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Trabalho e sindicalismo: memória dos 30 anos do movimento de Osasco

Work and trade union: memories from the 30 years of movement in Osasco

Resumos

Nesta entrevista, Regis de Castro Andrade conta sua experiência na famosa greve de Osasco de 1968, quando era membro do POC e lá trabalhava auxiliando a organização das bases operárias. Realça sua visão de que o movimento teve seus fundamentos na própria organização interna dos operários, com a ajuda dos estudantes, em contraposição a outras que vêem aquele movimento como fruto da articulação do movimento estudantil. Conta também algumas de suas experiências de clandestinidade, prisão e exílio nos anos que se seguiram, até a reorganização do movimento operário no fim da década de 70.

greve de Osasco; militância; repressão; clandestinidade


In this interview, Regis de Castro Andrade tells us about his experience in the famous strike in Osasco in 1968, in wich he was a member who helped in the organization of the moviment. He enfasizes his point of view that the moviment originated from an internal organization among the employees, who were only helped by the students. This idea is a contrary idea if compared to the statements wich asure that the movement was completelly organized by the students. Andrade also tells us about his experiences in the clandestinity, prison and expatriation wich last until the end of 1970's.

strike in Osasco; "militancy"; repression; clandestinity


DOSSIÊ MAIO DE 68 - ENTREVISTA

Trabalho e sindicalismo: memória dos 30 anos do movimento de Osasco

Work and trade union: memories from the 30 years of movement in Osasco

Regis de Castro Andrade

entrevistadores

Anna Maria C. Andrade; Fábio José B. Sanchez

Graduandos em Ciências Sociais na FFLCH-USP

RESUMO

Nesta entrevista, Regis de Castro Andrade conta sua experiência na famosa greve de Osasco de 1968, quando era membro do POC e lá trabalhava auxiliando a organização das bases operárias. Realça sua visão de que o movimento teve seus fundamentos na própria organização interna dos operários, com a ajuda dos estudantes, em contraposição a outras que vêem aquele movimento como fruto da articulação do movimento estudantil. Conta também algumas de suas experiências de clandestinidade, prisão e exílio nos anos que se seguiram, até a reorganização do movimento operário no fim da década de 70.

Palavras-chave: greve de Osasco, militância, repressão, clandestinidade.

ABSTRACT

In this interview, Regis de Castro Andrade tells us about his experience in the famous strike in Osasco in 1968, in wich he was a member who helped in the organization of the moviment. He enfasizes his point of view that the moviment originated from an internal organization among the employees, who were only helped by the students. This idea is a contrary idea if compared to the statements wich asure that the movement was completelly organized by the students. Andrade also tells us about his experiences in the clandestinity, prison and expatriation wich last until the end of 1970's.

Keywords: strike in Osasco, "militancy", repression, clandestinity.

São Paulo, 8 de junho de 1998. Em 68 eu estava militando no Partido Operário Comunista, o POC, que proveio da POLOP1 1 Política Operária. . Na verdade, o POC foi formado pela POLOP e por uma dissidência do Partido Comunista. Eu já estava militando desde antes, embora eu tivesse chegado aqui no Brasil, voltando da França, onde eu fui fazer o mestrado, em 67. No POC a minha experiência foi toda ligada a trabalho com movimento operário. Eu cheguei a ser dirigente do POC, mas eu acho que talvez a gente possa até falar disso mais pra frente. Por ora, o que talvez interesse mais seja a minha experiência junto ao movimento operário, sobretudo em Osasco, que era a minha base, meu centro de militância, meu centro de trabalho.

Bem, o que é essencial nisso? Vocês sabem que vivíamos em 68 sob uma ditadura que havia prendido, cassado ou expulso das organizações operárias a maior parte dos sindicalistas ativos, militantes, a maior parte das lideranças operárias. Há um número espantoso: são mais de 400, só entre 64 e 68. Todo movimento operário que tentava se reorganizar nos locais de trabalho tinha a maior dificuldade de fazê-lo porque a repressão era muito forte e os empresários estavam imersos numa cultura política extremamente autoritária (aliás eu nem sei se seria muito necessário que os militares viessem a ensinar os empresários a ter uma atitude autoritária com os operários, porque isso é tradicional na nossa história das relações do trabalho no Brasil; sempre foram retrógrados e autoritários. Hoje é que está começando a mudar um pouco isso, embora ainda permaneçam ranços da sua história). Mas enfim eu dizia, naquela época não só havia uma repressão externa muito forte da polícia e do serviço de segurança vigiando a emergência de novos líderes, como dentro das fábricas havia uma vigilância estrita por parte dos próprios empresários, o que dificultava muito o trabalho de reorganização que se tentava fazer. Obstante isso, havia condições de um início de reorganização já desde 66, 67, não só em São Paulo, como em Osasco, no ABC sobretudo. Vocês devem levar em conta que em 1968 nós não tínhamos ainda o AI-5, ou seja, a ditadura ainda não tinha mostrado todos os seus dentes, não tinha levado às últimas conseqüências a sua política repressiva. Isso seria feito um pouco depois, embora essa não tenha sido a principal razão, porque tanto o movimento operário, quanto o movimento estudantil, quanto o movimento de luta armada estavam crescendo. O AI-5 é uma resposta a essa re-emergência da oposição radical à ditadura militar. Mas vamos ficar um pouco no movimento operário, mesmo porque a minha experiência no movimento estudantil é pequena: eu estava presente, fazia pós-graduação, na época, na Maria Antonia, mas não fazia do movimento estudantil o centro do meu trabalho.

