arrepio dos protocolos que regem as ações de fiscalização, de tal modo que vai se esfumaçando a diferença entre a fiscalização e a pilhagem de bens, que terminam por circular em outros pontos do comércio popular, como moeda de troca de chantagens e extorsões, quando não a venda fraudulenta em uma espécie de mercado negro operado por fiscais da prefeitura, por agentes policiais e outros tantos operadores desses mercados nas fronteiras borradas entre o legal, o ilegal e o criminoso.
O fato é que dispositivos punitivos e carcerários também compõem o leque de repertórios e referências da vida urbana dessas populações afetadas por esses dispositivos de gestão, controle e repressão. Trata-se de uma maquinaria punitiva que opera nos microcontextos de vida e trabalho, e se faz tão mais agressiva e onipresente quanto mais se expandem os circuitos e contextos dos mercados informais de trabalho e moradia. Micro-histórias que nossos pesquisadores encontram em seus respectivos trabalhos de campo: ligações clandestinas de luz e água tomadas como flagrante de crime de furto; a muito prosaica revenda de botijões de gás na vizinhança enquadrada no “crime contra a ordem econômica”; a prisão de uns e outros sob acusação de organização criminosa por conta de um ponto de droga nas proximidades de sua moradia ou pelos azares de circunstâncias da sociabilidade cotidiana e convivência próxima com um amigo ou vizinho envolvido nos negócios locais do tráfico de drogas; a detenção do ambulante e o fechamento de sua barraca de produtos variados, sob acusação de crime de receptação de contrabando; ou a má sorte daquele que compra um carro usado e que em uma batida policial é preso por receptação por ser carro roubado. A descrição dessas situações foi trabalhada em texto recente (Telles et al., 2024).
Vale notar: são micro-histórias das quais pouco se tem o registro, que ficam fora do foco dos debates e pesquisas correntes sobre crime, segurança pública e violência policial. À distância do “Grande Crime” (tráfico de drogas, facções criminosas), foco privilegiado dos debates e pesquisas, são histórias que povoam as experiências dessas gentes que circulam, habitam e trabalham por entre a trama dos hoje expansivos ilegalismos urbanos, nos mercados informais de trabalho, nas ocupações e assentamentos precários nas periferias da cidade. Universo dos ilegalismos populares, inscritos na “viração” própria do mundo popular em suas práticas de contornamento das leis e regulamentos urbanos e agenciamentos práticos para lidar com as urgências da vida, práticas conhecidas de longa data e já vasculhadas por uma extensa literatura que trata do mundo popular. Nos últimos anos, sob o efeito da virada conservadora e punitivista no país (e no mundo), sob a lógica das relações de poder próprias da “gestão diferencial dos ilegalismos” (Foucault, 1997), há um deslocamento dos patamares de tolerância dessas formas de transgressão de regulamentos urbanos. Microeventos que podem ser tomados como variações do que Santos e Guerreiro (2020) identificaram como “novas frentes de criminalização”, seja pela recorrência e agressividade das medidas ditas administrativas de fiscalização e que jogam moradores de ocupações ou trabalhadores ambulantes no limiar da ilegalidade, seja pelo recurso ao arsenal jurídico-penal para tipificar como “crime” práticas conhecidas de longa data, próprias da informalidade urbana, seja pela acusação de “associação criminosa” que recai sobre lideranças de movimentos de moradia, presentes nas ocupações urbanas. Ao reconstituírem fatos e circunstâncias da prisão, em 2018, sob acusação de associação criminosa, de cinco lideranças conhecidas e reconhecidas nos movimentos de moradia, os autores chamam a atenção para um notável deslocamento do que sempre foi caracterizado como conflito possessório para direito penal, desativando no mesmo passo o campo político e o jurídico das disputas em torno do direito à moradia (Santos e Guerreiro, 2020). Quanto a esses delitos menores, como observou Paula Braud (2024) em sua pesquisa sobre audiências de custódia, sob a justificativa de combate ao crime e roubo, as forças policiais tratam de “mostrar serviço”, multiplicando flagrantes contra qualquer conduta passível de ser enquadrada no Código Penal.