Como eu disse a vocês, eu estava em Osasco nesse tempo e em Osasco ocorreu ser eleito para o sindicato um companheiro que não era subserviente às autoridades, que era o José Ibrahim. Ele e seus amigos. Antes deles, em razão da repressão forte que se abateu sobre o movimento operário, em quase todos os sindicatos, uma grande maioria, os novos dirigentes, aqueles que vieram a suceder os reprimidos, eram amigos do regime, eram protegidos do regime, não eram verdadeiras lideranças sindicais. Por que a mudança? Em Osasco deu-se que o José Ibrahim foi eleito com uma turma ativa e absolutamente não estava disposta a se submeter às regras do regime autoritário. Essa é uma das razões. A outra é que Osasco é um município com uma tradição de luta operária grande. São grandes empresas, muitas multinacionais (já eram, na época) e com lideranças importantes, que no momento não se mostravam abertamente, mas que estavam lá e tentavam ampliar o seu círculo de influência dentro das fábricas.

As bases do movimento operário, animadas inclusive pela vitória do José Ibrahim no sindicato, começaram a pressionar e dar sinais para a direção sindical de que estava disposta a enfrentar os riscos e os perigos de um movimento grevista. Isso desde 67. Foi com base na observação do que ocorria já desde 67 em Osasco que nós, do POC, desenvolvemos nosso trabalho. Tratava-se de não apenas apoiar o sindicato ou a nova direção sindical inclusive num movimento aberto de greve, o que sabíamos nós todos seria tomado como um ato de rebeldia inaceitável e fortemente reprimido, tenho certeza disso (a direção do sindicato sabia disso), como também de, aproveitando o ascenso do movimento operário ali, procurar desenvolver em cada local de trabalho organizações clandestinas enquanto organizações, embora os seus militantes não fossem clandestinos, pois trabalhavam amplamente. Mas as organizações sim eram clandestinas na medida em que nós tínhamos certeza que, uma vez aparecendo, tomando a frente do movimento no sindicato, essas lideranças seriam presas, ou iriam fugir etc. Então, a nossa idéia era criar condições de organização nos locais de trabalho, fora do sindicato em conseqüência, que tivessem como resistir à vaga repressiva que se abateria sobre nós com toda certeza. A nossa proposta era de formar em cada local de trabalho, em cada fábrica comissões operárias, que eram organizações por empresa mas que tinham uma dupla natureza: por um lado organizar e fazer avançar as demandas econômicas dos trabalhadores e acolher enquanto comissões, enquanto organizações operárias, lideranças que pudessem representar os trabalhadores ante os empresários, por exemplo, em questões internas da fábrica, como também, e por isso eu disse da sua dupla natureza, eram centros que procuravam organizar uma espécie de vanguarda nos locais de trabalho. Eram organizações políticas nesse sentido. Há um vago parentesco com a idéia de soviets, embora os soviets tenham sido, depois, tomados pelos bolcheviques, pelos leninistas como células do poder, base do Estado soviético. Nós não tínhamos essa pretensão de transformar as comissões de fábrica em soviets, no modelo soviético, mas havia algo disso por causa das condições de repressão que a gente vivia, ameaçados de dissolução iminente por demissão das lideranças, por prisão por parte da polícia etc. Nós tínhamos claro que essas comissões de fábrica deviam ser solidamente organizadas, militantemente organizadas e clandestinas do ponto de vista dessa dimensão política do seu trabalho. Nas comissões, além de fazermos agitações em torno das questões econômicas, além de fazer um trabalho de organização tão ampla quanto possível das bases para fins de tocar avante as reivindicações econômicas, nós fazíamos cursos de marxismo, fazíamos cursos a respeito de movimento operário e procurávamos mostrar a necessidade de adotar uma estratégia de organização semiclandestina com um compromisso de militância muito mais forte do que se veria no sindicato. Procurávamos mostrar que era necessário que os companheiros se engajassem de maneira muito ativa e permanentemente e não apenas em momentos de ascenso por ocasião dos dissídios, e entre os que se destacavam nessas organizações operárias a gente procurava atrair quem parecesse interessado e se mostrasse disposto a entrar para o partido. Aliás, devo dizer que esse foi um trabalho intenso e não foi invenção nossa, isso já existia em Osasco desde 67, promovido pelas lideranças operárias do local, algumas delas não organizadas inclusive, e não tinha outra maneira de trabalhar; como trabalhar a não ser dessa maneira? Eu sei que em 65, 66, o sindicato estava nas mãos dos "pelegos", não eram lideranças. Eram dirigentes protegidos pelo regime, era outra coisa, eles não tinham o respeito da massa, não tinham respeito nenhum, não lideravam coisa nenhuma, não eram líderes.

Uma outra característica das comissões de empresa era que as reuniões eram feitas fora do local de trabalho. Era impossível se reunir na empresa, tava cheio de "dedo-duro", então as reuniões eram feitas em fins-de-semana nas casas. Os sábados e domingos em fins de 67, começo de 68 eram ativíssimos, o pessoal passava o tempo todo se reunindo aqui e ali, as principais lideranças emergentes ali, não necessariamente do POC, mas de qualquer organização, ou mesmo não organizadas, se encontravam em toda parte, iam nos campos de futebol de várzea para tomar cerveja, discutir no bar, e era um trabalho de conscientização, de organização e de estímulo permanente. Era um trabalho extremamente importante. Sem esse trabalho seria impossível entender a eclosão da greve de 68, porque foi através dessa formação e organização de base, fora dos locais de trabalho e por lideranças muito politizadas- mesmo porque a repressão e a pressão política que pesava fortemente sobre nós ajudava, acelerava a politização do movimento - que a influência das principais lideranças das várias fábricas se ampliou: muita gente estava envolvida e muita gente dava crédito para essas lideranças. Ouvia, respeitava essas lideranças. Elas eram legítimas, do local, conhecidas pelos trabalhadores e não eram gente que chegou lá de repente, que eles não sabiam quem eram. Nós ajudávamos essas lideranças o quanto podíamos e tínhamos o nosso próprio trabalho, através de trabalhadores que estavam ligados a nós: nesse trabalho, pouco a pouco, companheiros operários iam se filiando ao partido, vários se juntaram a nós e trabalhavam conosco na atividade de organização. É claro que nós tínhamos reuniões do partido independentes das reuniões operárias mas nós ajudávamos as comissões operárias. A nossa linha era organizar comissões operárias que não seriam necessariamente do partido, pelo contrário, era interessante que fossem organizações bem amplas, no sentido de abrigarem gente de vários partidos, várias tendências.

Eu acho que essa linha de trabalho, essa orientação de trabalho foi bem sucedida e, mais uma vez eu digo, isso aí não foi invenção nossa, a gente tentou aperfeiçoar o quanto podia, mas este foi um movimento, a meu ver, de raízes de massa, lideranças de massa, lideranças locais. Vários deles tinham contato com o partido, mas o movimento teve a força que teve e a amplitude que teve, a ponto de desembocar na greve de 68, porque era sobretudo liderado por trabalhadores do lugar, respeitados e conhecidos ali. Nós ajudávamos como podíamos: tínhamos lá um mimeógrafo, fazíamos panfletagem de madrugada, pixações, dávamos cursos quando éramos solicitados, curso disso, curso daquilo sobre história do movimento operário, história do marxismo, reuniões de discussão a respeito da situação política etc. Essas atividades eram dirigidas a quem quisesse, mas claro que um trabalhador de base que está começando a entrar no movimento, um pouco verde, um pouco temeroso, tímido etc. não vem. Quem vai é porque já está interessado, já tem uma certa história de participação e de envolvimento com esse trabalho. Quem ainda está muito no começo não vai. Até porque qual era o controle para saber se não havia gente infiltrada lá dentro? O controle era o conhecimento pessoal mesmo dos companheiros operários, não tinha outra possibilidade, ninguém tinha carteirinha pra apresentar. Claro que havia sempre o risco, mas eu não me lembro de nenhum caso de infiltração, de delação por exemplo "fulano de tal era agente policial". Não me lembro, funcionava bem. E as reuniões e cursos eram feitos em casas, casas de operários, na nossa casa onde morávamos, eu morava lá, tinha uma casa que depois da greve se transformou num aparelho. Entrou na clandestinidade, mas isso eu vou falar em seguida.

Bom, a situação econômica e a situação de revolta contra a repressão, contra abusos cometidos contra companheiros, truculências dos empresários nas fábricas, sabe essa coisa de permitir ir ao banheiro duas vezes por dia, com horários rígidos e condições de trabalho realmente precárias, absoluta impossibilidade de fazer qualquer reivindicação, salários arrochados, tudo isso, levou a uma insatisfação crescente e em 68 o sindicato resolveu decretar a greve, já sabendo qual seria a reação. Não foi uma aventura, já se sabia qual era a disposição, o estado de espírito das principais empresas. "Dá pra fazer". Não adiantaria fazer uma conclamação à greve e ninguém comparecer, ninguém atender. A gente sabia que a coisa ia ser assim: todo mundo tava como que demandando explicitamente e isso é o que se esperava do sindicato; ou o sindicato liderava esse movimento ou cairia no desprestígio, seria deslegitimado perante as bases. Havia um clima muito efervescente de revolta, tanto pelas questões econômicas, quanto pela repressão política que permanecia.

A gente fez parte desse trabalho. Nós do partido e os operários do partido estávamos muito mais à disposição para ajudar no que fosse possível do que tentar liderar o movimento, isso seria impossível. Ademais nós sabíamos que não tínhamos sido nós que organizamos aquilo, nem éramos nós os líderes da massa operária, e sim os sindicalistas eleitos pelos trabalhadores.

Foi decretada a greve e a nós do partido coube fechar duas fábricas, uma delas era a fábrica da Granada, fósforos Granada, e a outra era uma cujo nome me esqueço agora, era ao lado. Cada uma com 200 operários, fábricas pequenas. Isso de comum acordo com os sindicalistas. Tratava-se de entrar em grupo, nós do partido e mais alguns companheiros do lugar, no refeitório na hora do almoço (nós sabíamos tudo como era, a hora etc.) e conclamar os trabalhadores, que estavam todos reunidos naquele momento no refeitório, a parar o serviço e se dirigir ao sindicato. Nessa altura os operários da Cobrasma já estavam parados, a Braseixos tava parada também e o caminho entre a Granada e o sindicato passava por ali, por entre as duas, pela avenida central. E eu fiz o discurso, até, apresentando a situação, dizendo que os companheiros já tinham parado, o sindicato já tinha decretado a greve e conclamando a que eles se retirassem imediatamente, parassem o trabalho e se dirigissem para o sindicato, para engrossar as fileiras. E foi feito isso. Nós, quando tentamos entrar e também quando tentamos sair, nós, digamos os autores dessa ação, fomos barrados pelos seguranças das fábricas. Mas o pessoal já estava preparado pra isso e então saiu porrada, saiu violência, mas não saiu tiro. Eles não podiam com a gente porque eles eram 3 ou 4 e nós éramos uns 10, 15. E na saída então, eles não podiam fazer nada porque o pessoal todo veio atrás. Todo mundo... Saímos e fomos para o sindicato, uma caminhada de uns 15 minutos talvez. Passamos em frente da Cobrasma onde o pessoal tava todo no muro. Eles tinham ocupado a fábrica, o pessoal lá tinha ocupado a fábrica. Então foi a maior festa, confraternização, uma tremenda festa, clima de grande solidariedade, de fraternidade.

A partir desse momento, nós, que não éramos do local, que tínhamos aparecido, fotografados, tínhamos sido descritos em todos os detalhes da nossa aparência física, quem éramos e de onde vínhamos (eu particularmente e mais alguns outros) tivemos que sair do local, senão seríamos presos naquela dia mesmo. Entramos na clandestinidade. A partir desse momento a gente acompanhava as coisas, eu o os companheiros que estavam mais em risco, mas já não nos mostrávamos nas reuniões de sindicato, por exemplo. Isso seria ser preso, seria uma besteira. Os próprios companheiros diziam: "é melhor vocês não aparecerem porque isso até pode ser "contaminativo". Os jornais poderiam tomar a nossa presença lá como prova de que se tratava não de um movimento com raízes no lugar, de um movimento com participação de massa e com apoio, mas de uma conspiração comunista. Isso seria ruim. Seria ruim se houvesse qualquer motivo para que eles pudessem demonstrar, provar isso. E, sobretudo porque não era verdade, não foi uma conspiração externa, foi um movimento que saiu lá mesmo. Tanto é que teve uma adesão enorme. Eu não sei se há números precisos sobre isso, mas a adesão foi enorme nas principais fábricas.