O fato é que situações como essas se multiplicam nos territórios populares, “histórias minúsculas”, como diria Foucault (2003), que preenchem muitas páginas dos diários de campo de nossos pesquisadores. Versões locais do que Alexander (2017) define como “sistema de controle social racializado”, que repõe e amplifica desigualdades e discriminações, afeta vidas e formas de vida dessas populações que transitam entre assentamentos precários e os meandros dos mercados informais de trabalho.
***
São micro-histórias, microeventos que atravessam formas de vida, compõem e se compõem com as circunstâncias cotidianas da vida nos contextos de moradia e trabalho. E é sobretudo nisso que se podem apreender os modos pelos quais insegurança e precariedade são engendradas no curso de vidas regidas pela imprevisibilidade das circunstâncias de momento e pela indeterminação das destinações desses percursos incertos. A cada momento, nos modos operatórios desses agentes estatais, administrativos e policiais, rotinas são desestabilizadas, arranjos são desfeitos, inseguranças são reiteradas, face à ameaça de algo que pode ocorrer a qualquer instante. É nisso que se pode apreender a forma como as “despossessões lentas” operam, forjando a experiência dessa “condição de deslocabilidade” de que trata Yiftachel (2018).
O fato é que essa maquinaria punitiva, administrativa e policial é tão mais onipresente e agressiva quando mais se expandem os circuitos informais de trabalho, de terra e moradia, ilegalizando uns e outros, entre formas abertas de criminalização e incriminação penal de práticas rotineiras da vida urbana. Essas micro-histórias nos sugerem ser uma proeza manter as vidas dentro dos protocolos da legalidade e das regras formais – os aparatos estatais, administrativos, judiciais (os meandros labirínticos das suas burocracias e profusões normativas) e policiais se encarregam de obstar as possibilidades de uma vida dentro do que se entender por ordem legal. Enfim, um Estado que produz a desordem – no mínimo embaralha os sentidos de ordem e desordem. E cabe aos moradores desses lugares refazerem os sentidos de ordem, de justiça, e de plausibilidade da vida.
Estas são questões que exigem a fina notação etnográfica. Estão na pauta de nossas pesquisas. Alguns de seus resultados são trabalhados nos textos que compõem este dossiê. Em termos teóricos, poderíamos dizer que estamos aqui no cerne da “produção das margens”, nos termos da antropologia do Estado proposta por Das e Poole (2004) – pistas para entender os modos como são fabricados os sentidos de ordem, de lei e justiça, justamente nos nexos que articulam violência e ordem, a lei e o extralegal, direito e relações de força, em um campo de disputa no qual o estado se faz e refaz em interação com outros modos de regulação ancorados nas formas de vida.
Agenciamentos práticos e conflitos nos meandros dos “espaços cinzentos”
Esses eventos que engendram precariedade e insegurança não são fatos brutos que recaem sobre sujeitos passivos, inteiramente objetivados pelas práticas de poder. Nos contextos situados em que ocorrem, esses eventos críticos acionam práticas diversas – práticas de contornamento ou de resistência, entre alianças e acomodações, mobilizando sociabilidades locais e redes de apoio. Quer dizer: esses eventos também “fazem cidade”, na medida em que ativam ou engendram práticas e redes de relações para lidar com os riscos e ameaças que pesam sobre suas vidas. Não poucas vezes, essas práticas transitam na zona cinzenta de formas de proteção articuladas, seja gente vinculada a organizações criminosas e aos negócios locais dos mercados ilegais, seja pelos jogos nebulosos das clientelas políticas dos poderes locais e suas máquinas partidárias, seja ainda pela influência política de forças policiais-milicianas cada vez mais frequentes nesses locais sensíveis do mundo popular. É aqui, neste registro, que a noção de espaços cinzentos lançada por Yiftachel (2009) pode ser mobilizada para qualificar a produção de territórios nesse jogo ambivalente e instável entre a lei e o extralegal, entre regras do direito e jogo bruto de forças, entre acertos negociados e violência.