O grande centro de animação e de liderança da greve foi a Cobrasma e o principal líder lá, que trabalhava com o Zé Ibrahim, mas que fazia um trabalho na Cobrasma e não tanto no sindicato, era o Zé Barreto, o Zequinha. Bom, o que eles fizeram? Prenderam vários diretores lá da Cobrasma e deixaram como reféns. Instalaram lá barris de combustível ou explosivos, não sei exatamente (esses detalhes eu nem queria saber mesmo na época) prevendo a invasão por tropas e eles iam explodir aquilo lá. Estavam realmente muito radicalizados e dispostos a tudo. Tanto é que fizeram essa ação extremamente ousada e arriscada que é prender os diretores lá, tomá-los como reféns e declarar à polícia, que chegou imediatamente: "Nós não vamos sair. A fábrica está ocupada e enquanto não se resolver o problema, as nossas reivindicações, a fábrica fica em nossas mãos. Podem voltar." E a polícia foi embora. Não sabiam exatamente o que fazer e nem podiam. Para entrar lá precisava de tropa, de muita força, não era assim. Mesmo porque os muros eram muito altos e o portão estava trancado, como é que iam entrar? E outra, como eu dizia, a grande maioria dos trabalhadores, não sei se a maioria (a maioria é exagero), mas muitos trabalhadores ficaram lá dentro, correndo os riscos de ficar lá dentro. A situação estava cada vez mais explosiva, a gente sabia, a qualquer momento isso aqui vai se transformar num campo de batalha e com risco de vida para todo mundo. Todo mundo sabia disso. Dois dias depois o governo resolveu agir. Invadiram a Cobrasma, felizmente não houve mortos e foram todos presos: o pessoal que tava lá dentro. O pessoal do sindicato, vários fugiram, outros entraram na clandestinidade e outros foram presos. Mas naquele momento o regime preferiu não levar as condições às últimas conseqüências, ou seja, deixar preso durante muitos anos e abrir processo judicial, processo na justiça militar, coisas desse tipo, essas coisas contra a segurança nacional. Essas coisas seriam feitas depois do Ato 5, aí sim. Aí esses caras provavelmente seriam até mortos. As lideranças principais seriam mortas. Mas na época ficaram presas algum tempo e soltaram. E voltaram todos pra militância, aí muito mais politizados, mais clandestina, engrossaram a VPR2 2 VPR - Vanguarda Popular Revolucionária, do Lamarca. , a ALN3 3 ALN - Aliança Libertadora Nacional. , o POC, os trotskistas, a coisa se politizou pra valer mesmo. É claro, a direção do sindicato foi dissolvida, alguns estavam escondidos, outros tinham entrado em partido e tinham saído do bairro - não dava mais pra trabalhar lá. Nós continuamos o nosso trabalho lá numa escala muito mais restrita, mesmo porque vários tinham sumido dali, foram presos, se desinteressaram, caiu o grau de mobilização da massa, mas nós continuamos fazendo organização, fazendo cursos e com uma característica de proselitismo político mais acentuada. A gente trabalhava em termos estritamente clandestinos, e nós a essas alturas, eu por exemplo, e companheiros meus já não podíamos mais aparecer. Mas a gente aparecia, a gente tava lá por Osasco, depois já não, não dava mais, a gente tinha um aparelho lá e fazia um trabalho bem clandestino. Eu tive que rapar o bigode, cortar o cabelo e etc. Mas o grau de mobilização caiu muito. O Zé Barreto, de quem eu era próximo, de quem eu gostava muito, era um homem alto, muito vivo, alegre, brincalhão, inteligente pra burro, baiano, bonito e muito generoso. Uma figura extraordinária; eu gostava muito dele. Ele entrou para a VPR e depois durante um bom tempo eu fiquei sem vê-lo, absoluta clandestinidade, nestas alturas. Envolvido em ações armadas e coisa desse tipo, na VPR. Até que numa ocasião eu fui à Bahia, em Salvador, foi no começo de 1970, primeiro semestre de 1970, vendo lá questões do partido, e à noite fomos eu e um companheiro meu à cervejaria na praia, nem me lembro bem exatamente onde era, nem como chamava, e encontro lá com o Zequinha, tava lá tomando cerveja. Ah, foi uma festa e tal, conversamos, mil coisas a contar, e combinamos de nos encontrar no dia seguinte. Daí conversamos só nos dois, andando pela praia, sobre o que faríamos. A VPR já estava muito mal porque os militantes da VPR já estavam fazendo treinamento de guerrilha no vale do Ribeira e já tinham sido presos, já tinham fugido, já tinha matado aquele soldado4 4 Atentado contra o sentinela da guarita do QG do 2° Exército, no Ibirapuera. , tinham trocado tiroteios lá com o pessoal e tudo, enfim uma outra história, que não conheço bem, porque não era meu assunto. Mas o fato é que a VPR estava desorganizada já, e por isso o Zequinha foi pra Bahia porque lá era a terra dele, conhecia pessoas e tinha mais recursos pra se esconder e sobreviver. Estava lá, mas ainda em contato com a organização, a VPR. Mas estava muito descontente e dizia:

- "Pois é, eu moro na periferia, lá não tem muito o que fazer, estou um pouco encostado, um pouco descontente."