Esses jogos ambivalentes de poder próprios dos espaços cinzentos se inscrevem nos hoje redefinidos mercados informais de terra e moradia. Esta a hipótese com a qual estamos trabalhando: conforme se expandem e se acirram as condições de precariedade e indeterminação quanto ao futuro dos seus habitantes, os contextos situados desses territórios abrem “janelas de oportunidade”, para usar o termo corrente entre operadores de mercado, pois é disso mesmo que se trata: gestão da precariedade e das urgências da vida como negócio e oportunidades de mercado, também como recurso de poder.
Trabalhamos essas questões em texto recente (Larissa e Telles, 2024): nas ocupações e nos assentamentos precários das periferias urbanas, é cada vez mais frequente a presença de grupos de indivíduos que agenciam os mercados irregulares de terra e moradia, abrindo-se a um intrincado jogo de poder e interesses inscrito na produção desses espaços. Os operadores desses mercados, de terra e moradia, são figuras nebulosas, que constroem seus recursos de poder pela rede de relações e agenciamentos políticos que são capazes de acionar para garantir a segurança e expansão de seus negócios: acordos e transações com fiscais da prefeitura, com policiais, com vereadores e suas máquinas partidárias, com “conhecidos” e “pessoas influentes” nas burocracias dos poderes municipais. Também com organizações criminosas que instalam seus pontos de venda de drogas nas imediações, quando não são elas próprias que se empenham nesses mercados de terra e habitação, diversificando seus negócios para lavagem de dinheiro e também estratégia para ampliar poder e influência nos territórios urbanos. Como dissemos nesse texto, “trata-se da captura de práticas e modos de morar populares por uma lógica de mercado predatória, por meio da qual as estratégias de sobrevivência de grupos populares funcionam como fronteiras por onde avança o mercado e seus diferentes operadores”. Em outros termos, “formas de vida e práticas de sobrevivência transformadas em fronteiras de mercado por via de expedientes que transitam entre legalidade e pilhagem, a lei e o crime, acordos e uso da força” (Larissa e Telles, 2024).
Entre, de um lado, a captura dos ilegalismos populares e sua transformação em negócio, fonte de lucro e poder e, de outro lado, as formas de controle e incriminação (os ilegalismos tipificados como crime), as tramas da vida são engendradas no fio da navalha entre esses jogos de poder inscritos no “mundão”, como se diz nessas paragens.
***
Nas ocupações e periferias da cidade, também nos centros do comércio popular, homens e mulheres lidam cotidianamente com os regimes de poder que afetam e também constituem esses territórios: sob diagramas diferenciados conforme espaços e circunstâncias locais, redes de relações e dispositivos de poder acionados por organizações criminosas, por poderes policiais, por empreendedores e operadores dos mercados informais e ilegais; também os agentes políticos implicados nesses mercados e seus vínculos com máquinas partidárias e máquinas burocráticas dos poderes públicos locais. Regimes de poder que, sob formas diferenciadas e sempre situadas, afetam e se entrelaçam com rotinas e protocolos da vida cotidiana. E ressoam no que Veena Das (2023) define como “textura do ordinário”, tecida nos equilíbrios frágeis, construídos no trabalho sempre relançado de costurar teias relacionais da vida cotidiana, também para construir, em contextos situados, acordos tácitos dos critérios do tolerável e não tolerável, do certo e do errado, do dizível e não dizível, entre silêncios e interditos. “Descida da violência no ordinário”, propõe Veena Das (2020), em uma formulação que nos dá uma chave de entendimento das formas como a experiência da violência (e sua ameaça) se inscreve(m) no cotidiano – violência policial conhecida de longa data e que agora entra em ressonância com violência dos grupos armados (organizações criminosas, gangues locais, seguranças privados, forças policiais de feitio miliciano), cada vez mais presentes no universo popular, disputando essas fronteiras de mercado2.