- "Bom, se você quiser voltar pra São Paulo a gente organiza lá a tua vida, uma casa pra você morar, condições de sobrevivência e tudo isso... "

Foi um oferecimento do partido. E ele topou e disse:

- "Tá bom, eu converso com meu pessoal aqui, você conversa com o seu pessoal lá... "

E marcamos um encontro numa cidade aí de Minas pra acertar os detalhes, dentro de uns 15 dias, 3 semanas. Marcamos o encontro e eu fui, como previsto. Fui e ele não apareceu. Fiquei lá o dia inteiro aonde a gente tinha marcado, não apareceu. Aí eu voltei pra São Paulo, fazer o que, não posso ficar lá eternamente esperando que ele chegue, inclusive é perigoso. Se ele não aparece é porque, eu estou imaginando, aconteceu alguma coisa. "Então, sobretudo é preciso que eu não fique mais aqui. Tenho que sair rápido." Mas nesse meio tempo ele tinha sido contactado pelo pessoal do MR8 que estava abrigando o Lamarca na época e eles se encontraram não sei aonde, o Zequinha e o Lamarca e decidiram que valia a pena tentar abrir uma frente de trabalho, inclusive com possibilidade de treinamento armado e tudo, no interior da Bahia. E foram pra lá, os dois só, e foram mortos os dois lá. O sujeito que morreu junto com o Lamarca era o Zequinha. Foram assassinados. Foi uma morte estúpida, um erro político absolutamente inexplicável, da parte do Zequinha. O Lamarca eu não conhecia. Entrar numa aventura completamente suicida como essa aí é inexplicável.

Bom, a partir deste momento, o movimento operário entra numa fase de depressão, de ausência quase total de mobilização... nós já vivíamos sob o AI-5 nesta época, fins de 69, e entre 68 e 78 não acontecia quase nada mais. Aí a repressão era selvagem mesmo, vocês sabem disto e não havia nenhuma condição de retomar o trabalho de organização e mobilização operária tal como tinha sido feito em 67, 68 em Osasco. Era impossível, isto tinha mudado inteiramente. Não só do ponto de vista de um certo estado de espírito das bases operárias, que estavam deprimidas, como pelo fato de que a repressão se acentuou muito e as condições de trabalho eram praticamente inexistentes. A única coisa que se podia fazer era proselitismo individual, politização junto a alguns companheiros, mas em escala muito pequena e sem a menor possibilidade de organizar qualquer coisa que abrangesse um número maior de trabalhadores. Sobretudo era impensável pensar em ações de massa, que por definição não são clandestinas, que saem, e que aparecem. Todo mundo sabia que o movimento do tipo que ocorreu em Osasco, desta vez, seria catastrófico, levaria definitivamente a mortes e ao desaparecimento de gente, prisões por muito tempo. Então o movimento operário iria retomar a partir do fim dos anos 70 no ABC.

Mas isso aí já é outra história, outra geração, outras formas de luta, outras lideranças. O movimento de Osasco precede e está vinculado de alguma forma à emergência - não estou explicando uma coisa pela outra - da luta armada. Há vinculações entre o movimento de Osasco e as organizações da luta armada. Mas em 78 não há nenhuma vinculação entre uma coisa e outra no movimento operário. Está desligado. Pelo contrário, ele só começa a reaparecer quando as lideranças operárias se desvinculam de qualquer projeto deste tipo, mesmo porque as organizações armadas já tinham sido destruídas, demolidas, não havia mais nada. Tinham se revelado um fracasso político. Em 76 o Lula começa a aparecer, já não têm nenhuma relação com aquela esquerda revolucionária, nem com o PC, nem com as lideranças políticas do MDB. Em 1978 a origem do movimento é local e é operário realmente, origem da organização sindical dos trabalhadores. É bem interessante fazer esta constatação.

Mas agora talvez o que vocês pudessem fazer era perguntas que especificassem isso ou aquilo. Porque o máximo que eu poderia fazer era reflexões e análises gerais que me ocorrem, mas não sei se vale a pena. Talvez fossem o caso de trocar idéias.

Você falou da relação da greve de Osasco com a luta armada. Tinha muito operário na luta armada?

Muitos não, mas alguns. Várias das lideranças principais, por exemplo o Zé Ibrahim, o Zé Barreto, o Roque Aparecido da Silva, saíram de lá, entraram na clandestinidade e se alistaram em organizações de luta armada. Alguns continuaram lá, foram presos, soltos. Continuaram lá, ligados a nós, que não estávamos envolvidos com operações como essas que a VPR e a ALN estavam fazendo. Mas de qualquer forma, a possibilidade da luta armada, a possibilidade do uso de armas, era uma possibilidade presente no movimento operário. Havia, por exemplo, segurança armada em certas reuniões, alguns companheiros eram designados para ficarem armados e para a eventualidade de uma ação repressiva da polícia. A polícia chega e são enfrentados à bala, esta era uma coisa inclusive aceita como uma coisa natural e necessária para os trabalhadores. Era necessário que fossem organizados, fazia parte do clima da época. Ou seja, essa ditadura pode sim e talvez deva ser sim enfrentada com armas, em última análise.

A ação na Cobrasma foi um claro exemplo disso. A ocupação com tomada de reféns, a preparação de demolição da fábrica e tudo. A violência era um instrumento de luta presente, no horizonte de todo mundo. No ABC o horizonte não era esse. No ABC o horizonte era a formação de um partido para fazer política, política aberta, política eleitoral inclusive. Com raízes no sindicato, raízes de massa, com princípios, mas sem nenhuma perspectiva de uma ação revolucionária e de uma estratégia de confronto armado com a ditadura. E isso porque a ditadura em 78 já era muito mais branda. 78 são os anos pós-Geisel, nós estávamos já em fase de abertura. Lenta, gradual e segura, como definido por eles. As últimas mortes já tinham ocorrido, e tinham provocado a enorme mobilização, comoção popular ampla, a morte do Herzog, o jornalista, e do Manoel Fiel Filho, que era um operário trotskista. Provocaram missa na praça da Sé, grande manifestação da imprensa, opinião pública, uma coisa forte. Pois bem, isso já tinha ocorrido e nós já vivíamos em um outro Brasil. Todo mundo já sabia que o Brasil estava em curso de mudança irreversível, a ditadura estava com os dias contados e ia demorar mais do que a gente esperava, mas estava com os dias contados.