Essa “textura do ordinário” é também atravessada por miríades de coletivos atuantes em torno de agendas e temas variados. Nos contextos críticos (violência policial, despossessões, predações) que pontilham as formas de vida, em torno desses coletivos são ativadas redes de apoio e de aliados, de escala variada, mobilizando centros de defesa dos direitos humanos, representantes políticos, advogados ativistas, defensores públicos, também centros de pesquisa. Trata-se de uma teia de articulações e conexões que se fazem e refazem conforme casos e circunstâncias de momento, que atualizam e dão ressonância a experiências acumuladas no correr dos anos (Telles et al., 2020; 2024; Santos, 2024). Em torno desses contextos críticos e situações de conflito, operam como redes sociotécnicas, mobilizando diversos repertórios, saberes e competências, recursos técnicos, também recursos de poder para fazer a defesa política e jurídica de corpos afetados pela violência do Estado, para formular e dar ressonância pública a denúncias de violação de direitos humanos, para reconstruir fatos e construir provas da implicação e responsabilidade dos agentes estatais nas situações de violência e violação de direitos (Grupo Cidade e Trabalho, 2020; Santos, 2024); para acompanhar e apoiar grupos sociais em situações de conflito aberto, e não poucas vezes intervir nos esforços de mediação e negociação com agentes públicos e forças policiais mobilizadas nesses enfrentamentos (Santos, 2024).
Isso significa reconhecer que, na descrição dessas territorialidades, será preciso incorporar essas redes de apoio e aliados, de geometria variável, mais ou menos constantes conforme momentos e circunstâncias, que podem se desfazer para se recompor em outro momento. Essas redes “fazem território” na medida em que interagem com as práticas cotidianas, com as referências e repertórios de que os coletivos locais lançam mão em seu empenho para contornar e resistir ou se opor às predações e violências que recaem sobre suas vidas. E “fazem cidade” na medida em que constroem referências, mediações e recursos de ação que não se reduzem aos perímetros locais de conflitos territoriais, mas operam como caixa de ressonância de uma conflitualidade ampliada na escala da cidade e das transversalidades das situações vividas em territórios diversos.
Recuperando questões trabalhadas em pesquisas anteriores, os dispositivos de poder operam como verdadeiros campos de gravitação (e tensão) da vida urbana (Telles, 2017; Nasser, 2017). Se é em torno deles que é possível descrever os modos operatórios dos processos de despossessão, esses eventos se prolongam na “textura do ordinário”, se inscrevem nas histórias que circulam, nas experiências partilhadas, nos rumores e temores do que poderá advir e, sobretudo, nos arranjos cotidianos para lidar com as urgências da vida e pelos quais indivíduos e suas famílias buscam construir um sentido de plausibilidade de vida, um “mundo habitável” (Das, 2023) em meio às inseguranças e incertezas de seus percursos. E é também ao redor desses pontos de incidência dos dispositivos de poder que se constituem campos políticos de ação, de articulação e protesto, também os sinais de insubordinação, por vezes, insurgências, que se mesclam e interagem com essa nebulosa de relações nas fronteiras borradas do legal e ilegal, próprias dos espaços cinzentos em que essas histórias transcorrem.
A precariedade no sentido de Tsing é também construída nesse fio da navalha entre possibilidades de vida e a destruição de formas de vida. Poderíamos dizer que a defesa da vida e das possibilidades de vida é questão colocada nesses agenciamentos práticos pelos quais essas gentes vêm lidando com as urgências da vida. É isso que importa perscrutar para entender as tramas sociais e urbanas que vêm sendo tecidas nesse cenário de incertezas e instabilidades, também de violência, marca dos tempos que correm (Grupo Cidade e Trabalho, 2020).
Referências Bibliográficas
- ALEXANDER, Michelle. (2017), A nova segregação: racismo e encarceramento em massa São Paulo, Boitempo.
- BRAUD, Paula Pagliari. (2024), Gestão judicial dos ilegalismos: a prática da fiança e as audiências de custódia na regulação da ordem urbana em São Paulo. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, FFLCH-USP.
- CHAMAYOU, Gregoire. (2014), Las cacerias del hombre. Historia y filosofia del poder cinegético Santiago, LOM Ediciones.
- CHATTERJEE, Partha. (2004), Colonialismo, modernidade e política Salvador, EDUFBA.
- DAS, Veena. (2023), Texturas do ordinário. Fazendo antropologia à luz de Wittgenstein São Paulo, Editora Unesp.
- DAS, Veena. (2020), Vida e palavras. A violência e sua descida ao ordinário São Paulo, Editora Unifesp.
- ENDO, Ananda. (2024), A casa que o Estado dá é a cadeia!': uma etnografia sobre prisão em uma ocupação de moradia. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, FFLCH-USP.
- FELDMAN-BIANCO, Bela. (2015), "Deslocamentos, desigualdades e violência do Estado". Ciencia & Cultura, 67 (2): 20-25.
- FELDMAN-BIANCO, Bella. (2018), "Antropologia e etnografia: a perspectiva transnacional sobre a migração e para além dela". Etnográfica, 22 (1): 195-215.
- FOUCAULT, Michel. (1997), Vigiar e punir: Nascimento da prisão Petrópolis, Vozes.
- FOUCAULT, Michel. (2003), "A vida dos homens infames". In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IV: Estratégia poder-saber São Paulo, Martins Fontes.
-
GRUPO DE PESQUISA CIDADE E TRABALHO. (2020), "(Micro)políticas da vida em tempos de urgência". Dilemas: Reflexões na Pandemia, 56: 1-13. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-59
» https://www.reflexpandemia.org/texto-59 - HARVEY, David. (2004), O novo imperalismo São Paulo, Edições Loyola.
- KLEIN, Naomi. (2008), A doutrina do choque. Ascensão do capitalismo do desastre Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
- LACERDA, Larissa & TELLES, Vera S. (2024), "Fronteiras urbanas, mercados em disputa: jogos de poder e interesses na produção de espaços". Cadernos Metrópole (no prelo)
- MALLART, Fabio; TANIELE, Rui. (2017), "Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas". Ponto Urbe. Ponto Urbe. Revista de Antropologia Urbana da USP, 21 (21): 1-17.
-
MANTOVANI, Emiliano Teran. (2017), "A geopolítica do caos e o fim de ciclo na América Latina". Disponível em https://urucum.milharal.org/2017/06/21/a-geopolitica-do-caos-e-o-fim-de-ciclo-na-america-latina-emiliano-teran-mantovani/ Acesso em 15/08/2023.
» https://urucum.milharal.org/2017/06/21/a-geopolitica-do-caos-e-o-fim-de-ciclo-na-america-latina-emiliano-teran-mantovani/ - MBEMBE, Achillle. (2013), Critique de la raison nègre Paris, La Découverte.
- MBEMBE, Achillle. (2017), Políticas da inimizade Lisboa, Antigona Editores.
- NASSER, Marina Mattar Soukef. (2017), "Cracolândia como campo de gravitação". Ponto Urbe, 21: 1-20.
- PAIN, Rachel. (2019), "Chronic urban trauma: the slow violence of housing dispossession". Urban Studies, 56 (2): 385-400.
-
SANTOS, Renato A. (2020), "Redes e territórios: Ações de enfrentamento a processos de despossessão em tempos de pandemia". Dilemas: Reflexões na Pandemia, 93: 1-13. Disponível em https://www.reflexpandemia.org/texto-93
» https://www.reflexpandemia.org/texto-93 - SANTOS, Renato A. (2024), "Violências do Estado na produção de territórios, informalidade e redes de proteção". Cadernos Metrópole, 26 (59).
- SANTOS, Renato A. & GUERREIRO, Isadora. (2020), "Ocupações de moradia no centro de São Paulo: trajetórias, formas de apropriação e produção populares do espaço - e sua criminalização". In: MOREIRA, Fernanda A.; ROLNIK, Raquel. & SANTORO, Paula (orgs.). Cartografias da produção, transitoriedade e despossessão dos territórios populares São Paulo, LabCidade-FAU: 289-325.