Eu queria que você contasse um pouco porque você saiu do Brasil, em que ano foi?

Eu saí em 74.

E você continuou mantendo correspondência com os movimentos aqui?

Não, o POC foi quase totalmente destruído como os demais, se dissolveu. Eu fiquei preso de 70 a começo de 72. Pouco depois do evento do Zequinha. Quando eu saí da cadeia, em 72 a coisa estava feia. Ainda sob o governo Médici, então a repressão era pesadíssima e eu fui preso mais duas vezes, até que na terceira vez, a propósito de uns documentos que acharam na minha casa (alguém disse que eu tinha os documentos e tinha mesmo) foram lá e pegaram os documentos. Eu ia mandar os documentos pelo correio e foram pegos no correio, uma coisa assim, eu não me lembro exatamente como foi. O fato é que me prenderam de novo. Dessa vez eu tava lá na OBAN5 5 OBAN - Operação Bandeirantes -, nome do grupo especial de repressão à manifestação política situado em uma delegacia da Rua Tutóia. , preso, depois de ter levado pau outra vez, (eu já não agüentava mais esse negócio) e aí desceu o delegado, chegou na cela e falou:

- "Olha, Regis, ou você vai embora do país ou você vai pro Perus."

Onde tinha o cemitério deles lá, clandestino. Ele não estava brincando, não, ele estava falando sério. E eu:

- "Eu estou aqui preso, como é que eu vou?"

- "Você vai sair, mas vai direto lá pra fora."

E de fato os caras me entregaram o passaporte no aeroporto, ficaram lá esperando o embarque, eu sem o passaporte. Chegaram os caras e me deram o passaporte, pra ter certeza que eu fui mesmo. Quer dizer, eu fui mandado embora, só que eles não queriam assumir que estavam exilando gente. Parecia que eu é que estava saindo por espontânea vontade, mas na verdade eu tinha que sair mesmo em qualquer hipótese porque se eles não me mataram lá, poderiam me matar a qualquer momento, em seguida. E quase certeza de que seria mesmo morto, a não ser que eu não mostrasse o nariz pra fora de casa mais. Porque a repressão tinha um especial pavor de intelectuais envolvidos com a esquerda e com o movimento operário. Eles achavam que esses eram os elementos mais perigosos de todos, mais do que a luta armada, mais do que aqueles que estavam envolvidos em assalto a bancos etc. O POC fez assalto a banco também, eu pessoalmente não fiz, mas o POC fez, por questão de dinheiro e não por questão de propaganda armada. Eles achavam que nós, gente com curso superior, envolvidos com a esquerda, éramos realmente os responsáveis pelo que estava acontecendo e sem nós a coisa tendia a se diluir sozinha. Nós éramos os eixos, as forças organizadoras dessa coisa toda, o que é uma superestimação violentíssima do nosso papel. E eu procurei, nas coisas que eu estou falando a vocês, mostrar que nesse movimento de resistência à ditadura, sob as suas várias formas, em Osasco, luta armada, depois tal como começou a acontecer, há um elemento de empuxo de base muito forte, não suficiente, ainda restrito, localizado, mas em nenhum momento se tratou de um... é difícil dizer, porque na verdade quando o movimento se politizou inteiramente e as organizações se fecharam numa luta clandestina, nessa guerra suja, aí nós perdemos mesmo o contato com os trabalhadores, não tinha... mais nada. Aí a nossa perspectiva política, de modo geral, se modificou um pouco, essencialmente se tratava de se organizar para confronto armado a partir de foco, o foco era importante nesse momento, para nós, que iria, tal como ocorreu em Cuba, alastrar o fogo nos vários setores que estivessem descontentes. E na nossa análise o Brasil todo estava descontente com a ditadura, o que seguramente não era verdade. E para complementar essa análise, era, a nosso ver, mais ou menos claro que a burguesia estava numa crise estrutural, ou seja, debilitada e portanto vulnerável a um golpe, a um golpe forte. Claramente a transposição para aquele momento de uma realidade que era cubana. O que aconteceu em Cuba? Fidel e seus amigos conseguiram atear fogo no país inteiro porque Batista era realmente um ditador odiado por todos os cubanos, com exceção dos seus amigos mais próximos, os policiais, os militares corruptos etc. Uma crise tremenda, aquilo tinha virado um bordel e o governo era tão fraco que sequer conseguiu tirar o Fidel de Sierra Maestra. Era um negócio pequenininho e ficaram lá, infringindo derrotas sucessivas às expedições do Exército que iam lá pra reprimir. Crescendo, crescendo, crescendo, até que... bom, era um pouco isso que a gente tinha em mente àquela época, um engano terrível. Tínhamos a idéia de crise estrutural, crise estrutural da economia, não se tratava de uma crise conjuntural, não tinha mais condição de retomar o desenvolvimento capitalista no país, o capitalismo morreu aqui. Um engano porque nós estávamos justamente no início do milagre econômico e uma subestimação tremenda da capacidade repressiva do governo brasileiro, do Exército, da Polícia Militar, da Polícia Civil. O apoio que as forças da repressão receberam dos grandes empresários. Enfim, do ponto de vista estratégico foi um desastre a tentativa de luta armada no Brasil. Essa é a minha avaliação.

Você falou das bases na greve e na luta armada também. Uma questão que ficou com relação a 68 na Maria Antônia é que este ano ficou marcado como o ano de revoltas estudantis. Na França ficam com os estudantes e não se fala na greve geral que parou a França...