- SASSEN, Saskia. (2014), Expulsions. Brutality and complexity in the global economy Cambridge, Harvard University Press,
- SCHILLER, Nina Click & CAGLAR, Ayse. (2018), Locationg migration: rescaling cities and migrants. Cornell University Press.
- SEGATO, Rita. (2014), Las nuevas formas de guerra y el cuerpo de las mujeres Puebla, Pes em el Arbor.
- TELLES, Vera S. (2010), A cidade nas fronteiras do legal e ilegal Belo Horizonte, Fino Traço.
- TELLES, Vera S. (2017), "Refugiados urbanos. Espaço urbano em tempos de urgências: ressonâncias…". In: REDONDO, Tercio (org.). Bertold Brecht. Do guia para os habitantes da cidade. Poema e Comentários São Paulo, Fundação Rosa de Luxemburgo.
- TELLES, Vera S.; GODOI, Rafael; MACHADO, Juliana & MALLART, Fabio. (2020), “Combatendo o encarceramento em massa, lutando pela vida”. Caderno CRH, 33: 1-16.
-
TELLES, Vera S. (2022), "Notas sobre las relaciones entre mercados, poder y violencia". In: BARTELT, D. D; AGUIRRE, R. & NAVARRETE, M. P. (orgs.). Poderes fácticos: captura del Estado, redes criminales y violencia en América Latina Ciudad de Mexico, Fundacion Heinrich Böll, pp. 135-146. Disponível em https://mx.boell.org/sites/default/files/2022-12/web_poderes-facticos-b.pdf
» https://mx.boell.org/sites/default/files/2022-12/web_poderes-facticos-b.pdf - TELLES, Vera S.; BRAUD, Paula P.; CARVALHO, Ada; ENDO, Ananda; KLINK, Ana Clara & SAVIANI, Flavia. (2024), "Tramas da vida e maquinaria punitiva: vidas enredadas nas malhas da justiça criminal". Revista Teoria e Cultura, 19 (1): 19-33.
- TILLY, Charles. (1996), Coerção, capital e Estados europeus São Paulo, Edusp.
- TROUILLOT, Michel-Rolph. (2001), "The Anthropology of the State in the Age of Globalization: Close encounters of the deceptive kind". Current Anthropology, 42 (1): 125-133.
- TSING, Anna L. (2005), Friction. An ethnography of global connection Princeton, Princeton University Press,
- TSING, Anna L. (2020), O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo São Paulo, N-1 Edições.
-
YIFTACHEL, Oren. (2018), "Displaceability. A Southeastern perspective". Disponível em http://mitdisplacement.org/symposium-oren-yiftachel
» http://mitdisplacement.org/symposium-oren-yiftachel - YIFTACHEL, O. (2009), "Critical theory and 'gray space': Mobilization of the colonized". City, 13 (2-3): 246-263.
-
1
. Nos termos de Rachel Pain (2019, p. 387), violências lentas, “uma violência que acontece gradualmente e fora da vista, é uma violência de destruição atrasada que é dispersada através do tempo e do espaço, uma violência de exaustão, que é tipicamente não vista como violência”.
-
2
. É questão que foge ao escopo deste texto, mas vale dizer: a presença de grupos armados (milícias, organizações criminosas, gangues) na gestão da violência (e da ordem) nas periferias urbanas, em vários cantos do mundo, é questão que vem pautando uma já vasta literatura sobre o tema, abrindo-se a discussões e controvérsias, seja em torno do que alguns definem como “soberanias fragmentadas”, seja em torno das relações entre violência e expansão dos mercados, atualizando questões propostas pela sociologia histórica de Charles Tilly (1985, 1996). Um comentário circunstanciado sobre essa literatura e suas questões pode ser encontrado em Lacerda e Telles, 2024.
-
Editora
Ana Paula Hey
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Set 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2025
Histórico
-
Recebido
02 Out 2024 -
Aceito
31 Out 2024