Eu acho que o clima político é bem semelhante, o da França e o de cá. Na França houve um entendimento mais próximo, mais direto, mais explícito entre o grande movimento estudantil e as grandes greves operárias que pararam o país. Não é que houve uma organização conjunta, mas o movimento que começou com os estudantes era reconhecido pelos trabalhadores como indício de uma insatisfação nacional geral e da qual eles participaram também, então vamos engrossar essa coisa e apresentar nossas próprias reivindicações, nosso descontentamento. Eu acho que no Brasil havia isso também, se bem que aqui provavelmente o movimento operário tomou a dianteira, quer dizer o movimento estudantil foi pelo menos paralelo ao operário, sobretudo em Osasco, que teve um impacto forte.

Aqueles sindicalistas que a gente viu na palestra disseram que a greve foi em maio por influência do movimento estudantil. A data-base seria em novembro, alguma coisa assim...

É, a data-base era em novembro, mas olha, eu não acredito muito nessa análise. Que houve influência do movimento estudantil, sem dúvida, mas de parte a parte e eu acho que explicar o movimento de Osasco pelo movimento estudantil é um pouco exagerado porque, como eu disse a vocês, o movimento de organização e mobilização das bases operárias dos trabalhadores em Osasco tinha começado antes e era muito intenso. Isso eu sei porque eu vi. Antes que o movimento estudantil tivesse partido para a rua e assumido a dimensão que assumiu em 68.

Mas tinha também o que chamaram de operário-estudante, o José Ibrahim, por exemplo..., que são figuras que conseguem canalizar ou orientar melhor a coisa...

É verdade, porque eles tem uma capacidade maior, de verbalizar e... é, eu não havia mencionado, mas isso é verdade sim. Mas isso não significa que o movimento estudantil explique o movimento operário, eu acho um pouco excessivo isso aí, porque, por mais que houvesse lideranças que eram operárias ao mesmo tempo que estudantes, a grande maioria, a grande massa não era operário-estudante, eram operários. E eles participaram da greve e dos riscos inerentes à greve, o que é um sinal do seu engajamento e de uma vontade de rebelião que era genuína, não é uma coisa artificial, que surge de mera ideologia, não é isso. E eu acho que essa é a beleza de Osasco, a meu ver, a grande lição de Osasco. Osasco e Contagem em Minas, que tem uma história semelhante... Eu acho interessante notar que não havia da parte dos operários resistência à nossa presença. Nós não nos apresentávamos lá como intelectuais, mas como gente escolarizada, gente de fora, que ia lá ajudar, estudantes... não havia resistência. Não havia essa atitude obreirista de recusa de tudo o que não é operário. Eu pelo menos nunca senti isso.

Tinha relação do Ibrahim com o POC?

Não.

E do sindicato?

Do sindicato sim. A gente conhecia o Ibrahim, tivemos presos juntos lá no Tiradentes, mas ele nunca foi do POC. Ele foi direto pra VPR.

Quando foi a fundação do POC?

Eu não conheço exatamente essa história, porque eu entrei no POC em 67. Eu vinha da França, e já estava organizado. Eu não participei da POLOP e desse processo de fusão com comunistas do Rio Grande do Sul. Mas essencialmente o POC veio da POLOP, com base principal em São Paulo e de Minas, dissidência comunista no Rio Grande do Sul, razoavelmente forte (PC), e no Rio, alguns, menos importante, mais também no Rio. Essa é a origem: São Paulo, Minas, Rio Grande, Rio. Era um partido que se definia como marxista-leninista, com programa de tipo inssurrecional, bem mais do que foquista e portanto com uma perspectiva de mais longo prazo. Nós tínhamos relações fraternais com as organizações armadas. Eu era durante algum tempo a ponte com essas organizações e nós éramos convidados a participar das assembléias, reuniões etc. como observadores.

Vocês do POC, quando foram à Granada, já haviam sido avisados da parada da Cobrasma?

Claro, pois o movimento já tinha eclodido, e ainda mais nós sabíamos exatamente quando e como as coisas seriam feitas.

O POC de Minas teve relação com o movimento de Contagem?

Teve, mas eu não tenho detalhes, nem podia ter mesmo, porque a gente mesmo procurava não ter muita informação do que acontecia aqui e ali por razões de segurança. Agora eu queria chamar atenção para a diferença em termos do que aconteceu com as lideranças depois deste movimento de 68 e depois o que aconteceu em 78, 79, 80. Em 68 as lideranças operárias não tinham a perspectiva de formar um partido, mesmo porque não havia condições políticas para formar um partido que pudesse agir às claras, fazer um jogo político claro, disputar eleições. Não havia no horizonte destas lideranças para além da luta econômica que eles estavam travando, não havia esta perspectiva. Em 78, pelo contrário, o que surgiu do movimento operário daquela época foi o PT, nada mais nada menos. Quer dizer, um partido de massas com base sobretudo nos sindicatos mas com uma vocação de ampliação de bases populares, desde o começo se sabia disso, para o fim de dotar o movimento dos trabalhadores de um instrumento político, estritamente político e não mais sindical apenas, coisa que nós nunca tínhamos tido. Então, o que aconteceu é que as lideranças de 68 acabaram entrando nas organizações armadas, vários foram mortos, e desapareceram e entraram para clandestinidade, saíram fora do movimento, se desinteressaram e se desfez. O movimento de 68 deixou traços e marcas na cultura política como movimento bonito, com uma história de unidade, de coragem não só de lideranças mas da classe operária como um todo, mas não mais que isso. Não deixou traços em termos de organização, em termos de herança, em termos de ensinamento no sentido de como se organizar em situação de ditadura. Não surgiu lá por exemplo a idéia de um partido operário independente, que pudesse fazer política institucional. Não que houvesse uma tendência que propusesse isso, ninguém propunha isso. Em 78 isso surgiu desde o começo, inclusive com base em uma análise que nunca tinha havido antes no Brasil. O Partido Comunista, embora tivesse bases operárias, muita presença no sindicatos do setor público sobretudo, não era visto como um partido independente dos trabalhadores brasileiros, não era visto assim. Chegou a ser isso se você adota um critério estritamente leninista, de um partido que se auto-intitula o promotor dos interesses históricos da classe operária, neste sentido sim, mas no sentido de liderar efetivamente, de maneira independe as massas operárias a partir de uma interação permanente com as bases operárias em um processo de democracia interna do partido, isso nunca aconteceu, não cumpriu esse papel, como os partidos social-democratas europeus por exemplo fizeram. Então de 78 em diante o horizonte que se abriu para as lideranças do movimento operário eram inteiramente diferentes.

É interessante notar que Osasco e Contagem sempre foram referências muito positivas das lideranças de 78 em diante, fazem parte da história do movimento operário, e a parte luta armada foi um parênteses. Aliás muitos membros da luta armada acabaram no PT, muitos mesmo. Mas aí já sem a pretensão de liderar o movimento, a não ser certas facções mais radicais, que estão lá abrigados dentro do PT mas com a esperança de um dia tomar a direção e dar a linha correta do movimento operário, o que não é razoável. Eu pelo menos não acho. Claro que tem muita gente que acha. Mas os operários, por outro lado, isto a história do PT mostra, têm uma vocação democrática evidente. O PT é um partido de esquerda sim, e todos os companheiros que quiserem militar dentro no PT e jogar as regras do jogo interno, sem golpismos, ficam. E ficaram. Por isso o PT é até hoje um partido heterogêneo, tem de tudo, desde esquerda radical até a bem moderada gerando estes problemas, que todo mundo conhece.

Pegando 68 e 78, quando surgiu esse sindicato, o sindicalismo surgiu se contrapondo ao sindicalismo pelego?

Esta é uma boa observação sua, eles têm isso em comum. Eles reagiram cada um à sua maneira, mas os dois reagiram contra o sindicalismo pelego.

E eles propuseram comissões de fábrica semelhantes?

Não como estratégia de longo prazo. O pessoal do ABC fez sim organização por fábrica, nem chamava comissão de fábrica, mas comissões de empresas. Eram mais toleradas, semi-clandestinas às vezes, já não eram mais reprimidas selvagemente. Tinham muito mais como objetivo organizar a luta econômica do que a formação política, enquanto que as comissões operárias de Osasco eram muito fortemente politizadas. Aqui a intenção era formar quadros políticos revolucionários, enquanto que as comissões não tinham essa pretensão. Mas o Brasil tinha mudado bastante, já.

E hoje a idéia que se tem do sindicato não vai no sentido da sua atuação política...

Não, não é. Mesmo porque hoje existe o PT. Hoje fica muito clara a distinção entre o que é sindicato e o que é partido. Eles podem atuar juntos, e atuam, mas são organizações diferentes, com objetivos diferentes, formas de luta diferentes. Em Osasco houve uma certa confusão pelas razões que eu dei, porque as organizações eram tanto para a luta econômica quanto de formação política dos companheiros, foram as duas coisas e em parte as atividades eram clandestinas, em parte não. O que se podia, era feito abertamente.

Eu espero que possa ter alguma utilidade essas coisas que eu falei, apesar de eu não me lembrar de muitos detalhes, porque faz tanto tempo já, 30 anos... E como é uma história que não está contada a não ser naquele texto6 6 Weffort, FC. (1972). Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco. 1968. São Paulo, Cebrap. , a não ser uma ou outra coisa aqui, ali, então não é um capítulo bem conhecido da nossa história.

Quem conhecia bem esta fase era o Eder, que infelizmente faleceu há um tempo atrás. Ele era da direção nacional do POC, conhecia bem e escreveu sobre isso também e se estivesse vivo seria excelente vocês conversarem com ele. Ele tinha uma visão muito lúcida destas coisas. Provavelmente a análise dele não seria muito diferente da minha quanto à orientação geral.

Você acha que seria importante para o sindicato de Osasco lembrar da greve de 68?

Seria importante sim, porque faz parte da história do movimento operário em Osasco, da tradição operária de Osasco. A tradição de luta local, localizada é muito importante no movimento operário, não só no Brasil como em qualquer lugar. Até hoje na Grã-Bretanha, por exemplo, nos dias de festa cívica, dia do Trabalho etc., os sindicatos saem em desfile com suas bandeiras evocativas de lutas antigas. Tudo isso dá a identidade daquele sindicato, o sujeito se sente orgulhoso de pertencer àquele sindicato. É um fator de identificação. A história das lutas identifica os seus membros, que se sentem participantes de uma linhagem. Acho muito importante isso. E Osasco tem todas as razões para ser uma página gloriosa na história das lutas operárias, no Brasil inteiro, mas particularmente em Osasco. No Brasil a classe operária é muito mais móvel, geograficamente e provavelmente pouca gente que morava em Osasco naquela época esteja lá ainda. Sequer as famílias provavelmente não estão mais lá. Até hoje eu passo lá na frente da Cobrasma, "que movimento bonito foi aquele"...

Se vocês puderem, de alguma maneira divulgar, não sei exatamente como, o resultado do seu trabalho lá em Osasco, fazer uma palestra ou várias, ou melhor, combinar com o pessoal do sindicato pra comentar como é que foi, seria bem interessante. Eu acho que eles gostariam. Eu acho que vale a pena. Talvez até já estejam fazendo isso.

Recebido para publicação em agosto/1998

Notas

  • 1
    Política Operária.
  • 2
    VPR - Vanguarda Popular Revolucionária, do Lamarca.
  • 3
    ALN - Aliança Libertadora Nacional.
  • 4
    Atentado contra o sentinela da guarita do QG do 2° Exército, no Ibirapuera.
  • 5
    OBAN - Operação Bandeirantes -, nome do grupo especial de repressão à manifestação política situado em uma delegacia da Rua Tutóia.
  • 6
    Weffort, FC. (1972).
    Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco. 1968. São Paulo, Cebrap.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Out 1998

    Histórico

    • Recebido
      Ago 1998
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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